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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.19 no.1 São Paulo jan./mar 2021  Epub 10-Maio-2021

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2021v19i1p301-322 

Artigos

CORPO, “PRODUÇÃO DO COMUM” E CURRÍCULO: SOBRE A (IM)POSSIBILIDADE DE UMA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR1

BODY, “PRODUCTION OF THE COMMON” AND CURRICULUM: ABOUT THE (IM)POSSIBILITY OF A COMMON NATIONAL CURRICULAR BASE

CUERPO, “PRODUCCIÓN DEL COMÚN” Y CURRÍCULUM: SOBRE LA (IM)POSIBILIDAD DE UNA BASE NACIONAL COMÚN CURRICULAR

i Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Membro do Grupo de pesquisa “Corpo e política” da UFS. E-mail: eldercorreia21@gmail.com - ORCID iD: http://orcid.org/0000-0001-8403-2226.

ii Pós-Doutorado em Educação do Corpo pela Universidade Nacional de La Plata (UNLP/Argentina). Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: zobolito@gmail.com - ORCID iD: http://orcid.org/0000-0001-5520-5773.


RESUMO

O texto tem como objetivo investigar a (im)possibilidade de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) como documento norteador para a construção de propostas curriculares/pedagógicas para as escolas em todo o Brasil. Para tanto, interpelamos o termo “comum” a partir do conceito de “noções comuns” presente na filosofia de Baruch Spinoza e na análise que Gilles Deleuze faz de tal conceito. Concluímos que, para tomar para si a prerrogativa de falar em nome do comum, a BNCC precisou despontencializar os corpos, apresentando-os como incapazes de ser os próprios produtores de conhecimento e promotores de currículo.

PALAVRAS-CHAVE: Base Nacional Comum Curricular; Currículo; Corpo; Noções comuns; Produção do comum

ABSTRACT

This paper aims to investigate the (im)possibility of a Common National Curricular Base (BNCC), as a guiding document for the construction of curricular/pedagogical proposals for schools throughout Brazil. For this, we call the term “common” from the concept of “common notions” present in the philosophy of Baruch Spinoza and the analysis that Gilles Deleuze makes of such concept. We concluded that, to take to itself the right to speak on behalf of the common, the BNCC needed to deprive the bodies, presenting them as incapable of being themselves producers of knowledge and curriculum developers.

KEYWORDS: Common National Curricular Base; Curriculum; Body; Common notions; Common production

RESUMEN

El texto tiene como objetivo investigar la (im)posibilidad de una Base Nacional Común Curricular (BNCC), como documento orientador para la construcción de propuestas curriculares/pedagógicas para las escuelas en todo Brasil. Para ello, interpelamos el término “común” a partir del concepto de “nociones comunes” presente en la filosofía de Baruch Spinoza y en el análisis que Gilles Deleuze hace de tal concepto. Concluimos que, para tomar para sí la prerrogativa de hablar en nombre de lo común, la BNCC necesitó despontencializar los cuerpos, presentándolos como incapaces de ser los propios productores de conocimiento y promotores de currículo.

PALABRAS CLAVE: Base Nacional Común Curricular; Currículum; Cuerpo; Nociones comunes; Producción del común

1 INTRODUÇÃO

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) trata-se de um documento normativo, produzido pelo governo federal por meio de especialistas de cada área do conhecimento (Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Sociais). Segundo o texto do próprio documento, a BNCC

[...] define o conjunto orgânico e progressivo de “aprendizagens essenciais” que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento [...] (BRASIL, 2018, p. 7).

Nesse sentido, trata-se de um documento norteador para a construção de propostas curriculares/pedagógicas para as escolas (públicas e privadas) em todo o Brasil.

A BNCC postula-se como a referência para a formulação de currículos e práticas pedagógicas, visando contribuir para o alinhamento de políticas e ações no âmbito federal, estadual e municipal, tanto no que tange à formação de professores quanto no tocante à avaliação e produção de conteúdos educacionais. “Nesse sentido, espera-se que a BNCC ajude a superar a fragmentação das políticas educacionais, enseje o fortalecimento do regime de colaboração entre as três esferas de governo e seja balizadora da qualidade da educação” (BRASIL, 2018, p. 8).

Cabe destacar que a compreensão de qualidade da educação presente no texto do documento está intimamente ligada à noção de competências. Na BNCC, competências dizem respeito a “[...] mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho [...]” (BRASIL, 2018, p. 8). Segundo o documento, durante toda a Educação Básica, as aprendizagens nele definidas devem servir para o desenvolvimento das dez competências gerais presentes na BNCC.

Ao nos depararmos com a proposta da BNCC, seus objetivos e fundamentos, conforme nos lembra Arroyo (2016), os termos “Base”, “Nacional” e “Comum” não são meras palavras, não são neutros, mas expressam escolhas e intenções políticas. Assim, o presente artigo tem como objetivo investigar a (im)possibilidade de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC), tendo como foco interpelar o vocábulo “comum” a partir do conceito de “noções comuns” presente na filosofia de Baruch Spinoza e na análise que Gilles Deleuze faz de tal conceito no pensamento do filósofo holandês.

Para lograr tal meta, dividimos o escrito em duas partes. Num primeiro momento, apresentamos o conceito de “noções comuns” de Spinoza, articulando-o com a leitura que Deleuze faz de tal conceito. Na segunda e última parte, verificamos como o termo “comum” é abordado na escrita do documento da BNCC e, a partir dessa análise, interpelarmos o conceito de “noções comuns” apresentando cinco notas que tratam da (im)possibilidade de um currículo comum.

2 AS “NOÇÕES COMUNS” EM SPINOZA E DELEUZE

Uma questão essencial da filosofia de Spinoza (2013) é a de como produzir “noções comuns”. Para compreender o que são essas noções e por que elas são importantes para Spinoza, é necessário saber o que são ideias adequadas, pois para o filósofo holandês as “noções comuns” são as primeiras ideias adequadas que temos. Para tanto, amparamo-nos aqui, também, na leitura que Deleuze (2002a; 2002b) faz da teoria spinoziana das “noções comuns”.

Entretanto, para compreender o que é uma ideia adequada, é importante destacarmos aqui o que são afecções, afectos e potência. O primeiro diz respeito ao estado do corpo afetado, implicando a presença do corpo afetante (DELEUZE, 2002a), ou seja, são as inscrições ou marcas de um corpo no outro diante de um encontro entre eles. Por sua vez, os afectos são a transição de um estado a outro (DELEUZE, 2002a) ou, dito de outra forma, é a variação ou a passagem (aumento ou diminuição) de um grau menor a um maior (ou vice-versa) da potência dos corpos, da qual justamente decorre a capacidade de compreender e agir do corpo, ou seja, o afecto é nossa própria potência em variação a partir das afecções que o corpo sofre. Isso quer dizer que, a depender das afecções e dos afectos, minha potência de compreender e agir é aumentada ou diminuída.

Nesse sentido, a potência corresponde à tendência de perseverar na existência, mantendo-se e abrindo-se ao máximo a aptidão do corpo para ser afetado (DELEUZE, 2002a). Por essa razão, Spinoza (2013, p. 311), na proposição 38 da quarta parte da Ética, enfatiza que é útil ao homem tudo aquilo que possibilita ao corpo ser afetado de muitas maneiras, favorecendo o próprio corpo a perseverar em sua existência. Se a potência do corpo é ser afetado de várias maneiras, a potência da mente corresponde a perceber ou formar ideias das afecções sofridas pelo corpo - na medida em que o objeto da mente é o corpo. Decorre disso que a potência da mente de produzir ideias é favorecida tanto quanto mais o corpo é afetado. Dito de outro modo, na medida em que o corpo aumenta sua capacidade de ser afetado, a mente eleva sua capacidade de perceber as afecções do corpo, conforme Spinoza (2013, p. 107) destaca na demonstração da proposição 14 da segunda parte da Ética.

Tendo esclarecido os conceitos de afecção, afecto e potência, seguimos para o conceito de ideia adequada. Segundo Deleuze (2002b), para Spinoza uma ideia necessariamente corresponde a um objeto ou a alguma coisa. Mais precisamente, a ideia representa aquilo que acontece em nosso corpo, isto é, o efeito de um corpo sobre o nosso, suas marcas (afecções) deixadas em nós. Deleuze (2002a) nos mostra que nossas ideias são ideias das afecções de nosso corpo, as quais representam o estado do corpo e a presença dele que nos produziu tais afecções.

Antes de avançar na compreensão de ideia adequada, é necessário entender o que é uma ideia inadequada. Conforme a proposição 13 da segunda parte da Ética, para Spinoza (2013, p. 97), a mente é ideia do corpo, mais precisamente ideia das afecções do corpo, ou seja, ideia das modificações que o corpo sofre por meio dos efeitos dos outros corpos nele mesmo. Diante disso, Deleuze (2002b) afirma que, se conhecemos os corpos exteriores, nosso próprio corpo ou nossa própria mente, é tão somente em virtude dessas ideias das afecções, ou seja, “[...] só percebemos os corpos exteriores enquanto eles nos afetam, só percebemos nosso corpo enquanto ele é afetado, percebemos nossa alma [ou mente] através da ideia da afecção” (DELEUZE, 2002b, p. 100).

Por conseguinte, quando definimos um corpo exterior, referimo-nos apenas ao efeito dele sobre o nosso corpo; aquilo que chamamos de “eu” é apenas a ideia que temos de nosso corpo e da nossa mente enquanto sofremos o efeito de uma afecção vinda de um corpo exterior (DELEUZE, 2002b, p. 100). Nesse sentido, conhecemos somente o efeito do outro corpo sobre o nosso e desconhecemos esse outro corpo em sua multiplicidade. Também menciona Deleuze (2002b) que essas ideias das afecções indicam um estado do nosso corpo, mas não explicam a natureza do corpo exterior, por isso essas ideias são imagens (imaginação) que negam a causa, recolhendo apenas o efeito, ou seja, negamos a multiplicidade do corpo exterior, definindo-o (produzindo uma ideia dele) apenas mediante uma única ação sua sobre meu próprio corpo.

A esse tipo de ideia Spinoza (2013, p. 127) vai chamar de ideia inadequada. Ela é inadequada porque consiste na privação de conhecimento, que segundo Deleuze (2002b) é uma dupla privação, em que ela nos priva do conhecimento de nós mesmos e do conhecimento do corpo exterior o qual nos afetou. Assim,

[...] ideia inadequada é, portanto, uma ideia que envolve a privação do conhecimento de sua própria causa, tanto formal quanto materialmente. É nesse sentido que ela permanece inexpressiva: “truncada”, como se fosse uma consequência sem suas premissas (DELEUZE, 2002b, p. 101).

Por essa razão, Deleuze (2002b) destaca que naturalmente produzimos ideias inadequadas, uma vez que elas não exprimem suas causas, bem como não podem ser explicadas por nossa potência de conhecer, ou seja, é-nos privado o conhecimento das partes de nosso corpo, dos corpos exteriores, de nossa mente, em suma, desconhecemos nossa própria potência de ação (ou seja, potência do corpo) e compreensão (potência da mente).

Importante aqui novamente assinalar o caráter de privação de conhecimento que a ideia inadequada nos proporciona. Ela não nos leva a conhecer nada do corpo exterior, nem de nosso corpo, a não ser somente o efeito do outro corpo e sua presença, bem como nosso estado atual. Destarte, Deleuze (2002a) destaca que tais ideias afecções são signos que nos indicam apenas nosso estado atual, ou seja, a modificação sofrida em nosso corpo mediante o encontro com outros corpos. No entanto, essa ideia corresponde tão somente aos efeitos dos outros corpos sobre o nosso, sem explicar a causa e a multiplicidade dos corpos envolvidos no encontro. Tais ideias dizem respeito à consciência, invertendo a ordem das coisas, tomando os efeitos pelas causas, “[...] o efeito de um corpo sobre o nosso, ela vai convertê-la em causa final da ação do corpo exterior; e fará da ideia desse efeito a causa final de suas próprias ações. Desde esse momento, tomar-se-á a si própria por causa primeira e invocará o seu poder sobre o corpo” (DELEUZE, 2002a, p. 26).

Em relação às ideias inadequadas, as adequadas, segundo Deleuze (2002a), são completamente diferentes, pois não representam mais os estados das coisas daquilo que nos acontece, mas aquilo que somos e aquilo que são as coisas, haja vista que essas ideias adequadas explicam-se pela nossa potência de conhecer e compreender. Nesse sentido, ela não é representativa, mas expressiva, pois sua matéria não é buscada num conteúdo representativo, e sim expressivo, e por isso é epistemológica.

Aqui é necessário destacar o seguinte: as ideias adequadas são expressivas na medida em que, diferentemente das inadequadas, elas expressam o efeito ligado à causa, manifestando a multiplicidade e a potência dos corpos afetados no encontro. As ideias adequadas são necessariamente epistemológicas porque, por exprimirem a causa, ela nos leva ao conhecimento do próprio corpo e do corpo exterior em suas multiplicidades. Por sua vez, as ideias inadequadas, por se pautarem pela representação, levam-nos a perceber somente os efeitos desconexos da causa. Portanto, se em Spinoza conhecer é conhecer pelas causas (DELEUZE, 2002a), as ideias adequadas, por expressarem as causas, são necessariamente epistemológicas; ao passo que as ideias inadequadas, por levarem a perceber os efeitos, elas são apenas representativas, privando-nos de conhecer as causas.

Consequentemente, antes de tudo, a ideia adequada ela é expressiva, em que o termo adequado, como nos adverte Deleuze (2002b), não significa uma correspondência entre uma ideia e o objeto a qual designa, mas a conveniência interna (ou seja, pela essência/grau de potência) da ideia com o que ela exprime, isto é, a causa. Assim, para a ideia ser adequadam ela deve exprimir/envolver a coisa e sua causa. “A ideia adequada é exatamente a ideia como se estivesse exprimindo sua causa” (DELEUZE, 2002b, p. 90).

Dito de outro modo, a ideia adequada é necessariamente o conhecimento das relações (e a essência ou grau de potência) que envolvem ou constitui o objeto dessa ideia. Deleuze (2002b) diz que as “noções comuns” são ideias adequadas, na medida em que produzem uma “noção comum” entre o meu corpo e outro, quando este me afeta de alegria, de modo a favorecer minha potência de pensar e compreender, ou seja, de ter ideias adequadas, levando-me a conhecer aquilo que me afetou, pelas causas e as relações que constituem sua multiplicidade e não somente os efeitos. Nesse sentido, Deleuze (2002a, p. 99) entende “noção comum” como a “[...] representação de uma composição entre dois ou vários corpos [...]”. Em outras palavras, a produção das “noções comuns” é a expressão da composição dos corpos; expressa, portanto, uma composição de potências. No entanto, antes de avançarmos, é preciso esclarecer como Spinoza define um corpo.

Deleuze (2002a), em seu livro Espinosa: filosofia prática mostra-nos que, em Spinoza, um corpo não é definido a partir de sua forma ou função, mas de duas proposições: uma cinética e outra dinâmica. Na primeira, o corpo é elucidado a partir de suas relações de movimento e repouso, lentidão e velocidade, ou seja, é a estrutura do corpo; na segunda, define-se diante do poder de afetar e ser afetado - seu grau de potência.

Como proposição cinética, o que está em jogo são as relações que um corpo estabelece com outros corpos a partir dos encontros. Nesse sentido, um corpo, ou seja, uma singularidade, já é por si só múltiplo na medida em que é composto por relações entre as partes extensivas que lhe caracterizam. É isso o que Teixeira (2015, p. 32), a partir de Deleuze, expressa quando traz a ideia de que toda coisa singular é uma coisa composta, e o que define um corpo como algo singular é o “[...] conjunto de partes extensivas sob uma dada relação que é a que lhe caracteriza”.

Por seu turno, como proposição dinâmica, o corpo se define pelos afectos de que é capaz. Segundo Deleuze (2002a), Spinoza compreende um afecto como as afecções do corpo pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída. Nesse sentido, o corpo como modo finito, ao se encontrar com outro corpo e ser afetado por este, tem capacidade de ação aumentada ou diminuída. Se sua potência de agir foi aumentada, dir-se-á que o corpo experimentou um afecto de alegria; ao contrário, se sua capacidade de ação foi diminuída, houve um afecto de tristeza. É assim que nossa potência de agir entra em variação de acordo com nossa relação com os corpos exteriores (DELEUZE, 2002a), ou seja, nosso poder de ser afetado é preenchido a partir das mais variadas condições conforme os encontros que organizamos ou que aparecem diante da contingência da vida.

Aqui, faz-se necessário introduzir uma primeira distinção entre dois tipos de afectos: paixões e ações. Quando a causa do afecto produzido em nós não envolve nossa potência de agir (e compreender), dir-se-á que este é um afecto paixão. Em contrapartida, se a nossa potência está envolvida na produção do afecto, este é uma ação.

O conceito de causa adequada e causa inadequada ajuda-nos a compreender melhor a distinção entre afecto paixão e ação. Na definição 1 da terceira parte da Ética, Spinoza (2013) menciona que entende por causa adequada aquela cujo efeito é percebido e distinto por ela mesma. Causa inadequada é aquela cujo efeito não pode somente ser compreendido por ela. Por conseguinte, somos passivos quando somos causa inadequada dos nossos afectos; somos ativos quando somos causas adequadas de nossos afectos. Assim, “[...] quando podemos ser causa adequada de alguma dessas afecções, por afecto compreendo, então, uma ação; em caso contrário, uma paixão” (SPINOZA, 2013, p. 163).

A partir dessa primeira distinção entre afectos paixões e ações, podemos definir dois tipos de paixões: tristes e alegres. Conforme Deleuze (2002a), até mesmo os afectos baseados na alegria, ou seja, que aumentam nossa potência de agir, podem ser paixões. Spinoza (2013), na demonstração da proposição 59 da quarta parte da Ética, destaca que a alegria só é má na medida em que impede o homem de agir. Logo, mesmo que seja produzido no corpo um afecto de alegria, se este não for causa adequada da alegria, denominamos esta de paixão alegre.

Tomamos o seguinte exemplo: consideremos uma pessoa que tenha sua vida baseada em encontros ao acaso. Nessa aleatoriedade dos encontros que ela experimenta, de maneira geral, são produzidos afectos de alegria e afectos de tristeza. Mesmo esses afectos de alegria aumentando sua potência de agir são considerados paixões, na medida em que as causas deles não são a própria potência de agir da pessoa, ou seja, quando esses encontros não são organizados e produzidos por sua potência, mas, sim, produzidos conforme a aleatoriedade dos encontros. No entanto, como veremos adiante, essas paixões alegres são importantes para a posse da potência de agir do corpo.

Nesse sentido, Deleuze (2002a) compreende que essa concepção de corpo baseada nas proposições cinética e dinâmica diz respeito, antes de tudo, a conceber e compreender as amplitudes e limiares (mínimo e máximo) das relações de velocidade e lentidão e dos poderes de afetar e ser afetado que um corpo possui. O que interessa principalmente são a produção, identificação e compreensão das variações e transformações do corpo mediante suas relações e seus poderes. Dito de outra forma, dado um determinado corpo, o que interessa é saber quais corpos se compõem com ele, quais os afectos, se estes diminuem ou aumentam sua potência de agir, ou seja, o que pode esse corpo num dado encontro, numa determinada relação, isto é, como esses corpos podem entrar em relação de modo a se comporem. Qual a condição que podemos criar a fim de se colocar nessa relação que permita a composição

Essa concepção de corpo é imprescindível para a produção do comum, pois as “noções comuns” ocorrem justamente quando as relações (movimento e repouso) que correspondem a dois corpos se compõem, elevando a potência de ambos afetarem e serem afetados, possibilitando-os tomar para si sua potência, haja vista que sua capacidade de ação e compreensão foi elevada diante da composição entre ambos os corpos. É como se a potência de um corpo se adicionasse à potência do outro, aumentando-as no sentido de ação e compreensão (do corpo e da mente, respectivamente). Logo, essa composição de potências é necessariamente um bom encontro, na medida em que houve uma relação de conveniência entre ambas, pois foram preenchidas por afectos de alegria (ao aumentar ou favorecer a potência de agir do corpo e de compreender da mente). Ao contrário, se essas potências fossem desfavorecidas, ou decompostas, seria no caso um mau encontro, pois houve uma circulação de afectos paixões.

Assim, as “noções comuns” só podem ser produzidas nos encontros dos corpos, estes que acontecem somente diante da intersecção da proposição cinética e dinâmica de corpo. Por essa razão, Deleuze (2002a) insiste que essas “noções comuns” são ideias práticas que estão em relação com nossa potência (de agir e compreender), pois sua ordem de formação diz respeito a como podemos ordenar os afectos e encadeá-los entre eles mesmos. Portanto, “[...] as “noções comuns” são uma Arte, a arte da própria Ética: organizar os bons encontros, compor os relacionamentos vivenciados, formar as potências, experimentar” (DELEUZE, 2002a, p. 124). É inclusive devido a essa dimensão eminentemente prática que diz respeito às misturas, às composições e às experimentações que Deleuze (2002a) assinala a filosofia spinoziana como uma “Filosofia Prática” - como nos mostra o título de uma das obras deleuzianas acerca da filosofia de Spinoza (Espinosa: filosofia prática). É justamente esse processo prático de composição que permite tomar posse da potência de agir e pensar, que está expresso na produção das “noções comuns” e que pretendemos, em seguida, explicar de maneira um pouco mais detalhada.

Deleuze (2002a) assinala que, a partir das condições naturais, estamos condenados a experimentar paixões e estas nos mantêm afastados de nossa potência de agir. Isso acontece na medida em que, para Spinoza (2013, p. 273), “Padecemos [ou seja, experimentamos paixões] à medida que somos uma parte [finita] da natureza, parte esta que não pode ser concebida por si mesma, sem as demais”. Ou seja, naturalmente experimentamos paixões, pois, ao sermos parte finita da natureza, entramos em relação com as demais partes (outros corpos e mentes), de modo que essas partes são “[...] também causas e forças que atuam sobre nós. A passividade, isto é, o poderio de forças externas sobre nós, é natural e originária” (CHAUÍ, 2011, p. 88). Isso posto, Spinoza (2013, p. 273), na proposição 3 da quarta parte da Ética, salienta que: “A força pela qual o homem persevera no existir [sua potência] é limitada e é superada, infinitamente, pela potência das causas exteriores”.

No entanto, lembra Deleuze (2002b) que existem dois tipos de paixões: as tristes, que nos afastam de nossa potência, e as alegres, que nos aproximam de nossa potência, aumentando-a ou favorecendo-a. É importante realçar que, enquanto somos afetados por paixões, não temos ainda a posse de nossa potência de agir; no entanto, ao experimentarmos paixões alegres, aproximamo-nos dela e, nesse sentido, ela é uma pré-condição para nos tornarmos ativos. É por isso que Deleuze (2002b, p. 189) ressalta que a primeira pergunta da Ética de Spinoza é: “[...] que fazer para ser afetado por um máximo de paixões alegres?”.7

É nessa pergunta que surge o primeiro papel da razão, a qual “[...] no princípio da sua gênese, ou sobre seu primeiro aspecto, é o esforço para organizar os encontros de tal maneira que sejamos afetados por um máximo de paixões alegres” (DELEUZE, 2002b, p. 189). No entanto, Deleuze (2002b) reforça que não basta experimentarmos um máximo de paixões alegres, pois uma ação não é a soma de paixões, haja vista que ela ainda nos mantém separados de nossa potência de agir (apesar de ser capaz de nos aproximar dela). É nesse sentido que o autor nos mostra a segunda pergunta da Ética: “[...] que fazer para produzir em si afecções ativas [afectos ações]?” (DELEUZE, 2002b, p. 189).

Importante evidenciar que essas afecções ativas são necessariamente alegrias, as quais podem ser passivas ou ativas, em que a distinção entre ambas, segundo Deleuze (2002a), é apenas a causa: a alegria passiva é produzida por um objeto exterior (corpo, por exemplo) que convém ao nosso corpo e que aumenta nossa potência de agir, mesmo que ainda não tenhamos uma ideia adequada de nós mesmos e do outro corpo. A alegria ativa, por sua vez, é derivada de nós mesmos, ou seja, de nossa potência de agir, decorrendo de uma ideia adequada em nós. O autor ainda nos lembra que as alegrias passivas convêm com a razão na medida em que aumenta nossa potência de agir e sendo a razão a potência de agir da alma, as alegrias ativas originam-se da razão. Assim, “[...] quando Spinoza sugere que aquilo que convém com a razão também pode nascer dela, ele quer dizer que toda alegria passiva pode dar lugar a uma alegria ativa que só se distingue dela pela causa” (DELEUZE, 2002b, p. 190).

É aqui que entra a importância das “noções comuns”, pois é por meio delas que somos capazes de termos ideias adequadas e, nesse sentido, produzir afecções ativas, o que indica que tomamos posse de nossa potência de agir. É isso o que tentaremos explicar a seguir.

Deleuze (2002a; 2002b) salienta que Spinoza distingue dois tipos de “noções comuns”: as menos universais (o que para ele são as mais úteis) e as mais universais. As mais universais são caracterizadas pela comunidade de composição entre os corpos que convém de um ponto de vista muito geral, por exemplo, a extensão, movimento e o repouso, que são comuns a todos os corpos. Diante dessa lógica, uma “noção comum” (mais universal) é a composição de relações entre diversas coisas; um exemplo disso, segundo Deleuze (2002a), é o conceito de extensão como um atributo que designa a unidade de composição de todos os corpos, na medida em que todos os corpos fazem parte do atributo extensão (assim como todas as mentes estão no atributo pensamento). A utilidade dessas noções mais gerais diz respeito à compreensão das desconveniências - mas somente percebemos essas desconveniências, só construímos esse tipo de “noção comum”, se antes produzirmos “noções comuns” menos universais, como veremos adiante.

As “noções comuns” menos universais, por sua vez, são a comunidade de composição entre dois ou mais corpos; elas estão em cada um desses corpos, ou seja, é a composição entre corpos, os quais não descaracterizam as relações que os compõem, pois possuem o “comum”. É quando os corpos, a partir deles mesmos, produzem uma ideia adequada desse algo “comum” entre eles. Portanto, Deleuze (2002b, p. 193) argumenta que as “noções comuns” menos universais são necessariamente adequadas, por que estas “[...] são ideias explicadas formalmente através de nossa [própria] potência de pensar [e agir] [...]”.

É somente no encontro entre os corpos que somos capazes de perceber essa “noção comum”; é ela necessariamente a primeira ideia adequada que temos (DELEUZE, 2002a; 2002b). Essa ideia é explicada apenas a partir de nossa potência de compreender e agir, o que significa que, ao formar “noções comuns”, somos ativos. Por isso, segundo Deleuze (2002b), a formação das “noções comuns” marca o momento que tomamos posse formalmente de nossa potência. É aqui que entra o segundo esforço da razão: “[...] o esforço para organizar os encontros em função das conveniências e das desconveniências percebidas [...]” (DELEUZE, 2002b, p. 194). Isso quer dizer que a razão é o próprio esforço de produzir o “comum”, ou seja, a razão é a própria produção do “comum”.

Aqui é necessário destacarmos um elemento importante, na verdade, uma consequência. Quando mencionamos que as “noções comuns” são produzidas, denota que elas não são dadas e, consequentemente, cabe-nos, portanto, o esforço de produzi-las. Isso significa que ela designa uma atividade, como pensa Teixeira (2015), que também compreende esse “comum” como algo produzido, resultante de uma atividade produtiva, a qual, segundo o autor, é uma “atividade ontocriativa humana” e diz respeito à criação de si mesmo e do mundo.

As primeiras “noções comuns” produzidas são as menos universais, pois elas se aplicam aos corpos que se convêm diretamente e afetam mutuamente de afecções/alegrias ativas, na medida em que essa alegria nos induz a formar uma “noção comum” correspondente (DELEUZE, 2002b). Por seu turno, as “noções comuns” mais universais são as que se aplicam a corpos que são contrários, não se convêm, o que consequentemente não nos torna ativos na medida em que não tomamos posse de nossa potência (DELEUZE, 2002b). Entretanto, somente seremos capazes de formar “noções comuns” mais universais, se antes construirmos as menos universais. Isso porque, na medida em que nos tornamos ativos por meio das “noções comuns” menos universais, podemos encarar um corpo que não nos convém, percebendo que ele não compõe com o nosso (produzindo daí “noções comuns” mais universais), pois “[...] tornamo-nos capazes de compreender até mesmo nossas tristezas, e de tirar dessa compreensão uma alegria ativa. Somos capazes de enfrentar os maus encontros que não podemos evitar, reduzir as tristezas que subsistem necessariamente em nós [...]” (DELEUZE, 2002b, p. 199).

Em outras palavras, se nos esforçamos em organizar nossos encontros é no sentido de cada vez mais sermos afetados por afectos de alegria (afectos ações) não apenas de maneira quantitativa, mas também qualitativa, no sentido de serem afectos alegres ainda mais complexos; nossa capacidade de produzir “noções comuns” será tão intensa que até no caso das desconveniências nos tornamos capazes e aptos a compreender o que há de “comum” entre os corpos em um nível geral. Assim, segundo Deleuze (2002a), a ordem de formação prática das “noções comuns” vai das menos universais às mais universais, e disso decorre que as noções comuns variam de um limiar mínimo (menos universal) a um limiar máximo (mais universal).

Em linhas gerais, a partir de Deleuze (2002b), podemos resumir o processo da produção das “noções comuns” da seguinte maneira: 1) procuramos experimentar um máximo de paixões alegres (primeiro esforço da razão); 2) fazemos uso das paixões alegres para formar a “noção comum” da qual geram alegrias ativas, ou seja, afetos ações (visto que somos induzidos a fazer isso quando experimentamos paixões alegres). Essa “noção comum” se aplica apenas ao meu corpo e a corpos que convêm a ele, portanto são as menos universais. No entanto, essas noções nos tornam fortes para evitar os maus encontros, pois compreendemos as desconveniências, permitindo-nos tomar posse de nossa potência de agir e compreender; 3) por conseguinte, tornamo-nos capazes de formar “noções comuns” universais que se aplicam a casos mais gerais, inclusive aos corpos contrários, e tiramos de tristezas alegrias ativas na medida em que as compreendemos. Enfrentamos os maus encontros que não podemos evitar, reduzindo as tristezas que acontecem em nós.

3 A BNCC E O TERMO “COMUM”: NOTAS SOBRE CURRÍCULOS E A “PRODUÇÃO DO COMUM”

As questões que fundamentam e que giram em torno do termo comum na BNCC são apresentadas na introdução do documento, sobretudo nos tópicos “Os marcos legais que embasam a BNCC” e “Os fundamentos pedagógicos da BNCC”. De início, há de destacar que na letra do documento não se encontra uma definição do termo comum, não há a preocupação de explicar um possível conceito. Em contrapartida, na medida em que o texto da BNCC apresenta seus fundamentos, torna-se possível identificar o que o documento compreende por comum, não necessariamente por meio de uma definição, mas de elementos que podem ser expressões desse comum. É o que no decorrer deste tópico buscamos explorar.

Podemos identificar e ter alguma compreensão do que o documento entende pelo termo comum já na definição da própria BNCC, na medida em que a Base é compreendida como o documento que delimita o conjunto de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver durante seu processo de escolarização. Nesse sentido, o comum aqui está representado pelo próprio conjunto de aprendizagens que o documento entende ser essencial para os alunos, isto é, deve ser comum aos alunos o desenvolvimento de tal conjunto. Isso significa que o termo comum é expressado por uma condição geral que deve ser alcançada por todo e qualquer estudante.

Segundo o próprio texto do documento, a BNCC é orientada pelos “[...] princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva [...]” (BRASIL, 2018, p. 7). Acreditamos que aqui se encontra outro elemento que pode expressar o que a BNCC entende por comum. Como demonstramos anteriormente, na medida em que a Base estabelece o conjunto de aprendizagens que todo aluno deve desenvolver, acredita-se que uma sociedade democrática, justa e inclusiva se passa pelo acesso a esse conjunto de aprendizagens. Na compreensão do próprio documento, as dimensões ética e política são contempladas quando o conjunto de aprendizagens é igual para todos alunos, assegurando assim uma formação humana integral, haja vista que diz respeito não somente a todos, mas também a tudo o que todos necessitam aprender.

Na medida em que a BNCC objetiva contribuir para o alinhamento de políticas e ações educacionais, tanto acerca de formação de professores, elaboração de conteúdos e critérios de avaliações, visando superar as fragmentações das políticas educacionais (BRASIL, 2018), parece-nos evidente que ela busca ser o elemento centralizador de todo o processo educacional brasileiro. Nesse sentido, a elaboração de um documento com as pretensões da BNCC busca expressar que ela é a referência que contém todas as diretivas que devem ser comuns a qualquer política educacional brasileira, sendo assim outra expressão e motivo do uso do termo comum no título e no decorrer do texto do documento.

A essa pretensão da BNCC está intimamente ligada uma questão essencial do documento, a saber, as dez competências gerais que, segundo ele, devem ser asseguradas aos estudantes. “Ao longo da Educação Básica, as aprendizagens essenciais definidas na BNCC devem concorrer para assegurar aos estudantes o desenvolvimento de dez competências gerais, que consubstanciam, no âmbito pedagógico, os direitos de aprendizagem e desenvolvimento” (BRASIL, 2018, p. 8). A definição de tais competências gerais - com ênfase no termo geral - representa bem o que expressa o sentido do comum na BNCC: o que é igual e essencial para todos os estudantes e que, portanto, deve colocá-los em um estado comum de oportunidades, aprendizagens e desenvolvimento.

Essa questão das competências gerais da BNCC pode ser mais bem compreendida quando identificamos o que no texto do próprio documento está destacado como suas duas noções fundantes:

[...] a LDB deixa claro dois conceitos decisivos para todo o desenvolvimento da questão curricular no Brasil. O primeiro, já antecipado pela Constituição, estabelece a relação entre o que é básico-comum e o que é diverso em matéria curricular: as competências e diretrizes são comuns, os currículos são diversos. O segundo se refere ao foco do currículo. Ao dizer que os conteúdos curriculares estão a serviço do desenvolvimento de competências, a LDB orienta a definição das aprendizagens essenciais, e não apenas dos conteúdos mínimos a ser ensinados. Essas são duas noções fundantes da BNCC (BRASIL, 2018, p. 11).

Temos talvez nessas duas noções o que mais se aproxima de uma definição e o que mais expressa o comum no texto da Base. Fica novamente evidente que o comum diz respeito a algo básico e geral, que é de todos os alunos, e que por isso deve ser assegurado a eles, sendo o elemento comum as próprias competências gerais. Assim, a única forma de garantir esse comum é os currículos se voltarem para o desenvolvimento das competências, sendo estas o objeto que conecta os diversos currículos das escolas brasileiras. Essa situação se manifesta quando o esforço da BNCC em assumir a centralidade das competências gerais e a submissão dos currículos a ela “trata-se, portanto, de maneiras diferentes e intercambiáveis para designar algo comum, ou seja, aquilo que os estudantes devem aprender na Educação Básica, o que inclui tanto os saberes quanto a capacidade de mobilizá-los e aplicá-los” (BRASIL, 2018, p. 12).

Tal situação manifesta o caráter normativo que o sentido de comum adotado no texto da BNCC possui, pois, segundo o próprio documento:

[...] a BNCC indica que as decisões pedagógicas devem estar orientadas para o desenvolvimento de competências. Por meio da indicação clara do que os alunos devem “saber” (considerando a constituição de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores) e, sobretudo, do que devem “saber fazer” (considerando a mobilização desses conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho), a explicitação das competências oferece referências para o fortalecimento de ações que assegurem as aprendizagens essenciais definidas na BNCC (BRASIL, 2018, p. 13).

Esse caráter normativo sintetiza bem as representações do termo comum na BNCC, tanto com relação às competências como elemento que os alunos devem possuir quanto ao próprio documento quando ele define as respectivas competências, submetendo assim a educação às normativas da própria BNCC.

Alinhado a isso, o texto da BNCC assume que o documento “[...] explicita as aprendizagens essenciais que todos os estudantes devem desenvolver e expressa, portanto, a igualdade educacional sobre a qual as singularidades devem ser consideradas e atendidas [...]” (BRASIL, 2018, p. 15). Isso acontece na medida em que o escrito do documento entende que a BNCC possui um compromisso com a educação integral:

Reconhece, assim, que a Educação Básica deve visar à formação e ao desenvolvimento humano global, o que implica compreender a complexidade e a não linearidade desse desenvolvimento, rompendo com visões reducionistas que privilegiam ou a dimensão intelectual (cognitiva) ou a dimensão afetiva. Significa, ainda, assumir uma visão plural, singular e integral da criança, do adolescente, do jovem e do adulto - considerando-os como sujeitos de aprendizagem - e promover uma educação voltada ao seu acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e diversidades (BRASIL, 2018, p. 14).

No decorrer deste tópico, buscamos até o momento apresentar o sentido em que a BNCC utiliza o termo comum, e isso só pode ser analisado mediante elementos que expressam esse comum, sendo o principal deles o desenvolvimento das competências gerais (que devem ser desenvolvidas em todos os alunos) e a subordinação das políticas educacionais, conteúdos e avaliações dele. Isso fica evidente quando as duas noções fundantes da BNCC são que as competências são comuns e os currículos são diversos, mas que o objetivo deste currículo é submetido às competências. Logo, aquilo que era para ser plural e diferente, que são os currículos, acaba por perder sua diferença na submissão às competências gerais.

Portanto, diferente da produção do comum que apresentamos a partir de Spinoza (2013) e Deleuze (2002a; 2002b), que significa a produção de diferença, na medida em que o comum não nega as singularidades, pelo contrário, precisa dela para ser produzido, e estas se produzem ao construírem noções comuns, o termo comum na BNCC nega as singularidades, mesmo que o texto do documento faça algumas menções ao desenvolvimento delas e à produção da diferença. Acerca dessa problemática o estudo de Süssekind (2014) menciona que essa noção de “comum” de currículo como documento escriturístico, ou como arma social (entendida como fator de homogeneização dos conhecimentos), contribui para aprofundar uma linha abissal já existente que homogeneíza as diferenças.

Compreendemos que a noção de comum adotada pela BNCC dá ao próprio documento um estatuto de impossibilidade na medida em que nega aquilo que ela menciona querer valorizar. Ao submeter e reduzir a educação ao desenvolvimento das competências, a Base não está sendo comum (pois esse termo pressupõe as diferenças que constituem e produzem esse comum), mas está sendo homogênea, cooptando a diferença das singularidades à identidade das competências.

A partir do pensamento de Spinoza (2013) e Deleuze (2002a; 2002b), podemos identificar que as diretivas da BNCC, sobretudo com a noção de competências, tratam os corpos dos alunos e professores por meio de ideias inadequadas, pois são corpos tristes que não produzem outras coisas que não façam referência às competências gerais propostas pelo documento. A BNCC nega as potências desses corpos, “[...] ambos [professores e alunos] são vistos - nem vistos - apenas destinatários sem rosto, sem vida, amorfos de políticas e diretrizes. Quando esses corpos interrogantes são ignorados o pensamento educacional se perde [...]” (ARROYO, 2016, p.18).

Essa desvalorização das potências desses corpos impede a produção de valores outros para a educação, valores que poderiam direcionar políticas educacionais, reorientar propostas pedagógicas e uma educação mais significativa e potente para os alunos professores. A história nos tem demonstrado como são significativas a “produção do comum” feita por esses corpos, afinal, a cultura do campo é expressão da “produção do comum” entre os corpos daquele espaço, o movimento feminista é expressão de um traço afirmativo que demarca a “produção comum” desses corpos, bem como os movimentos negro e juvenil expressam a potência desses corpos em sua luta por uma “produção comum”. Singularidades que fazem a “produção do comum” e são fabricadas nessa própria produção, capazes de valorar e potencializar o processo educativo. Como indaga Arroyo (2016, p. 20), qual o lugar desses corpos na BNCC? “[...] Haverá lugar na BNC para essa riqueza de dimensões das culturas corpóreas [...]” produzidas no comum?

Em termos spinozistas, os corpos compreendidos na BNCC são incapazes de produzir “noções comuns”, isto é, de fazer uso da razão na tentativa de potencializar-se. Impor conhecimentos e, mais, uma subjetividade que se diz comum, que representa uma identidade nacional, faz parte de um projeto que nega as singularidades múltiplas capazes de produzir diferenças e de valorizar aqueles corpos marginalizados que, diante de competências gerais, devem ser corrigidos e colonizados em nome da pátria.

[...] Desses corpos vêm as críticas mais radicais à pretensão de impor uma Base Nacional Comum Curricular [...]. Reconhece outros rostos, outros corpos para se reconhecer diverso e não teimar em impor um único Corpo-Rosto-Cor da Nação. Tensões históricas que vêm de longe. Tem sentido teimar em não reconhecê-las e impor um Corpo-Cor único da Nação? Tem sentido impor uma Base Nacional Comum? (ARROYO, 2016, p. 23).

Quando no título deste escrito provocamos com o termo “(im)possibilidade” de uma Base Nacional Comum Curricular, foi com o intuito de demonstrar no transcorrer deste artigo que o comum não é dado, mas produzido e depende de condições que o tornem possível. As condições que a BNCC oferece tornam o comum impossível na medida em que, como demonstramos, nega a singularidade e os corpos dos professores e alunos, subsumindo-os competências e aprendizagens presentes no documento. Como denunciam Carvalho, Silva e Delboni (2017), a BNCC se configura como um dispositivo de poder que busca regular a vida dos sujeitos da educação ao ignorar os múltiplos contextos educacionais não definíveis a priori. Afirmamos que isso somente é possível mediante uma destituição e negação da “produção do comum” dessas singularidades.

Vista e sustentada a impossibilidade das pretensões da Base em dar conta do comum, a partir de agora tentaremos dissertar algumas notas acerca de possibilidades para uma experiência da “produção do comum” no âmbito do currículo. No entanto, não se trata de pretender apontar normativas de como fazer um currículo ancorado na “produção do comum”, mas apresentar notas que possam servir de estímulos ao pensamento da produção da teoria do currículo e experiências didático-pedagógicas, realçando a importância de buscar a construção de possibilidades que permitam a construção de experiências de currículo a partir da atividade produtiva das múltiplas singularidades envolvidas nos contextos educacionais.

Nota 1 - A noção de comum, amparada em Spinoza (2013) e Deleuze (2002a; 2002b), encara esse termo como o conjunto de singularidades em contínua variação, bem como a atividade (auto)produtiva dessas singularidades. Nesse sentido, comum e singular não são contrários, o primeiro não se sobrepõe ao segundo, mas estão em um processo imanente de coprodução. Isso posto, o comum aqui nada tem a ver com unidade, identidade, muito menos reivindica a figura de um soberano, centralizador, pois ninguém tem a condição de falar em nome do comum, senão as próprias singularidades que o produzem. Um currículo baseado nessa acepção do comum precisa denunciar qualquer instância que tem a pretensão de falar em nome desse comum, criando condições que possibilitem as singularidades produzirem e possuírem esse comum. Isso significa que a invenção de novas formas de experimentar o processo educacional, novos espaços e tempos, novos afectos, são produzidos na relação comum entre os corpos inseridos nos espaços-tempos da educação.

Nota 2 - Nessa acepção de currículo, as singularidades só podem tornar-se capazes de produzir o comum (e necessariamente se autoproduzirem), na medida em que entende o corpo sob uma perspectiva spinoziana. O corpo, na menção de Spinoza (2013) e Deleuze (2002a; 2002b), é definido como uma singularidade que tem um poder de afetar e ser afetado. Nesse sentido, os corpos que fazem parte das experiências educacionais não são concebidos perante uma normatividade, um dever ser, mas em face de suas potências, isto é, diante do que podem. A principal questão para um currículo então não seria determinar o que devem fazer os corpos, mas buscar explorar o que podem os corpos.

Nota 3 - Por conseguinte, um currículo não pode se propor a saber antecipadamente o que pode um corpo, predefinindo-o diante de competências gerais e aprendizagens preestabelecidas, pois um corpo só sabe do que é capaz diante da experimentação. Um currículo baseado no comum se propõe a oportunizar possibilidades de experimentações para que os corpos possam experimentar novas maneiras de afetar e ser afetados, ampliando suas potências, propiciando assim a “produção do comum” e a singularização.

Nota 4 - Há de destacar que não há necessariamente uma cisão entre os corpos e os currículos. Os corpos e os currículos não estão numa relação transcendente, mas imanente, de modo que os corpos estão nos currículos, desterritorializam-no ao mesmo tempo que também são desterritorializados. Isso é pensado a partir da lógica spinoziana em que pensar o efeito é pensar também a causa e vice-versa, na medida em que causa e efeito são imanentes. A partir dessa mesma lógica spinoziana, o corpo, ao desterritorializar os currículos, também desterritorializa-se e vice-versa, forçando-os a reterritorializarem. Isso significa que as experimentações dos corpos põem em variação tanto eles mesmos como os próprios currículos, que oportunizam as condições de experimentações para estes. Portanto, não interessa aqui pensar os currículos como o ponto de partida dos corpos nas experiências educacionais, pois estes (os currículos) não são mais uma base fundante, um solo fixo. Os currículos estão o tempo todo se desterritorializando e reterritorializando pelo comum produzido entre eles e os corpos. Por esse motivo, a questão para o corpo não é desterritorializar-se abdicando do plano do currículo, afastando-se dele, mas promover esse movimento com ele, uma vez que a desterritorialização não se dá separada dele. Não é somente o corpo que se desterritorializa sobre os currículos, são também os próprios currículos que se desterritorializam por meio dos corpos que neles se desterritorializam - por isso é um duplo movimento comum e imanente. Essa desterritorialização aqui é compreendida como um devir-outro, um tornar-se outro mais potente.

Nota 5 - Nessa concepção, os currículos podem ser os lugares onde se torna possível assegurar a produção de encontros organizados de forma ético-política. Uma das grandes potências em conceber o currículo dessa forma está em possibilitar encontros nas atividades educacionais que resultem em uma nova “produção do comum”, na medida em que os corpos comunicam conhecimentos diferentes, bem como compartilham de suas capacidades de produzir algo de forma conjunta, o que expressa que esse compartilhar é mais potente do que experiências solipsistas. Nesse sentido, a ética e a política dos currículos são a organização dos encontros (baseados na razão spinoziana), não no sentido de predefinir tais encontros, mas de buscar com os corpos formas de se abrir à diferença, gerando novas potências, até porque o comum é algo que só pode existir no compartilhamento entre os corpos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente escrito objetivou investigar a (im)possibilidade de uma Base Nacional Comum Curricular, analisando a concepção e o uso do termo “comum” no documento em que é apresentada a BNCC. Para tal análise, inspiramo-nos nas filosofias de Spinoza e Deleuze, que compreendem o “comum” como a atividade criativa das singularidades, expressando a composição de potências dos corpos.

Em nossa análise, não encontramos uma definição de comum no documento da BNCC, mas pudemos examinar tal noção a partir de elementos que expressam o que a BNCC entende por comum. Diante disso, identificamos que a principal expressão da compreensão de comum no texto da BNCC são as competências gerais que o documento determina como o que todo aluno deve desenvolver em seu processo de escolarização.

Com a análise da BNCC, nossa hipótese levantada foi que, diante da negação das singularidades e da potência dos corpos, constata-se sua impossibilidade de dar conta do comum. Inclusive, acreditamos que toda instância que se diz legítima para falar em nome do comum deve ser analisada criticamente, haja vista que os únicos que têm poder sobre o comum são os próprios corpos que o produzem. Para tomar para si a prerrogativa de falar em nome do comum, a BNCC precisou despontencializar os corpos, por isso verificamos que os corpos presentes na BNCC são apresentados como incapazes de serem os próprios produtores de conhecimento e promotores de currículo. A BNCC necessitou fazer isso, haja vista que é a “produção do comum” como atividade criativa desses corpos que serve de resistência para toda e qualquer instância de poder que busca vampirizar a potência dos corpos presentes nos tempos-espaços da educação brasileira.

Por fim, em nosso escrito, sinalizamos algumas notas acerca das possibilidades de experiências curriculares amparadas na produção do comum. Há de assinalar que tais notas não são normativas de como produzir tais currículos, mas servem de possíveis inspirações para o pensamento da teoria do currículo que compreenda a necessidade de promover experiências curriculares e didático-pedagógicas a partir da atividade criativa dos corpos/singularidades, que é a “produção do comum”, envolvidas nos contextos da educação.

REFERÊNCIAS

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NOTA:

1 Este artigo foi apoiado por recursos do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade Federal de Sergipe (UFS), do Programa de Apoio ao Pesquisador à Pós-Graduação (PROAP) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Recebido: 25 de Maio de 2019; Aceito: 24 de Junho de 2020

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