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Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.19 no.2 São Paulo July/Sept 2021  Epub Aug 30, 2021

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2021v19i2p612-633 

Artigos

AMBIENTALIZAÇÃO CURRICULAR NO ENSINO SUPERIOR E O CONTEXTO DO SEMIÁRIDO EM CURSOS DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS

CURRICULUM GREENING IN HIGHT EDUCATION AND THE SEMI-ARID CONTEXT IN BIOLOGICAL SCIENCE COURSES

AMBIENTALIZACIÓN CURRICULAR EN LA EDUCACIÓN SUPERIOR Y EL CONTEXTO DE SEMIÁRIDO EN LOS CURSOS DE CIENCIAS BIOLÓGICAS

Dayane dos Santos SILVAi 
http://orcid.org/0000-0002-1073-5495

Rosa Maria Feiteiro CAVALARIii 
http://orcid.org/0000-0002-3782-2396

i Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/Rio Claro). E-mail: dayanedosssilva@gmail.com - ORCID iD: http://orcid.org/0000-0002-1073-5495.

ii Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), Pós-Doutorado em Educação Ambiental pela Universidade de Quèbec a Montreal-Canadá. Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/Rio Claro). E-mail: r.cavalari@unesp.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-3782-2396.


RESUMO

Esse estudo teve como objetivo identificar eventuais indícios do contexto do semiárido relativos à temática ambiental nos cursos de Ciências Biológicas de uma universidade pública do estado da Paraíba. A pesquisa é de natureza qualitativa, do tipo “estudo de caso” e foi desenvolvida a partir da “análise documental” do Projeto Pedagógico do Curso, programas de disciplinas e entrevistas com coordenadores e professores. A partir das análises, observou-se que a temática ambiental vinculada ao contexto do semiárido está presente na estrutura curricular dos cursos, mas concentra-se em disciplinas optativas. Contudo, compreendemos que o processo de Ambientalização Curricular não se limita à inserção dessas questões no currículo, mas deve envolver o questionamento das bases epistemológicas que fundamentam a formação desses profissionais e sua relação com o contexto em que está incluído.

PALAVRAS-CHAVE: Ambientalização curricular; Região semiárida; Curso de Ciências Biológicas

ABSTRACT

This study aimed to identify possible indications of the semi-arid context concerning the environment theme in Biological Science courses at a public university in the state of Paraíba. The research is qualitative and analyzes a case study. It was developed based on a “documentary analysis” of the Course Pedagogical Project, programs, as well as interviews with coordinators and lecturers.

From the analysis, it was observed that the environmental theme linked to the semi-arid context can be found in the curricular structure of the courses but focuses on optional subjects. However, we understand that the Curriculum Greening process is not limited to including these issues in the curriculum but must involve questioning epistemological bases that underlie the training of these professionals and their relationship with the context in which they are inserted.

KEYWORDS: Curriculum Greening; Semi-arid region; Biological Sciences courses

RESUMEN

El objetivo de este estudio fue identificar posibles evidencias del contexto del semiárido y su relación con el tema ambiental en los cursos de Ciencias Biológicas de una universidad pública del estado de Paraíba. La investigación es cualitativa, de tipo “estudio de caso” y de acuerdo con la "análisis documental", del Proyecto Pedagógico del Curso, programas de disciplinas y entrevistas con coordinadores y profesores. A partir del análisis, se observó que el tema ambiental, vinculado al contexto semiárido, está presente en la estructura curricular, pero se concentra en materias electivas. Sin embargo, entendemos que el proceso de ambientalización curricular no se limita a la inclusión de estos temas en el currículo, pero debe involucrar el cuestionar de las bases epistemológicas que subyacen en la formación de estos profesionales y su relación con el contexto en el que se insertan.

PALABRAS CLAVE: Ambientalización curricular; Región semiárida; Curso de Ciencias Biológicas

1 INTRODUÇÃO

Decorrentes das preocupações e discussões sobre os processos de degradação e exploração da natureza, diferentes iniciativas de inserção da temática ambiental nas Instituições de Ensino Superior (IES) têm sido desenvolvidas, como a realização de eventos nacionais e internacionais, a criação de cursos e programas de Educação Ambiental, bem como a constituição de redes ambientais entre instituições de nível superior.

Tais redes configuram-se como uma importante contribuição para integração dessas instituições preocupadas com melhores práticas para garantia da qualidade ambiental na educação superior (GUTIRREZ; GONZALEZ, 2005). Nesse sentido, nas últimas décadas foram criadas redes a partir de parcerias entre universidades de diferentes países, entre as quais podemos citar a “Ambientalización Curricular de los Estudios Superiores” (Red Aces), formada por um grupo de pesquisadores de onze países da América Latina e da Europa1, no ano de 2004; a Alianza de “Redes Iberoamericanas por la Sustentabilidad y Ambiente” (Ariusa), criada em 2007; e a “Red de Indicadores de Sostentabilidad en las Universidades” (RISU), em 2013. Tais redes são resultado da articulação e colaboração entre pesquisadores das variadas universidades que, segundo Guerra et al. (2016, p. 74), buscam alcançar “[...] o fortalecimento de políticas públicas e ações institucionais de Ambientalização e sustentabilidade nas IES no país”.

A temática da Ambientalização e Ambientalização Curricular “[...] não se trata de noções muito difundidas no circuito das pesquisas em educação. Surgem com um status de categorias em construção a partir dos estudos pioneiros da Rede ACES” (CARVALHO; SILVA, 2014, p. 126).

Apesar desse status em construção, a Ambientalização das IES tem se constituído como uma linha investigativa e de ação no campo da Educação Ambiental e que compreende iniciativas no âmbito do ensino, pesquisa e extensão na Universidade (GUERRA et al., 2016). Dessarte, são desenvolvidas algumas ações referentes à gestão desses espaços, como a redução do consumo energético e de água, reciclagem dos resíduos sólidos produzidos e conservação das áreas verdes do campus. Além disso, algumas iniciativas têm se dedicado a discutir a Ambientalização do currículo de cursos de formação profissional, foco deste estudo.

Compreendemos que a Ambientalização Curricular também consiste na inserção de indícios da relação sociedade-natureza no currículo dos cursos de formação inicial e continuada de profissionais. No entanto, esse é um processo para além da inserção das questões ambientais. Segundo Leff (2010, p. 166-167), implica, dentre outras questões, “[...] na reorientação interdisciplinar do conhecimento e da formação profissional, e sua abertura para o diálogo de saberes com os diversos atores políticos, econômicos e sociais, na construção coletiva de uma sociedade sustentável”.

Além disso, consideramos a conceituação construída pelos pesquisadores da Red Aces, que a definem como um “processo contínuo de produção cultural voltado à formação de profissionais comprometidos com a busca permanente das melhores possibilidades entre a sociedade e natureza, atendendo aos valores de justiça, solidariedade e equidade” (JUNYENT; GELI; ARBAT, 2003, p. 21). Portanto, trata-se de um processo que não pode ser compreendido à parte de suas condições de desenvolvimento, como o contexto no qual a Universidade está inserida e suas problemáticas socioambientais.

Assim, partimos do entendimento do currículo como espaço de diferentes conflitos e contradições, enquanto movimento processual, e que não pode ser analisado ou entendido à parte da experiência e realidade de um determinado contexto. Neste espaço o conhecimento é resultante de uma “tradição seletiva”, na qual “certos significados e práticas são escolhidos e enfatizados, enquanto outros significados e práticas são negligenciados e excluídos” (WILLIAMS, 2011, p.54). Nesse sentido, para Apple (2017, p. 905, grifo do autor) “um dos avanços mais importantes a ser conquistado na educação é a transformação da pergunta ‘Qual conhecimento tem mais valor?’ em ‘O conhecimento de quem tem mais valor?”. Ainda segundo o autor, tais questionamentos possibilitam desvelar as relações de poder, bem como os valores e identidades que conduzem essas escolhas (APPLE, 2006; 2017).

Partindo desses pressupostos, este estudo tem como foco três cursos de Ciências Biológicas em uma universidade pública do estado da Paraíba. Eles estão situados em diferentes cidades em área de semiárido, região-contexto na qual nos detivemos a investigar, que é caracterizada tanto por uma biodiversidade com consideráveis níveis de endemismo como é um cenário socioeconômico marcado por contrastes.

Considerando a relevância de estudar a inserção da temática ambiental nesses cursos de formação inicial situados em contexto de semiárido, cabe questionar: o contexto regional da Caatinga e suas problemáticas ambientais são contemplados nos currículos desses cursos? Que aspectos desse contexto têm sido enfatizados?

Diante das questões apresentadas, este trabalho teve como objetivo identificar eventuais indícios do contexto do semiárido relativos à temática ambiental nos cursos de Ciências Biológicas de uma universidade pública do estado da Paraíba.

2 DELINEAMENTO METODOLÓGICO

A presente pesquisa é de natureza qualitativa do tipo “estudo de caso”. Esse tipo de pesquisa se caracteriza como uma “[...] investigação empírica que investiga um fenômeno da vida real em profundidade e quando esse entendimento engloba importantes condições contextuais altamente pertinentes ao fenômeno de estudo” (YIN, 2010, p. 39).

A partir dessa compreensão, alguns aspectos foram privilegiados para o desenvolvimento desta pesquisa, realizada no ano de 2015. Um deles foi pensar as particularidades que contribuíram para a compreensão da dinâmica analisada, na tentativa de identificarmos eventuais influências que esse contexto social e ecológico do semiárido pode exercer em cursos de formação inicial que estudam os fatores bióticos e abióticos, como o curso de Ciências Biológicas, foco escolhido.

Os cursos estudados estão alocados no estado da Paraíba, especificamente em uma região de semiárido. Diante da importância social, cultural e econômica dessa região, buscamos analisar se os currículos dos cursos atendem a esse contexto regional e suas problemáticas ambientais.

Para a compreensão da temática ambiental vinculada ao contexto do semiárido, tendo em vista uma inter-relação das esferas global e local, adotamos uma das características2, elaboradas pelos pesquisadores da Red Aces. Optamos pela característica de “contextualização local-global-local-global-local-global”, que pode ser compreendida como uma forma de “[...] vincular a disciplina com o entorno imediato e global” (OLIVEIRA JÚNIOR et al., 2003, p. 38).

Assim, adotamos a “análise documental” dos Projetos Pedagógicos dos Cursos (PPC), bem como as ementas e programas das disciplinas, nas quais a temática ambiental vinculada ao contexto do semiárido é abordada. Cabe destacar que os PPC analisados e em vigência consistem na primeira versão desses documentos desde sua formulação.

A “análise documental” constituiu-se como um importante meio para investigação dos documentos, visto que os PPC, ementas e programas das disciplinas possibilitam a identificação de elementos particulares do contexto em questão. Para selecionar as disciplinas a serem examinadas, buscou-se identificar aquelas que contemplam em sua ementa as temáticas sobre o contexto da Caatinga vinculadas à relação sociedade-natureza nos PPC de cada curso estudado, apresentadas no Quadro 1.

Quadro 1 Disciplinas presentes nos Projetos Pedagógicos do curso de Ciências Biológicas selecionadas para pesquisa e que contemplam indícios relativos ao contexto do semiárido associadas à temática ambiental, distribuídas em seus respectivos campi 

Percentual de disciplinas selecionadas em relação ao número total do curso Disciplinas
Curso A (CA)
6,06% (66 disciplinas) Biologia da conservação
Ecologia do semiárido
Educação Ambiental
Educação para convivência no semiárido
Curso B (CB)
1,60% (62 disciplinas) Ecologia geral
Curso C (CC)
1,4% (76 disciplinas) Educação Ambiental

Fonte: Projetos Pedagógicos dos cursos analisados.

Após a escolha das disciplinas, entramos em contato com os professores responsáveis por essas disciplinas para apresentar-lhes o projeto e convidá-los a participar da pesquisa, concedendo entrevistas sobre os cursos em questão. Foram realizadas dezessete entrevistas no total com os coordenadores e os professores responsáveis pelos componentes curriculares nos quais essas temáticas estavam presentes, sendo sete no curso A, quatro no curso B e seis no curso C (Quadro 2).

Quadro 2 Quantificação das entrevistas realizadas com os participantes da pesquisa de cada campus 

Entrevistas realizadas com os participantes da pesquisa
Participantes Curso A Curso B Curso C
Coordenadores atuais 1 2 2
Primeiros coordenadores 1 1 1
Professores 4 1 4
Total 7 4 6

Fonte: Projetos Pedagógicos dos cursos analisados.

Em virtude da utilização de diferentes fontes de coleta de dados, optamos pela “triangulação de dados” (YIN, 2010, p. 128) para o desenvolvimento do estudo. Esse recurso caracteriza-se como um importante ponto na coleta dos dados, possibilitando ao pesquisador dedicar-se ao “[...] problema em potencial da validade do constructo, uma vez que várias fontes de evidências fornecem essencialmente várias avaliações do mesmo fenômeno” (YIN, 2010, p. 128).

Com base nessa sistematização, buscaremos analisar os documentos e as entrevistas selecionados a partir do referencial teórico relativo à Ambientalização e à Ambientalização Curricular.

3 A CONTEXTUALIZAÇÃO LOCAL-GLOBAL-LOCAL NOS CURRÍCULOS DE CURSOS DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS ESTUDADOS

A relação global-local perpassa por uma relação dialética na qual o “lugar” representa uma forma de ligação com o “todo”, havendo, assim, uma “interação sutil da particularidade e da generalização” (COMPIANI, 2007, p. 32). Tal interação, segundo esse autor, é caracterizada pela indissociabilidade entre o local e o global e são “[...] apreendidos pela dialética contextualização/descontextualização e horizontalidade/verticalidade” (COMPIANI, 2007, p. 32). Essas interações podem ser percebidas a partir da relação de temáticas vinculadas ao contexto da Caatinga, mas que são discutidas no âmbito global, tal como a sustentabilidade, e que podem sugerir um movimento dialético de “horizontalidade/verticalidade”. Essa correlação pode ser observada na ementa da disciplina de “Educação para Convivência no Semiárido” do curso A, no seguinte trecho: “Processos educativos no ambiente semiárido nordestino. A produção de conhecimentos pertinentes focado em valores culturais, tendências locais e sustentabilidade” (UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE, 2011, p. 172).

O contexto em questão é caracterizado como região delimitada biológica e politicamente como lócus de uma biodiversidade endêmica que se desenvolve em condições naturais singulares, como o desenvolvimento de estratégias adaptativas pela biodiversidade. De acordo com o professor do curso B, o semiárido é

[...] um ambiente, é apaixonante, justamente por essas variações, é essa sazonalidade, [...] fico pensando que estratégias fisiológicas elas desenvolvem para se manter em um ambiente tão adverso, que estratégias fisiológicas, pode ser que não tenha muitas, mas as que têm são muito importantes, muito forte e tem muito a ensinar (Professor do curso B).

Além dos aspectos biológicos, é um ambiente marcado pelo discurso da seca, em decorrência das condições semiáridas ao longo da história, constituindo, assim, uma estreita relação entre o ambiente e os aspectos sociais, culturais e políticos que o perpassam. Nesse sentido, alguns discursos e práticas que se desenvolvem em torno das condições naturais acabam contribuindo para processos de manutenção e perpetuação das desigualdades sociais na região. Tais processos são fomentados, principalmente, por discursos que enfatizam os baixos níveis de pluviosidade e improdutividade dos solos, e é nesse contexto que são desenvolvidas políticas públicas que investem no “combate à seca” para o sertanejo, ao mesmo tempo que o Estado favorece economicamente grandes empresas de fruticultura que detêm áreas irrigadas. Estas, por sua vez, estão cada vez mais presentes nesse cenário como sinônimo de desenvolvimento regional, mas que também retratam e reafirmam as condições desiguais oferecidas a diferentes grupos da sociedade.

Partindo da análise desse contexto nas estruturas curriculares investigadas, foi identificado, nos três cursos, um conjunto de disciplinas nas quais a temática ambiental vinculada ao contexto do semiárido estava presente. Tal relação pode ser observada no Quadro 3, construído a partir dos excertos das ementas do PPC e dos programas das disciplinas analisadas.

Quadro 3 Indícios do contexto do semiárido presentes nas disciplinas inclusas nos Projetos Pedagógicos do curso de Ciências Biológicas selecionadas na pesquisa, distribuídas em seus respectivos campi 

Disciplinas Excertos das ementas e programas das disciplinas
Educação Ambiental (CA; CC) “Relação sujeito-Sociedade-Natureza: sustentabilidade e convivência com o semiárido”.
Ecologia do semiárido (CA) “Desequilíbrios ambientais rurais e urbanos (causas e consequências). Desertificação. As populações humanas do semiárido. A valoração dos recursos ambientais para a manutenção da vida no semiárido.”
Biologia da conservação (CA) “Compreender a necessidade de políticas ambientais que conservem e valorizem os recursos naturais e culturais locais, regionais e nacionais.”
Educação para convivência no semiárido (CA) “A produção de conhecimentos pertinentes focados em valores culturais, tendências locais e sustentabilidade. Ações integradas para a gestão socioambiental e a convivência no semiárido nordestino.”
Ecologia geral (CB) Referência bibliográfica: “Seminário sobre desertificação no Nordeste. Documento final. Sema, Brasília, 1996.”

Fonte: Dados do Projeto Pedagógico do curso analisados.

Na disciplina Educação Ambiental (EA) oferecida nos cursos A e C, o contexto do semiárido não está presente nas ementas, sendo referido, no entanto, nos programas das disciplinas elaborados pelos professores responsáveis.

Ao mencionar o contexto, o plano de ensino da disciplina de EA oferecida no curso A faz alusão à temática da sustentabilidade associada ao semiárido, apresentada no cronograma a partir do item intitulado “Tendências na educação ambiental”. Nele é citada a “Relação sujeito-sociedade-natureza: sustentabilidade e convivência com o semiárido”. Apresenta-se, ainda, a sugestão de algumas referências bibliográficas que discutem essa temática. Por sua vez, no plano de ensino dessa mesma disciplina, para o curso C, a referência ao contexto do semiárido está presente no item “Problemática socioambiental local e global”, o qual compreende os subitens: “estudos sobre problemas locais e globais; estudos sobre alternativas sustentáveis; Educação Ambiental para convivência com o Semiárido”.

Ao abordar esse contexto, ambas as disciplinas - que constam nos PPC como optativas - apresentam a ideia de “convivência com o semiárido” e a presença da sustentabilidade associada a esse contexto como uma possível alternativa que fomente a valorização e a construção de ações direcionadas ao semiárido.

A disciplina Ecologia do Semiárido (CA) é optativa e volta-se para a caracterização da região semiárida e do bioma Caatinga, a partir do estudo das dinâmicas ecológicas estabelecidas pela biodiversidade perante as condições desse meio, como pode ser observado na ementa e nos objetivos apresentados a seguir:

Ementa: Regiões semiáridas. Caracterização e dinâmica funcional dos ecossistemas. [...] Impactos antrópicos do semiárido. Desequilíbrios ambientais rurais e urbanos (causas e consequências). Desertificação. As populações humanas do semiárido. A valoração dos recursos ambientais para a manutenção da vida no semiárido.

Objetivos:

- Compreender os estudos ecológicos e sua aplicabilidade em função da melhor convivência no ambiente semiárido;

- Reconhecer os processos estruturais e de funcionamento do bioma Caatinga e entender a necessidade da conservação como categoria fundamental à vida no planeta;

- Entender a relação sociedade-natureza como fenômeno cultural de combinação entre autonomia e dependência (UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE, 2011, p. 162).

Além dos aspectos ecológicos, essa disciplina enfatiza algumas problemáticas ambientais do contexto estudado, como a desertificação.

Quanto aos objetivos dessa disciplina, há uma ênfase na ideia de “convivência no ambiente semiárido”3 a partir do reconhecimento das relações biológicas do ambiente, que considera fundamental a conservação desse meio.

Na disciplina Biologia da Conservação (CA), também optativa, busca-se discutir a necessidade de ações de preservação e conservação da biodiversidade devido a causas naturais e/ou em consequência das atividades humanas nos ecossistemas. Além disso, em dois de seus objetivos, faz-se menção à necessidade de analisar a influência que os processos de degradação exercem sobre os biomas regionais e a necessidade de conservação destes, como apresentado a seguir:

Analisar a degradação de habitats associada à perda da biodiversidade de biomas regionais;

- Compreender a necessidade de políticas ambientais que conservem e valorizem os recursos naturais e culturais locais, regionais e nacionais (UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE, 2011, p. 156).

A proposta da disciplina Educação para Convivência no Semiárido (CA) tem como foco o contexto do semiárido relacionado diretamente com o processo educativo, a partir de iniciativas que priorizam uma relação de convivência com o ambiente, na qual a ideia da sustentabilidade está presente, como pode ser observado na ementa apresentada a seguir:

Educação e os desafios dos novos paradigmas ambientais. Educar na perspectiva multidimensional da condição humana. Processos educativos no ambiente semiárido nordestino. A produção de conhecimentos pertinentes focados em valores culturais, tendências locais e sustentabilidade. Ações integradas para a gestão socioambiental e a convivência no semiárido nordestino (UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE, 2011, p. 172).

Quanto aos objetivos dessa disciplina, busca-se fomentar possibilidades de pesquisas na área da educação com foco nas questões ambientais no semiárido, a saber: “desenvolver linhas de pesquisa em educação voltadas para temas relacionados às questões ambientais inseridas no contexto da região semiárida nordestina”. Apresenta-se, ainda, o incentivo a ações de contextualização na educação básica, a partir da articulação entre o conhecimento presente nesse nível de ensino e as questões regionais, apresentado no excerto do PPC: “[...] estimular estudos acerca dos pressupostos teóricos e metodológicos da Educação Básica que possibilitem a (re)construção de uma ação educativa mais qualificada para a convivência com o ambiente semiárido” (UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE, 2011, p. 172).

A disciplina Ecologia Geral (CB), apresentada como disciplina obrigatória, busca discutir os aspectos ecológicos a partir da dinâmica e da diversidade biológica, bem como das problemáticas ambientais. Não há nenhuma referência ao contexto do semiárido na ementa da disciplina ou no texto central do plano de ensino, havendo apenas uma sugestão de referência bibliográfica complementar: “Seminário sobre desertificação no Nordeste. Documento final. Sema, Brasília, 1996”.

Mesmo não estando presente no PPC ou plano de ensino, de acordo com o professor responsável pela disciplina, são desenvolvidas atividades que buscam discutir as questões ambientais e os contextos locais e globais. Assim, de acordo com o professor, durante as atividades dessa disciplina

[...] os alunos que vão trabalhar com água eles fizeram uma busca geral, primeiro em nível mundial, em nível de Brasil, nordeste e Paraíba, com a distribuição e a disponibilidade da água para tentar conscientizar eles do estado desse recurso aqui [...] (Professor do curso B).

Como pode ser verificado no relato anterior, uma das questões trabalhadas é a problemática da água, expressiva para o semiárido nordestino, tanto em virtude das condições naturais da região quanto das questões políticas que a envolvem. Nesse sentido, compreendemos que, embora a seca seja um fenômeno natural, logo, não se pode combatê-la, convive-se com ela a partir das muitas iniciativas de “tecnologias de convivência”, entre as quais estão as ações da rede Articulação Semiárido brasileiro (ASA). Portanto, o racionamento da água é indispensável para a região, mas há uma necessidade mais imediata que é a democratização do acesso, entendendo a água como um direito constitucional.

Observa-se, também, que, a partir das ementas das disciplinas dos cursos analisados, as questões relacionadas à Caatinga restringem-se a algumas disciplinas, como apresentado anteriormente, as quais, em sua maioria, são optativas. Esse fato é reconhecido pelo coordenador do curso A, quando afirma que:

[...] havia a necessidade de contemplar disciplinas que fossem voltadas para a questão do semiárido [...] mas eu ainda acho pouco, eu acho que deveria ter obrigatórias ou disciplinas que não sejam obrigatórias, mas que sejam diretamente ligadas a essa questão [...] (Coordenador do curso A).

Mesmo que os professores e coordenadores reconheçam a importância do contexto do semiárido para formação profissional dos alunos, a incorporação dessas questões nos currículos dos cursos, como disciplinas obrigatórias, é indispensável para que possam estar presentes na formação inicial docente. Cumpre destacar que a falta de institucionalização formal dessa temática não corresponde à sua ausência no cotidiano do curso.

De acordo com o coordenador do curso B, mesmo não estando presente nos textos das ementas das disciplinas, muitos professores buscam abordar o contexto no qual o curso está inserido, tal como explicitado no excerto a seguir:

[...] a questão do semiárido, da Caatinga é um tema que está presente nas disciplinas, assim, muitos trabalhos são voltados para a região, as disciplinas de uma certa maneira voltam-se para essa área, por exemplo, a botânica, a zoologia, a ecologia. Então, os professores trabalham o conteúdo, a temática voltada para nossa região até porque a própria questão das atividades de campo são todas feitas na própria região, poucas são feitas em outros ambientes, como litoral, mas a grande maioria é feita na própria região (Coordenador do curso B).

Em contrapartida, segundo um dos professores do curso A, o desenvolvimento de atividades que envolvem as questões do contexto do semiárido enfrenta alguns desafios, como a dificuldade entre os docentes de trabalhar essa temática. Ele chama atenção, também, para a secundarização de algumas disciplinas, como a de Educação Ambiental, que continuam sendo oferecidas como optativas. Tal fato pode ser observado a seguir, no relato do professor do curso A:

[...] existe uma certa limitação por parte dos professores das áreas específicas [...] justamente de construir uma educação contextualizada para o semiárido, então há uma separação, uma dicotomia muito grande entre o contexto do semiárido, o cotidiano, a realidade vivenciada aqui e os assuntos abordados dentro das disciplinas [...] (Professor do curso A).

A partir desses relatos, consideramos que a formação profissional requer atividades que facilitem o contato com as problemáticas socioambientais do contexto no qual a instituição está inserida, buscando propiciar a reflexão sobre as “[...] relações interpessoais e com a natureza”, de maneira que essas análises e reflexões devam ser críticas, tendo em vista que as intervenções nas “[...] relações sociedade natureza se constitui enquanto uma participação política” (JUNYENT; GELI; ARBAT, 2003, p. 22).

Após descrevermos as disciplinas que apresentam indícios da relação sociedade-natureza vinculada ao contexto do semiárido, deter-nos-emos, em seguida, na discussão acerca de algumas das temáticas presentes com maior frequência nos textos analisados.

4 ASPECTOS REFERENTES À AMBIENTALIZAÇÃO CURRICULAR EM CURSOS NO CONTEXTO DO SEMIÁRIDO

De modo geral, a partir dos componentes curriculares dos cursos de Ciências Biológicas analisados, notou-se que o contexto do semiárido, ainda que contido em algumas disciplinas, é indicado de forma incipiente, uma vez que se mostra presente nas disciplinas optativas do currículo, com exceção de Ecologia Geral (curso B). A concentração da temática ambiental nas disciplinas não obrigatórias também é relatada por Silva (2014, p. 89), que, ao investigar o processo de Ambientalização Curricular no curso de licenciatura de Ciências Biológicas da Ufscar, afirma que “a temática ambiental é mais presente nas disciplinas optativas do que nas disciplinas obrigatórias”.

Assim, algumas temáticas são privilegiadas nos componentes curriculares e entrevistas dos participantes da pesquisa, sendo elas a Educação para convivência no semiárido, a escassez da água e os conhecimentos ecológicos tradicionais.

No tocante à temática da Educação para convivência no semiárido, é necessário considerarmos que a região da Caatinga no Nordeste brasileiro é marcada pelo domínio do clima semiárido e por condições ecológicas naturais. Essas condições, compreendem desde a diferenciação da paisagem em razão das diferenças morfológicas entre os tipos de solo e pluviometria, aos mecanismos adaptativos da biodiversidade, como a vegetação xerófila e os altos níveis de endemismo.

Decorrente desse contexto foram implementadas várias iniciativas de intervenção estatal de combate à seca e suas consequências, tais como as ações de Organizações Não Governamentais (ONGs), movimentos sociais, entre outros grupos que passaram a atuar no campo.

Nesse sentido, foram desenvolvidas parcerias entre alguns grupos, como ONGs, movimentos sociais, secretarias de educação e universidades, a partir da realização de seminários que buscavam abordar as singularidades do contexto do semiárido em espaços educativos, como a educação escolar (MATTOS, 2004). Assim, ao sugerir uma “educação contextualizada”, essas entidades e movimentos sociais tiveram como foco a realidade e as práticas dos indivíduos que constituem esse contexto. Tal proposta foi elaborada a partir de “[...] metodologias, conteúdos, currículos, educadores e estruturas apropriadas à região, levando em conta suas potencialidades socioculturais, econômicas e ambientais” (BRAGA, 2004, p. 26).

Nesse cenário de discussão e constituição de uma “educação contextualizada”, foi instituída oficialmente, em 2000, a Rede de Educação para o semiárido4 (Resab). De acordo com Mattos (2004, p. 19), a Resab buscou dar “[...] continuidade a encaminhamentos para uma educação oficial adequada às peculiaridades ambientais e socioambientais da região e estruturar uma rede de educação no semiárido brasileiro”.

No estado da Paraíba, o debate sobre a “educação contextualizada” passou a estar ainda mais presente, a partir da constituição do Grupo Gestor da Resab e com a implementação, em 2004, de pré-conferências de “Educação para convivência com o semiárido” nas cidades de Cajazeiras, Patos e Campina Grande, as quais contribuíram para realização da “Ia Conferência Estadual de Educação para a Convivência com o Semiárido”, na cidade de Patos no mesmo ano.

Esses acontecimentos, por sua vez, possibilitaram a realização da I Conferência Nacional de Educação para a Convivência com o Semiárido (Conesa) na cidade de Juazeiro - BA, no ano de 2006. Nesse evento, foram instituídas as “Diretrizes da Educação para a Convivência com o Semiárido Brasileiro” (FARIAS, 2009). De acordo com esse documento, a Conesa procurou ressaltar “[...] os objetivos defendidos pela Resab no que diz respeito à construção e implementação de uma política pública de educação inclusiva contextualizada que garanta acesso, qualidade e respeito à diversidade e especificidades do Semiárido Brasileiro” (RESAB, 2006).

Para um dos professores do curso A, a “educação contextualizada” é imprescindível para o desenvolvimento das atividades com os discentes. Assim, esse professor busca desenvolver suas aulas pautadas por um importante elemento, o contexto de seus alunos, o que, segundo ele, caracteriza-se como uma possibilidade para o processo de construção de uma educação crítica. Para tanto, baseia-se na “proposição de Paulo Freire”, como pode ser observado no relato a seguir:

Todas as minhas aulas partem da realidade, me baseio justamente na proposição de Paulo Freire, que a leitura do mundo precede a leitura da palavra e só existe consciência crítica, só existe ensino crítico, se esse ensino é parte da realidade do contexto onde esse aluno está inserido, então eu pego todos os aspectos que estão relacionados ao semiárido e todos esses aspectos seriam nosso ponto de partida, então há essa construção dentro da disciplina (Professor do curso A).

Consideramos que a educação para convivência no semiárido propõe a construção e o reconhecimento das particularidades e das identidades locais, configurando-se como uma “valorização do local, da diversidade cultural, da recomposição e afirmação de identidades e territórios” (SILVA, 2007, p. 476). Tal situação não corresponde a uma valorização excessiva do local, mas a uma possibilidade de ações voltadas para o semiárido no contexto educacional que considerem o caráter político dessa proposta. Nesse sentido, essa convivência não implica necessariamente a ideia de passividade harmônica do humano em face do fenômeno das secas, mas de ações, como “[...] políticas públicas permanentes e apropriadas [...] sendo necessário romper com as estruturas de concentração da terra, da água, do poder e do acesso aos serviços sociais básicos” (SILVA, 2007, p. 477).

A relação entre o global e o local também é apontada como necessária para pensar a valorização do contexto semiárido pelo professor do curso B. Veja-se:

Certamente, não tem como trabalhar, por exemplo, o uso da água, o uso do solo sem contextualizar, né, embora eu pense que eles têm que ter uma ideia geral de como esses recursos ocorrem em outras regiões, nós precisamos voltar ao local e contextualizar, eu procuro fazer isso, contextualizar, até por que eu acho que nós conseguimos valorizar o semiárido, eu acho que é assim, entendendo, tentando entender o funcionamento do semiárido é que vamos entender e dar valor a ele (Professor do curso B).

Outra temática em evidência nos textos analisados é a questão da escassez da água, que, em um primeiro momento, pode ser compreendida como um fenômeno natural, em virtude de a posição geográfica dessa região ser próxima à linha do Equador, causando altos níveis de evapotranspiração. A região possui uma estação marcadamente seca e, com o excesso de calor, o “nível e o volume das precipitações estacionais” tornam-se irregulares a ponto de os cursos d’água secarem nas estações com pouca ou quase nenhuma chuva (AB’SABER, 1999, p. 14).

Entretanto, para uma maior compreensão da escassez de água, é necessário buscar outros elementos que a situem em um espaço de conflito. Ao longo das décadas, muitas iniciativas públicas tornaram a escassez de água no semiárido a principal motivação, configurando a seca como um fenômeno paradoxal, segundo Bursztyn (2007, p. 14), “um problema a não ser resolvido. Se o fosse, ficariam inviabilizadas as práticas políticas dos currais eleitorais”.

Cabe destacar que, a partir das discussões sobre mudanças climáticas e a realização de eventos, como a Conferência das Nações Unidas de Combate à Desertificação, o semiárido ganhou visibilidade (BURSZTYN, 2007). Assim, segundo Bursztyn (2007, p. 15), “[...] a seca como objeto de políticas públicas passa, então, da esfera do assistencialismo à do meio ambiente. E o sertão nordestino readquire uma certa visibilidade”.

A ideia de convivência com a seca substitui o discurso de combatê-la, e entre as iniciativas de convivência com o contexto do semiárido está a “Articulação Semiárido Brasileiro (ASA)”5, uma rede criada em 1993, formada por organizações da sociedade civil (sindicatos rurais, associações, ONGs, cooperativas, entre outros).

Atualmente, são desenvolvidas outras iniciativas de convivência com o semiárido associadas à questão da água, mas esta “[...] segue presente como vetor marcante na política. A política do carro-pipa já não tem a importância de antes, mas sobrevive em alguns locais” (BURSZTYN, 2007, p. 45).

Portanto, a temática da água não pode ser compreendida apenas como uma questão de má “distribuição ou concentração espacial de água acumulada”, mas um processo de privatização (SILVA, 2007, p. 474), uma questão política que está cada vez mais em evidência não apenas no Nordeste, mas no âmbito global. Questão também identificada por um dos professores do curso C, ao problematizar a dimensão política da escassez da água. Ademais, ele critica ações que se voltam para medidas que focam a necessidade do racionamento da água, ocultando as contradições que envolvem essa temática, tal como explicitado a seguir:

[...] a minha questão em relação à água é muito forte, uma cobrança política, e acho uma tremenda falta de consideração com a população local, quando a gente pensa na Educação Ambiental que vai ensinar a população a reutilizar a água, quando a maioria das pessoas que convivo e que vejo, seja a minha vizinha, seja a moça que cuida das plantas na minha casa, quando eu não estou, com os outros professores, com quem eu converso, todo mundo reutiliza água, por que é uma questão de sobrevivência (Professor do curso C).

Tanto o relato do professor quanto as discussões sobre essa temática contribuem para a reflexão acerca da construção de iniciativas que busquem romper com estruturas hegemônicas que não possuem ações centradas no cerne desses conflitos, sendo necessário o desenvolvimento de iniciativas que procurem criticar toda forma de desigualdade de acesso aos bens naturais democraticamente.

No tocante à questão dos conhecimentos ecológicos tradicionais, compreendemos que “uma das características básicas das sociedades tradicionais é a sua estreita relação com a natureza para a manutenção de seu modo de vida. Dessa dependência surgem os conhecimentos tradicionais locais” (BAPTISTA; EL-HANI, 2007, p. 26). Nesse sentido, ressaltamos as questões relacionadas ao conhecimento desenvolvido pelas comunidades rurais no semiárido, como a utilização de plantas consideradas “alimentos emergenciais” e outras usadas para fins ginecológicos por mulheres da comunidade.

A relação entre as pessoas das áreas rurais com a escassez de alimento na região ocorreu em razão de condições de grande carência provocada por fatores naturais e econômicos vivenciados por uma parte da população do semiárido. Em situações como essas, determinadas comunidades desenvolveram hábitos alimentares para sobrevivência, utilizando-se de plantas e animais da própria Caatinga. Esse fato é evidenciado por um dos professores do curso C, que, ao comentar sobre as pesquisas desenvolvidas na área da Etnobotânica, enfatizou o uso das plantas como “alimentos emergenciais” e a relação estabelecida pelos usuários em determinadas vivências cotidianas:

[...] se entrevistarmos algumas pessoas hoje em dia, elas não revelam determinados grupos de plantas que chamamos de alimentos emergenciais, porque remontam a um período de dificuldade. A planta está associada a um período da seca da década de quarenta, então elas não revelam que consumiram ou que consomem ainda hoje. [...] existe um grupo de plantas e animais que são escondidas, a pessoa não revela, por que vai dizer sobre a pessoa dela e as dificuldades da vida que ela passou, e ela não quer relembrar, e pode ser várias as situações [...] (Professor do curso C).

Outra questão relacionada a essa temática se refere à utilização de plantas para fins ginecológicos, que é outra particularidade relatada pelo professor do curso C que desenvolveu esse estudo durante a orientação de uma monografia. De acordo com o professor, uma de suas alunas “[...] trabalhou com plantas para fins ginecológicos para condições femininas em uma região que ela mora, essas mulheres revelaram que fizeram um aborto com um tratamento de uma planta, ou que usam alguma planta como anticoncepcional [...]” (Professor do curso C). A pesquisa em questão buscava investigar o uso de plantas que podem ter efeito abortivo usadas por mulheres da zona rural, por exemplo, mas que, ao mesmo tempo, eram consideradas tabus ao se questionar a relação que essas mulheres mantinham com as plantas locais.

A partir das discussões dessas temáticas, consideramos importante compreender as diferentes questões sobre o contexto do semiárido presentes no currículo desses cursos de formação inicial.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao investigar a inserção do contexto do semiárido vinculado à temática ambiental no currículo de cursos de Ciências Biológicas na Paraíba, buscamos contribuir para o campo de pesquisa em Educação Ambiental que se volta para a investigação da Ambientalização Curricular nas instituições de ensino superior. Além disso, pode possibilitar a problematização e as contribuições para a construção de currículos ambientalizados que contemplem o contexto socioambiental e suas contradições na formação inicial.

A partir da análise dos Projetos Pedagógicos do Curso (PPC), observou-se que apenas as disciplinas Educação para Convivência no Semiárido, Ecologia do Semiárido, Educação Ambiental, Ecologia Geral e Biologia da Conservação apresentaram elementos da temática ambiental vinculada ao contexto da Caatinga. Entre as temáticas abordadas nesses componentes curriculares destacamos a educação para convivência no semiárido, a escassez da água e, a partir dos relatos de professores, o conhecimento ecológico tradicional.

Tendo em vista o número reduzido de disciplinas que contemplam a matéria em questão, entendemos que a institucionalização da temática ambiental vinculada ao contexto do semiárido no PPC é indispensável, mesmo considerando que o currículo é um espaço dinâmico e que os docentes possuem autonomia na construção de suas aulas. Além disso, consideramos importantes que essa temática esteja presente nos eixos estruturantes do currículo do curso, opondo-se a sua secundarização, que restringe essas temáticas a espaços que podem ou não ser explorados de acordo com o interesse do professor, como as disciplinas optativas.

Nesse sentido, consideramos que a característica de contextualização local-global-local, construída pela Red Aces, é um relevante aspecto na análise do currículo de cursos de formação de professores de Ciências e Biologia que atuarão em escolas da região semiárida. Portanto, as discussões sobre um contexto cercado por contradições sociais, culturais, econômicas e ambientais devem estar associadas aos aspectos globais, percebendo-se que muitas dessas questões locais estão diretamente ligadas ao âmbito global e ao sistema de produção predominante na sociedade.

O processo de Ambientalização Curricular no contexto do semiárido não se refere apenas à inserção da temática ambiental nos Projetos Pedagógicos, ementas e programas das disciplinas, mas deve envolver o questionamento das bases epistemológicas que fundamentam a produção do conhecimento e a compreensão de mundo dos profissionais. A formação destes profissionais na universidade está perpassada pela indissociabilidade entre as questões locais e global, por processos dialéticos de “horizontalidade” e “verticalidade”.

Destarte, na tentativa de desvelar as contradições e os interesses sociais que cercam as questões ambientais presentes nos currículos de formação inicial nos cursos de Ciências Biológicas, outros elementos devem ser discutidos sobre a Ambientalização Curricular nas IES, como: Por que determinadas temáticas ambientais são privilegiadas no currículo de formação inicial, tornando-se legítimas? Quem são os responsáveis por selecionar estas temáticas? A que contextos sociais e econômicos existentes na sociedade as temáticas ambientais selecionadas podem estar relacionadas?

REFERÊNCIAS

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NOTAS:

1 A “Red Aces” é um projeto de “Ambientalización curricular de los estudios superiores” (Aces) resultante de uma parceria entre universidades, sendo cinco europeias e seis latino-americanas: Universidade Nacional de Cuyo e Universidade de San Luis na Argentina; Universidade Estadual de Campinas, Universidade Estadual Paulista - Rio Claro e Universidade Federal de São Carlos no Brasil; e Universidade de Pinar del Río “Hermanos Saíz Montes de Oca” em Cuba.

2 A equipe de pesquisadores que constituiu a Red Aces elaborou dez características presentes em um estudo ambientalizado, sendo elas: Complejidad; Orden disciplinar: flexibilidad y permeabilidade; Contextualización; Tener en cuenta el sujeto en la construcción del cono cimento; Considerar los aspectos cognitivos y de acción de las personas; Coherencia y reconstrucción entre teoría y práctica; Orientación prospectiva de escenarios alternativos; Adecuación metodológica; Generar espacios de reflexión y participacón democrática; Compromiso para la transformación de las relaciones sociedad-naturaleza.

3 A construção e a utilização do termo “convivência com ou para o semiárido” se opõem a interpretações e discursos que consideraram, ao longo da história de ocupação dessa região, um ambiente social, econômico e ecologicamente de baixa viabilidade, não reconhecendo suas potencialidades.

4 “A Resab é um espaço de articulação política da sociedade organizada, congregando educadores(as) e instituições governamentais e não governamentais, que atuam na área de Educação no semiárido brasileiro, sem preconceitos de cor, raça, sexo, origem política, social, cultural ou econômica, com o intuito de elaborar propostas de políticas públicas no campo educacional e desenvolver ações que possam contribuir com a melhoria da qualidade do ensino e do sistema educacional público do semiárido brasileiro (SAB)”. Disponível em: http://resabnacional.blogspot.com.br/2011/06/resab-possui-varias-publicacoes-sobre.html. Acesso em: 15 abr. 2020.

5 A ASA “é uma rede que defende, propaga e põe em prática, inclusive através de políticas públicas, o projeto político da convivência com o semiárido. Sua missão é fortalecer a sociedade civil na construção de processos participativos para o desenvolvimento sustentável e a convivência com o semiárido referenciados em valores culturais e de justiça social”. Para mais informações: http://www.asabrasil.org.br/. Acesso em: 15 abr. 2020.

Recebido: 08 de Outubro de 2019; Aceito: 19 de Abril de 2020

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