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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.19 no.1 São Paulo jan./mar 2021  Epub 10-Maio-2021

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2021v19i1p174-196 

Artigos

A PEDAGOGIA DO OPRIMIDO NA ESCOLA CONTEMPORÂNEA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS

THE PEDAGOGY OF THE OPPRESSED IN CONTEMPORARY SCHOOL: CHALLENGES AND PERSPECTIVES

LA PEDAGOGÍA DEL OPRIMIDO EM LA ESCUELA CONTEMPORÁNEA: RETOS E PERSPECTIVAS

Denise Regina da Costa AGUIARi 
http://orcid.org/0000-0002-0331-8597

i Doutorado em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado Profissional em Ciências Ambientais e do curso de Pedagogia da Universidade Brasil. E-mail: costaag@uol.com.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-0331-8597.


RESUMO

O presente artigo tem como objetivos compreender os princípios da Pedagogia do Oprimido e da Educação Bancária, ser uma forma de denúncia do processo de opressão instituído, até hoje, na escola pública brasileira e propor, como um anúncio de superação desta condição, a Educação como Prática da Liberdade. O referencial teórico fundamenta-se em Freire (2006, 2004, 2003, 2001a 2001b), Apple e Beane (2001), Lima (2002) e Giroux (2002). Pode-se evidenciar que a pedagogia crítico-libertadora freireana é uma possibilidade para a construção de uma escola pública, democrática e com qualidade social. O estudo demonstra, também, que é condição fundamental a participação efetiva decisória de todos os envolvidos na ação educativa e de um rigoroso processo de ensino-aprendizagem voltado para o desenvolvimento da criticidade e autonomia do educando.

PALAVRAS-CHAVE: Pedagogia crítico-libertadora; Paulo Freire; Humanização

ABSTRACT

This article aims to understand the principles of Pedagogy of the Oppressed and Banking Education, as a way of denouncing the process of oppression instituted until today in the Brazilian public school and to propose, as a form of overcoming this condition, Education as a Practice of Freedom. The theoretical framework is based onFreire (2006,2004,2003,2001a,2001b),Apple and Beane (2001),Lima (2002),Giroux (2002). Freire’s critical-liberating pedagogy is a possibility for the construction of a public, democratic school with social quality. The study also demonstrates that an essential condition is the effective decision-making participation of all those involved in the educational action and a rigorous teaching-learning process aimed at developing the criticality and autonomy of the student.

KEYWORDS: Critical-liberating pedagogy; Paulo Freire; Humanization

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo comprender los principios de la pedagogía del oprimido y de la educación bancária, como forma de denunciar el proceso de opresión instituido hasta hoy en la escuela pública brasileña y la vez proponer la educación como una práctica de libertad para superar esta condición. El marco teórico se basa enFreire (2006,2004,2003,2001a 2001b),Apple y Beane (2001),Lima (2002),Giroux (2002). Se puede evidenciar que la pedagogía crítica liberadora de Freire es una posibilidad para la construcción de una escuela pública, democrática y de calidad social. El estudio también demuestra que una condición esencial es la participación efectiva en la toma de decisiones de todos los involucrados en la acción educativa y un proceso riguroso de enseñanza-aprendizaje dirigido a desarrollar la criticidad y la autonomía del estudiante.

PALABRAS CLAVE: Pedagogía crítica liberadora; Paulo Freire; Humanización

1 INTRODUÇÃO

Paulo Freire, em 1968, publica a primeira edição do livro Pedagogia do Oprimido, uma de suas obras mais importante e estudada nas universidades do mundo.

Em Pedagogia do Oprimido, Freire (2004, p. 23) inicia as primeiras palavras com o seguinte excerto:

Aos Esfarrapados do mundo

E aos que neles se

Descobrem e, assim

Descobrindo-se, com eles

Sofrem, mas, sobretudo,

Com eles lutam.

Na obra, evidencia-se que seu posicionamento é a favor da existência humana, da luta histórica pela humanização, luta contra todas as formas de opressão, de violência, de discriminação étnica, religiosa, de gênero e de classe social, luta pela superação da contradição opressor-oprimido que é a possibilidade de emancipação de todos.

Freire (2004) anuncia uma pedagogia do oprimido, não uma pedagogia para o oprimido e/ou sobre o oprimido, mas sim com o oprimido, esclarece que os sujeitos oprimidos são sujeitos dessa pedagogia, seu ponto de partida e sua finalidade.

A pedagogia do oprimido: aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará (FREIRE, 2004, p. 32).

A busca da superação da opressão, expressa a luta pela superação do não ser e pela assunção da vocação ontológica do ser mais.

O sistema capitalista que movimenta a sociedade contemporânea provoca situações díspares, entre a concentração de renda por uma pequena parcela de uma elite dominante no poder e o aumento da pobreza, a fome, altos índices de desemprego, elevados registros de violência, discriminação de gênero, étnica e de classe social, degradação ambiental, precárias condições de vida para a maioria da população, a vida humana sendo dilacerada e marginalizada, por escassez total das necessidades básicas para a sobrevivência, a desumanização do humano, a coisificação da pessoa, a banalização e a negação da vida. A vida proibida de ser vivida.

De acordo com Freire, “não há vida sem morte, como não há morte sem vida, mas há também uma “morte em vida”. E a “morte em vida” é exatamente a vida proibida de ser vida” (FREIRE, 2004, p. 170).

A opressão constitui um mundo na pseudoconcreticidade, o mundo das aparências e produz, pela manipulação uma ação fetichizada dos homens (KOSIK, 2002).

A sociedade mercadológica, do lucro, do poder de compra, trata o ser humano como um fetiche, uma mercadoria, transforma-o em “coisa”, por isso pode ser controlado e manipulado, condicionado pela “cultura do silêncio” e da “obediência”, por uma concepção materialista da existência.

Para Freire (2004, p. 126), “matar a vida, freá-la, com a redução dos homens a puras coisas, aliená-los, mistificá-los, violentá-los são o próprio dos opressores”.

Para superar essa contradição opressor-oprimido, Freire (2004) propõe uma pedagogia libertadora que visa exaltar a vida em todas as suas manifestações.

Partir da realidade social, concreta, objetiva, que revela situações-limite para refleti-las, apreendê-las e transformá-las, a realidade opressora é produto da ação humana, precisa ser desvelada e transformada, é tarefa histórica, tarefa dos homens.

Freire (2004, p. 90) observa que objetividade e subjetividade não podem ser dicotomizadas, é preciso pensar a realidade concreta e objetiva com a reflexão consciente da situação pelos oprimidos, para uma nova ação, o ato-limite, “aquele que se dirige à superação e à negação do dado, em lugar de implicar sua aceitação dócil e passiva”.

Portanto, para superar a condição dos oprimidos de “proibidos de ser”, em busca do “direito de ser”, é que Freire (2004) propôs a luta por uma educação libertadora.

2 A EDUCAÇÃO BANCÁRIA: A DENÚNCIA

A educação instituída por alguns órgãos oficiais nacionais e internacionais, e por documentos normativos, denominada por Freire (2004) de educação bancária e/ou pedagogia da transferência, historicamente, fundamenta-se no paradigma de uma racionalidade instrumental técnica acrítica, estruturando-se em uma ideologia liberal e/ou neoliberal, em um paradigma curricular técnico-linear e meritocrático.

Para Freire (2003, p. 97),

O currículo padrão, o currículo de transferência é uma forma mecânica e autoritária de pensar sobre como organizar um programa, que implica, acima de tudo, numa tremenda falta de confiança na criatividade dos estudantes e na capacidade dos professores.

No paradigma técnico-linear, o currículo padrão é elaborado e prescrito oficialmente por documentos normativos, construídos na maioria das vezes, por “experts” em educação, legitimando uma dicotomia pedagógica entre os que pensam (experts/secretarias/fundações1) e os que executam a proposta (professores/educandos/escola/comunidade).

Nesse contexto, a única mediação possível é a imposição pela prescrição:

Um dos elementos básicos na mediação opressor-oprimido é a prescrição. Toda prescrição é a imposição da opção de uma consciência a outra. Daí, o sentido alienador das prescrições que transformam a consciência recebedora no que vimos chamando de consciência “hospedeira” da consciência opressora. Por isso, o comportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito. Faz-se à base de pautas estranhas a eles - as pautas dos opressores (FREIRE, 2004, p. 34).

Pode-se afirmar que os instituintes da proposta, educadores, educandos, pais, comunidade escolar, são meros executores externos à construção da proposta educativa. Participam, apenas, como espectadores e cumpridores de tarefas programadas para serem executadas, com qualidade, eficiência e eficácia, ou seja, configura-se uma pseudoparticipação.

Lima (2002) defende a condição da participação para a construção de um projeto de escola verdadeiramente democrático e autônomo, considera que a participação é o ponto central da política educativa, “é um direito conquistado através da afirmação de certos valores democráticos e da negação de outros que estiveram na base de uma situação de não-participação forçada ou imposta” (LIMA, 2002, p. 98).

A efetiva participação garante uma gestão coletiva, por colegiados, com debates e decisões com todos os segmentos da unidade educativa, ou seja, com toda a comunidade educativa, educadores, educandos, gestores, equipe de apoio, pais/responsáveis.

A não participação forçada ou imposta e a prescrição de tarefas para seu fiel cumprimento é uma ação alienante e descontextualizada da realidade educativa.

Os educadores são reduzidos ao puro fazer técnico, ao tecnicismo, ao ativismo, sem reflexão crítica sobre a prática, com proposta meritocrática e excludente. O currículo é prescrito verticalmente pelos manuais, cadernos de orientações curriculares, guias curriculares, documentos curriculares, propostas curriculares, subsídios para a implantação do currículo, entre muitas denominações e sua execução fiscalizada pelos órgãos centrais, por atos normativos, com diferentes estratégias, para a verificação de seu fiel cumprimento, dentre elas a avaliação externa com uma perspectiva regulatória2.

Para Freire, trata-se da “absolutização da ignorância, ou seja, alguém decreta a alguém o que fazer, o que ensinar, o que dizer, roubando-lhe o direito à palavra, o direito de ser, reificando-o” (2004, p. 131).

Recentemente houve a publicação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC) para a Educação Infantil e para o Ensino Fundamental (MEC, 2018) que estabelece os descritores de competências e habilidades para todas as áreas do conhecimento escolar, em nível nacional.

Para Cury; Reis; Zanardi (2018, p. 63):

A Base Nacional Curricular Comum despreza o desenvolvimento de um projeto educativo nacional fundado em uma concepção dinâmica e democrática de currículo que busca articular as experiências dos vários atores envolvidos na educação escolarizada com os conhecimentos científico, tecnológico, artístico, estético e cultural produzidos.

A BNCC, ao propor competências e habilidades e, consequentemente, conteúdos preestabelecidos para todo o território nacional, oferta um ensino descontextualizado com a realidade sociocultural das comunidades escolares, em que as mesmas atuam.

Para Freire (2004, p. 52), não há dicotomia entre “o conteúdo e a forma histórica de ser do homem”. Não há dicotomia entre conhecimento e realidade, entre metodologia de ensino e processo de aprendizagem. Tais dicotomias retratam uma determinada concepção epistemológica, ou seja, o caráter autoritário e meritocrático que vem constituindo o currículo nacional hoje.

O ensino bancário pelo “depósito de conteúdos” nos educandos, pela narração dos conteúdos, pelo ensino carregado de verbosidade, completamente descontextualizado, com conteúdo sem significado, desconectados da totalidade da realidade concreta e alheios à experiência existencial dos educandos.

Nesse sentido, Freire (2004, p. 57) pontua que

[...] conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação. A palavra se esvazia da dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, em verbosidade alienada e alienante.

A expectativa é a de que o conhecimento seja consumido pelo aluno como um produto, destinado a ajudá-lo a dominar uma determinada cultura, um saber científico um conhecimento já elaborado e definido, a priori, por um currículo oficial, para que, a posteriori, o aluno ocupe uma determinada função social que atenda às necessidades do mercado de trabalho.

A imposição de uma cultura hegemônica, dada como certa, invade o modo de vida dos educandos, que passam a reconhecer a cultura dominante como superior à sua cultura originária. Os educandos tendem a vestir-se, a querer consumir marcas, produtos, a falar, enfim, a viver, a partir dos valores, costumes e hábitos de consumos que a sociedade capitalista apregoa.

Nos dizeres de Freire (2006, p. 42),

A propaganda, os slogans, os depósitos, os mitos, são instrumentos usados pelo invasor para lograr seus objetivos: persuadir os invadidos de que devem ser objetos de sua ação, de que devem ser presas dóceis de sua conquista. Daí que seja necessário ao invasor descaracterizar a cultura invadida, romper seu perfil, enchê-la inclusive de subprodutos da cultura invasora.

Nessa perspectiva, a invasão cultural é uma característica da ação antidialógica3. A cultura da sociedade capitalista é uma cultura que obstaculiza a criação e recriação da cultura pelos educadores e educandos, entendendo-os como seres de não cultura, descaracterizando suas culturas.

A educação bancária forma para a homogeneidade cultural, evidencia e amplia a desigualdade social. A escola bancária ignora a polifonia de vozes dos sujeitos e a pluralidade cultural existente. Da mesma forma, a sociedade recusa um projeto que considera a diversidade cultural.

A educação bancária desrespeita o conhecimento e nega a possibilidade ao educando de dizer a palavra, de expressar a sua própria cultura.

Para Freire (2004, p. 59): “Na concepção bancária a educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos”.

Assim, para a ideologia do mercado neoliberal, não importa se o educando, em seu processo de escolaridade, construiu conhecimentos, “apreendeu” conteúdos significativos para a vida, valores como o respeito, a justiça social e a solidariedade, mas, sim, se aprendeu a ser “um ser do ajustamento” e a escola cumpriu o seu papel de domesticadora e manipuladora de conhecimentos e valores.

Além disso, a escola inculca o conceito de autodesvalia no educando, pois ele se sente incapaz de aprender, de criar, de inventar, de desafiar-se, de ser curioso, capacidades estas inerentes ao próprio processo de desenvolvimento e aprendizagem do ser humano.

Na concepção bancária, as salas de aulas são organizadas de forma homogênea, normalmente com alunos “classificados” a partir de seu mérito, de seu esforço individual para que cada aluno consiga evoluir e ser aprovado.

Caso seja reprovado, a escola cumpriu sabiamente seu papel, o fracasso é do indivíduo, do aluno. Os alunos reprovados são tratados como casos individuais e isolados. O fracasso é exclusivamente dos alunos e das famílias, não da escola, nem da sociedade. Todos os alunos têm liberdade para estudar onde quiserem e escolherem o caminho a ser percorrido. Por isso, o fracasso ou sucesso depende de seu mérito, da sua individualidade e competência.

Trata-se da principal característica da ação antidialógica, que é a conquista. O opressor conquista o oprimido pelos mitos. Um deles é o mito (neo)liberal da liberdade e da igualdade, no qual o oprimido tem a condição de escolha para o sucesso ou para o fracasso. Pela conquista, as elites dominantes manipulam as camadas populares, com a possibilidade de ascensão social pelo mérito individual. A manipulação é outra característica da ação antidialógica.

Na escola, o aluno reprovado ou evadido, não é apenas “expulso” do direito à educação, é “expulso” do direito à vida, da capacidade de aprender, que é inerente ao ser humano. As crianças das camadas populares são expulsas da escola cotidianamente. É a estrutura mesma da sociedade que cria uma série de impasses e de dificuldades, que resultam em obstáculos enormes para as crianças populares não só chegarem à escola, mas também, nela não permanecerem.

Portanto, é preciso superar a educação bancária nas suas ações e características antidialógicas, ou seja, a relação verticalizada e autoritária entre secretarias/educadores/ educandos; a relação antidialógica entre os sujeitos cognoscentes; o currículo técnico linear e fragmentado; a avaliação desvinculada do trabalho cotidiano, classificatória e regulatória no aspecto cognitivo; o trabalho pedagógico, sem um planejamento feito pelos envolvidos no processo; o trabalho pedagógico individualizado não coletivo; o caráter homogêneo e individualista da sala de aula.

Em Freire (2004), tal superação se dá por uma educação crítico-emancipatória, com uma práxis libertadora.

3 EDUCAÇÃO LIBERTADORA: HUMANIZAÇÃO E DIÁLOGO

Para Freire (2004, p. 62), “os homens são seres da busca e sua vocação ontológica é humanizar-se”. A ética humana é a essência da educação libertadora, por isso, educadores e educandos devem se orientar no sentido de efetivar sua vocação para a humanização. Todo ser humano é inacabado, inconcluso, por isso, é inerente à vida humana um permanente processo de busca, de conscientização de sua inconclusão, de conhecimento de si mesmo, de reconhecimento do outro na relação eu-tu e de conhecimento do mundo, para a formação da vocação ontológica de ser mais.

A humanização em processo não se dicotomiza do processo de conscientização e de libertação, ou seja, a partir do momento em que educadores e educandos percebem a contradição opressor-oprimido existente na educação bancária, deve se iniciar um processo de busca de sua superação, a partir de uma educação como práxis libertadora.

Nesse sentido, não basta apenas que educandos e educadores se conscientizem do processo de opressão, que desvelem a realidade, é preciso, também, que a reflexão seja conduzida para uma ação de superação, na unidade dialética entre o desvelamento da realidade e uma prática de transformação, ação-reflexão-ação, por meio de uma práxis libertadora.

A educação, como prática da liberdade, implica no reconhecimento de si e do outro como oprimido, e do oprimido como ser humano, no reconhecimento de sua vocação ontológica para ser mais, de ser sujeito e não mero objeto.

Na educação libertadora, educadores e educandos são sujeitos do processo histórico, são sujeitos do mundo, no mundo, com o mundo e com os outros. Não existe a dicotomia entre o conteúdo e a forma de ser histórica, entre consciência e mundo. O processo de conscientização não dicotomiza a consciência, de um lado, e o mundo, do outro, objetividade e subjetividade não se separam.

A educação, como prática da liberdade, problematizadora, tem a intencionalidade do desenvolvimento da consciência crítica de si mesmo e/ou do mundo. A conscientização produz a desmitologização da liberdade e da igualdade, a desmistificação da realidade opressora e de suas ações antidialógicas. A conscientização não pode existir fora da práxis humana, da ação-reflexão crítica sobre o mundo e a realidade. A conscientização é uma operação humana que parte do confronto com a realidade, para objetivá-la e, ao objetivá-la, há uma percepção dos condicionantes dessa realidade.

Segundo Freire (2006, p. 31),

A posição normal do homem no mundo, como um ser da ação e da reflexão, é a de “ad-mirador” do mundo. Como um ser da atividade que é capaz de refletir sobre si e sobre a própria atividade que dele se desliga, o homem é capaz de “afastar-se” do mundo para ficar nele e com ele. Somente o homem é capaz de realizar esta operação, de que resulta sua inserção crítica na realidade. “Ad-mirar” a realidade significa objetivá-la, apreendê-la como campo de sua ação e reflexão. Significa penetrá-la, cada vez mais lucidamente, para descobrir as inter-relações verdadeiras dos fatos percebidos.

Assim, o educador e o educando se conscientizam, na problematização, no diálogo, na participação, na ação-reflexão crítica sobre a realidade, para a superação de uma situação opressora ou de uma situação-limite.

A educação libertadora, problematizadora, exige a superação da situação de contradição opressora entre educador-educando. O objeto do conhecimento, ao invés de ser a finalização de um ato cognoscente do educando, é o elemento mediatizador entre o educador-educando, ou seja, entre sujeitos cognoscentes

A educação problematizadora supera a contradição educador-educando, afirma a dialogicidade e se faz dialógica, numa relação horizontal entre educador-educando, mediatizados por objetos de conhecimento. A educação problematizadora se faz numa ação dialógica.

Uma característica da ação dialógica é a co-laboração 4 . Educadores e educandos, dois sujeitos cognoscíveis, com níveis diferentes de responsabilidades e de conhecimentos, em relação de comunicação, desvelam o mundo opressor, no ato de construção do conhecimento.

Na co-laboração o educador é sempre um sujeito cognoscente, quando se prepara e, quando se encontra com os educandos, refaz seu ato cognoscente na cognoscitividade dos educandos, visto que educando e educador apreendem o objeto cognoscível, em comunhão.

Os educandos são sujeitos e construtores de conhecimento, investigadores críticos e desafiadores, em diálogo com o educador. Nesse processo, o educador se faz e refaz, mediante a problematização com os educandos. O educador se educa com o conteúdo que o educando traz. O educador precisa “apreender” o mundo do educando, para intervir na realidade. O educador ensina ao educando a interpretar a realidade com criticidade.

Para isso, há o respeito pelo saber de experiência feito e pela cultura do educando e do educador. Há união entre educador e educando, no processo de construção do conhecimento, uma relação dialógica entre sujeitos mediatizados pela realidade, uma relação, ao mesmo tempo, afetiva e cognitiva e que não se dicotomiza. O ato de educar é extremamente amoroso.

Para Freire (2004), o ato de educar é afetivo, de amorosidade, porque há um compromisso com o outro, de solidariedade, humildade e respeito ao outro como ser humano, numa atitude ética, considerando-se que o outro tem conhecimentos existenciais diferentes.

A relação dialógica entre educador e educando, independentemente do contexto histórico e temporal, exige coerência entre a palavra e o ato, o testemunho do educador. Exige uma organização, uma ousadia, uma radicalização na ação pedagógica. A relação dialógica nega o autoritarismo e a licenciosidade, ao mesmo tempo em que afirma a autoridade e a liberdade.

É pela ação e na ação, na realidade e com o outro, que o homem se constrói. O homem se constrói na relação dialógica, na síntese cultural. E ao se construir, cria saberes, cria cultura. Educador e educando são seres humanos que criam e cultivam cultura e fazem história. E quanto mais produzem cultura e história, mais produzem respostas para as situações-limite, desafiadoras, que precisam ser superadas.

O homem produz instrumentos e signos, com sentidos e significados, ou seja, produz ideias, valores, regras, conhecimentos, cultura e história. Todos os homens ou agrupamento humano produzem cultura, independentemente do meio social, em que vivem.

E, considerando-se a diversidade de meios sociais, pode-se afirmar que há uma pluralidade cultural constitutiva da própria existência humana. Não há uma cultura melhor que a outra, não há cultura certa ou errada, o que existem são diferentes tipos, formas, maneiras de expressar as diversas culturas, ou seja, um pluralismo cultural.

A cultura, para Freire (2006, p. 43), “é todo o resultado da atividade humana, do esforço criador e recriador do homem, de seu trabalho por transformar e estabelecer relações de diálogo com outros homens”.

Toda prática educativa, numa concepção crítico-emancipatória, deve permitir a educadores e a educandos serem sujeitos, formarem-se como humanos, estabelecerem relações de diálogo, construírem conhecimentos, criarem cultura e fazerem história, tornarem-se capazes de escolher, criar, inventar, decidir, valorar, pesquisar, intervir e transformar o mundo, porque não são, estão sendo.

Isso requer, portanto, uma proposta política, pedagógica e democrática para a escola.

3.1 Democratização da escola

A democratização da gestão tem o propósito de contribuir para a concretização da democratização do ensino, do acesso e da permanência das crianças na escola, com qualidade, além de permitir que a escola e o conjunto do sistema sejam geridos por instâncias coletivas representativas, como um espaço público de direito.

Democratizar o ensino não é somente ampliar o acesso e o número de vagas na escola, mas, garantir a permanência do educando, com qualidade social de ensino, sobretudo, pelos princípios da participação e da autonomia da escola.

Para construir práticas democráticas, dentro de uma escola, é imprescindível o fortalecimento da gestão por colegiados, Conselhos de Escola, Associações de Pais e Mestres, Grêmio Estudantil, Conselho Mirim e Assembleias, como espaços efetivos para estudos, debates e tomadas de decisões.

Segundo Apple e Beane (2001, p. 21):

As escolas democráticas são marcadas pela participação geral nas questões administrativas e de elaboração de políticas. Comitês, conselhos e outros grupos que tomam decisões no âmbito da escola incluem não apenas os educadores profissionais, mas também os jovens, seus pais e outros membros da comunidade escolar. Nas salas de aula, os jovens e os professores envolvem-se no planejamento cooperativo, chegando a decisões que respondem às preocupações, aspirações e interesses de ambas as partes.

Freire (2001) propõe um projeto educativo amplo e coletivo de construção de uma escola pública, popular e democrática.

A democratização da gestão tem por objetivo a efetivação da participação de todos na vida cotidiana da escola, por isso Freire afirma que “a democratização da escola não pode ser feita como resultado de um ato voluntarista do Secretário, decretado em seu gabinete” (FREIRE, 2001b, p. 48).

Afirma também, de forma coloquial, que a mudança da escola não se faz de um dia para outro, de segunda-feira para terça-feira, não se faz apenas pelo instituído. Ela se faz com o princípio da democratização do poder pedagógico administrativo, pela dialogicidade, participação e autonomia e pelos seus instituintes, ou seja, dialogando com todos da comunidade escolar: pais, educadores, educandos, funcionários, a própria comunidade em que a escola se situa, e os especialistas das diferentes áreas de conhecimento. Em síntese, utilizando-se de uma práxis educativa libertadora coletiva.

Uma escola pública com qualidade requer uma proposta político-pedagógica em que a escola vá se constituindo como um espaço democrático, de construção coletiva, de criatividade, de produção de cultura, de construção de conhecimentos, em que se pratique uma pedagogia da pergunta, em que se ensine e aprenda, com rigorosidade metódica, com alegria, boniteza, decência e seriedade.

Educar consiste em formar com conhecimentos e valores éticos, uma formação ética ao lado da formação estética. “Decência e boniteza de mãos dadas” (FREIRE, 2001a, p. 36).

A democratização do ensino exige a disponibilidade de educadores para diminuir a distância entre o discurso e a prática pedagógica e, consequentemente, para a reformulação do trabalho, no conjunto da escola e na sala de aula. No conjunto da escola, se requer a superação do trabalho individual, a partir da articulação de um trabalho coletivo entre todos os educadores, para, no coletivo, garantir a efetiva aprendizagem de todos os educandos, de acordo com seus saberes, experiências e vivências. Exige do educador, no coletivo, o planejamento de atividades diferenciadas, curiosas, desafiadoras e contextualizadas com a realidade.

Na sala de aula, o educador necessita, permanentemente, de maneira dialógica, com rigorosidade metódica, reinventar a relação educador-educando, para que os educandos possam perguntar, pesquisar, criar, inventar, compartilhar, debater, construir conhecimentos, produzir cultura e fazer história.

O educador deve envolver os educandos no planejamento dos trabalhos, explicitando claramente seus objetivos e intencionalidades da aprendizagem, tornando-os corresponsáveis pelo processo ensino-aprendizagem.

Para Freire (2003), o processo de aprender é um processo individual, no entanto, se faz no coletivo, no social. Aprender criticamente a realidade é um processo individual, de cada sujeito, um empowerment individual, no entanto, transformar a realidade opressora é um empowerment social.

“A palavra empowerment significa dar poder a, ativar a potencialidade criativa, desenvolver a potencialidade criativa do sujeito, dinamizar a potencialidade do sujeito” (FREIRE, 2003, p. 11).

Sendo assim, educadores e educandos são sujeitos do processo, sujeitos que, potencializados, constroem histórias, conhecimentos e valores, com objetivo de transformar a realidade opressora e desumanizadora.

3.2 Democratização do saber

A prática educativa, numa concepção epistemológica freireana, parte do saber de experiência feito, do conhecimento que o educando traz, do saber popular, articulando-o com o saber científico, para que a apreensão do conhecimento seja significativa e relevante para o educando.

Não há hierarquização do conhecimento, ou seja, todo conhecimento tem valor, não há uma supervalorização do conhecimento científico em detrimento do conhecimento popular, ou a supervalorização de uma cultura em detrimento da outra.

O que se propõe é que o conhecimento com o qual se trabalha na escola seja relevante e significativo para a formação do educando.

[...] Proponho e defendo uma pedagogia crítico-dialógica, uma pedagogia da pergunta. A escola pública que desejo é a escola onde tem lugar de destaque a apreensão crítica do conhecimento significativo através da relação dialógica. É a escola que estimula o aluno a perguntar, a criticar, a criar; onde se propõe a construção do conhecimento coletivo, articulando o saber popular e o saber crítico, mediados pelas experiências no mundo (FREIRE, 2001b, p. 83).

Assim, o currículo precisa considerar as características socioculturais da escola e dos educandos, no processo de aprendizagem.

O currículo envolve a construção de significados e valores culturais. O currículo não está simplesmente envolvido com a transmissão de fatos e conhecimentos objetivos. Os significados estão estritamente ligados a relações sociais de poder e de desigualdade (GIROUX, 2002, p. 11).

Para a contextualização do currículo, Freire propõe o trabalho com temas geradores. O tema gerador permite o levantamento de conteúdos, a partir do saber de experiência feito dos educandos, que expressam as situações-limite vividas por eles na cotidianidade, situações discriminatórias e opressoras da realidade. “O momento deste buscar é que inaugura o diálogo da educação libertadora” (FREIRE, 2003, p. 87).

A partir do levantamento da temática significativa, o professor constrói o programa para trabalhar o conteúdo, problematizando a realidade. A problematização constitui-se em uma ação conscientizadora e transformadora da realidade e busca a superação da situação opressora. Conhecer é um meio para mudar o mundo.

Esta investigação implica necessariamente, uma metodologia que não pode contradizer a dialogicidade da educação libertadora. Daí que seja igualmente dialógica. Daí que, conscientizadora também proporcione ao mesmo tempo a apreensão dos temas geradores e a tomada de consciência dos indivíduos em torno dos mesmos (FREIRE, 2003, p. 87).

O diálogo entre educadores e educandos, torna-se uma condição imprescindível, pois não há possibilidade de construção de conhecimento e de uma educação libertadora sem diálogo.

A construção do conhecimento se dá na relação com o outro, intermediado por objetos de conhecimento. Todo conhecimento é construído numa relação dialética e numa situação de diálogo, considerando a tríade A com B, mediatizados pelo mundo, ou, na prática educativa, a tríade educador-educando, mediatizados por objetos de conhecimento.

Essa concepção de construção do conhecimento está imbricada com a concepção de ensino-aprendizagem. Ensinar e aprender são práticas históricas e indissociáveis,

Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente que, historicamente mulheres e homens perceberam que era possível - depois, preciso - trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar. Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras, ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender. Não temo dizer que inexiste validade no ensino de que não resulta um aprendizado em que o aprendiz não se tornou capaz de recriar ou de refazer o ensinado, em que o ensinado que não foi apreendido não pode ser realmente aprendido pelo aprendiz (FREIRE, 2001a, p. 26)

A expectativa é a de que o conhecimento seja construído por educandos e por professores em comunhão. Tal prática educativa favorece a realização dos sonhos, das utopias, das esperanças, das histórias de vida dos educandos e professores, porque os considera sujeitos do processo histórico de ensinar e aprender.

Nessa perspectiva, evidenciam-se dois momentos no processo de educar. O primeiro é a construção do conhecimento dentro do ciclo gnosiológico do que é o ato de conhecer; o segundo é a socialização, em que os educandos, pela solução dos problemas cotidianos de sua realidade, apreendem e desenvolvem valores de respeito, solidariedade, justiça social, valores universais para a existência humana.

4 É CAMINHANDO QUE SE FAZ O CAMINHO: A PRÁXIS FREIREANA

Para elucidar e materializar a proposta freireana, destaca-se a experiência na Rede Municipal de São Paulo, no período de 1989 a 1992.

4.1 A Experiência na Rede Municipal de São Paulo

Em 1989, assumiu a gestão da rede municipal de São Paulo a prefeita Luiza Erundina de Souza, tendo o professor Paulo Freire, à frente da Secretaria Municipal de Educação.

Esse foi um momento de possibilidades de ruptura com a organização da escola bancária, pois se implantava uma proposta político-pedagógica, objetivando a construção de uma escola pública, popular, democrática e de qualidade, fundamentada em três princípios: descentralização, participação e autonomia e pautada por quatro principais objetivos:

1-ampliar o acesso e a permanência dos setores populares - virtuais únicos usuários da educação pública; 2- democratizar o poder pedagógico e educativo para que todos, alunos, funcionários, professores, técnicos educativos, pais de família se vinculem num planejamento autogestionado, aceitando as tensões e contradições sempre presentes em todo esforço participativo, porém, buscando uma substantividade democrática; 3- incrementar a qualidade da educação, mediante a construção coletiva de um currículo interdisciplinar e a formação permanente do pessoal docente; 4- contribuir para eliminar o analfabetismo de jovens e adultos em São Paulo (FREIRE, 2001b, p. 14-15).

Para cada um dos objetivos apontados foram estabelecidas metas, viabilizados projetos e executadas ações pela Secretaria, a fim de que fossem esses objetivos alcançados. A democratização da gestão teve por objetivo a efetivação da participação de todos nas decisões, na vida cotidiana da escola.

Democratizar a gestão foi um dos eixos estruturantes da reforma proposta pela administração, pois a mesma pretendeu consolidar uma gestão por colegiados, com a participação dos diferentes setores locais e regionais da sociedade civil e comunidade escolar.

Para o exercício dessa participação, foram instituídos o Conselho de Escola, como órgão deliberativo nas decisões da gestão escolar, e os Conselhos Regionais de Escola (CRECEs), como colegiado intermediário nos Núcleos de Ação Educativa (NAEs,) que, por representatividade, participariam das decisões entre o órgão central e a escola (FREIRE, 2001b).

Os CRECEs configuravam-se como instâncias regionais e canais de participação e comunicação dos representantes da comunidade, dos trabalhadores da educação, dos Conselhos de Escola e da própria SME. Neles, ocorria a discussão sobre o funcionamento dos Conselhos de Escola, os problemas das escolas, as proposições e alternativas, e a definição, com os NAEs, das prioridades para cada região (FREIRE, 2001b).

Além disso, uma prioridade fundamental da administração foi a busca de uma nova qualidade do ensino.

Para isso, efetivou o Movimento de Reorientação Curricular, por meio da democratização do poder pedagógico-administrativo, pela participação e autonomia dos seus instituintes, ou seja, dialogando com todos da comunidade escolar: pais, educadores, alunos, funcionários e toda a comunidade local.

Para iniciar a efetivação da mudança pretendida nas escolas da rede municipal de ensino, um primeiro documento foi elaborado pela administração com o objetivo de iniciar um diálogo com toda a rede municipal e definir os eixos norteadores de uma escola pública, popular e democrática. Tal documento foi publicado no Diário Oficial do Município de São Paulo, em 1º de fevereiro de 1989, intitulado: “Aos que fazem a educação conosco em São Paulo”, no qual se desvelava a escola que se desejava construir (FREIRE, 2001b).

A proposta político-pedagógica da administração buscou o resgate das experiências socioeducacionais de educadores e de educandos, no processo de construção e sistematização do conhecimento. O desenvolvimento da autonomia estava imbricado com a construção do saber, por meio da participação de todos os envolvidos no processo.

O Movimento de Reorientação Curricular foi estruturado, a partir de conhecimentos significativos para os educandos, por meio de um processo de produção coletiva por todos os envolvidos, ou seja, pela escola, pela comunidade e por especialistas nas diferentes áreas do conhecimento.

O Movimento de Reorientação Curricular desencadeou um processo em cada escola, de construção de um currículo crítico-emancipatório e, dentro da ação curricular, do programa de ensino. As ações principais que nortearam o movimento curricular foram: fortalecimento do trabalho coletivo dos profissionais na escola; grupos de formação permanente de professores, coordenadores pedagógicos e diretores de escola para reflexão sobre a prática e possibilidade de cada escola propor e executar seu projeto pedagógico.

A Secretaria Municipal de Educação, para a concretização dos projetos pedagógicos das escolas, utilizou duas estratégias de formação permanente: grupos de formação permanente, que reuniam professores e especialistas por área do conhecimento, com o objetivo de desvelar a teoria existente na prática pedagógica e reorientá-la, com base na teoria crítico-emancipatória e outras modalidades de formação, como cursos, encontros, palestras, debates, seminários e oficinas (FREIRE, 2001b).

Os grupos de formação apresentavam uma periodicidade variada, de acordo com as necessidades e disponibilidades dos grupos, central, local ou escolar, sendo mensais, quinzenais, vintenais e semanais (SME, 1989).

O Movimento de Reorientação Curricular parte do envolvimento de todos da comunidade escolar no processo de problematização da escola, evidenciando a escola que temos e a escola que queremos (SME, 1989).

A problematização da escola foi desenvolvida em várias etapas e em todas as Unidades. Iniciou-se em agosto de 1989, quando foi elaborado um documento para os educadores, com a finalidade de subsidiar a discussão nos dois dias de reuniões pedagógicas - O movimento de reorientação curricular na Secretaria Municipal de Educação - documento 1 (roteiro para problematização como sugestão) e um vídeo com uma apresentação de Paulo Freire, encaminhando o texto, como sensibilização, aos educadores da rede (SME, 1989).

O documento 1 buscou definir, fundamentar e encaminhar o Movimento de Reorientação Curricular desencadeado pela Secretaria Municipal de Educação nas escolas da rede de ensino (SME, 1991).

Segundo o documento da SME, as decisões sobre o currículo escolar são resultados da ação-reflexão-ação, desenvolvida pelo coletivo de educadores, por diferentes grupos em interação. A problematização do currículo envolveu a descrição, a crítica e a expressão das expectativas. No âmbito da escola, foi desenvolvida por educadores, educandos, especialistas e conselho de escola. No âmbito da participação popular, aconteceu em plenárias pedagógicas, com representantes dos movimentos sociais e pais (SME, 1989).

Os registros foram enviados à Diretoria de Orientação Técnica (DOT), que trabalhou, com uma equipe de vinte educadores, para a leitura e organização das informações para a sistematização dos dados. Consta no documento que todas as escolas enviaram relatórios (SME, 1990).

Em 1990, no período de planejamento, os educadores da rede municipal receberam o documento O Movimento de Reorientação Curricular na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo - Documento 2, dirigido aos educadores da rede municipal de ensino, contendo a sistematização dos dados coletados para a continuidade do trabalho (SME, 1990).

Em fevereiro de 1991, os educadores da rede recebem o documento 3 da série Movimento de Reorientação Curricular - Problematização da escola: a visão dos educandos, com a sistematização dos dados sobre a problematização da escola retratada pelos educandos, documento este que completa as informações registradas no documento 2 (SME, 1990).

A dinâmica proposta pela SME para o Movimento de Reorientação Curricular apresentou três movimentos: a problematização, a organização das informações obtidas na problematização e o retorno para a escola dos rumos do trabalho pedagógico anteriormente apontados (SME, 1990).

Nessa direção, expressava coerentemente a concepção de ensino-aprendizagem e concepção epistemológica que fundamentam toda a proposta curricular.

Para Freire “não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 2001a, p. 25).

Pode-se constatar que o Movimento de Reorientação Curricular nessa gestão foi um processo participativo de construção coletiva, por todos os envolvidos, ou seja, educadores, pais, alunos, comunidade e os especialistas nas diferentes áreas do conhecimento.

Nesse movimento, a problematização e a sistematização foram desenvolvidas em todas as escolas da rede e modalidades de ensino.

Observa-se também que o Movimento de Reorientação Curricular procurou incentivar e subsidiar o desenvolvimento de diferentes projetos nas escolas, com o objetivo de proporcionar sua autonomia pedagógica.

Concomitantemente aos projetos desenvolvidos, a Secretaria Municipal de Educação propôs às escolas, sob a forma de adesão, o Projeto da Interdisciplinaridade.

Inicialmente, o Projeto da Interdisciplinaridade foi desenvolvido em 100 escolas pilotos, associando um trabalho de formação permanente de educadores realizado com a assessoria de educadoras da DOT e dos NAEs e a assessoria externa da Universidade (USP, PUC, UNICAMP), para, juntamente com os profissionais das escolas, desencadearem a reflexão crítica sobre a prática pedagógica, com a intencionalidade de superá-la e transformá-la (SME, 1991).

Na construção do programa estaria implícita a intencionalidade de cada visão de área do conhecimento e do significado do conhecimento trabalhado, do porquê, para quê e para quem.

O programa em construção foi simultaneamente processo e produto, em permanente revisão, e expressou a ação no cotidiano da sala de aula, nos trabalhos pedagógicos, no dia a dia da escola. Fundou-se no diálogo, no envolvimento do coletivo e na troca entre os envolvidos no processo.

A SME, para subsidiar a proposta, publicou os cadernos da série, Ação Pedagógica da Escola pela via da Interdisciplinaridade e os Cadernos de Visão de Área para o entendimento do corpus teórico da proposta e sugestões de possibilidades práticas.

Portanto, a organização curricular da escola foi implantada na Rede Municipal de São Paulo por meio de uma proposta de cunho crítico-emancipatório para a educação, com o objetivo de combater o caráter seletivo, elitista e excludente que norteava, até então, as práticas pedagógicas, nas escolas públicas municipais. Essa proposta caracterizou-se por um projeto ousado, que assumiu o desafio de construção de uma escola pública popular, democrática e com qualidade.

A proposta de organização curricular, alicerçada em pressupostos freireanos, expandiu-se para outras redes de ensino, sendo reestruturada de acordo com cada contexto histórico-social, econômico e cultural e a realidade local, numa perspectiva de construção de uma escola pública, popular e democrática (AGUIAR, 2011).

Nessa perspectiva, destacam-se a Escola Plural em Belo Horizonte (1994), a Escola Cidadã em Porto Alegre (1995), a experiência na Secretaria Estadual de Educação em Pernambuco (1995), a Escola Cabana (1997) em Belém do Pará e a Escola Sem Fronteiras em Blumenau (1997), o Projeto Escola do século XXI, Secretaria Estadual de Educação de Cárcere (MT) (1998), Escola Democrática na Rede Municipal de Diadema/SP (2005), entre outros (AGUIAR, 2011).

5 CONCLUSÃO

A Pedagogia do Oprimido e a Educação Bancária, presentes, hoje, nos documentos oficiais e normativos, e no cotidiano da escola pública, precisam ser superadas.

Para isso, Freire propôs uma educação crítico-emancipatória, o que requer algumas condições:

  • Proposta de política pública com gestão democrática, comprometida com o direito à educação.

  • Efetiva participação de todos os envolvidos no processor educativo, equipe gestora, professores, educandos, pais, comunidade por meio de uma gestão por colegiados deliberativos.

  • Elaboração, acompanhamento e avaliação da proposta político-pedagógica da escola, de modo a instituir uma comunidade curriculista.

  • Processo de construção de conhecimento que articule as características socioculturais, considerando a realidade de cada escola e dos educandos com a dimensão do processo ensino-aprendizagem.

  • Formação integral do educando, com garantia de desenvolvimento cognitivo com construção de conhecimento significativo e socialização com formação de valores, de respeito, solidariedade, justiça social.

  • Processo de Humanização dentro e fora da escola.

Sendo assim, a Educação como Prática da Liberdade tem por finalidade proporcionar aos educadores e educandos um processo de aprendizado com conteúdos para a vida, formando sujeitos históricos, autônomos, éticos, criativos e críticos, capazes de transformar a realidade em que vivem, tendo como horizonte uma sociedade mais justa, solidária, democrática e humanizada.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Denise Regina da C. A Estrutura Curricular em Ciclos de Aprendizagem nos Sistemas de Ensino: Contribuições de Paulo Freire. Orientadora: Ana Maria Saul. 2011. 362 f. Tese (Doutorado em Educação) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011. [ Links ]

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NOTAS:

1 Fundação Lemann, Fundação Roberto Marinho, Fundação Itaú Social, Fundação Victor Civita, dentre outros constituem um grupo de reformadores empresariais atuantes no Movimento Todos pela Educação, que nas últimas décadas, se voltaram a pensar a Educação Básica com proposições de orientações curriculares, construção de materiais apostilados, cadernos de apoio, entre outros).

2 Algumas redes públicas estaduais de ensino utilizam-se da avaliação externa regulatória como políticas de responsabilização para ranquear escolas, dar prêmios/bônus de acordo com o desempenho, tem a função de impor um currículo escolar básico, informar o sistema sobre os resultados, atender a perspectiva do mercado. (BONAMINO; SOUSA, 2011).

3 Para Freire, a essência da práxis opressora é antidialógica e utiliza-se de ações com características comuns para manter a dominação, sendo estas: a conquista, a manipulação e a invasão cultural (FREIRE, 2004, p. 135).

4 Para Freire (2004), a teoria da ação dialógica possui as seguintes características: co-laboração; união; organização e síntese cultural.

Recebido: 15 de Outubro de 2018; Aceito: 02 de Agosto de 2020

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