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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.18 no.4 São Paulo out./dez 2020  Epub 20-Jan-2021

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i4p1895-1914 

Artigos

E SACODE A POEIRA: FAZENDO O CURRÍCULO EMBALANÇAR EM COMPOSIÇÃO COM IMAGENS CINEMATOGRÁFICAS E PROFESSORAS

AND DUST ITSELF OFF: MAKING THE CURRICULUM MOVE IN COMPOSITION WITH CINEMATOGRAPHIC IMAGES AND TEACHERS

Y SACÚDETE EL POLVO: HACIENDO EL CURRÍCULO MOVERSE EN COMPOSICIÓN CON IMÁGENES CINEMATROGRÁFICAS Y CON PROFESORAS

Sandra Kretli da SILVAi 
http://orcid.org/0000-0003-0107-8726

Marlucy Alves PARAÍSOii 
http://orcid.org/0000-0002-3542-4650

1 Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professora adjunta do departamento de Teorias e Práticas Educativas e do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Programa Mestrado Profissional de Educação da UFES. E-mail: sandra.kretli@hotmail.com.

ii Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMG. E-mail: marlucyparaiso@gmail.com.


RESUMO

Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa que consistiu na realização de encontros com professoras de dois centros municipais de educação infantil, localizados na capital do Espírito Santo, Vitória, para pensar a força das imagens cinematográficas como disparadoras de redes de conversações que proporcionam a criação de linhas de vida para a escola. Como metodologia, a pesquisa utilizou as imagens-cinema e as redes de conversações para tecer as combinações que fazem os currículos embalançar na escola. Argumenta que os encontros com as imagens cinematográficas seguidos de redes de conversações propiciam a expansão de forças intensivas, a experimentação e a exploração do impensável para os currículos e para as infâncias, gerando possibilidades de ação das professoras.

PALAVRAS-CHAVE: Redes de conversações; Imagens cinematográficas; Currículos; Formação de professores

ABSTRACT

This paper presents part of the results of a study that held meetings with teachers from two municipal institutions for early childhood education, located in the capital of Espírito Santo, Vitória, to think of the power of cinematographic images as triggers of conversation networks that enable the creation of lines of life for school. As a methodology, the study used images-cinema and conversation networks to weave the combinations that make curricula move at school. It argues that the encounters with cinematographic images followed by networks of conversations enable the expansion of intensive forces, experimentation and the exploration of what is unthinkable for curricula and for childhoods, creating possibilities for action by teachers.

KEYWORDS: Conversation networks; Cinematographic images; Curricula; Teacher training

RESUMEN

Este artículo presenta parte de los resultados de una pesquisa que realizó encuentros con profesoras de dos centros municipales de educación infantil, localizados en la capital de Espírito Santo, Vitória, para pensar la fuerza de las imágenes cinematográficas como disparadoras de redes de conversaciones que posibilitan la creación de líneas de vida para la escuela. Como metodologia, la pesquisa utilizó las imágenes-cinema y las redes de conversaciones para tejer las combinaciones que hacen los currículos moverse en la escuela. Argumentase que los encuentros con las imágenes cinematográficas seguidos de redes de conversaciones posibilitan la expansión de fuerzas intensas, la experimentación y la exploración de lo impensable para los currículos y para las infancias, creando posibilidades de acción de las profesoras.

PALABRAS CLAVE: Redes de conversaciones; Imágenes fotográficas; Currículos; Formación de profesores

1 INTRODUÇÃO: UMA VIDA QUE PULSA

E sacode a poeira, embalança, embalança, embalança

E sacode a poeira, embalança, embalança, embalança

Berimbau é feito de beriba, uma cabeça bem maneira Mestre Bimba que me deu Entra na roda, abre o peito e sai falando toca Iuna e banguela mostra o som que Deus lhe deu

E sacode a poeira, embalança, embalança, embalança

(MESTRE ACORDEON)

Centro municipal de educação infantil. Na porta da escola: pais, mães, avós, cheiro de pipoca doce e salgada, picolé e churrasquinho, trânsito, passos apressados, barulho de buzina que se mistura aos resmungos e conversas de crianças, merendeiras e mochilas de super-heróis. Nas salas, crianças interagem, brincam, brigam, desenham, inventam, dormem e se aconchegam nos colos das professoras, que as abraçam e oferecem afetos. Bate o sinal, crianças gritam de alegria. No pátio, roda de capoeira e muitos abraços de reencontro. Despedida de mais um dia de escola. “Por favor, mãe, deixa eu brincar um pouquinho no parquinho?” “Pai, hoje é dia de pipoca, né?”, verbalizam as crianças. Professoras se ajeitam, alimentam-se, respiram. Intervalo para banheiro e pequeno lanche.

Os inusitados sempre aparecem com essa rotina: as crianças que se escondem na sala de vídeo na hora da saída; o pai que chega furioso achando que o filho que brinca de esconde tinha sido sequestrado; a professora que tem que sair correndo porque o filho está doente. Nesse entremeio, entram na sala as professoras que, mesmo no fim de um dia de trabalho, se disponibilizam a participar de uma investigação e a violentar o pensamento por meio das imagens cinematográficas. A sala de informática vai se transformando em cinema. Luzes se apagam. Filme em cena. Após o encontro com as imagens, nasce uma roda de conversas que possibilita verbalizar as emoções, as sensações, os sentimentos, os afetos e as afecções e tudo o que o encontro com as imagens possibilita pensar. Assim nasce mais uma experiência de pesquisa cartográfica.

Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa de pós-doutoramento que buscou compor encontros com as professoras de dois centros municipais de educação infantil (CMEIs), localizados na capital do Espírito Santo, Vitória, fazendo “usos” (CERTEAU, 1994) de imagens cinematográficas para movimentar o pensamento e expandir as combinações que podem ser organizadas coletivamente para fazer os currículos embalançar na escola. Assim como o mestre Acordeon, autor da música da epígrafe, desejamos “sacudir a poeira das escolas” a fim de fazer os currículos, as professoras, os processos de aprender e ensinar se movimentarem e deslizarem, desterritorializarem, reinventando-se continuamente.

Os encontros com as professoras aconteceram, quinzenalmente, durante o primeiro semestre letivo de 2019. Tiveram como elemento disparador as redes de conversações (CARVALHO, 2009, p. 207), isto é, artes da conversa, redes de trabalho afetivo “[...] que se constituem como a própria produção de redes sociais, de comunidades, de formas de vida (biopoder), de produção de subjetividades (individuais e coletivas) e de sociabilidade”, com o objetivo de promover a circularidade e as negociações de sentidos: curtas-metragens e animações, em função do pouco tempo disponibilizado para planejamentos coletivos na/da escola. Assim, logo após a exibição dos curtas, as professoras começavam a verbalizar os perceptos e os afetos1 constituídos a partir do encontro com as imagens cinematográficas.

Acreditamos, com base em Deleuze (2003, p. 35), que “[...] há sempre violência de um signo que nos força a buscar, que nos rouba a paz”. Nossa intenção, ao levar as imagens cinematográficas para esses encontros, era apostar que esse signo artístico pudesse fazer embalançar o pensamento das professoras, fazê-las hesitar, balançar, oscilar, forçando-as a pensar outras ideias para as escolas e para os currículos. A aposta era a de que o encontro das pesquisadoras com as professoras, as imagens e as conversações pudessem propiciar acontecimentos inusitados com o intuito de desterritorializar os currículos para a invenção de novos desejos coletivos, outras combinações e composições.

Nesse contexto, problematizamos:2 O que pode a imagem nos encontros de professoras? Que forças passam entre os corpos das professoras com relação às imagens que possibilitam embalançar os currículos? Que combinações podem ser feitas para a composição curricular por meio das redes de conversas travadas nesses encontros com as imagens cinematográficas? Sabemos que, nos currículos, há formas que indicam ações prescritivas e repetitivas que fazem pouco sentido para os praticantes dos cotidianos3 (CERTEAU, 1994), produzindo tristezas e adoecimentos. No entanto, há, também, engendradas nessas formas muitas forças que produzem rupturas nas formas e buscam conexões com os afetos alegres, que expandem a potência de vida (PARAÍSO, 2015).

O argumento discutido neste artigo é que os encontros com as imagens cinematográficas, seguidos de redes de conversações, possibilitam a expansão de forças que movimentam as formas e ajudam a experimentar e explorar o infinito e o impensável dos currículos, das infâncias, das escolas, ampliando a potência de ação das professoras, ou seja, faz sacudir a poeira dos CMEIs e embalançar os currículos e os processos de formação de professoras.

Para desenvolver esse argumento, apresentamos três movimentos importantes da pesquisa. O primeiro mostra como foi se constituindo a cartografia dos encontros das professoras com as imagens cinematográficas. O segundo movimento explora a força das imagens no encontro com as professoras, trazendo, como exemplo, o curta-metragem Caminhando com Tim Tim4 - elemento disparador das conversas que criam as linhas de fuga -, fluxos de forças que possibilitam aberturas, processos de desterritorialização,5 impulsionando transformações e agenciamentos que produzem novos sentidos para as práticas discursivas. Por fim, mostramos como o currículo, visto como um território de encontros e combinações, abre frestas no “currículo-forma” (PARAÍSO, 2015), inventando novos movimentos curriculares.

2 PRIMEIRO MOVIMENTO: A CARTOGRAFIA DOS ENCONTROS COM AS IMAGENS CINEMATOGRÁFICAS EM PROCESSOS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORAS

Uma importante tarefa do cartógrafo ou da cartógrafa é “[...] dar língua aos afetos que pedem passagem” (ROLNIK, 2007, p. 23). Para “dar língua aos afetos”, é necessário estar aberta a encontros, ao inusitado que pode se passar nos encontros. Para “encontrar”, explicam Deleuze e Parnet (1977), não há método, porém requer uma longa preparação. Preparação no sentido de se abrir ao inusitado, disposição para “desaprender” (PARAÍSO, 2015), espreitar possíveis acontecimentos e aprender. Inspiradas nessa ideia-força, adentramos nos cotidianos de dois CMEIs, isto é, espaços e tempos praticados por singularidades, agenciamentos e experiências, munidas de uma preparação inicial, mas abertas ao inusitado e às novas composições. Com o olhar à espreita e os sentidos em alerta, seguimos em devires, embaladas pelos afetos e pelas forças que suscitariam dos encontros com as imagens em redes de conversas. Acreditamos que o mais importante em uma cartografia é atentar ao que se passa entre os corpos e acompanhar as sensações, os agenciamentos que promovem as invenções cotidianas.

Cada encontro vivenciado na cartografia que subsidia este artigo apresenta uma peculiaridade, pois entendemos o cotidiano escolar como campo micropolítico (KRETLI; DELBONI, 2014), que consiste na criação de agenciamentos intensificadores dos processos de singularização, que produzem uma energia do desejo que movimenta indivíduos e grupos, possibilitando processos de desterritorialização, reterritorialização e criação.

Ocorreram reuniões nos dois CMEIs para discutir algumas combinações prévias antes de iniciarmos a pesquisa como: a periodicidade dos encontros, o melhor horário, a escolha de espaço, os materiais disponíveis. Posteriormente, colocamo-nos à deriva, deixando-nos embalar pelos afetos e encontros. O tempo de duração cronológica era em torno de 40 a 60 minutos (fim do expediente), mas a duração intensiva era surpreendente e incalculável. Algumas vezes, as conversas se prolongavam, estendendo-se aos momentos de confraternizações do grupo, aos churrasquinhos que comíamos em frente à escola, às caronas. O mais importante em uma pesquisa cartográfica não é essa lógica cronológica, cobrada nos certificados de participação de pesquisa dos planos de forma, mas, sim, a participação interventiva e o olhar atento à realidade na dimensão do plano de forças e dos afetos. Assim, nosso interesse estava no que ocorria nos interstícios, nas dobras, nos agenciamentos que expandiam os processos de criação, pois o objeto de pesquisa em uma cartografia é “[...] tomado apenas como testemunho de uma vontade de viver, de durar, de crescer e intensificar a vida” (OLIVEIRA; PARAÍSO, 2012, p. 165), que se reinventa incessantemente.

Essa vontade de viver é revolucionária, como nos ensinam Deleuze e Parnet (1977), porque busca conexões, agenciamentos, deseja o encontro de corpos que se afetam para compor com as forças que pedem passagem: “Será que nesses encontros podíamos falar das questões que nos inquietam? Temos alunos com espectro de autismo e gostaríamos de conversar sobre linguagens, falar de nossas ações... Como trabalhar com crianças que se comunicam de outras maneiras?”6.

Cabe lembrar que um dos movimentos da pesquisa era exatamente problematizar como os encontros com as imagens cinematográficas possibilitam o pensar. Todavia, um pensar que foge das representações e segue em busca do pensamento nômade, que implica experimentações e aberturas no campo problemático, ou, ainda, como ensina Lins (2017, p. 271), são encontros de múltiplas sensações e ressonâncias entrelaçadas “[...] que transformam elementos não conceituais - perceptos e afectos -, oriundos de arquipélagos de diferenças, errância do sensível, que perpassam a literatura, as artes, as ciências e enveredam para um pensamento do devir”.

O princípio básico da cartografia é afirmar a vida. Vida que sempre escapa de qualquer tentativa de aprisionamento. Para afirmar a vida, é necessário expandir as forças que, de algum modo, resistem às tentativas de opressão e a qualquer tipo de engessamento. É um movimento de pesquisa que se constitui como ético, estético e político, pois se compromete com a intervenção da realidade que é criada no processo de pesquisa, por meio das relações que têm como foco a construção coletiva.

Quanto aos procedimentos, vale ressaltar que são sempre muitos e infinitos, pois eles vão surgindo no decorrer do processo. O campo problemático está sempre aberto a novas questões e inquietações que surgirem no percurso. Embora o foco da pesquisa fosse pensar a força das imagens nos encontros com as professoras como possibilidade de expandir os movimentos inventivos curriculares, por diversas vezes, as professoras participantes traziam inquietações: “Temos reunião de pais, você podia passar esse curta e conversar com eles também?”, solicita uma professora. “Porque os pais ficam muito ansiosos com a alfabetização dos filhos, com as avaliações”. Em face desses agenciamentos, fomos compondo outras e novas linhas que se abriam para diferentes conexões e problematizações.

Em outra escola, sentimos outro devir pedir passagem, buscar conexão: “Você topa fazer o projeto cinema com os alunos?”. Ao acompanhar esses processos, os movimentos de pesquisa vão passando por desdobramentos, novas ações, outras inquietações e perguntas que surgem a partir dos encontros com ideias, imagens, professoras e escolas.

Na pesquisa aqui apresentada, portanto, os curtas e as animações foram os disparadores das redes de conversas e eram selecionados previamente. Contudo, as conversas eram sempre abertas, e o que se passava nos encontros nos indicava novos caminhos a seguir. Depois de alguns encontros, até o movimento de escolha e seleção dos curtas se expandiu, pois algumas professoras e colegas do grupo de pesquisa se interessaram em participar e começaram a sugerir algumas animações, curtas e filmes de longa duração para serem exibidos nos encontros, justificando os motivos da escolha.

Com o passar do tempo, surgiram os grupos de WhatsApp, outro meio para socializarmos as inquietações, problematizações, afetos, afecções e acontecimentos. Nesse espaço, curtas-metragens, fotografias, entrevistas, artigos eram compartilhados. Além disso, alguns afetos que continuavam a embalar o pensamento após os encontros com as imagens eram registrados nesse espaço e serviam de conteúdos para novas problematizações.

Pedimos autorização para gravar os encontros e, durante a transcrição dos áudios, fazíamos registros de nossas sensações e das questões principais que o encontro suscitava. Outro elemento utilizado foi um roteiro de indagações que, geralmente, no final dos encontros, entregávamos e pedíamos que as professoras registrassem como um diário de bordo. Tivemos também os registros dos alunos orientandos de mestrado que participaram da pesquisa7 e que, voluntariamente, nos enviavam narrativas das conversas movidas pela força dos encontros.

As redes de conversações que se constituíam após os encontros com as imagens foram ricas em informações e sensações para a pesquisa. Muitas vezes, o silêncio inicial já nos dizia muita coisa. Em seguida, a tentativa de falar, com a voz embargada. Algumas vezes o choro que não se segurava e contagiava muitos do grupo, causando ressonâncias e vibrações. Cartografar os afetos que pedem passagem requer das cartógrafas sensibilidade, partilha, cumplicidade e, principalmente, pertencimento, engajamento. É por meio das conversas disparadoras de ideias que o comum é conquistado. Entretanto, nunca de modo definitivo. Numa escola habitam crenças e pressupostos epistemológicos diversos, por isso faz-se necessário compartilhar as múltiplas artes de viver das professoras, tendo em vista uma aprendizagem coletiva, e traçar um plano comum.

No entanto, como ressaltam Kastrup e Passos (2013), não podemos confundir o comum com o homogêneo. O homogêneo diz respeito à uniformização dos modos de vida, discursos e opiniões que conduzem a uma ditadura camuflada. O comum, por sua vez, é um conceito político que se enfatiza na experiência, não se pauta por semelhança e identidade, mas, sobretudo, pela diferença compartilhada em redes de conversações e ações complexas. O coletivo se constitui, portanto, com e nas diferenças por meio de uma abertura comunicacional, uma rede de partilhas e de pertencimentos. “É a rede de composição potencialmente ilimitada de seres tomados na proliferação das forças de produção da realidade” (KASTRUP; PASSOS, 2013, p. 270), pois as forças que surgem a partir das imagens cinematográficas estão ali para serem experimentadas.

3 SEGUNDO MOVIMENTO: QUANDO A LÓGICA SE CALA8 E FAZ ECOAR A FORÇA QUE EMERGE DAS IMAGENS-CINEMATOGRÁFICAS

Para sacudir a poeira das escolas e fazer embalançar os currículos, é necessário driblar a lógica da razão e buscar linhas de fuga, linhas que nos fazem escapar das linhas duras, cheias de certezas e de verdades, que podem nos engessar e nos fazer acomodar. O encontro com as imagens cinematográficas nas escolas, seguido de conversas com as professoras, possibilita linhas de fuga e o desalojar do pensamento. Nesse balanço, alguns conceitos vão sendo desterritorializados, abrindo novos possíveis para os currículos e para as infâncias. Promove a quebra de clichês9 e, assim, a potência do pensamento, na medida em que nos ajudam a problematizar a vida e “[...] produzir imagens novas para o mundo e um mundo de novas imagens” (CARVALHO, 2014, p. 166).

É recorrente, nos encontros com as escolas, a preocupação em seguir os currículos oficiais e prescritos. Em uma conversa, uma professora comenta o desejo de estudar o documento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e, posteriormente, solicitou que nosso grupo de pesquisa também colaborasse participando da reelaboração do Projeto Político-Pedagógico (PPP). Problematizamos com elas as concepções de currículo presentes nesses documentos, viabilizando a circulação de múltiplos sentidos para os currículos nas redes de conversas com as professoras. Nesse contexto, apostamos no encontro com as imagens-cinema como possibilitador da quebra dos clichês presentes nas práticas discursivas educacionais e provocador da violência no pensamento. Sustentamos que esse encontro pudesse fazer a lógica da razão calar, ou melhor, ficar em suspensão, por alguns segundos, abrindo brechas para o atravessamento da força dos perceptos e afetos suscitada pelo encontro com as imagens cinematográficas.

Essas forças buscam novas conexões, combinações e composições que traçam linhas de fuga nos currículos-formas, possibilitando novos processos inventivos curriculares, como fica evidente na fala da professora, quando se sente movida pelos afetos que a atravessaram: “As imagens desse curta mexeram comigo. Estamos em tempos difíceis. Vivemos uma loucura em sala de aula [choro], não sei se vou conseguir falar. Não sei para onde estamos indo, o que estamos produzindo”. O choro da professora contagia o grupo e, assim, o coletivo vai buscando, movido pela força dos afetos e das afecções que emergem das imagens cinematográficas e das redes de conversações, novas ideias e (re)existências para a Educação.

Algumas enunciações das professoras expressam o quanto essa lógica de centralização curricular, de avaliações em larga escala, os “raciocínios sobre bom e mau desempenho” (PARAÍSO, 2015) se fazem presentes nos cotidianos escolares, exigindo organizações, ordenamentos, índices de aprovações. Essas formas dos currículos “[...] prescrevem, enquadram, formatam, generalizam, repetem o mesmo, limitam. Tudo isso impede o escape e a expansão; dificulta as conexões; aprisiona o desejo e bloqueia as forças” (PARAÍSO, 2015, p. 51). No entanto, o encontro com as imagens possibilita que as professoras verbalizem o que produz tristeza e engessamento, mas também o que traz força e potência de ação coletiva que faz embalançar os currículos-formas, propiciando desviar da lógica de recognição para experimentar a lógica das intensidades, das experimentações e da composição criada no plano de imanência. Tais composições deixam sempre em aberto a possibilidade de combinações distintas.

Sobre esse aspecto, uma professora diz: “Temos um grupo de professores superexperientes, aqui. A gente sai de casa com uma vontade enorme de viver, e as crianças são essa força de vida, mas, quando chegamos aqui, eu não sei o que é, a gente acaba entrando nessa loucura”. A fala de uma professora se entrelaça com outras:

Mas, ainda bem que temos as crianças, elas vêm e nos abraçam, nos fazem morrer de rir, convidam-nos para brincar, dançar. Temos também momentos como aquele que vivenciamos no dia das oficinas, em que pudemos propor atividades em pequenos grupos. Misturamos as turmas e cada um ficou responsável por pensar uma experiência. Vocês lembram? Deu trabalho, mas foi muito bacana. As crianças amaram.

“Teve o dia da família também, aquela interação entre pais, crianças foi muito potente. E tudo fluiu, nós combinamos algumas coisas, preparamos outras, mas a ajuda de alguns pais foi surpreendente”.

Assim, surge uma rede de conversações que tece a coletividade, a solidariedade, as invenções - a força que rompe as formas e movimenta a diferença. Diferença que em Deleuze significa “[...] comunicação, contágio dos heterogêneos; em outros termos, a ideia de que uma divergência nunca explode sem contaminação recíproca de pontos de vista” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 133).

O encontro com as imagens dos curtas-metragens selecionados para fazer a lógica da razão se calar e violentar o pensamento das professoras era planejado com bastante antecedência. No entanto, não sabíamos que agenciamentos poderia suscitar. Afinal, sabemos que os encontros podem “[...] adotar formas muito diferentes, atingir o excepcional, mas conservam a mesma fórmula” (DELEUZE, 2015, p. 8). Tivemos o cuidado de escolher animações de curta duração para expandir o tempo das conversas, porque acreditamos que é nesse tempo que as problematizações são fabricadas, criadas. Uma conversa pode ser “[...] simplesmente o traçado de um devir” (DELEUZE; PARNET, 1977, p. 12). Os devires são orientações, entradas e saídas. Ficávamos, então, à espreita para cartografar as intensidades de cada encontro e com elas “[...] inventar novas forças ou novas armas” (DELEUZE; PARNET, 1977, p. 15), quando os esquemas sensórios-motores automáticos e já montados permitiam a entrada de imagens ópticas e sonoras puras, que possibilitavam movimentar as formas do currículo com novas invenções curriculares.

Apresentaremos alguns desses encontros e as composições das professoras com os afetos e afecções que emergiram a partir das imagens do curta-metragem Caminhando com Tim Tim, para explorar a compreensão do currículo como território do encontro e da composição.

4 CAMINHANDO COM TIM TIM

Com música em tom suave e poético e uma narrativa simples, porém intensa, o movimento de câmera desliza, acompanhando os passos e seguindo apenas a altura da criança. O curta trata da delicadeza dos quatro encontros de Valentim, um garotinho de mais ou menos dois anos, ao percorrer o trajeto que faz cotidianamente até a casa da avó. Apresenta um mundo de experiências e descobertas que os encontros promovem e nos possibilita problematizar o olhar do adulto, o olhar da infância, o tempo cronológico, o tempo intensivo...

Assim se expressa a mãe narradora desses cinco minutos de extrema vibração: “Para mim: calçada, ferragem, mercadinho, chegou. Para Valentim: pedrinhas, árvores [...] duas ruas atravessadas para dar a mão para mãe. Cachorros constantemente para acariciar, rir, achar graça da língua a lhe molhar, dos beijos caninos atrapalhados”. No curto percurso vivido por Valentim e sua mãe, o cineasta dá destaque à potência dos encontros. Vamos colocar os corpos para vibrar? Vamos embalançar?10

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=1dYukOrq5RI.

Imagem 1 Em busca daquilo que nos toca, que nos movimenta 

As imagens do curta Caminhando com Tim Tim fazem pensar sobre questões importantes para a educação infantil: a força dos encontros, o tempo intensivo, as experimentações cotidianas, a potência das interações, o olhar da infância, o deambular, os afetos alegres e os afetos tristes, o compartilhar, a simplicidade da vida... Possibilitam, principalmente, desnaturalizar “verdades” que circulam nos discursos educacionais por meio do encontro do pensamento com outro, “[...] que é o seu ‘fora’, mas não um fora que ele então representaria, como na teoria clássica da representação e do signo” (TADEU, 2002, p. 50).

Ainda nessa direção, como reforça Tadeu (2002, p. 50): “[...] esse signo não representa nada, nem ninguém”. Trata-se, sobretudo, “[...] de um outro que emite um signo que é o ainda não pensado, o impensável, intempestivo, o extemporâneo” (p. 50). É o inusitado - que surge com os afetos que emergem das imagens-cinema. Acreditamos ser possível pensar o inimaginável para a escola, para as infâncias, para os currículos, para a educação. Pensar na e com a diferença, quando suscitamos a quebra dos clichês que carregam alguns regimes de “verdades” para a escola.

Nas redes de conversações com as professoras, iniciamos o debate com as seguintes perguntas: de que modo as imagens do curta Caminhando com Tim Tim nos afetam? Que imagens nos afetam? Em que elas nos ajudam a pensar os currículos na/da educação infantil? Como as forças que emergem dos nossos encontros movimentam as formas dos currículos? Quanto aos afetos e às afecções, as professoras expressaram:

Me afeta o encantamento do Tim Tim nesse percurso diário; o prazer dele com as descobertas. Para as crianças, hoje a escola é uma coisa, amanhã a escola é outra, pois elas a reinventam todos os dias, mesmo fazendo as mesmas coisas, nos mesmos lugares.

O que me impressiona nesse curta é como as crianças conseguem aprender com as pequenas coisas. Um matinho que ontem nasceu, mas só a criança percebe a mudança. Eu acho que no dia a dia eu aprendo muito mais com as crianças do que elas comigo. Quando eu crescer, eu vou ser criança! [risos].

A mãe do Valentim, que coisa linda! Ela interage com ele em todo o trajeto. Essas interações afetivas foram escolhidas pela criança porque esse adulto é sensível, permitiu que as relações acontecessem daquele jeito. Ela permitiu as enunciações do filho, possibilitou que esse caminho fosse assim, cheio de encontros, pois poderia ser de outra forma. Ela poderia, por exemplo, interferir nas escolhas da criança, poderia impedir que ele vivenciasse tantas experiências. Da mesma forma que aprendemos a ser preconceituosos, podemos aprender a não ser. Valentim interagia com diversas pessoas: o morador de rua, o guardador de carros...

O curta nos fala de tempo. Com essa correria, as crianças vão andando [não sei como] no ritmo do adulto. Tim Tim não, ele vai no seu ritmo. E a mãe, como disse a colega, se permite ir no tempo dele. Cada dia que passa, não temos mais tempo de chegar no outro, conversar com o outro; eu ando no automático, corro para um lado, corro para o outro e, às vezes, as coisas simples, que são as melhores da vida, a gente não percebe mais. A correria da vida não deixa a gente se encontrar com o outro, dar bom dia, conversar... A gente está sempre correndo! Quero olhar para o céu, ver coisas diferentes!

Esse vídeo me fez repensar sobre o olhar da criança. Minha filha, com aproximadamente dois aninhos, viu um morador de rua deitado no chão agasalhado e apontou: ‘Neném!’. Era a percepção dela. Expliquei a ela o que era um morador de rua. Eu tinha visto aquele senhor ali, mas não dei importância, e ela deu. As crianças ainda estão dando conta de enxergar, pois, para elas, ver um corpo estendido no chão ainda não está banalizado, naturalizado.

O perambular do personagem Valentim que, em seu percurso diário, amplia o espaço e o tempo com suas experimentações intensivas, cheias de afetos alegres, contagia o encontro das professoras. Possibilita a problematização de suas práticas, de seus encontros cotidianos com os/as alunos/as e com a vida. A ação da mãe do menino também entra na pauta de discussão e faz com que as professoras repensem as relações cotidianas e os atropelos que o tempo chronos, acompanhado das cobranças, das avaliações, do bom desempenho e das inúmeras demandas de ter que cumprir um currículo oficial e prescrito vem ocasionando nos processos de invenções curriculares. Questionam modos de viver na/da atualidade e se propõem, coletivamente, a repensar e reinventar outros modos de vida, tentando não deixar escapar as inquietudes causadas diante da fala da narradora do curta: “O tempo é o senhor de delicadezas, desafios e novidades constantes e intermináveis”. Reverberações...

As imagens do curta Caminhando com Tim Tim desestabilizam, portanto, o arco sensório-motor, fura os clichês de alguns discursos educacionais, mobilizando imagens ópticas e sonoras puras11 que favorecem uma nova imagem de pensamento, uma nova imagem para a escola. As professoras, movidas pelas imagens-lembranças de suas infâncias, de suas formações, de suas relações com os alunos e filhos, por meio das conversas, atualizam o virtual e se emocionam e apostam na ideia de compor currículos-experiências movidos pela arte dos encontros, das conversas e das composições que se constituem das multiplicidades de saberes, de afetos, linguagens e conhecimentos - currículos que se engendram com e nas diferenças. As professoras verbalizam como os encontros e os agenciamentos potencializam a vida e, ainda, refletem que o tempo cronológico muitas vezes impossibilita viver com intensidade as experiências de “bons” encontros:

Esses dias eu fui à feira. Estava com tanta pressa. Eu encontrei, ou melhor, apenas vi várias pessoas e me desviei, porque eu não poderia parar. E isso tem feito muita falta na nossa vida, né? Essa impaciência, essa ansiedade, esse corre-corre cotidiano, tem nos roubado esse valor - escutar as pessoas, as crianças, por isso esse monte de doenças psicológicas que estão surgindo por aí. Preciso reservar tempo para almoçar, tempo para sair com minhas filhas. Fazer como a mãe de Tim Tim, ir para lugares onde elas tenham tempo para andar, contar histórias e que eu tenha mais tempo de ouvi-las.

Eu parei de começar uma atividade e achar que tenho que terminar no mesmo dia. A gente faz tudo às pressas. Agora não, estou revendo isso e, se tiver no meio, vamos parar no meio. Terminaremos no dia seguinte. A gente precisa parar de se atropelar. Entramos nessa roda viva e nos atropelamos e atropelamos os meninos e nem conversamos sobre isso. Essa conversa hoje tem sido importante para eu repensar, repensar as minhas ações. Por exemplo, tenho um aluno que, apesar de não ser da educação especial, me incomoda o fato de ele não falar. Ele não fala em momento nenhum, mas, quando o pai vem buscá-lo, percebo que ele conversa com o pai. Então, vendo isso, eu comecei a perguntar várias coisas para ele. Disse que eu descobri que o pai dele tem uma loja de construção, falei que eu vou fazer uma visita na casa dele. Ele ficou feliz e já está até me beijando.

Interessante que a própria imagem entra em relação com outras forças para escapar do mundo dos clichês. Deleuze (2015, p. 38) disse que, para que se escapasse do clichê, era “[...] preciso que se abrisse a revelações poderosas e directas, as da imagem-tempo, da imagem legível e da imagem pensante”. Libertar-se dos nexos sensório-motores, que deixassem de ser imagem ação para tornarem-se imagem ótica, sonora e táctil pura. Por isso, sugere questionarmos como as imagens nos afetam e, assim, descobrirmos diferentes elementos e relações que estabelecemos com as imagens, ou seja, para que “[...] possamos arrancar dos clichês uma nova imagem” (DELEUZE, 2015, p. 38). Ressalta, ainda, que a imagem está sempre caindo em estado de clichê, porque ela se insere ou sugestiona encadeamentos sensório-motores.

Vivemos em uma civilização em que todos os poderes têm interesse em esconder tudo o que pode uma imagem. Assim, faz-se necessário, em alguns momentos, restaurar as partes perdidas, tentando reencontrar tudo o que não se vê na imagem. Contudo, é preciso deixar vazios para pensarmos que ainda não vimos tudo. “Há que dividir ou fazer o vazio para reencontrar o inteiro” (DELEUZE, 2015, p. 39).

5 TERCEIRO MOVIMENTO: O CURRÍCULO É TERRITÓRIO DO ENCONTRO E DA COMPOSIÇÃO12

Valentim tem me ensinado

sobre os caminhos, caminhares e destinos.

Que o chegar não é mais valioso que a andança.

Que o encontro é precioso e necessário.

(Genifer Gerhard/mãe de Valentim)

O currículo é um território do encontro, da combinação e se constitui no plano de imanência. Por essa razão, um currículo assim entendido não se detém em formas nem em modelos previamente definidos. Para Deleuze (2002, p. 12), podemos falar em plano de imanência quando a imanência não é mais outra coisa que não seja ela mesma: “O plano de imanência não se define por um sujeito ou um objeto capaz de o conter. Pode se dizer da pura imanência que ela é uma vida”. Vida imanente que transporta acontecimentos ou singularidades que se atualizam nos sujeitos e nos objetos.

Os currículos, assim como as escolas, são territórios de “[...] disseminação de saberes diversos, de encontros ‘variados’, de composições ‘caóticas’, de disseminações ‘perigosas’, de contágios ‘incontroláveis’, de acontecimentos ‘insuspeitados’” (PARAÍSO, 2010, p. 588), que proliferam a multiplicação de sentidos. As linhas de existências de um currículo - linhas molares (duras), moleculares (flexíveis) e de fuga - constituem-se entremeadas às redes de saberes, poderes e de subjetividades, buscando composições e combinações na construção de diferentes modos de vida. Em um currículo há, portanto, o plano das formas, que procura organizar, ordenar, normatizar, padronizar, universalizar e, ainda, controlar os modos de vida por meio de sistemas avaliativos. E, também, outras forças que fazem vazar, escapar dessas linhas de sedimentação, que são as linhas de fissura ou de fratura. Essas linhas coexistem, elas são indissociáveis, ou seja, o plano das formas e o das forças se misturam.

Diante disso, procuramos mapear os acontecimentos e as singularidades que compõem as forças que embalançam os currículos, buscando mostrar os movimentos inventivos curriculares criados pelas professoras nos encontros com as imagens cinematográficas. Assim, problematizamos: Que imagens possibilitam pensar novos currículos? Que novas imagens de currículos podemos, coletivamente, compor?

As imagens do curta Caminhando com Tim Tim possibilitaram que as professoras pensassem os movimentos curriculares e buscassem aberturas para escapar dos currículos formatados e prescritos que padronizam e automatizam os corpos: “Tem momentos que a gente nem olha mais para o que está fazendo, pois estamos agindo no automático, como o pai do Valentim. Só reproduzindo, reproduzindo...”, problematiza uma professora.

Em diálogos, as professoras apresentam suas dificuldades de romper com a lógica da razão que normatiza, controla, avalia e tenta universalizar os currículos, como exemplifica outra professora nas vésperas do Dia das Mães: “Estamos ‘presos’ a esse currículo que se efetiva conforme as datas comemorativas. Eu estava em um movimento tão interessante com as crianças de confeccionar brinquedos e, de repente, tenho que parar tudo para produzir os cartões para o Dia das Mães”. A fala dessa professora desencadeou uma discussão que mobilizou o coletivo a repensar suas ações e inventar outros sentidos para os currículos.

Eu queria mesmo era mostrar para as mães o que a gente vem produzindo aqui com as crianças. Por que não convidamos as famílias para confeccionarem os brinquedos com a gente? Não seria muito mais interessante do que eu ter que parar para produzir cartão de dia das mães? Essa formalidade de todo mundo ter que fazer cartão me deixa indignada. Tem tanta coisa mais interessante para fazermos com as famílias!

Nesse contexto, as professoras reconhecem que é por meio dos encontros e das relações com as crianças, com os colegas, com os artefatos culturais, com as imagens cinematográficas, literárias que as invencionices e artistagens vão sendo pensadas. Assim, propomos a expansão do tempo dos encontros coletivos para movimentar esses processos de invenções. As combinações e as composições agenciam os possíveis e a realização dos projetos, fazendo o corpo vibrar, pulsar, diante de uma produção coletiva de conhecimentos que faz sentido para todos. Por isso, por meio dos encontros coletivos, passam a refutar e a recusar propostas e projetos “sem sentido”, pois não participaram do processo de discussão e construção, principalmente porque, como elas mesmas afirmam:

Esses projetos que chegam por decreto faz o corpo pesar, ficar duro e nos entristecem. Enquanto os projetos que discutimos, participamos do processo e inventamos com as crianças e ou que combinamos aqui, em nossas reuniões, é o que nos dá o prazer de continuar trabalhando.

Em composição com as fabulações das crianças, uma professora relata, movida pela colocação da colega: “Hoje uma aluna me contou que na casa dela tem uma passagem secreta, que vai para o mundo das sereias”. A professora destaca que essa narrativa a afeta e possibilita a sensação de liberdade, abertura. Ao estabelecer uma conexão com essa aluna, permitiu que o currículo fosse movido pelos devires e pelos afetos. Assim, a professora pergunta à criança: “E as sereias cantam?”. Complementa o seu relato afirmando que o encontro com essa aluna provocou um alvoroço na sala, balançou as formas do currículo e abriu brechas para um fluxo de intensidade: “Os olhos das crianças brilhavam e cada uma foi inventando passagens secretas para diferentes mundos imaginários, o que me deu muitas ideias de compor novas experiências com a turma”.

Assim, a professora, tomada pelos afetos suscitados nos encontros com as imagens do curta Caminhando com Tim Tim, propõe: “Eu gostaria de pensar currículos a partir dessas fabulações das crianças, pensar uma organização pedagógica a partir da imaginação, das invencionices e das brincadeiras das crianças”. A força da imagem do curta se articula ao fluxo das redes de conversações com as professoras, fazendo com que a fabulação criadora da criança agenciasse uma linha de fuga, ou seja, novos possíveis, aberturas para embalançar os currículos e pensar novos sentidos para os processos de aprender e de ensinar.

Deleuze e Parnet (1977), ao descreverem o que é um encontro, exemplificam o seu encontro com Foucault, afirmando que o mais importante não é dizer o que disse ou não disse Foucault, ou detalhar como ele o vê. Argumentam que o mais relevante é encontrar “[...] esse conjunto de sons martelados, de gestos decisivos, de ideias secas e ardentes, de atenção extrema e de fechamento súbito, de risos e sorrisos que se sentem como ‘perigosos’ no exacto instante em que experiencia a ternura” (DELEUZE; PARNET, 1977, p. 22). Vamos, portanto, fazendo combinações com todas as multidões que nos habitam, afinal, “[...] somos desertos, mas povoados de tribos, de faunas e de floras” (p. 22).

A fabulação da criança é tomada como potência pela professora, como máquina de guerra nômade, que faz deslocar a imagem de currículo como lista de objetivos ou de descritores avaliativos, abrindo fissuras para passar a ideia de currículo experiência movido pela arte do encontro e da combinação, currículo que se move com e na diferença. Como diz Deleuze (2015, p. 223), “[...] o afecto como avaliação imanente no lugar do juízo como valor transcendente: ‘gosto ou detesto’ em vez de ‘julgo’”.

Deleuze (2015) afirma que Nietzsche também substituía o juízo pelo afeto prevenindo os leitores que para lá do bem e do mal não significa o mesmo que para lá do bom e do mau. Justifica que o mau é a vida esgotada, degenerescente, enquanto o bom “[...] é a vida efusiva, ascendente, a que sabe transformar-se, metamorfosear-se consoante as forças que encontra e que compõe com elas um poder sempre crescente, aumentando sempre o poder de viver, abrindo sempre novas ‘possibilidades’” (DELEUZE, 2015, p. 223).

Para Deleuze (2015), não há mais verdade em nenhuma dessas diferentes formas de vida; o que há é só devir. Devir é o poder do falso da vida, a vontade de poder. Há vontade de poder de ambos os lados. O autor esclarece que a distinção está na energia nobre que é capaz de transformar-se, que faz criar outros possíveis, enquanto a energia vil já não consegue fazer mudanças, pois busca o controle e a dominação. Nas discussões com as professoras, perguntamos de que modo os encontros com as imagens provocam as desterritorializações nos currículos. Elas apresentaram alguns possíveis:

Essa é minha estagiária na segunda, terça e quarta. Como ficou leve o dia, depois que ela chegou! Tenho uma aluna que é especial, mas não especial, com diagnóstico da Educação Especial. Ela é especial porque tira a gente do eixo e agora, depois da chegada da colega que nos apoia, a criança ficou mais calma. Assim, pude, a partir dos encontros que tive com ela, pensar em outras ações, em outras aprendizagens. Só agora, depois dessas conversas, pude dizer isso pra ela.

Precisamos sair da lógica dessa escolarização, que busca a repetição e a produção em massa. Podemos pensar em currículo como experiências que se constituem por meio dos encontros. É pela força dos encontros que sairemos do lugar. Por isso a importância do coletivo, porque a gente não pode ficar sozinho. A gente tem que estar nessa grupalidade, porque a força do grupo é diferente de eu querer mudar sozinha alguma coisa, mas aqui a gente está num coletivo. No ano passado, repensamos o PPP. Esses encontros, de algum modo, servem para fortalecer o nosso grupo, para nos ajudar a enfrentar os desafios cotidianos.

Os encontros com as imagens cinematográficas, especialmente o encontro que teve as imagens do curta Caminhando com Tim Tim como elemento disparador das conversas com as professoras, induziram-nos a pensar na potência dos encontros, dos acasos, dos inusitados. Percebemos, coletivamente, que o tempo “é o senhor das delicadezas”, como afirma a narradora do curta, por isso requer atenção, cuidado e prudência para não cairmos nos automatismos, dogmatismos e nas rotinas liberadas pelo tempo cronológico, cheios de repetições sem sentido. Precisamos buscar viver com a intensidade de um tempo inventivo, um tempo como multiplicidade.

Por meio dos encontros, podemos aumentar ou reduzir a potência de ação dos corpos. Assim, nossa cartografia dos encontros com as imagens cinematográficas sinaliza que as professoras, movidas pelos afetos que emergiam dos encontros com as imagens dos curtas, se envolviam coletivamente com as problematizações, buscando linhas de fuga para novas composições e combinações curriculares, a fim de expandir os processos inventivos na/da escola.

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NOTAS

1 Afeto é aqui compreendido como afecção corporal que pode aumentar ou diminuir a potência de agir e pode variar conforme as intensidades dos encontros. Se os encontros são bons, eles trazem alegria e isso expande a potência. Se os encontros são ruins, eles trazem tristezas e reduzem a força intensiva (SPINOZA, 2014).

2 Problematizar é pensar, experimentar, desterritorializar, ou seja, tornar problema aquilo que já está naturalizado. Desse ato de problematização novas questões são criadas.

3 Para Certeau (1994, p. 38), “(...) o cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada” (grifos do autor). Os praticantes ordinários do cotidiano criam maneiras de fazer, que se constituem nas infinitas práticas cotidianas pelas quais usuários reinventam o espaço organizado pelas técnicas da produção cultural.

4 Outros filmes de longa duração, curta-metragem, animações, textos literários e não literários foram utilizados como elementos disparadores das redes de conversas durante a pesquisa.

5 Vale ressaltar que, sempre que houver movimentos de desterritorialização, existirá movimento de reterritorialização e esses processos são indissociáveis.

6 As narrativas das professoras serão apresentadas entremeadas ao texto, em itálico, sem definição dos nomes, para dar ênfase à multiplicidade de “eus” que habitam as escolas.

7 Participaram da pesquisa de campo três alunos do mestrado: Nathan Moretto Guzzo Fernandes, Livia Camporez Gilberti e Hociene Nobre Pereira Werneck.

8 A lógica só é interessante quando se cala, já que Deleuze (2010) defende que a filosofia coloca em suspensão as certezas e os dogmatismos. Sabemos que não é nada fácil fazer calar a lógica. A escola é cercada de pensamentos dogmáticos, normatizados e naturalizados, ou seja, de territorialidades. Nosso desejo é fazer a língua delirar e expandir a força dos afetos que pedem passagem, como propõe Rolnik (2007).

9 Deleuze (2015) define clichê como uma imagem sensório-motora da coisa. Com base em Bergson, explica que nossa percepção da imagem ocorre em função de nossos interesses econômicos, de nossas crenças ideológicas, de nossas exigências psicológicas. No cinema, as imagens tanto podem criar clichês quanto desconstruir, provocando novas imagens de pensamento.

10 Não temos intenção de descrever o curta, muito pelo contrário, desejamos que os leitores assistam rapidamente ao filme e curtam os cinco minutos com Valentim.

11 As imagens ópticas e sonoras puras, assim como o plano fixo e a montagem-cut, segundo Deleuze (2015), definem e implicam ir além da imagem-movimento. Não fazem parar o movimento; fazem com que o movimento não seja percepcionado numa imagem sensório-motora que nos mantém no automatismo e no pensamento dogmático, mas captado em outras dimensões que excedem o espaço e nos fazem pensar com outras forças que nos levam a escapar do mundo dos clichês.

12 Tadeu (2002, p. 49) afirma que um currículo, concebido como arte do encontro e da composição, faz pensar o impensável: “O pensamento é uma fulguração: acontecimento, intensidade, diferença pura”.

Recebido: 15 de Abril de 2020; Aceito: 19 de Junho de 2020

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