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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.19 no.1 São Paulo jan./mar 2021  Epub 10-Maio-2021

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2021v19i1p129-152 

Artigos

POR UMA EDUCAÇÃO EQUITATIVA E EMANCIPATÓRIA: RECURSOS EDUCACIONAIS ABERTOS (REA) COMO DISPOSITIVOS DE AUTORIA E DEMOCRATIZAÇÃO CURRICULAR

FOR AN EQUITABLE AND EMANCIPATORY EDUCATION: OPEN EDUCATIONAL RESOURCES (OER) AS AUTHORSHIP DEVICES AND CURRICULUM DEMOCRATIZATION

PARA UNA EDUCACIÓN EQUITATIVA Y EMANCIPATORIA: RECURSOS EDUCATIVOS ABIERTOS (REA) COMO AUTORÍA Y DISPOSITIVOS DE DEMOCRATIZACIÓN CURRICULAR

Juliana Sales JACQUESi 
http://orcid.org/0000-0001-8372-1900

Elena Maria MALLMANNii 
http://orcid.org/0000-0002-7611-3904

Mara Denize MAZZARDOiii 
http://orcid.org/0000-0001-8612-1556

i Doutorado em Educação pela UFSM. Professora Adjunta no Departamento de Administração Escolar (ADE) do Centro de Educação (CE) da UFSM. E-mail juletras.jacques@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-8372-1900.

ii Pós-doutorado pela Universidade Aberta de Portugal. Professora-pesquisadora do Departamento Administração Escolar (ADE) da UFSM. E-mail: elena.mallmann@ufsm.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-7611-3904.

iii Doutorado em Educação pela Universidade Aberta de Portugal (UAb). Professora Externa da UFSM, com atuação nos cursos EaD UAB/UFSM e no NTE/UFSM. E-mail maradmazzardo@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-8612-1556.


RESUMO

Recursos Educacionais Abertos são dispositivos de autoria e democratização curricular. A questão central é se potencializam construção teórico-prática visando comprometimento político-pedagógico para democratização do conhecimento, desenvolvimento profissional e fortalecimento da diversidade no planejamento-implementação-avaliação curricular. À luz dos postulados teórico-metodológicos da pesquisa-ação, analisamos a formação continuada de professores da Educação Básica da rede pública do Rio Grande do Sul, materializada no Small Open Online Course “REA: educação para o futuro”. Inferimos que o curso flexibiliza a formação porque coloca em interação professores de várias regiões, contextos escolares e áreas do conhecimento. Portanto, fomenta autoria e compartilhamento aberto de produções didáticas a fim de que possam ser recontextualizadas abrindo caminhos para educação equitativa e emancipatória.

PALAVRAS-CHAVE: Formação de professores; Recursos Educacionais Abertos; Democratização curricular; Autoria

ABSTRACT

Open Educational Resources are artifacts for authorship and curricular democratization. The central question is whether OER improve theoretical and practical construction aiming political-pedagogical commitment for the democratization of knowledge, professional development and expansion of diversity in curriculum planning-implementation-evaluation. In the light of the theoretical-methodological postulates of action research, we analyze the teacher education of Basic Education in the public network of Rio Grande do Sul, materialized in the Small Open Online Course “OER: education for the future”. We conclude that the course makes education more flexible because it brings together teachers from various regions, school contexts and areas of knowledge. Therefore, it promote authorship and open sharing of didactic productions so that they can be recontextualized, opening paths for equitable and emancipatory education.

KEYWORDS: Teacher Education; Open Educational Resources; Curriculum Democratization; Authorship

RESUMEN

Los Recursos Educativos Abiertos son dispositivos de autoría y democratización curricular. La cuestión central es si fortalecem la construcción teórico-práctica con miras al compromiso político-pedagógico por la democratización del conocimiento, el desarrollo profesional y el fortalecimiento de la diversidad en la planificación-implementación-evaluación curricular. A la luz de los postulados teórico-metodológicos de la investigación-acción, analizamos la formación continua de los docentes de Educación Básica, de la red pública de Rio Grande do Sul, materializada por médio del Small Open Online Course “REA: educación para el futuro”. Inferimos que el curso flexibiliza la formación porque reúne a docentes de diversas regiones, contextos escolares y áreas de conocimiento. Por lo tanto, fomenta la autoría y el intercambio abierto de producciones didácticas para que puedan ser recontextualizadas, abriendo caminos para una educación equitativa y emancipadora.

PALABRAS CLAVE: Formación de profesores; Recursos educativos abiertos; Democratización curricular; Autoría

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Educador e educandos (liderança e massas), cointencionados à realidade,

se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato,

não só de desvelá-la e, assim, criticamente conhecê-la,

mas também no de recriar este conhecimento

(FREIRE, 1987, p. 31).

A educação, direito social previsto na Constituição Federal (CF) de 1988, é caminho para (re)construção da democracia, da cidadania e da equidade social. Logo, a escola pública é, por essência, uma instituição socioeducativa que, por meio de seu coletivo, constitui mudanças potencializadoras de formação crítica e emancipatória. Contrariando a lógica neoliberalista de educação a serviço do capital em que a escolarização se submete às exigências da produção e do mercado, o papel da escola é formar cidadãos éticos e estéticos - autores e coautores de atos responsáveis e responsivos ao movimento social, político, econômico e cultural.

Pressupomos, assim, participação ativa de todos os que constituem a escola pública, na superação da consciência ingênua e na construção da consciência crítica (FREIRE, 1987) sobre a realidade concreta. Essa transcendência, sustentada no movimento ação-reflexão-ação, faz com que percebamos as coerções estruturalmente impostas pela cultura dominante e reconheçamo-nos como seres políticos, por isso autorais, propulsores de (auto)mudanças.

Na esteira normativa, as políticas públicas educacionais são balizadoras de mudanças nos contextos escolares. A exemplo, o processo constituinte, que ocorreu em meio às forças pela democracia e resultou na CF de 1988, apontou um novo modo de pensar e fazer a educação pública por meio da gestão democrática. Temos, a partir disso, um novo discurso político imperativo na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9.394/1996 e em tantos outros instrumentos e movimentos educacionais.

Como parte constitutiva da gestão democrática na escola, a autonomia pedagógica expressa-se como garantia da pluralidade de ideias e concepções pedagógicas, nas práticas curriculares. Todavia, as escolas públicas brasileiras situam-se no campo de embates entre a dimensão democrática e as políticas de regulação e controle do Estado, por meio da prescrição do currículo e das avaliações em larga escala. Tais mecanismos intervêm na seleção e na organização do que ensinar e aprender, do que e de como avaliar.

Embora suscetíveis à regulação e ao controle, ações podem ser planejadas e desenvolvidas, nas escolas públicas, em prol da garantia e do fortalecimento da pluralidade e da diversidade que a perpassam. Nesse lugar de abertura, situam-se os Recursos Educacionais Abertos (REA): materiais produzidos e compartilhados, de modo digital ou impresso, com licenciamento aberto, para serem integrados no ensino-aprendizagem, adaptando-se às diferenças situacionais de cada contexto.

Nesse sentido, consistem como dispositivos de autoria e democratização curricular, pois, na produção de REA, tanto professores quanto estudantes podem explorar seu potencial ético e estético em interlocução com os conteúdos curriculares. Assim, constituem-se em autores e coautores que criam dizeres, atualizam os já ditos e antecipam novos; propositam que sentidos sejam produzidos e originem outros discursos resultantes de/em ações.

Dessarte, em movimento cíclico de pesquisa-ação, via projeto de ensino, pesquisa e extensão com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS), planejamos e ofertamos, a professores da Educação Básica e demais profissionais da educação (técnicos/tecnólogos que atuam nas escolas) da rede pública do Rio Grande do Sul (RS), o Small Open Online Course (SOOC) “REA: educação para o futuro”. Produzido por professores e pesquisadores do Grupo de Estudos e Pesquisas em Tecnologias Educacionais em Rede (GEPETER), do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e implementado na tecnologia educacional Moodle, constitui-se de quatro unidades didáticas, com recursos (conteúdos) e atividades de estudo. Sua composição visa à construção colaborativa de conhecimentos sobre integração, autoria e compartilhamento de REA para a democratização e flexibilização das práticas curriculares.

Em face do exposto, nas seções seguintes deste artigo, sustentadas nos preceitos de equidade, justiça e bem-estar social, dialogamos sobre as potencialidades dos REA para democratização do acesso ao conhecimento, formação profissional docente e fortalecimento da pluralidade no tripé planejamento-implementação-avaliação das práticas curriculares. Em sequência, apresentamos e analisamos o SOOC “REA: educação para o futuro”, situando-o como inovação no contexto real de formação continuada de professores no RS, tanto pela natureza didático-metodológica quanto pelo formato e conteúdo central. Finalizamos com as considerações finais, tecendo dizeres em defesa de ações formativas visando à autoria de produções didáticas abertas e seu compartilhamento em rede, a fim de fomentar, em atos éticos e estéticos, a construção da cultura REA (JACQUES, 2017), abrindo caminhos para uma educação mais equitativa e emancipatória.

2 CURRÍCULO ESCOLAR: INTERPRETAÇÕES, POSSIBILIDADES E AÇÕES QUE O ATRAVESSAM

Ao considerar o aspecto semântico e etimológico, podemos pensar em currículo como rede/teia de ações, operações e saberes, sustentada em determinada concepção, que perpassa nosso percurso no movimento cíclico do ensinar-aprender, do fazer pedagógico realizado, pelo coletivo, nos contextos escolares. Uma rede/teia que não é neutra, mas que está imersa em implícitos que denotam posições axiológicas e definem sua concepção.

No panorama histórico, estudos e discussões sobre o campo do currículo e suas práticas permeiam o cenário educacional brasileiro desde as décadas de 1920 e 1930, com as proposições de educação como prática social do movimento Escola Nova, materializadas no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. No período subsequente, até final dos anos 1970, a primazia é por um currículo tecnicista. Do processo de redemocratização, em meados da década de 1980, e das reformas educacionais que ocorreram, no Brasil, na década de 1990, entre outros movimentos educacionais, ecoa a defesa por um currículo que potencialize a formação humana, integral e cidadã.

Esse discurso é imperativo nas atuais políticas públicas curriculares, as quais compõem um conjunto de definições que prescrevem o currículo, estabelecendo bases comuns, de âmbito nacional, às etapas de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio e às modalidades educacionais que as compõem. Ao prescreverem o currículo oficial, manifestam o distanciamento entre o que se quer como educação e o que, efetivamente, acontece nos contextos escolares, uma vez que, dentro da lógica neoliberal e gerencialista, as práticas curriculares estão atreladas à busca por qualidade, medida por avaliação externa padronizada.

Um movimento contraditório impera entre o discurso de formação humana, integral e cidadã - eloquente na redação dos documentos oficiais -, e as reais condições das escolas brasileiras, da estruturação do trabalho docente, dos processos de gestão, da desigualdade social e educacional. Como argumentam Ball, Maguire e Braun (2016), as políticas são escritas tendo como base sempre uma escola ideal. Há, portanto, um distanciamento entre o contexto de produção e o contexto de atuação. Advertem os autores: as reais demandas do cotidiano escolar não são consideradas. Os professores e o coletivo da escola lidam com as políticas todos os dias, mas suas vozes não são ouvidas na formulação.

Na busca por qualidade medida, os documentos oficiais fundamentam-se em orientações doutrinárias e metas quantitativas estabelecidas por organismos internacionais, como o Banco Mundial. Tais instituições, menciona Canan (2016), impõem o cumprimento de metas que implicam a construção de políticas públicas de atendimento às áreas social e educacional em troca de financiamentos de projetos. Essa qualidade educativa imposta implica mudanças nos currículos, nas formas de avaliação e no processo de formação dos professores (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012).

Nesse escopo, estão as palavras de ordem: eficiência, eficácia, meritocracia, desempenho. Algumas escolas são premiadas, enquanto outras, cujos índices de desempenho não correspondem aos estabelecidos, são punidas com a alocação diferenciada de recursos. Por conseguinte, o mapeamento, por meio de sistemas de avaliação aplicados de modo equivocado, é mecanismo de controle e regulação por parte do Estado.

Há que problematizarmos, portanto: É possível formar cidadãos críticos e reflexivos sem estabelecer relação entre o que ensinamos e o cotidiano dos estudantes? Como as práticas curriculares precisam ser pensadas para que a historicidade desses estudantes e da comunidade à qual pertencem seja contemplada? Como potencializar a autoria docente a fim de democratizar o currículo? Esses e outros questionamentos são necessários para que, além de analisarmos criticamente as implicações das políticas de regulação e controle na organização curricular, avancemos no campo teórico-prático dos processos criativos docentes.

“O controle sobre os fins sociais e políticos da educação - as definições sobre currículo e programas, sobre o que e como ensinar - tem sido, cada vez mais, transferido das professoras para o controle dos gestores, dos políticos e dos interesses econômicos mais amplos” (HYPOLITO, 2010, p. 1346). Por essa razão, precisamos traçar percursos colaborativos entre pares, assumindo-nos como “ativistas na luta para uma educação que exige uma voz mais democrática” (APPLE, 2017, p. 909).

Embora o contexto de produção seja marcado pelo silenciamento das vozes docentes na atuação das políticas nos espaços escolares, ecoa uma rede de interpretações que a materializam de diferentes modos nas práticas curriculares. Logo, as políticas ganham movimento quando postas em ação nos materiais didáticos, nas situações de ensino-aprendizagem que compõem o currículo, haja vista que são recontextualizadas pelos autores e coautores sociais da escola. Essa recontextualização é resultado dos diferentes sentidos produzidos nas relações dialógicas entre os discursos das políticas e os conhecimentos ilocucionais e de mundo.

Assim, temos um movimento dialético que, parafraseando Oliveira (2011), pode legitimar políticas de dominação, como também indicar rupturas e caminhos de libertação, e tudo depende da posição axiológica de quem as elabora, de quem as implementa e das relações de poder no sistema mais amplo. É basilar, portanto, certificarmo-nos da legitimidade das normas e das diretrizes que induzem ações. Nem sempre seus conteúdos contemplam as reais necessidades dos contextos escolares. Analisá-las crítica e reflexivamente viabiliza o aceite ou a negação das decisões externas, de modo consciente. A partir disso, podemos construir possibilidades democráticas de ensino-aprendizagem, coerentes com a realidade concreta. É nesse lugar que se situam os REA, acerca dos quais dialogamos na seção seguinte.

3 REA E DEMOCRATIZAÇÃO CURRICULAR

O trabalho docente constitui-se na interlocução entre teoria e prática, sustentada no comprometimento político, ético e estético com a educação. Pressupõe participação ativa na formação crítica, reflexiva e cidadã das pessoas, a fim de que, no reconhecimento de si, do seu lugar no mundo e do lugar do outro, assumam postura investigativa-ativa na organização da vida em sociedade. Nessa esteira teórica, o planejamento e a didatização dos conteúdos curriculares tomam como ponto de partida e chegada, na perspectiva freireana (FREIRE, 1987; 2015), a construção da autonomia dos estudantes para sua efetiva intervenção no mundo. Isso pressupõe ensino-aprendizagem situado, coerente com a realidade concreta. Nesse sentido, “o contexto é uma força ativa, não apenas um pano de fundo com o qual a escola tem de lidar” (BALL, 2016, p. 42). É por meio da interlocução com o contexto, na pluralidade dos sujeitos e das práticas que o constituem, que podemos estabelecer relações dialógicas visando à consolidação da democracia no currículo.

À vista da democratização curricular, o movimento internacional de educação aberta, em especial dos REA, tem influenciado a elaboração de políticas públicas e ações de fomento à produção e ao compartilhamento de produções licenciadas de modo aberto. No Brasil, como política de Estado, o Plano Nacional da Educação (PNE), Lei 13.005/2014, vigência 2014-2024, prevê, em suas metas e estratégias para a alfabetização e aprimoramento dos índices de aprendizagem da Educação Básica, a utilização e a produção de REA, a fim de garantir a pluralidade de ideias e concepções pedagógicas. Ademais, os repositórios de recursos educacionais com financiamento público como o Portal do Professor do MEC, o Portal EduCapes e a Plataforma MEC/RED, também se constituem em ações de promoção à autoria de REA.

As proposições são elaboradas considerando sua implementação no contexto da Educação Básica, o que pressupõe que a produção de REA tem de ser abarcada nos cursos de formação inicial e continuada de professores, estreitando a relação entre universidade e escola. Em consonância com essa argumentação e compreendendo-a como proposta complementar ao exposto no PNE (2014-2024), a Resolução 1, de 11 de março de 2016, CES/CNE, que estabelece as diretrizes e normas nacionais para a oferta de programas e cursos de Educação Superior na modalidade a distância, no § 4.º do artigo 2.º, resolve:

§ 4.º As instituições de educação superior, bem como os órgãos e as entidades da Administração Pública direta e indireta, que financiem ou fomentem a educação superior a distância, devem assegurar a criação, a disponibilização, o uso e a gestão de tecnologias e recursos educacionais abertos, por meio de licenças livres, que facilitem o uso, a revisão, a tradução, a adaptação, a recombinação, a distribuição e o compartilhamento gratuito pelo cidadão, resguardados os direitos autorais pertinentes.

Se as metas e as estratégias do PNE (2014-2024) incluem a produção de REA para melhorar os índices de aprendizagem na Educação Básica e a Resolução prevê a criação e o uso de REA na Educação Superior (citando a modalidade EaD), necessariamente, as práticas curriculares precisam convergir para essa perspectiva. Isso aponta a responsabilidade de, no currículo em movimento nas Instituições de Ensino Superior (IES), potencializar a autoria docente de produções didáticas abertas. Tomando como foco os cursos de formação de professores, a promoção, aos estudantes/professores em formação, da aquisição da consciência crítica sobre a relação entre REA e democratização curricular refletirá em suas práticas futuras, no exercício da docência na Educação Básica.

Nessa perspectiva, os REA podem despertar o potencial ético e estético de professores e estudantes, na interlocução com os conteúdos curriculares - ação substancial ao processo emancipatório, visto que são materiais produzidos e compartilhados, de modo digital ou impresso, com licenciamento aberto, para serem integrados no ensino-aprendizagem, assumindo diferentes estruturas de acordo com o gênero textual ao qual pertencem e o propósito comunicativo. Independentemente de suas características estruturais, é imprescindível a presença da licença aberta, a fim de que as 5 liberdades basilares dos REA entrem em movimento como dispositivos potencializadores de autoria e coautoria.

As liberdades de reter, reutilizar, rever, remixar e redistribuir (WILEY, 2007; 2014; HILTON et al. 2010) possibilitam o direito de: a) fazer cópias do conteúdo e armazená-lo; b) usar o conteúdo de várias formas; c) adaptá-lo, ajustá-lo, modificá-lo; d) combinar o conteúdo original ou revisado com outro conteúdo aberto para criar novo produto; d) compartilhar cópias do conteúdo original, suas revisões, ou seus remixes. Tais liberdades expressam concessões que oscilam entre o mais permissivo - atos de rever e remixar - e o mais restritivo - reter e reutilizar. A escolha da licença pelo autor, ao compartilhar seu REA, é que define qual liberdade as pessoas terão.

Ao analisar a definição da Declaração de Paris sobre REA (UNESCO, 2012, p. 1), percebemos que a abertura precisa ir além do acesso e da utilização. Vejamos:

REA são materiais de ensino, aprendizagem e investigação em quaisquer suportes, digitais ou outros, que se situem no domínio público ou que tenham sido divulgados sob licença aberta que permite acesso, uso, adaptação e redistribuição gratuitos por terceiros, mediante nenhuma restrição ou poucas restrições. O licenciamento aberto é construído no âmbito da estrutura existente dos direitos de propriedade intelectual, tais como se encontram definidos por convenções internacionais pertinentes, e respeita a autoria da obra (grifos nossos).

Os destaques no excerto corroboram que, para fortalecer a democratização do currículo, as licenças têm de permitir produções derivadas. Notemos que, na definição proposta pela Unesco, as liberdades apresentadas são aditivas, e não alternativas, haja vista a adição (conjunção “e”) dos termos, em vez da alternância (conjunção “ou”). Nesse entendimento, um recurso educacional coerente com o movimento democrático de acesso e produção ao/do conhecimento tem de contemplar o somatório de todas as liberdades apresentadas.

Conforme a licença adotada nos recursos educacionais que produzirmos, o ciclo de compartilhamento e adaptação de REA se mantém ou é rompido. Se optarmos por licenças que impeçam o rever, a remixagem e a redistribuição, limitar-nos-emos tão somente a armazenar o recurso e a reutilizá-lo em diferentes contextos, sem qualquer alteração. Todavia, pensemos na transposição didática em sala de aula:

  1. para reutilizar um recurso em diferentes contextos educacionais, não temos que considerar sua pluralidade e diversidade?

  2. como considerá-las sem adaptar o recurso original?

  3. como democratizar o currículo sem a interação entre os conteúdos e o cotidiano dos estudantes?

  4. até que ponto os recursos padronizados atendem ao princípio do ensino-aprendizagem contextualizado, situado no campo das práticas vivenciadas pelos estudantes em sua comunidade?

  5. como formar cidadãos partícipes da gestão da vida em sociedade, sem potencializar, no currículo em movimento, seu reconhecimento como sujeitos históricos e sociais?

  6. como pensar em universalização do acesso à educação, inclusão social e superação das desigualdades sem criar condições efetivas e eficazes para que isso de fato aconteça?

Essas problematizações nos fazem refletir o quão essenciais são os processos criativos de produção didática, em atos éticos e estéticos (JACQUES, 2017), a fim de que, além do acesso à escolarização, consolidem-se a permanência dos estudantes na escola, a conclusão dos estudos básicos, a sequência no ensino superior e a formação profissional. Nesse sentido, dado que alguns grupos têm acesso ao conhecimento distribuído a eles, e não aos outros grupos (APPLE, 2006), os REA podem superar essa distribuição desigual entre as classes sociais e econômicas.

Para tanto, necessitamos que ações de fomento à produção de REA sejam desenvolvidas, por meio de investimentos públicos, para a (co)autoria de REA na formação inicial e continuada de professores. Isso implica reformulação de currículos, disponibilização de recursos tecnológicos livres e abertos, ações formativas para que se construam redes de produção e aprendizagem colaborativas. O SOOC “REA: educação para o futuro”, a respeito do qual dialogamos na seção seguinte, situa-se nesse espaço possível de atuação das políticas de fomento à produção de REA visando à democratização curricular.

4 REA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Democracia pressupõe o exercício da participação cidadã, a vida em comunidade, o movimento político da resolução de conflitos e a tomada de decisões segundo preceitos de equidade, justiça e bem-estar social. Nesse lastro, o movimento internacional da educação aberta, especialmente os REA, tem mobilizado a democratização do acesso à educação, a flexibilização curricular, a formação e o desenvolvimento profissional docente.

Desse modo, à luz dos postulados teórico-metodológicos da pesquisa-ação (FELDMAN; CAPOBIANCO, 2000), analisamos criticamente dados de edições do curso, em formato SOOC, de formação continuada de professores, nomeado “REA: educação para o futuro”. Essa ação formativa é organizada, coordenada e implementada pelo GEPETER vinculado à UFSM, com apoio financeiro da FAPERGS1. Todos os conteúdos e as atividades estão alinhados com a prática das cinco liberdades dos REA, estabelecendo interlocução com os preceitos democráticos da organização curricular.

As edições têm sido implementadas desde 2016, com duas turmas destinadas a professores do Ensino Médio. Essa primeira iniciativa resultou na publicação da tese de doutoramento de Mazzardo (2018), pela Universidade Aberta de Portugal (UAb). Seguindo o movimento cíclico dos REA, essa versão foi adaptada para novas ofertas, durante o segundo semestre de 2018 e o primeiro semestre de 2019. Nesse período, além das edições oferecidas a professores da Educação Básica e demais profissionais da educação (técnicos/tecnólogos que atuam nas escolas) da rede pública do RS - nosso recorte de análise deste artigo -, em parceria com o Núcleo Tecnologia Educacional (NTE) da UFSM, foram implementadas edições para professores, tutores, estudantes de pós-graduação, estudantes de graduação e demais profissionais que atuam em cursos na modalidade a distância, ou que desenvolvem atividades de ensino-aprendizagem mediadas por tecnologias educacionais em rede na UFSM. Ademais, o próprio GEPETER realizou a ação capacitativa interna a fim de fortalecer a prática crítico-reflexiva inerente à pesquisa-ação. Em síntese, a Figura 1 apresenta o histórico das edições de 2016 a 2019.

Fonte: As autoras.

Figura 1 Histórico das implementações do SOOC “REA: educação para o futuro” 

O SOOC “REA: educação para o futuro” situa-se como marco de inovação no contexto real de formação continuada de professores no RS, tanto pela sua natureza didático-metodológica quanto pelo formato e os conteúdos centrais. No Brasil, as políticas públicas, historicamente, tratam a formação continuada de professores em uma perspectiva precária e linear. Embora seja possível destacar iniciativas relevantes no âmbito dos sistemas municipais ou estaduais, a falta de articulação com os desafios do cotidiano escolar, a não regularidade, a ênfase nas prescrições metodológicas, a centralidade em eventos e palestras são recorrentes. Por essa razão, é empiricamente observável que os efeitos são bastante restritos na resolução de conflitos, no enfrentamento de problemas de aprendizagem, na repetência, na evasão, no adoecimento docente, na violência, entre outros. Tudo isso sob um olhar externo, sem considerar, muitas vezes, as reais necessidades das escolas públicas.

Portanto, o movimento de inovação e transformação constante dos currículos implica promover e sustentar programas de formação de professores que sejam convergentes com a realidade concreta e com as tendências educacionais emergentes. Nesse contexto, os Massive Open Online Course (MOOC) e os SOOC possibilitam novas maneiras de oportunizar formação continuada aos professores, pois os SOOC reúnem aspectos de um curso a distância tradicional (conteúdos estruturados, atividades com datas de início e fim e professor ou tutor para acompanhar as atividades) e aspectos dos MOOC (número de participantes maior que nos cursos tradicionais, materiais didáticos diversificados, com destaque para as videoaulas, compartilhamento de produções e experiências entre os participantes e exploração de recursos da Web 2.0). Essas características e a adoção de licenças abertas, nas propostas de formação e nos materiais didáticos, ampliam as possibilidades pedagógicas dos cursos e o acesso ao conhecimento.

Em face do exposto, o SOOC “REA: educação para o futuro” flexibiliza o movimento de formação e desenvolvimento profissional docente não somente por ser possível realizar todo o percurso de estudos e atividades totalmente a distância, mas também porque coloca em sintonia e interação professores das mais variadas regiões, contextos escolares e áreas do conhecimento. Em todas as edições do curso, nos ciclos ascendentes de planejamento, implementação, observação, reflexão e replanejamento, típicos da pesquisa-ação, os cursistas são de instituições e cidades diferentes. Para exemplificar essa diversidade e a natureza multi e interdisciplinar mobilizada, evidenciamos as áreas de formação e atuação profissional dos participantes de uma da edição de 2018 (Figura 2).

Figura 2 Área/disciplina de Atuação dos Participantes do SOOC REA - Edição 2018 

A flexibilização e a democratização curricular são aspectos acentuados no conteúdo do curso, uma vez que são enfatizadas as 5 liberdades dos REA, abordando tópicos relacionados ao histórico, aos conceitos, às características, aos repositórios, às formas de pesquisa, seleção e publicação de REA, aos dispositivos da Lei de Direitos Autorais e às licenças abertas, como Creative Commons (Figura 3).

Fonte: Material Didático do curso “REA: educação para o futuro”.

Figura 3 Conteúdos e percurso das atividades 

Desse modo, a proposta de formação (design e implementação) do curso “REA: educação para o futuro” foi desenvolvida na perspectiva da autoria e do compartilhamento de recursos (MAZZARDO, 2018). O próprio curso é um REA, pois possui uma licença aberta (CC BY SA), a qual permite adaptação: condição que possibilita a adequação para diferentes contextos, o refinamento e a atualização constante. Uma adaptação realizada foi a transformação do curso em um e-book (MALLMANN; MAZZARDO, 2020).

Os conteúdos estão organizados em quatro Unidades (Figura 4):

  1. Unidade I - Conceito, caracterização, histórico, políticas públicas e institucionais sobre os REA

  2. Unidade II - Direitos Autorais e Licenças Abertas

  3. Unidade III - Adaptação/Remix de REA

  4. Unidade IV - Produção de REA original e Compartilhamento

Fonte: Captura de imagens do curso “REA: educação para o futuro”.

Figura 4 Unidades do curso 

A partir dessa estrutura, temos como objetivo geral desenvolver, em colaboração com os participantes, conhecimentos sobre os REA que possibilitem sua integração nos materiais e nas práticas didáticas. Por conseguinte, visamos à democratização curricular nas escolas públicas, por meio da resolução coletiva e situada dos problemas que perpassam o ensino-aprendizagem e acabam fortalecendo os índices de não permanência na Educação Básica, dificultando o acesso ao Ensino Superior e à profissionalização, o que contribui para a ampliação das desigualdades.

Nas atividades de estudo (Figuras 4 e 5), ao propormos a autoria (adaptação/remix e criação) e o compartilhamento de REA, materializamos ações de democratização curricular. No movimento de autorar, o conhecimento científico que cada professor possui em sua área de formação potencializa a identificação e a qualidade dos REA existentes, a adaptação, o remix e a produção de REA original. Atrelados a esse conhecimento estão os saberes situados no contexto escolar. Nessa interlocução, os recursos podem ser criados ou adaptados considerando os sujeitos histórico-sociais que perpassam o contexto e suas práticas cotidianas.

Fonte: Curso “REA: educação para o futuro”.

Figura 5 Atividade 3 da edição 2018 

Fonte: Curso “REA: educação para o futuro”.

Figura 6 Atividade 4 da edição 2018 

A democratização do acesso ao conhecimento é um campo de disputas históricas atrelado aos mecanismos e movimentos de poder, materializados nas demarcações da colonização, da exploração territorial, das questões de gênero, das crenças religiosas, do desenvolvimento industrial, da produção de conhecimento científico, artístico e tecnológico. Os contemporâneos movimentos da educação e ciência aberta, do software livre e dos REA estão no centro dessas disputas de poder, sinalizadas entre os avanços e os retrocessos das próprias políticas públicas, da ampliação do número de vagas para acesso, permanência e conclusão dos estudos tanto no Ensino Superior quanto na Educação Básica.

Organização curricular democrática envolve dimensões epistemológicas, políticas, econômicas e pedagógicas que não podem ser descontextualizadas dos modos de produção da existência humana por meio da exploração e da transformação dos recursos. Manter vivos os princípios da democratização da educação implica constante vigilância não somente em torno dos discursos, das verbalizações, mas também de sua operacionalização em mecanismos concretos, como as políticas públicas, o currículo oficial, os materiais didáticos, os projetos pedagógicos das escolas. Assim, um dos pontos de reflexão-ação-reflexão necessários e viabilizados com o curso “REA: educação para o futuro” gira em torno da autonomia docente na Educação Básica. Considerando que os currículos são prescritivos, os mecanismos de avaliação e regulação amplamente valorizados numa época em que a ênfase está na privatização e na mercantilização da educação, a formação de professores para autoria/cocriação de REA é altamente desafiadora e necessária.

Vislumbramos nos REA um potencial para que os professores criem espaços-movimentos de problematização dos conteúdos, recontextualização e retemporalização de conceitos (CHEVALLARD, 1991). Tudo isso para que a responsabilidade e a autonomia docentes não sejam cada vez mais transferidas para os gestores, conforme detecta Hypolito (2010), ou mesmo para campos privados e terceirizados. Os professores, ao autorarem REA, podem se tornar vigilantes em torno de sua própria prática pedagógica, bem como ampliar possibilidades para que os estudantes trilhem os caminhos da vigilância crítica (CORTESÃO, 1998).

Para Vieira Pinto (1979, p. 18), “o conhecimento só pode existir como fato social”, ou seja, os REA, como resultados de movimentos coletivos, tornam-se produtos pedagógicos, culturais, políticos das comunidades que os produzem em coautoria. Não são restritos a determinados grupos detentores do poder econômico e cultural. Por essa razão, são mobilizadores da construção de mais autonomia e poder de decisão para os professores, que podem pesquisar, selecionar, reformular e recompartilhar, no campo imediato e propício da prática pedagógica.

REA e formação de professores, acoplando teoria e prática (MALLMANN et al, 2020), para compreender tudo o que é possível realizar com eles ao efetivar as liberdades subjacentes, estão no cerne do que poderíamos chamar de contracultura, visto que a educação brasileira caminha cada vez mais para precarização e desvalorização da docência. Assim, o SOOC “REA: educação para o futuro” é um movimento teórico-prático, pois, ao mesmo tempo que tem o propósito de formação a respeito dos princípios e características, impele os participantes para a revisão e a reformulação dos campos operacionais da prática educacional.

As políticas curriculares nacionais não têm apontado caminhos sólidos para consolidarmos justiça social, a curto ou médio prazos, no País. Nesse modelo legislativo, em que pesem o caráter jurídico e a judicialização dos dispositivos para acesso e permanência nas mais variadas situações, a educação escolar pode encontrar modos de assumir a responsabilidade social e participar da construção de uma sociedade mais justa. Essa aposta, no contexto contemporâneo mediado pelas tecnologias, pela produção em rede, pelo universo digital, gira em torno da prática das liberdades genuínas dos REA: reter, reutilizar, remixar, readaptar, redistribuir. Obviamente que essa aposta não centra nos REA ou mesmo nas tecnologias, de maneira geral, o único caminho para equidade. Nenhum gestor público, professor ou pesquisador envolvido com REA tomaria uma linha argumentativa e operacional de modo tão ingênuo e descompromissado politicamente com os diversos campos de disputas na luta pelo poder. Todavia, os REA podem potencializar a organização de um currículo que nos afirme como autores de nossa própria história e, consequentemente, do social, livres de ações coercitivas estruturalmente impostas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho docente, no movimento da transposição didática, implica colocar em ação todos os dispositivos da vigilância epistemológica (PETIT JEAN, 1998), tendo em vista ser

[...] uma ferramenta que permite recapacitar, tomar distância, interrogar as evidências, questionar as ideias simples, desprender-se da familiaridade enganosa do objeto de estudo [...] É precisamente o conceito de transposição didática que permite a articulação da análise epistemológica com a análise didática (CHEVALLARD, 1991, p. 16-23).

Esse lastro teórico, assentado nos pilares da vigilância epistemológica crítica, faz convergir os pressupostos da participação e inclusão equitativa de todos na vida política, da autonomia docente na construção de sistemas curriculares flexíveis e da educação aberta como democratização do acesso, apropriação, reutilização e transformação do conhecimento.

Por esse motivo, a preocupação dos legisladores, gestores educacionais e professores que atuam em cursos de formação de professores precisa estar, constantemente, alimentada por essas análises. Os indicadores dos mecanismos tradicionais de avaliação, regulação e certificação nem sempre têm conseguido consolidar medidas efetivas para melhorar as condições de trabalho dos professores, o sucesso nos resultados de aprendizagem, a diminuição dos índices de evasão e repetência. Portanto, na perspectiva da vigilância crítico-emancipatória, evidenciamos a falência do modelo tradicional de fabricação dos currículos prescritivos mediante políticas públicas externas aos contextos locais e regionais, estampadas na produção e na comercialização de livros didáticos editoriais, em larga escala, com altos custos.

Professores, fundamentados em concepções e visões de mundo abertas e democráticas, estão atentos às peculiaridades que marcam as diferenças culturais, étnicas, religiosas, econômicas e científico-tecnológicas. Logo, tomam como pressuposto da prática pedagógica um quefazer alicerçado na pesquisa e na produção autoral como combustível para que os movimentos curriculares sejam mais flexíveis, correspondentes às demandas locais, podendo ser recontextualizados e retemporalizados. No contorno contemporâneo das tecnologias em rede, da convergência das mídias, da ampla produção de conteúdos digitais com todos os percalços relacionados à veracidade e à legitimidade, os desafios da docência não são menores. Todo o arcabouço tecnológico do século XXI pode potencializar dinâmicas criativas de cocriação do conhecimento por todas as pessoas que tenham acesso às redes e às ferramentas da Web 2.0 ou superiores.

Entretanto, ao mesmo tempo, põem em risco e contaminam as bases das sociedades democráticas e colocam em xeque os pilares da produção científico-tecnológica. Isso ocorre, por exemplo, quando: a) direitos autorais não são preservados conforme determina a legislação vigente, alimentando um vasto campo de piratarias, plágios, cópias e distribuição ilegal; b) fake news são disseminadas e alargadas pela intencionalidade e pelo domínio das ignorâncias (SANTOS, 2019); c) teorias e modelos científicos são questionados com base em especulações filosóficas, livre-arbítrio sensível às conclusões baseadas em senso comum; d) sistemas de segurança e privacidade das informações são corrompidos para alimentar desejos pessoais ou estratégias de marketing; e) cadeias de mídias tornam corriqueira a veiculação e a propagação de matérias com teor racista e preconceituoso.

Todas essas pautas estão presentes, em modos ora mais oficiais, ora mais velados (ocultos), nos currículos concretizados nos materiais didáticos, nos planos de ensino, nos enunciados das atividades de estudo, nos debates, no protagonismo e na centralidade docente e/ou discente em virtude das diferentes teorias pedagógicas, na demarcação dos territórios e da localização geográfica das escolas, na arquitetura dos estabelecimentos de ensino, na presença ou na ausência de artefatos tecnológicos, nos critérios de distribuição e gestão dos recursos financeiros.

Nesse escopo, os espaços-tempos para ciclos investigativos de formação continuada de professores são uma forma de problematizar as situações-limite diante dos mecanismos de formalização e verticalização curricular. Professores da Educação Básica, envolvidos em programas de formação, especialmente quando permitem interação e colaboração com os próprios pares, podem analisar e compreender não somente as próprias concepções e práticas, mas também a conjectura político-educacional de modo muito mais ampliado. Trata-se de um investimento em formação que convida cada um dos profissionais da educação ao embate reflexivo e crítico a respeito das múltiplas variáveis que compõem a educação em sociedades democráticas.

Nessa linha argumentativa, o curso “REA: educação para o futuro” tem potencial para contribuir para a superação das desigualdades, pois os princípios dos REA alicerçam o respeito às diversidades, gerando desenvolvimento psíquico-intelectual imprescindível para concretização de direitos universalmente declarados. Em especial, está no contorno do movimento internacional que advoga a possibilidade de todas as pessoas terem acesso ao conhecimento. Para tanto, investir na formação de professores, para prática das liberdades dos REA, é essencial a fim significar sentidos éticos e estéticos a todas as situações de ensino-aprendizagem. De preferência, que isso ocorra na escola, por se tratar de uma instituição basilar para experiências de socialização e interação, que são as âncoras da autonomia política na vida cidadã em sociedades democráticas.

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NOTA:

1 Projeto de Formação desenvolvido com Financiamento: Edital FAPERGS 02/2017 - Programa Pesquisador Gaúcho - PqG

Recebido: 12 de Julho de 2019; Aceito: 15 de Julho de 2020

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