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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.19 no.1 São Paulo ene./marzo 2021  Epub 10-Mayo-2021

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2021v19i1p241-260 

Artigos

EDUCAÇÃO INFANTIL COMO DIREITO, ALEGRIA E POSSIBILIDADE DE CRIAÇÃO E ENCONTROS

EARLY CHILDHOOD EDUCATION AS A RIGHT, JOY AND POSSIBILITY OF CREATION AND MEETINGS

LA EDUCACIÓN INFANTIL COMO UM DERECHO, ALEGRIA Y POSIBILIDAD DE CREACIÓN Y ENCUENTRO

i Doutorado em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisadora credenciada no Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd). E-mail: virginialouzada.feuerj@gmail.com - ORCID Id: http://orcid.org/0000-0002-0529-8091.

ii Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisadora credenciada no Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd. E-mail: lisandraogg@yahoo.com.br - ORCID Id: https://orcid.org/0000-0002-3601-7758.


RESUMO

A Educação Infantil integra e é reconhecida como primeira etapa da educação básica, conforme a Lei de Diretrizes e Bases, n.º 9.394/1996. Entretanto, qualquer mudança no cenário político afeta com intensidade a proposta educacional para as crianças que frequentam a creche e a pré-escola. Nosso objetivo com este ensaio teórico é analisar e avaliar o debate político educacional-curricular na atualidade. Inicialmente, ponderamos sobre uma educação que considere as crianças a partir da dinâmica estabelecida entre socialização, políticas e infância, com base no campo dos estudos da infância. Na sequência, tratamos da avaliação voltada para as aprendizagens infantis, que não provoque epistemicídio, mas que torne possível a potência das crianças, assumindo e compreendendo com elas a diversidade da linguagem e do mundo. Concluímos defendendo uma Educação Infantil como direito e alegria, como possibilidade de criação e de encontros.

PALAVRAS-CHAVE: Infância; Educação Infantil; Alfabetização; Trabalho Pedagógico

ABSTRACT

The Early Childhood Education includes and is recognizes as first stage of the basic education, as Brazilian Education Basic Tenets Law, n.º 9.394/1996. However, often any change in political panorama intensively affects the educational proposal to daycare and preschool children. Thus, we aim with this essay to analyze and to evaluate the educational and curricular political debate nowadays. Our proposal is, firstly, to reflect about an education that regards children from the dynamic established among socialization, politics, childhood, situated on the childhood studies. After, we deal with evaluation on children’s learning, that does not lead to 'epistemicide', but that enables children’s power, considering and understanding the diversity of language and world. We conclude defending an Early Childhood Education as a right and as happiness, as a possibility of creation and meeting.

KEYWORDS: Childhood; Early Childhood Education; Literacy; Pedagogical Work

RESUMEN

La Educación Infantil integra y es reconocida como primera etapa de la educación básica, como señalado en las Bases Curriculares de la Educación, n.º 9.394/196. Todavía, el contexto político afecta, con fuerza, la propuesta educativa para los niños y las niñas que siguen en la guardería y jardín de infancia. Nuestro objetivo con ese ensayo es analizar y apreciar la discusión política educativa-curricular en la actualidad. Inicialmente, ponderamos a respecto de una educación que considere los niños y las niñas con base en la dinámica establecida entre socialización, políticas, infancia; concepciones fundamentadas en los estudios de la infancia. En la continuidad, abordamos la evaluación direccionada para el aprendizaje de los niños y las niñas, que esa no promueva un epistemecidio, pero que posibilite su potencia, asumiendo y entendiendo con ellas la diversidad del lenguaje y mundo. Concluimos defendiendo una educación infantil como derecho y como alegría, como una posibilidad de creación y encuentros.

PALABRAS CLAVE: Infancia; Educación Infantil; Alfabetización; Trabajo Pedagógico

1 INTRODUÇÃO1

No dia 23 de maio de 2019, uma das autoras deste texto esteve presente no Seminário: “Alfabetização e Letramento: métodos, políticas públicas e desafios”, realizado nas dependências do Centro Cultural Fundação Getúlio Vargas (FGV). O evento foi promovido pelo Centro de Excelência e Inovação em Políticas Públicas (CEIPE), da FGV - Rio de Janeiro. Na ocasião, Claudia Costin, responsável pelo centro de pesquisa, ex-Secretária Municipal da Rede Pública de Ensino carioca2, abriu o evento, defendendo, entre alguns aspectos que considerava importantes acerca da questão, a necessidade premente de discutir tecnicamente a educação, ou seja, a necessidade de debater metodologias de ensino. Também argumentou que não existe qualidade, se não há efetiva aprendizagem das crianças nos aspectos referentes às questões de alfabetização e letramento. Ainda nessa fala inicial, Costin disse, em tom “jocoso”, que “as crianças estavam felizes demais”, mas, de fato, não estavam se alfabetizando. No mesmo evento, um dos painéis de trabalho destinou-se a tratar de questões relativas à Educação Infantil (EI) e à Formação de Professores/as, o que evidencia que o assunto tem sido considerado bastante significativo nos debates sobre essa faixa etária.

Louzada (2017) argumenta que há interesse no trabalho pedagógico executado na EI, com o objetivo de aprimorar o desempenho escolar futuro dos/as estudantes, uma vez que, como ponderado por Campos et al. (2011), há melhor desempenho de crianças pré-escolares, se comparadas com as demais. Nesse sentido, intenciona-se antecipar a questão da alfabetização para a EI, o que justificaria, por exemplo, a utilização de cartilhas e materiais pedagógicos na pré-escola. Iniciativas recentes confirmam essa hipótese, uma vez que, em 2017, ações de formação continuada previstas pelo Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) abrangeram professores/as e equipe gestora de instituições que atendem à pré-escola (BRASIL, 2017a). Em 2018, a Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) passou a ser aplicada ao segundo ano do Ensino Fundamental, e não aos concluintes do terceiro ano, como proposto inicialmente (BRASIL, 2013). Além disso, em 2019, a Portaria n.º 366 (BRASIL, 2019a), que estabeleceu as diretrizes de realização para o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) para o ano em curso, incluiu, como população-alvo do sistema, amostra de instituições públicas e conveniadas com o setor público, localizadas em zonas rurais e urbanas, que possuem turmas de creche ou pré-escola em caráter de estudo-piloto3.

Iniciativas como a inserção da pré-escola nas ações do PNAIC e sua inclusão no SAEB comprovam o foco das políticas na relação entre a EI e a questão da alfabetização. Também cabe ressaltar que, em dezembro de 2017 (BRASIL, 2017b), a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi homologada pelo então Ministro da Educação, Mendonça Filho, tendo contemplado, inclusive, em seu documento, parte homologada do documento correspondente às etapas da EI e Ensino Fundamental, compondo esse mosaico.

Levando os possíveis confrontos e resistências nas políticas educativas e curriculares no contexto atual e um resgate de um trabalho pedagógico realizado na EI, tendo como principais eixos norteadores para as práticas pedagógicas as interações e as brincadeiras (BRASIL, 2010), sentimo-nos instigadas a escrever este ensaio a partir da ideia trazida pelo escritor uruguaio Mario Benedetti4, em seu poema, de que é necessário “defender a alegria como princípio”, ou ainda, nas palavras de Tiriba (2018), defender a EI como direito e alegria5.

Desde o golpe instaurado a partir de 2016, vivemos um momento bastante conturbado no País, que tem trazido pautas como: as reformas trabalhistas e da previdência, ensino doméstico ou domiciliar, escola sem partido, entre outras. Nesse contexto, paira sobre nós o eminente perigo de retrocessos significativos em temas seriamente debatidos por estudiosos/as e pesquisadores/as de diversas áreas, inclusive da Educação. As questões de alfabetização e de trabalho pedagógico realizado na EI não estão isoladas desse âmbito.

2 POR UMA EDUCAÇÃO QUE CONSIDERE AS CRIANÇAS

Para avaliar esse contexto posteriormente indicado, consideramos pertinente compreendê-lo a partir das relações estabelecidas entre a socialização, educação, política, infância e crianças, concepções fundamentadas nos campos da pedagogia, política e estudos da infância, as quais serão tratadas na sequência.

Como se sabe, o campo da pedagogia precisa dialogar com outras áreas do conhecimento das ciências humanas para pensar a respeito de seus sujeitos, de suas funções, experiências, ideias e técnicas. Essa interlocução e reflexão devem ser constantes para que sejam revistas suas metáforas, autoimagens e verdades (ARROYO, 2009). Dessarte, entendemos que os campos da sociologia e da política são interlocutores críticos e potentes para a pedagogia, pois ambos têm como um de seus fundamentos tratar dos fenômenos sociais. A pedagogia é a ciência que versa sobre a educação de crianças, jovens e adultos; e a educação é um fenômeno social, porque foi criada pela e para a sociedade, tem uma forma, um sentido, um conteúdo, e é pelo efeito que produz que pode ser conhecida e observada (PAIS, 1996). Nos termos de Benevides (1996, p. 225), em sociedades democráticas, fundadas na soberania popular e no respeito integral aos direitos humanos, a educação deve ser entendida “como a formação do ser humano para desenvolver suas potencialidades de conhecimento, de julgamento e de escolha para viver conscientemente em sociedade” (grifos da autora).

Durkheim (1955) desenvolve o conceito de educação como sinônimo de socialização. O teórico atribui importância à educação como meio pelo qual a sociedade regula e prepara, “no íntimo das crianças, as condições essenciais da própria existência” (DURKHEIM, 1955, p. 32). Nesse sentido, a educação não se restringe à instrução formal e constitui-se como um processo metódico.

A educação é a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontrem ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destine (DURKHEIM, 1955, p. 32).

Essa teoria é importante por esclarecer que os processos de socialização têm um caráter imperativo, pois por meio deles são transmitidos e modelados ideias, práticas, valores e referências socioculturais. Da mesma forma, o teórico elucida que os costumes e conceitos que envolvem a educação são produtos de uma vida em comum, os quais expressam as necessidades de uma época. São, portanto, processos plurais e concatenados que difundem concepções e experiências coletivas e individuais, estabelecendo uma relação que integra ininterruptamente a sociedade e os indivíduos. Ademais, “ninguém duvida de que os indivíduos formam a sociedade ou de que toda sociedade é uma sociedade dos indivíduos” (ELIAS, 1994, p. 16). Logo, os indivíduos - crianças, jovens, adultos e velhos - dão forma à sociedade e são igualmente o conteúdo dela.

Tratando-se da sociedade dos indivíduos, Elias (2008) e Simmel (1983) analisam que os processos socializadores abarcam uma multiplicidade de dinâmicas sociais variáveis, relacionais e interacionais, que ocasionam modificações no todo social. Assim, é importante compreender que uma pessoa “[...] não só atravessa um processo, ela é um processo” (ELIAS, 2008, p. 129). Dessa maneira, os processos socializadores tanto envolvem as ações e disposições dos indivíduos quanto as prescrições e as estratégias que as instituições - família, escola, mídia, igreja e grupos de pares, por exemplo - utilizam e colocam em prática para atingir seus objetivos.

Ocorre entender que, em nossa época, essas discussões e reflexões passaram a abarcar de maneira manifesta as crianças e a infância, pois foram alteradas e identificadas as formas de interação e atuação delas em seus espaços, tempos e com os demais sujeitos que compõem a estrutura da sociedade. Assim, o debate a respeito da educação e da educação escolar de bebê e crianças pequenas passou a contemplar as ações e as participações delas em seus processos socializadores e a relevância da geração da infância na estrutura da sociedade. O reconhecimento desses sujeitos e dessa geração transformou as ações das instâncias socializadoras que atuam permanentemente e têm importância na vida das crianças. Levando em conta essa análise, Lahire (2002) nos alerta para o fato de que não existe uma ação “natural” - como assim muitas vezes se determina para as crianças e a infância -, todo indivíduo considera uma ordem particular quando realiza sua ação e, simultaneamente, atenta-se para as instituições. Portanto, tanto as identidades e as diferenças como os processos sociais são permeados e constituídos na correlação entre individualização, participação e determinações, reputando as relações ocorridas entre os indivíduos e deles com e nas instituições. Dessarte, legitimamos a ideia de que as crianças sempre atuaram em seus espaços e tempos, mas não havia o reconhecimento social e institucional.

Diante do exposto, podemos dizer que são novas formas de socialização, porque - dadas as modificações na estrutura da sociedade, por exemplo, na política, relações e questões de gênero, étnico-racial, educação, economia, cultura etc. - as crianças também passaram a ser reconhecidas como participantes de uma constelação de eventos e instâncias que podem ser concorrentes, heterogêneos e singulares, colocando em debate a necessidade de entender o processo de socialização como verbo, a saber, um socializar-se. Ainda que reconheçamos que as crianças “[...] são ao mesmo tempo ‘um de nós’, no sentido de terem nascido de nós e de prolongar nossa existência depois da morte, também são diferentes de nós, na medida em que não falam a nossa língua e não sabem os nossos costumes” (LÓPEZ, 2008, p. 16). É nesse ínterim que se encontra o socializar-se, na ação humana, pois as crianças - conquanto sejam um de nós - não são feitas dos mesmos moldes, tampouco reúnem todas as propriedades, práticas e representações de seu grupo ou categoria social (LAHIRE, 2002). E, ao se apropriarem da cultura, elas o fazem a sua maneira. Em uma analogia à reflexão proposta por Agamben (2005), felizmente há a infância, pois, ao passo que as crianças precisam se inserir na cultura e na sociedade, não há como fazê-lo sem transformá-las, sem reorganizá-las ao modo delas. Nesse sentido, as crianças tanto auxiliam na manutenção e continuidade da sociedade quanto a transformam em razão de suas relações e mediações, de seus interesses, de suas práticas e de seus modos de interpretação e compreensão do mundo no qual atuam e do qual participam. Dessarte, são esses elementos que tornam as crianças atores sociais e sujeitos de direitos.

É relevante indicar que entendemos que a cultura

[…] não é simplesmente um referente que marca uma hierarquia de “civilização”, mas uma maneira de viver total de um grupo, sociedade, país ou pessoa. Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque compartilham de parcelas importantes deste código (a cultura) que um conjunto de indivíduos com interesses e capacidades distintas, e até mesmo opostas, transformam-se num grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Podem, assim, desenvolver relações entre si, porque a cultura lhes forneceu normas que dizem respeito aos modos, mais (ou menos) apropriados de comportamento diante de certas situações. Por outro lado, a cultura não é um código que se escolhe simplesmente. É algo que está dentro e fora de cada um de nós, como as regras de um jogo de futebol, que permitem o entendimento do jogo e, também, a ação de cada jogador, juiz, bandeirinha e torcida (DAMATTA, 1986, p. 123-124, grifos do autor).

Assim, considerar e reconhecer as crianças como detentoras de direitos e atores sociais, criativos, competentes e ativos significa percebê-las, “dentro e fora do jogo”, como produtoras autônomas de suas próprias culturas, colaboradoras na constituição da sociedade e instituições e autoras nos processos socializadores. Elas são produtoras porque, com seus pares, adotam ideias, práticas e valores do mundo adulto, produzindo e difundindo algo que tem sentido em seus espaços sociais e culturais. As crianças são, por conseguinte, tributárias na cultura, porque a infância - categoria que tem as crianças como seus membros beneficiários - está interconectada às outras categorias relacionais - classes sociais, etnia, raça e gênero, por exemplo -, e qualquer mudança em uma delas acarreta transformações nas demais (CORSARO, 2003). É nesse sentido que podemos dizer que elas se socializam, pois nesse processo elas se fazem, desfazem e refazem na interação com outros indivíduos (VINCENT, 2004).

De todo modo, não podemos nos esquecer de que toda cultura mantém recursos e representações para conservar suas estruturas. Em outras palavras, toda prática social carrega uma dimensão cultural, é uma dimensão significante que lhe dá sentido, que a constitui e compõe a interação de cada indivíduo com a sociedade. Entretanto, nessa prática nem tudo é cultura, pois há um entrelaçamento complexo e constante entre cultura e sociedade. É importante reconhecer que essa dimensão cultural abarca o conjunto de processos pelos quais indivíduos e grupos concebem e geram suas relações e construções na/da sociedade, representando e intuindo imaginariamente esse social. As diferenças entre os indivíduos e/ou grupos se ordenam dentro das funções e posições, da dispersão e delimitação, nas quais se conservam três elementos: uma ordem que torna possível o funcionamento da sociedade, as zonas de disputas sociais e os atores que se abrem para o possível (CANCLINI, 2007).

Assim como indicado anteriormente, a infância também é um fenômeno social ou, nos termos de Qvortrup (2010), uma categoria geracional. Enquanto tal, é constituída na relação de alteridade entre e com os sujeitos que se socializam a partir daquilo que foi determinado para cada uma das gerações - infância, adultez, juventude e velhice. Sendo da ordem geracional, a infância abarca as crianças, as práticas e as ideias construídas sobre, com, para e por elas, dentro de um período demarcado, mas contínuo, na sociedade. Isso significa que a categoria da infância não acaba, mas se transforma com o nascimento de crianças e a saída daquelas que passam para a geração seguinte. Muito mais do que práticas e ideia, esse é o elemento que torna a infância comum a todas as crianças, ou seja, todas as crianças terão de deixar essa geração (QVORTRUP, 2010).

Nesse período de tempo, a sociedade procura integrar e apresentar as normas sociais às crianças com finalidade para o futuro, de um tempo que há de vir, ou, como indicado anteriormente, tenta preparar e regular as condições necessárias da própria existência por meio da infância. No entanto, Qvortrup (2010, p. 634) nos questiona sobre como “[…] um adulto poderia interagir com as crianças de uma forma mais positiva, ao invés de simplesmente tolerá-las por aquilo que elas viriam a se tornar”, ou, ainda, como “[…] lidar com a infância e as crianças por elas mesmas, ou seja, sem ter de necessariamente fazer referência ao seu futuro, quando se tornarem adultas”.

Essas são questões relevantes quando pensamos as propostas políticas e educacionais para a infância/s e a/s criança/s. Rosemberg (2012, p. 12) nos lembra que a EI brasileira se constitui como “[…] um subsetor das políticas educacionais e um campo de práticas e conhecimentos em construção, procurando demarcar-se de um passado antidemocrático”, o qual parece que volta a nos assombrar.

Portanto, o que nos assusta é constatar a tensão existente no espaço político para garantir liberdades democráticas, oportunidades, direitos e reconhecimento em prol das particularidades de bebês e crianças pequenas. Isso é importante quando entendemos que no espaço político alguns querem jogar o jogo excluindo aqueles de que tratam. Queremos destacar que a educação desses sujeitos de direitos - que são atores sociais, que se socializam e constituem suas infâncias - deve ter em sua pauta as especificidades e ser transpassadas por elas. No nosso entender, a particularidade da EI apenas poderá ser compreendida, se as crianças forem levadas em consideração e se forem atendidas em suas questões. Isso significa ter como fundamentos que o brincar e a interação são eixos norteadores da EI, que sustentam o respeito aos direitos essenciais das crianças e garantem

[...] uma formação integral orientada para as diferentes dimensões humanas (linguística, intelectual, expressiva, emocional, corporal, social e cultural), realizando-se através de uma ação intencional orientada de forma a contemplar cada uma destas dimensões como núcleos da ação pedagógica (ROCHA, 2010, p. 12).

A formação das diferentes dimensões do humano aponta para a necessidade de uma pedagogia da infância que tenha preocupação com os processos de constituição dos modos de conhecer das crianças, que vivem suas infâncias de diferentes formas, a partir das interações que estabelecem com outros sujeitos. Como propõe Barbosa (2010, [s.p.]), uma pedagogia que respeite as crianças “como seres humanos dotados de ação social, portadores de história, capazes de múltiplas relações, produtores de formas culturais próprias construídas com seus pares, apesar de profundamente afetados pelas culturas e sociedades das quais fazem parte”. Nesse sentido, a proposta pedagógica deve superar a ideia de que as crianças apenas terão importância no futuro e de uma visão de infância única e natural.

A respeito dessa da primeira questão, Campos et al. (2011) nos adverte sobre ser imperativo superar a visão economicista na educação, que busca por eficiência e produtividade pautada por estimativas, investimentos, resultados e redução das perdas, ações apoiadas em avaliações, prescrições e constantes verificações dos modelos e métodos pedagógicos, os quais se sustentam em discursos que alardeiam reverter o fracasso escolar, produzir cidadãos para viverem na sociedade capitalista e garantir a coesão social. Essa visão desconsidera que a boniteza da prática educativa não está nesse viés economicista, e sim, como nos ensinou Freire (2001), no reconhecimento e na assunção de sua politicidade, de um modelo político que nos leve a viver o respeito real às crianças ao não as tratar de forma grosseira, fortuita ou considerando-as ingênuas, imaturas e/ou irresponsáveis.

Essa ideia nos aproxima da segunda questão, a de que não há uma visão de infância única e natural. Podemos pensar na infância a partir de uma perspectiva política como categoria geracional, que abarca tantas outras infâncias e exige considerar as crianças em sua dimensão sócio-histórica. Daí apontamos para uma pedagogia da infância, a qual exige que conheçamos as crianças, os determinantes que compõem sua existência e seu complexo acervo linguístico, intelectual, expressivo, emocional, enfim, as bases culturais que as constituem como tal (ROCHA, 2010).

Nesse sentido, o trabalho da EI, com base nos eixos do brincar e das interações, deve garantir em sua rotina a arte, a literatura, a dança, a fantasia, a diversão, a filosofia, a imaginação, o humor, o ócio, o sonho, a sensibilidade, a criatividade e a alegria. O intuito aqui é que cada indivíduo afete e deixe-se afetar pelos outros e pelo universo circundante, pois, quando ocorrem bons encontros, eles são geradores de potência, de alegria - no sentido proposto por Tiriba (2018). Isso exige de nós, os adultos, a auscultação e a educação de nosso olhar para as crianças.

A ausculta redefine nossa ação, não como uma mera percepção auditiva ou recepção da informação - envolve a compreensão da comunicação feita pelo outro. Inclui a recepção e a compreensão, que, principalmente neste caso - a expressão do outro/criança orienta-se pelas próprias intenções colocadas nessa relação comunicativa - e lembremos que, quando o outro é uma criança, a linguagem oral não é central e nem única, ela é fortemente acompanhada de outras expressões corporais, gestuais e faciais (ROCHA, 2010, p. 19).

A escola de EI é uma instância de socialização, mas organizada e produzida por nós - crianças e adultos -, portanto deve ser de encontros, de alegrias, do pensar livre, da criação, da curiosidade, do questionar e fundamentada em uma prática educativa plural e democrática. Isso significa considerar os interesses, as observações que as crianças nos fazem e as necessidades delas, pois “quando a criança imagina uma escola alegre e livre é porque a sua lhe nega liberdade e alegria” (FREIRE, 1993, p. 48).

3 POR UMA AVALIAÇÃO QUE NÃO PROVOQUE O EPISTEMICÍDIO INFANTIL6

Pensar iniciativas de avaliação externa para a EI não é algo recente. Na Rede Pública Municipal do Rio de Janeiro, em 2010, na primeira gestão de Eduardo Paes, tendo como Secretária Municipal de Educação Claudia Costin, os questionários ASQ-3 - Ages and Stages Questionnaires (SQUIRES et al., 2009) - foram aplicados às creches, por amostragem. Tais questionários são modelos de avaliação desenvolvidos nos Estados Unidos por uma equipe multidisciplinar, com o objetivo de detectar atrasos no desenvolvimento infantil (NEVES, 2012).

Nos anos seguintes (2011 e 2012), os questionários foram aplicados a toda a EI da rede, com a intencionalidade de ampliar a utilização dos questionários para outras redes públicas do País7. Alguns segmentos que representam a discussão sobre a EI, entre eles a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd - por meio do Grupo de Trabalho - GT 7 - Educação da Criança de 0 a 6 anos), posicionaram-se publicamente contra a aplicação dos questionários, apresentando moção de repúdio ao Ministério de Educação (MEC), ao Conselho Nacional de Educação (CNE) e a diversos órgãos competentes.

A utilização das avaliações externas na Educação Básica tem sido fruto de intenso debate entre pesquisadores/as de avaliação (BAUER et al., 2015). Ao longo das últimas décadas, desde a criação do SAEB, o governo federal, alguns governos estaduais e municipais promoveram em suas redes de ensino, gradativamente, avaliações em larga escala padronizadas e que se propõem a melhorar a qualidade da educação oferecida, por meio de monitoramento das escolas e de reorientação das políticas públicas, a partir de mecanismos de medida do índice de desempenho dos/as estudantes. Afonso (2000, p. 49) pondera que, “a partir da década de oitenta, o interesse demonstrado pela avaliação, sobretudo por parte de governos neoconservadores e neoliberais, começou a ser traduzido pela expressão Estado-avaliador”. Argumenta que essa expressão, “Estado avaliador”, quer dizer que o Estado vem adotando um ethos competitivo, neodarwinista, que importa modelos de gestão privada para o domínio público, com mecanismos sofisticados de controle e responsabilização - argumento também defendido por Freitas (2012) -, tornando a avaliação uma importante estratégia para o gerenciamento da educação.

Como mencionado, iniciativas e estudos recentes nos levam a concluir que a inclusão da EI no SAEB está diretamente implicada na relação entre a EI e a questão da alfabetização. Consideramos legítima a preocupação com a questão da alfabetização, principalmente em um país profundamente desigual como o nosso. Cabe ressaltar, porém, que não é objetivo do trabalho pedagógico realizado na EI antecipar os conteúdos que serão trabalhados no Ensino Fundamental (BRASIL, 2010).

De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a EI8, o objetivo da proposta pedagógica das Instituições que trabalham com essa faixa etária precisa garantir à criança

[...] acesso a processos de apropriação, renovação e articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens, assim como o direito à proteção, à saúde, à liberdade, à confiança, ao respeito, à dignidade, à brincadeira, à convivência e à interação com outras crianças (BRASIL, 2010, p. 18).

Ainda para o documento, a proposta curricular que fundamenta as práticas pedagógicas em turmas de creche e pré-escola precisa ter como eixos norteadores interações, brincadeiras e experiências que possibilitem às crianças construir e se apropriar de conhecimentos mediante ações próprias e a partir de interações com seus pares e adultos.

Sobre a avaliação nessa etapa da Educação Básica, o documento defende a necessidade de se criarem procedimentos para acompanhamento do trabalho pedagógico, no sentido de observar qualitativamente as atividades oferecidas às crianças. Também orienta a utilização de múltiplos registros realizados por ambos, adultos e crianças, respeitando as especificidades etárias da EI, sem objetivo de seleção, promoção ou classificação.

Levando em conta as especificidades do trabalho pedagógico defendido para a EI e a concepção de pré-escola que restringe a preparar as crianças para a etapa posterior - antecipando-lhes o processo de alfabetização para possibilitar-lhes melhor desempenho escolar futuro -, argumentamos que há disputas de sentidos no que tange ao currículo, à avaliação e à aprendizagem infantil, assim como de expectativas do que pode ser considerado uma EI de qualidade.

Destacamos que a “obrigatoriedade”9 de alfabetizar na pré-escola parte de uma concepção universal de infância, com crianças que possuem o mesmo desenvolvimento e a mesma aprendizagem. Crianças entendidas a partir de uma infância (no singular) que precisa ser cultivada, que justifica a “falta” de aprendizagem com algum tipo de “comprometimento” biológico, simplificando, entre outras questões, que muitas crianças terão um acesso mais sistematizado à linguagem escrita apenas nas instituições escolares.

Não consideramos exagerado afirmar que a justificativa para a inclusão da pré-escola nas ações previstas pelo PNAIC ou no SAEB é a preocupação com a transição entre a pré-escola e o 1.º ano. A própria Política Nacional de Alfabetização (BRASIL, 2019b, p. 32) defende “a priorização da alfabetização” como uma de suas diretrizes, entendendo a importância do trabalho realizado na pré-escola para que isso aconteça10.

Esteban (1993) critica de maneira contundente essa concepção de avaliação, a classificatória, que baliza o cenário descrito até aqui e sua influência nas práticas pedagógicas vivenciadas cotidianamente nas instituições escolares que atendem a essa faixa etária. Embora o texto em questão da pesquisadora seja relativamente antigo, torna-se cada vez mais atual nesse cenário. Para a autora, a analogia dos jogos de encaixe, muito utilizados na EI, ajuda-nos a entender essa concepção universal de infância. Argumenta que, na medida em que a pré-escola vai ensinando à criança a realizar corretamente os encaixes, vai ensinando-lhe a se encaixar na realidade escolar, a se adequar aos modelos que lhe são apresentados.

Nesse contexto, a avaliação é utilizada como ferramenta para moldar as crianças de acordo com padrões universais de desenvolvimento e de aprendizagem, apresentando-lhes o que é desejável aprender e como deve se comportar. Suas vivências e particularidades sofrem um processo sistemático e intencional de silenciamento, uma vez que a criança precisa ser avaliada em função de padrões previamente estabelecidos, “moldada até que se encaixe perfeitamente, sem resistências” (ESTEBAN, 1993, p. 22), para que esteja devidamente preparada para o Ensino Fundamental11.

Por essa razão, é dada ênfase a atividades que pretendem desenvolver na criança a prontidão e a maturidade para a aprendizagem da leitura e da escrita, oferecendo à avaliação o papel central, que é observar se há um desvio que precisa ser corrigido. Seu principal objetivo é verificar o que a criança aprendeu em relação ao que foi previamente determinado “como definidor de um desenvolvimento desejável” (ESTEBAN, 1993, p. 24). O percurso vivido nessa etapa da Educação Básica deixa de ter importância, pois seu valor é medido pelo grau de adequação de crianças pré-escolares ao Ensino Fundamental.

Argumentamos que uma EI escolarizada (FARIA et al., 2013) provoca epistemicídios e revela total desconhecimento da importância das interações e brincadeiras para o desenvolvimento infantil (BRASIL, 2010). Na ausência de uma discussão aprofundada sobre o trabalho pedagógico a ser realizado, as práticas cotidianas acabam por se restringir a desenvolver hábitos, atitudes, habilidades e comportamentos necessários à sua vida escolar posterior, empobrecendo-lhe o sentido original.

4 CONCLUSÃO

As análises críticas que lançamos neste ensaio tiveram como objetivo trazer para o debate político educacional e curricular os rumos que vêm tomando as questões acerca da alfabetização, da educação e do trabalho pedagógico realizados na EI brasileira. Em razão de sua história embaraçosa e morosa, sabemos que contextos de crise geram tensões, conflitos, coalizões e negociações, os quais nem sempre consideram as crianças e suas infâncias. Contudo, o atual cenário político e econômico é mais grave, porque está marcado por uma profunda desigualdade social e econômica, processos de opressão e uma contrarreforma que tenta transformar o serviço público em mercantil. Isso é aterrador quando pensamos que nunca tivemos reformas sociais visando à cidadania, tampouco igualdade de oportunidades para todas as pessoas e quando verificamos que no Brasil direito é ainda entendido como privilégio (BENEVIDES, 1994; ROSEMBERG, 2012).

Na contramão do que estamos vivendo, os estudos da infância, com atenção à pedagogia da infância, difundem uma pedagogia comprometida com a infância, com a produção humana que vá além da aplicação de modelos e métodos para desenvolver um programa (ROCHA, 2010). Como indica essa autora: “Exige, antes, conhecer as crianças, os determinantes que constituem sua existência e seu complexo acervo linguístico, intelectual, expressivo, emocional etc., enfim, as bases culturais que as constituem como tal” (ROCHA, 2010, p. 14).

Sabemos que a questão da alfabetização na pré-escola é um assunto polêmico e que esse debate, mais do que nunca, é essencial. Concordamos com Sampaio (1993) quando a autora afirma que é necessário oferecer às crianças o contato com a leitura e a escrita. Entretanto, entendemos que não é função da pré-escola alfabetizar. Pode acontecer de o processo se consolidar com algumas crianças, já inseridas em práticas de leitura e escrita no ambiente social de origem, que têm um capital cultural socialmente validado e referendado pelo ambiente escolar. No entanto, é importante compreender que elas, as crianças, possuem pontos de chegada diferenciados (ESTEBAN, 2001/2002) e que ter essa expectativa para esse período, além de contrariar os documentos do MEC, pode prejudicar-lhes, inclusive, com relação a esse contexto.

Sampaio (1993) também nos alerta para a qualidade do contato que está sendo oferecido às crianças sobre as práticas de alfabetização. A autora adverte que esse contato precisa estar inserido em um contexto em que aprendizagem tenha sentido e que a escrita seja utilizada na plenitude de suas funções sociais.

Não seria este o primeiro passo? Dar sentido à aprendizagem da leitura e da escrita? Como perceber o sentido nesta forma de comunicação, sem compreender a função social da escrita? Não é “se preparando” (na pré-escola) para o aprendizado da leitura e da escrita [...] ou completando palavras e frases... que a criança vai compreender a função social da escrita (SAMPAIO, 1993, p. 60).

Sobre essa questão, Vygotsky (1998) defende a possibilidade de ensinar a leitura e a escrita para crianças pré-escolares. No entanto, adverte que esse ensino precisa ser organizado de forma que a leitura e a escrita se tornem necessárias. Um exercício mecânico não ajudará nesse sentido. Outrossim, a escrita deve ter significado e ser incorporada como uma tarefa essencial para a vida.

Além de uma relação mais significativa com a linguagem escrita, Sampaio argumenta que a escola precisa entender que a criança está imersa em um “universo de linguagens” - gráfica, textual, plástica, cinestésica, musical, corporal etc. (VYGOTSKY, 1998, p. 61) - e que ter acesso às diferentes linguagens é fundamental para seu desenvolvimento. Portanto, não cabe centrar esforços no trabalho pedagógico que privilegie a linguagem escrita em detrimento das demais linguagens. Isso revela, inclusive, desconhecimento sobre a importância dessas variadas linguagens para as aprendizagens infantis.

Sobre as linguagens, Vygotsky (1998) argumenta que é por meio da brincadeira que os/as meninos/as se apropriam da realidade, de sistemas simbólicos localizados em um contexto histórico, social e cultural. O brinquedo cria uma zona de desenvolvimento proximal da criança, pois a obriga a ir além do comportamento esperado para sua idade. Ainda para esse autor, ele contém “todas as tendências do desenvolvimento de forma condensada, sendo, ele mesmo, uma grande fonte de desenvolvimento” (VYGOTSKY, 1998, p. 135).

Outra questão que precisa ser discutida refere-se às perspectivas universais de aprendizagem, desenvolvimento e infância que ainda balizam muitas práticas pedagógicas vivenciadas com as crianças na EI. Nas palavras de Esteban (2001/2002), “é preciso que a prioridade da heterogeneidade real sobre a homogeneidade idealizada seja assumida, o que nos leva a perceber que a diferença não marca a impossibilidade e que todos aprendem”. Gasta-se tanta energia, esforça-se de maneira hercúlea para tentar evitar algo impossível de não acontecer. A diferença é uma das principais características dos seres humanos, e o máximo que se consegue é invisibilizá-la. Defendemos justamente o inverso; precisamos assumir “a heterogeneidade real”, entendendo que a diferença não gera a impossibilidade de aprender; pelo contrário. Aprendemos uns com os/as outros/as justamente porque somos diferentes.

No entendimento de Faria et al. (2013, p. 36), uma EI potencialmente emancipatória precisa “exaltar a diversidade cultural, que permita às crianças explorarem suas diversas possibilidades de existência, de expressão e de resistência”. Concordamos com os/as autores/as e mais: sustentamos que os espaços escolares são lugar do encontro, da alegria, da vida. Portanto, defendemos a alegria como trincheira, como nos ensina Benedetti.12 Bom seria, de fato, que não apenas as crianças, mas todos/as - professores/as, profissionais de educação, familiares e funcionários - realmente estivessem felizes…

Loureiro, no Prefácio do livro escrito por Tiriba (2018), ajuda-nos a entender a importância dessa defesa em tempos tão sombrios como os que estamos vivendo:

Em tempos tão difíceis, de aumento das desigualdades; de convivência radicalmente antagônica entre abundância material e tecnológica versus extrema miséria e fome; de perda cotidiana de direitos; de expressões de intolerância, desrespeito e de tantos fenômenos tristes que indicam a barbárie, que é a redução do outro e da vida a uma “coisa” ou mesmo a “um nada”, escrever sobre a vida, sobre crianças que possuem direitos, alegrias e saberes é não só muito importante. É um desafio! (TIRIBA, 2018, p. 13).

Por fim, e não menos importante, torna-se necessário questionar a influência da avaliação classificatória na EI. A não atribuição de notas e conceitos nessa etapa poderia favorecer práticas avaliativas mais formativas, no entanto, torna-se fundamental discutir o assunto com seriedade e, principalmente, analisar o que se avizinha a partir desse cenário.

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NOTAS:

1 Para elaboração deste artigo, Lisandra Ogg Gomes contou com financiamento da chamada MCTIC/CNPq n.º 28/2018-Universal, pesquisa: “A participação da infância na sociedade brasileira”.

2 No período 2009-2014. Costin deixou o cargo para comandar o Departamento de Educação do Banco Mundial (Bird).

3 Até o momento, o que se sabe sobre a iniciativa é que não há a intencionalidade de avaliar as crianças, e sim as condições de acesso e oferta das instituições de EI.

4 “Defensa de La Alegría”.

5 Não é nossa intenção aprofundar a discussão que trazemos neste ensaio a partir da obra desses autores, e sim deixar claro que o argumento que defendemos - sobre a questão da alegria - não é inaugural.

6 Nesse contexto, concordando com Faria et al. (2013, p. 36), entendemos que as crianças são submetidas a “processos de assassinatos das potências infantis, que se iniciam no processo de alfabetização em uma só linguagem e na construção de um único padrão de movimento”.

7 Conjunto de 20 escalas para crianças em diferentes escalas, cobrindo o intervalo etário de 1 mês a 5 anos e meio, pretendendo avaliar o desenvolvimento infantil a partir de cinco dimensões: comunicação, motora ampla, motora fina, resolução de problemas e pessoal/social.

8 Optamos por referendar nossa argumentação apenas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a EI levando em conta o fato de que a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017b), na etapa da EI, traz como referência o documento em questão.

9 Colocamos a palavra entre aspas porque não existem documentos oficiais que assumam essa possibilidade. No entanto, entendemos que esse tem sido entendido como um objetivo a ser considerado para o/a professor/a que trabalha com essa faixa etária, principalmente levando em conta o contexto já descrito no texto.

10 Essa preocupação não é recente. É datada na década de 70 do século passado (TATAGIBA, 2010).

11 A autora descreve essa etapa como escola de 1.º grau, nomenclatura alterada pela LDB n.º 9.394/1996.

12 No original, “Defender la alegría como una trinchera” (Poema “Defensa de la alegria”). Disponível em: https://www.poemas-del-alma.com/defensa.htm. Acesso em: 17 abr. 2020.

Recebido: 30 de Agosto de 2019; Aceito: 25 de Abril de 2020

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