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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.19 no.2 São Paulo jul./sept 2021  Epub 30-Ago-2021

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2021v19i2p915-937 

Artigos

TOTALIDADE OU FRAGMENTAÇÃO? A APRESENTAÇÃO DA REALIDADE NO CURRÍCULO INTEGRADO DO INSTITUTO FEDERAL DE GOIÁS

TOTALITY OR FRAGMENTATION? THE PRESENTATION OF THE REALITY ON THE INTEGRATED SCHOOL CURRICULUM FROM THE INSTITUTO FEDERAL DE GOIÁS

¿TOTALIDAD O FRAGMENTACIÓN? LA PRESENTACIÓN DE LA REALIDAD EN EL CURRÍCULO INTEGRADO DEL INSTITUTO FEDERAL DE GOIÁS

Karla Rodrigues MOTAi 
http://orcid.org/0000-0003-3058-0037

Cláudia Helena dos Santos ARAÚJOii 
http://orcid.org/0000-0003-2453-4456

i Mestrado em Educação Profissional e Tecnológica (ProfEPT) pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás. Professora da Educação Básica na Secretaria de Estado de Educação do Estado do Mato Grosso. E-mail: karla_mota@msn.com - ORCID iD: http://orcid.org/0000-0003-3058-0037.

ii Doutorado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-Goiás). Docente e pesquisadora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG). Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica. E-mail: helena.claudia@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-2453-4456.


RESUMO

Este escrito tem como objetivo analisar a apresentação da realidade no currículo do Curso Técnico Integrado em Química, do Instituto Federal de Goiás, Câmpus Anápolis. Metodologicamente, fundamentado em Lüdke e André (1986), foi realizado um estudo documental de caráter qualitativo, cujo corpus constituiu-se do Projeto Pedagógico do Curso e de 50 Planos de Ensino Anuais. Ancorado em Moura (2007), buscou-se compreender como os elementos pesquisa, contextualização, interdisciplinaridade e flexibilidade foram apresentados nos documentos. Desvelou-se que o currículo do CTI em Química apresenta uma forma integrada, contudo, no planejamento pedagógico predomina a disciplinarização dos conteúdos. A conclusão indica que a realidade ainda é apresentada ao estudante-futuro-trabalhador de forma fragmentada, fator que ofusca a compreensão dos fenômenos e dificulta a emancipação contra-hegemônica deste indivíduo.

PALAVRAS-CHAVE: Currículo integrado; Trabalho; Educação profissional; Ensino médio; Emancipação

ABSTRACT

This written work aims at analyzing the presentation of the reality on the integrated school curriculum from the Integrated Chemical Tech Course from the Instituto Federal de Goiás, Anápolis’ campus. Methodologically,based on Ludke and André(1986), a qualitative documental study, whose corpus was constituted by the Course’s Pedagogic Project and the 50 Annual Teaching Plans, was conducted. Anchored on Moura (2007),it sought to comprehend how the elements research, contextualization, interdisciplinarity and flexibility were presented in the documents.It was revealed that the Integrated Chemical Tech curriculum presents an integrated outline, however, on the pedagogic plan, a content disciplinarization prevails.The conclusion indicates that the reality is still presented to the future worker student in a fragmented manner, a factor that overshadows the comprehension of the phenomena and complicates the counter-hegemonic emancipation of this individual.

KEYWORDS: Integrated curriculum; Work; Professional education; Secondary school; Emancipation

RESUMEN

El presente escrito tiene como objetivo analizar la presentación de la realidad en el currículo del Curso Técnico Integrado en Química, del Instituto Federal de Goiás campus Anápolis. Metodológicamente, fundamentado en Lüdke y André (1986), se realizó un estudio documental de carácter cualitativo cuyo corpus se constituye en el Proyecto Pedagógico del Curso y en 50 Planes de Enseñanza Anual. A través de Moura (2007), se pudo comprender cómo fueron presentados en los documentos los elementos de investigación, contextualización, interdisciplinaridad y flexibilidad. Se evidenció que el currículo del CTI en Química presenta una forma integrada; sin embargo, en la planificación pedagógica predomina la jerarquización de contenidos. En conclusión, este estudio demuestra la fragmentación de la realidad, factor que coarta el análisis y la comprensión de los fenómenos por parte del estudiante-futuro-trabajador y, por ende, su libertad de pensamiento y de acción.

PALABRAS CLAVE: Currículo integrado; Trabajo; Educación profesional; Enseñanza media; Emancipación

1 INTRODUÇÃO

O ponto de partida deste manuscrito orienta-se pela necessidade de se promover reflexões que busquem ultrapassar a dualidade existente entre educação profissional e educação geral no currículo escolar. Parte-se da compreensão de que, historicamente, a formação para o trabalho foi ofertada em uma posição oposta e hierarquicamente inferior à formação propedêutica. Esta fragmentação constitui-se de um reflexo, no campo escolar, da divisão social do trabalho, na qual produz dois grandes modelos de educação: uma de florescimento intelectual para poucos (estudantes-futuros-dirigentes) e outra de adequação ao mercado de trabalho para muitos (estudantes-futuros-trabalhadores).

Ao cunhar o termo ‘estudante-futuro-trabalhador’, pretende-se ressaltar o caráter singular do jovem brasileiro oriundo da classe trabalhadora que cursa a fase final da educação básica. Ao contrário dos estudantes de grupos elitizados, trata-se um indivíduo que se encontra no momento limiar que separa a vida estudantil e a vida profissional. Dessarte, define-se que estudante-futuro-trabalhador é o sujeito educativo inserido na etapa do Ensino Médio que carece de uma educação escolar que lhe propicie o acesso ao conhecimento científico historicamente produzido, ao mesmo tempo em que necessita, pelas condições de desigualdade e exploração impostas, preocupar-se com o mundo do trabalho e com seu futuro profissional.

Todavia, uma proposta de educação profissional ao primar tão somente pelas necessidades produtivas, em detrimento das necessidades do homem, acaba por orientar-se estritamente pelo desenvolvimento da técnica e das habilidades necessárias para a atuação em um específico posto de trabalho. Como consequência, este processo formativo deixa de estabelecer o - imprescindível - diálogo com a ciência e o conhecimento historicamente produzido que fundamenta esta atividade, acabando por ofuscar a forma com que esse sujeito ‘enxerga’ o mundo do trabalho bem como por conformá-lo à realidade dada.

A proposta de educação profissional integrada ao Ensino Médio visa romper com o paradigma formação geral versus formação profissional, sujeitos que pensam versus sujeitos que executam, cabeça versus mãos. Entende-se que o currículo integrado tem potencial de apresentar a realidade, não mais de forma fragmentada, mas como uma totalidade. Ou seja, “realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classe de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido” (KOSIK, 1976, p. 44, grifo do autor).

Portanto, a superação dos “umbrais das escolas profissionais” encontra-se atrelada à superação da visão fragmentada da realidade que eterniza e naturaliza as diferenças sociais e a polarização das dimensões do trabalho. Na formação para o trabalho, faz-se necessário implementar uma “escola unitária” que forneça ao sujeito a cultura e a ciência acumulada historicamente, permitindo que este compreenda as relações científicas e sociais que fundamentam a sociedade na qual encontra-se alocado, “formando-o entrementes como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige” (GRAMSCI, 1982, p. 136).

Ancorado nos pressupostos supracitados, os Cursos Técnicos Integrados ao Ensino Médio ofertados pelos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia passam a apresentar, segundo Moura (2007), como excelente opção para os alunos das classes menos favorecidas, dado que fornecem, de forma simultânea e articulada, uma educação de cunho integral e a formação específica para o exercício de uma profissão.

Contudo, mesmo diante desta proposta inovadora e emancipadora de ensino profissional, um levantamento bibliográfico, realizado por Mota, Araújo e Santos (2019), sobre as produções acadêmicas brasileiras publicadas entre 2010 e 2017, que versaram sobre a Educação Profissional e Tecnológica (EPT), desvelou que existe uma escassez de estudos que debrucem sobre os Cursos Técnicos Integrados ofertados pelos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Fator que justifica o objeto de investigação deste artigo, a saber: o Curso Técnico Integrado (CTI) em Química do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG), Campus Anápolis.

Ao se analisar a proposta de Educação Básica integrada ao Ensino Profissional ofertada pelo IFG Campus Anápolis, o pressuposto ensejado é que os documentos norteadores do CTI em Química fundamentem, defendam e orientem um trabalho educativo pautado na integração curricular. Como resultado, anseia-se que as intencionalidades didáticas, pedagógicas e ideológicas, manifestadas nos Planos de Ensino Anuais, anunciem, de alguma forma, a superação do tradicional ensino disciplinar e apontem elementos que vislumbrem a apresentação da realidade como um todo.

Isto posto, anuncia-se que o objetivo deste texto é analisar a apresentação da realidade na proposição de currículo integrado do Curso Técnico Integrado (CTI) em Química do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás, Campus Anápolis. Para tanto, buscou-se compreender como os elementos pesquisa, contextualização, interdisciplinaridade e flexibilidade foram apresentados e utilizados nos documentos que orientam o curso, a saber: Projeto Pedagógico do Curso (PPC) e os Planos de Ensino Anuais elaborados pelos docentes do curso no início do ano letivo de 2017.

Pretendeu-se investigar se tais documentos institucionais orientam a oferta de currículo integrado, em diálogo com as necessidades contemporâneas e contra-hegemônicas de formação para o mundo do trabalho em que a realidade deve ser apresentada como uma totalidade, ou se apontam para a manutenção de uma formação profissional que indique a realidade fragmentada. Destarte, pretende-se, com esta pesquisa, contribuir com estratégias de reflexão e inquietação ante o currículo integrado, visando a superação da educação profissional pautada nas necessidades do mercado, de cunho tecnicista, de conteúdos preponderantemente disciplinares e que fragmenta a visão de realidade dos estudantes-futuros-trabalhadores em nosso país.

2 CURRÍCULO INTEGRADO: A SUPERAÇÃO DA POLARIZAÇÃO ENTRE FORMAÇÃO GERAL E FORMAÇÃO PROFISSIONAL

Na educação formal, a organização do currículo está associada à tentativa de sistematizar e unificar os conteúdos a serem ensinados. Todavia, Gimeno Sacristán (2013) afirma que esta estruturação se apresenta de forma paradoxal, visto que, por mais que seu primado seja unificar e organizar os conteúdos escolares, o fato do currículo seccionar o conhecimento em disciplinas resulta, também, no desenvolvimento de fronteiras e delimitações entre os campos do conhecimento, ou seja, ao mesmo tempo que o currículo organiza e une os conteúdos, ele os fragmenta dentro das disciplinas escolares.

De acordo com Torres Santomé (1998, p. 55), o termo disciplina pode ser compreendido como “uma maneira de organizar e delimitar um território de trabalho, de concentrar a pesquisa e as experiências dentro de um determinado ângulo de visão”. Esta proposição linear de organização curricular constitui a forma tradicional e predominante dentro dos ambientes escolares. Como resultado, as disciplinas são colocadas justapostas, aglomeradas, de forma arbitrária, apresentando nenhuma ou pouca relação entre elas.

A organização do currículo escolar é desenvolvida sobre os conflitos entre as instituições culturais, os grupos econômicos e culturalmente poderosos e a classe trabalhadora que anseia em aproximar o currículo de suas próprias necessidades. Contudo, segundo Apple (1989), dificilmente o currículo escolar irá, espontaneamente, atender às necessidades ou oferecer vantagens apreciáveis às classes populares, pois este instrumento ideológico é, normalmente, produto de interesses do Estado, entre a elite e a classe média.

Nesse viés, o currículo passa a ser compreendido “como uma arena política de ideologia, poder e cultura” (FRIGOTTO, ARAÚJO, 2018, p. 257), pois, ao mesmo tempo em que atua como instrumento que permite a transmissão da ideologia dominante, tem o potencial, caso seja reestruturado a favor das massas populares, de orientar o processo de emancipação dos trabalhadores, permitindo sua organização na luta contra a ordem exploradora estabelecida.

Visando o desenvolvimento da dimensão intelectual e emancipação das classes populares, a proposição da educação profissional integrada à educação básica de nível médio surge com a intenção de unir as duas faces do trabalho, manual e intelectual, bem como as da teoria e da prática, mostrando ao trabalhador que ele também pode ser um dirigente, assim como preconizado por Gramsci (1982, p. 149) em sua Escola Unitária, uma escola “na qual o trabalho e a teoria estão estreitamente ligados”, em contextos históricos distintos de não reforçamento da desigualdade e exploração social.

Com a proposição de currículo integrado, a educação profissional passa a ser compreendida, não como um sistema que coexiste em paralelo com a educação básica, mas como uma formação técnica organicamente relacionada com a formação geral. E, diante desta perspectiva, o conceito de integração deve ir para além da forma, não se restringindo à ação de somar currículos e/ou cargas horárias dos cursos de Ensino Médio e Técnico, mas sim de uma ação intencional de articular, no desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem, os conhecimentos gerais e específicos, a cultura e o trabalho, o humanismo e a tecnologia (RAMOS, 2010).

Corroborando as asserções acima expostas, Frigotto e Araújo (2018, p. 251) alertam que a proposição do ensino integrado está para além de um modismo pedagógico. Sua implementação não depende, apenas, de soluções didáticas integradoras e de condições materiais, mas, principalmente, de soluções ético-políticas, às quais são alcançadas por meio da “definição clara de finalidades políticas e educacionais emancipadoras e o compromisso com as mesmas”.

Esta proposição integrada de currículo visa superar o problema do distanciamento entre a realidade do jovem-futuro-trabalhador e o conhecimento difundido dentro das instituições escolares, objetivando, na perspectiva de Torres Santomé (1998), preparar os indivíduos para compreender, julgar e intervir em sua realidade, de uma forma consciente, pautada nos pilares da responsabilidade, justiça, solidariedade e democracia.

Ao se propor o ensino integrado, os conceitos científicos devem ser apresentados aos estudantes com o intuito de fazê-los compreender a realidade e as suas múltiplas dimensões. Para tanto, os conceitos gerais devem se converter em conteúdos de ensino dentro das diferentes áreas do conhecimento. Nesse processo, permite-se ao estudante entender que existem conhecimentos gerais e conhecimentos específicos, sendo que a diferença entre ambos se dá na sua metodologia e nas suas finalidades, às quais foram construídas historicamente, contudo, epistemologicamente, estes conhecimentos formam uma unidade, pois partem de um conceito e de uma lei geral que explica os fenômenos (RAMOS, 2012).

Do ponto de vista filosófico, a organização curricular integradora deve consubstanciar seus pressupostos na concepção de homem e de realidade. Nessa proposta, o homem deve ser concebido como um ser histórico-social, que modifica a natureza em virtude de suas próprias necessidades e, assim, produz conhecimentos. Dito isso, a realidade concreta de natureza ontológica deve ser compreendida como uma totalidade, ou seja, como uma síntese de múltiplas dimensões (produtiva, política, artística, ética etc.) e determinações. Como resultado, o todo dialético deverá fundamentar os conteúdos repassados aos estudantes, possibilitando que estes compreendam o contexto em que estão inseridos, bem como desenvolvam possibilidades para uma eficiente intervenção sobre sua realidade (MOURA, 2007; RAMOS, 2012).

Do ponto de vista epistemológico, Moura (2007) propõe cinco eixos norteadores para a existência de uma Educação Profissional técnica integrada ao Ensino Médio, sendo eles:

  1. Compreensão do homem como ser histórico-social: deve-se refletir sobre o homem enquanto sujeito e buscar a sua estruturação como um ser autônomo, emancipado, dotado de cultura, que almeja a autorrealização e que participa responsável e criticamente nas esferas políticas e econômicas da sociedade a qual faz parte.

  2. Trabalho como princípio educativo: o homem deve ser compreendido como o resultado de um processo histórico e ontológico de produção da existência humana e os conteúdos ensinados devem constituir-se de uma reflexão crítica e científica do mundo do trabalho, explicitando as relações de força que se estabelecem dentro e fora do modo de produção. Segundo o autor, abordar a categoria trabalho dentro do ambiente escolar, proporciona ao estudante uma melhor “compreensão do significado econômico, social, histórico, político e cultural das ciências e das artes” (MOURA, 2007, p. 22).

  3. Pesquisa como princípio educativo: trata-se de um fator que contribui significativamente para a construção da autonomia intelectual do estudante. Por meio de aulas questionadoras e da pesquisa, gera-se certa inquietude no estudante, tirando-o da sua posição de receptor de conhecimento e tornando-o ativo na busca de soluções para questões práticas do seu cotidiano.

  4. Apresentação da realidade como uma totalidade: a realidade concreta deve ser fator determinante na elaboração do currículo escolar, ou seja, o todo dialético em que o educando encontra-se inserido deverá fundamentar os conteúdos escolares, possibilitando a compreensão do contexto social.

  5. Interdisciplinaridade, contextualização e flexibilidade: a interdisciplinaridade deve ser vista como o diálogo, como uma “ponte” entre os diversos conhecimentos e não como uma fusão dos conteúdos; a contextualização seria a problematização das questões sociais; e a flexibilidade, a característica dinâmica do ensino, dado que para responder às demandas da realidade, os conteúdos devem ser adaptados quando necessário.

Para Frigotto e Araújo (2018, p. 249), quando orientadas pela escola unitária, as práticas pedagógicas voltadas para o ensino integrado devem permitir ao estudante uma “leitura mais ampla da realidade”, apontando para um horizonte no qual este estudante compreenda as partes que constituem a realidade no seu todo.

A eficácia de um currículo integrado depende de parcelas maiores de contextualização dentro do ambiente escolar, para tanto se faz necessário que se considere as diferentes dimensões da vida e das práticas sociais do estudante, compreendendo-os como sujeitos do seu processo formativo. Contextualizar, portanto, trata-se de construir conhecimentos situando-os tanto histórica quando socialmente, estabelecendo diálogo com a prática social e com o desenvolvimento político dos trabalhadores (FRIGOTO; ARAÚJO, 2018; MACHADO, 2010).

Frigotto e Araújo (2018), Machado (2010), Moura (2007), Ramos (2009; 2012) e Torres Santomé (1998), referenciais que versam sobre a educação profissional integrada à educação básica, são unânimes em defender a interdisciplinaridade como a principal metodologia a sustentar e orientar a prática educativa e o processo de ensino e aprendizagem dentro do currículo integrado. A interdisciplinaridade não toma a fragmentação disciplinar como patologia, mas “pressupõe que é na totalidade dinâmica que os constructos particulares se fazem verdade” (FRIGOTTO; ARAÚJO, 2018, p. 259).

Em suma, defende-se que o êxito de uma proposta curricular integradora encontra-se fundamentado na reflexão coletiva das disciplinas técnicas e gerais e sobre qual a perspectiva de ser humano e de profissional que se deseja formar. Segundo Machado (2010), a partir desta compreensão e convergência de concepções, aponta-se para uma proposta coerente e homogênea de sujeito a ser formado e, por consequência, de estratégias educativas necessárias para se alcançar tal meta, bem como os valores a serem priorizados no processo de ensino e aprendizagem.

3 APRESENTAÇÃO DO CORPUS DOCUMENTAL E DO PERCURSO METODOLÓGICO

Este escrito, inserido no campo do ensino e educação, constitui-se por um estudo qualitativo de caráter documental, pois são analisados elementos curriculares de documentos institucionais que orientam a oferta do CTI em Química do IFG, Campus Anápolis1, a saber: O Projeto Pedagógico do Curso (PPC) e os Planos de Ensino Anuais elaborados pelos docentes no início do ano letivo de 2017. Tais documentos são compreendidos como

[...] uma fonte poderosa de onde podem ser retiradas evidências que fundamentem afirmações e declarações do pesquisador. Representam uma fonte ‘natural’ de informação. Não são apenas uma fonte de informação contextualizada, mas surgem num determinado contexto e fornecem informações sobre esse mesmo contexto (LUDKE, ANDRE, 1986, p. 39).

O Projeto Pedagógico do Curso (PPC) constitui o documento basilar do CTI em Química, configurando-se como instrumento norteador da prática educativa dos docentes. Nesse arquivo, são apresentados a justificativa e os objetivos do Curso Técnico Integrado em Química, o perfil profissional dos estudantes egressos, os recursos (físicos e humanos) que dão subsídios à oferta do curso e a organização curricular. O PPC anuncia que a integração curricular será alcançada por meio da articulação entre três grandes núcleos disciplinares: núcleo comum que agrupa as disciplinas obrigatórias que compõem a base da formação escolar de nível médio; o núcleo diversificado que compreende as disciplinas obrigatórias e as optativas que, por transversalidade, dialogam com a formação básica de nível médio e a qualificação geral para o trabalho; e o núcleo específico que reúne as disciplinas obrigatórias da formação profissional técnica em Química.

O Plano de Ensino Anual consiste em um documento no qual o docente materializa as suas intenções pedagógicas ao longo do ano letivo, bem como os caminhos e recursos pedagógicos a serem utilizados para atingir o objetivo geral da disciplina. Tais documentos apresentam uma estrutura padrão, constituída das seguintes seções: caracterização (identificação do docente e disciplina), ementa, objetivo, conteúdo programático, procedimentos metodológicos, sistema de avaliação e bibliografia.

Foram analisados um total de 50 Planos de Ensino Anuais do CTI em Química distribuídos nas três séries do Ensino Médio do ano letivo de 2017. A análise de tais documentos foi materializada por meio de questionamentos feitos aos Planos Anuais de Ensino visando à identificação dos seus conteúdos didáticos, pedagógicos, metodológicos e ideológicos. O Quadro 1 apresenta os questionamentos feitos aos planos para atender o recorte investigativo deste estudo, cujas reflexões centram-se na apresentação da realidade como uma totalidade dentro do currículo integrado.

Quadro 1 Questionamentos realizados aos Planos de Ensino Anuais 

Questão Conteúdo
1 O plano de ensino utiliza a pesquisa como princípio educativo?
2 O plano de ensino apresenta a disciplina de forma contextualizada, sendo propostas articulações do conteúdo com experiências passadas e/ou atuais vivenciadas pelos estudantes/educadores?
3 O Plano de Ensino tem caráter interdisciplinar, apresentando projetos integradores que articulam e inter-relacionam com os saberes desenvolvidos pelas diferentes disciplinas de cada período letivo?
4 É possível perceber no Plano de Ensino uma flexibilidade na organização das aulas e conteúdos, permitindo que o aluno compreenda que os conteúdos escolares, assim como a realidade, apresentam caráter dinâmico?

Fonte: Elaborada pelas autoras, com base em Moura (2007).

Tais questionamentos foram elaborados com base nos pressupostos epistemológicos de Moura (2007) para a oferta de uma educação profissional técnica integrada ao Ensino Médio, que propõe cinco eixos norteadores que devem estar presentes no currículo. Todavia, conforme elucida o Quadro 1, o recorte investigativo deste estudo debruçou-se apenas nos três últimos eixos propostos pelo autor, a saber: a “apresentação da realidade como totalidade”; a “pesquisa como princípio educativo”; e “contextualização, interdisciplinaridade e flexibilidade”.

Por fim, justifica-se a utilização do Projeto Pedagógico do Curso (PPC) e dos Planos de Ensino Anuais como corpus documental, pois segundo Ribeiro e Mendes (2020, p. 267), tais documentos “[...] permitem observar os objetivos, as diretrizes e os elementos didáticos da ação docente assegurando identificar o caráter de ambivalência que as políticas curriculares tendem a promover”.

A seção seguinte objetiva discutir os dados levantados por este estudo, sendo organizados em quatro temas centrais: a) pesquisa; b) contextualização; c) interdisciplinaridade e d) flexibilidade, uma disposição que visa acompanhar o movimento analítico aplicado ao corpus documental. Para a análise e discussão dos dados, foram consideradas as elaborações teóricas da área do currículo e também as proposições de Educação Profissional e Tecnológica, ancoradas na apresentação da realidade como totalidade e na produção de um trabalhador emancipado.

4 O PLANEJAMENTO DO CURRÍCULO INTEGRADO: ANÁLISE DOS PLANOS DE ENSINO DO CURSO TÉCNICO INTEGRADO EM QUÍMICA NO IFG CÂMPUS ANÁPOLIS

Na perspectiva de Kosik (1976), a realidade aparenta-se ao homem como um conjunto de meios, fins, instrumentos, exigências e esforços, no qual ele é, simultaneamente, sujeito passivo e ativo. Logo, em um primeiro momento, a realidade é a representação que ele realiza das coisas, se constituindo de um sistema de noções que emergem da apreensão de sua atividade prática.

Cabe aos processos de formação humana e, em específico, de formação para o trabalho, esclarecer e evidenciar a interdependência entre os fenômenos e fatos, bem como desenvolver o pensamento dialético-reflexivo no estudante, fazendo-o compreender que nenhum evento, natural, profissional ou social se justifica em si mesmo.

Isto posto, elucida-se que esta pesquisa parte do pressuposto de que a ênfase dada em determinados aspectos e a forma como os docentes pretenderam apresentar os conteúdos gerais, transversais e profissionais ao longo do ano letivo permitem desvelar se a proposta de currículo integrado do CTI em Química contribuiu para reproduzir uma realidade fragmentada, meramente mensurável e descritiva ou se aponta para uma realidade dialética e complexa, concebida “como um todo indivisível de entidades e significados” (KOSIK, 1976, p. 30, grifos do autor).

4.1 A pesquisa como princípio educativo no planejamento do currículo integrado

Na oferta de educação profissional integrada ao Ensino Médio, a pesquisa como princípio educativo tem como objetivo promover “a construção da autonomia intelectual do educando” (MOURA, 2007, p. 23), permitindo que ele busque autonomamente soluções práticas para o seu cotidiano e para seu ambiente de trabalho.

A Lei 11.892/2008, ao formalizar a criação dos Institutos Federais e anunciar em seu artigo 6º que tais instituições têm a finalidade de “desenvolver a educação profissional e tecnológica como processo educativo e investigativo de geração e adaptação de soluções técnicas e tecnológicas às demandas sociais e peculiaridades regionais” (BRASIL, 2008, grifo nosso), reafirma o princípio educativo da pesquisa no processo de ensino para assistir e proporcionar soluções técnicas às demandas da região.

Ao analisar a presença deste eixo no corpus documental, verificou-se que o PPC do CTI em Química não faz ampla defesa da pesquisa crítica e instigadora na implantação do currículo integrado. A única menção à pesquisa como instrumento didático-metodológico foi observada no tópico “Práticas Profissionais” da organização curricular, afirmando que “As práticas profissionais como uma dimensão do processo ensino-aprendizagem dialogam com a pesquisa como princípio e método pedagógico” (IFG, 2015, p. 19).

Esta ausência da defesa da pesquisa como princípio educativo no documento basilar do curso refletiu no planejamento do ano letivo de 2017. Dos 50 Planos Anuais de Ensino analisados, apenas dois (4%), conforme esboça a Tabela 1, manifestaram intenção de formar na perspectiva crítica e investigativa. Trata-se de um fator alarmante, pois fere simultaneamente tanto o princípio da formação integrada quanto da Química enquanto Ciência, visto que a investigação, a curiosidade, a reflexão e análise de dados são elementos essenciais para formar um Técnico em Química profissionalmente emancipado e capacitado.

Tabela 1 Quantidade de Planos Anuais de Ensino que apresentaram a pesquisa como princípio educativo  

Núcleo Quantidade %
Comum 0 0,0
Específico 1 2,0
Diversificado 1 2,0
Total 2 4,0

Fonte: Elaborada pelas autoras com base nos Planos de Ensino Anuais.

De acordo com Kosik (1976), o pensamento crítico e dialético deve ser desenvolvido em oposição aos esquemas abstratos e desconexos da realidade. Transpondo esta premissa para a oferta do currículo integrado, entende-se que ao se propor a pesquisa no processo educativo, não basta que este recurso permita a identificação e conhecimento dos fenômenos e situações, mas, principalmente, que seja desenvolvida nos discentes a possibilidade de investigar, compreender e refletir criticamente sobre a essência do objeto e sobre sua realidade.

Isto posto, esclarece-se que, nessa análise, a simples menção dentro dos Planos de Ensino Anuais às pesquisas individuais ou em grupo como instrumento metodológico e/ou avaliativo não foi interpretada como um princípio educativo que asseguraria a formação de sujeitos críticos, questionadores e que busquem solucionar problemas de seu cotidiano, tal como a formação integrada para o trabalho necessita. Da forma como foram anunciados, estes formatos de pesquisas apenas contribuem para a formulação de uma primeira impressão da realidade e/ou fenômeno, mas não para a apreensão crítica da sua essência em sua totalidade.

Outro ponto a ser destacado é que o Plano Pedagógico do Curso (PPC) propõe, dentro do núcleo diversificado, uma disciplina intitulada “Introdução à Pesquisa e Inovação”, que, em um primeiro momento, poderia ser instrumento de incentivo à postura crítica e reflexiva. Todavia, a análise de sua ementa apontou para uma proposta oposta, visto que limitou o seu conteúdo aos fundamentos, redação e estruturação de trabalhos científicos. Este direcionamento restrito consolidou-se no Plano de Ensino Anual investigado, cuja metodologia pautou-se em estratégias tradicionais.

Em relação aos dois planos que se manifestaram positivamente no eixo da pesquisa como princípio educativo, foi possível detectar, no campo objetivos e procedimentos metodológicos dos documentos, a defesa do “desenvolvimento de uma postura investigadora e crítica” (PA.20) e da aplicação dos conhecimentos da disciplina “para interpretar, criticar e resolver problemas acadêmicos e do cotidiano” (PA.32).

Todavia, notou-se uma falta de materialidade em relação ao “como” desenvolver uma postura investigativa no estudante-futuro-trabalhador. Também não foi identificada a tentativa de se realizar atividades de extensão e pesquisas acadêmicas aplicadas ou que anseiem a produção e o desenvolvimento tecnológico, como preconiza a Lei 11.892/2008.

4.2 A contextualização no planejamento do currículo integrado

A necessidade de buscar soluções para problemas presentes no cotidiano do estudante-futuro-trabalhador somente será desenvolvida se os conteúdos profissionais e gerais, técnicos e humanísticos constituírem relação com a sua realidade, ou seja, se forem contextualizados. Corroborando este entendimento, Moura (2007, p. 24) afirma que:

[...] contextualizar a aprendizagem significa superar a aridez das abstrações científicas para dar vida ao conteúdo escolar relacionando-o com as experiências passadas e atuais vivenciadas pelos estudantes/educadores, projetando uma ponte em direção ao seu futuro e ao da realidade vivencial.

Neste estudo, buscou-se investigar se os documentos norteadores do curso apresentaram suas disciplinas de forma contextualizada e com propostas articuladas entre conteúdos escolares e experiências passadas e/ou atuais vivenciadas pelos sujeitos educativos.

Quando se analisou a presença deste eixo no PPC, identificou-se que não é realizada nenhuma defesa ou menção em relação à contextualização dos conteúdos disciplinares. Todavia, ao se debruçar nos Planos de Ensino Anuais, os dados do levantamento, sintetizados na Tabela 2, denotam uma significativa intenção de promover a contextualização por parte de algumas disciplinas presentes no núcleo comum e diversificado. Observou-se que um quantitativo de 17 Planos Anuais transpareceram, de alguma forma, contextualizar seus conteúdos.

Tabela 2 Quantidade de Planos Anuais de Ensino que apresentaram o elemento contextualização 

Núcleo Quantidade %
Comum 14 28,0
Específico 0 0,0
Diversificado 3 6,0
Total 17 34,0

Fonte: Elaborada pelas autoras com base nos Planos de Ensino Anuais.

A maioria das 14 disciplinas presentes no núcleo comum que anunciaram no documento a pretensão de dar um contexto aos conteúdos integram as áreas de Ciências Humanas e Linguagens. A contextualização, nestes casos, foi percebida e entendida como a tentativa do docente, dentro do seu planejamento, em aproximar o conteúdo programático à realidade concreta dos alunos, permitindo “vincular processos educativos a processos sociais, escola e vida, currículo escolar e realidade local, teoria e prática, educação e trabalho” (MACHADO, 2010, p. 88).

Nesses Planos de Ensino, os docentes anunciaram esse feito no campo objetivo, procedimentos metodológicos, ementa e/ou conteúdos programáticos, afirmando, por exemplo, que o planejamento prima pelas “inter-relações com as questões sociopolíticas, propiciando que o aluno compreenda melhor sua realidade social” (PA.05); pelo aproveitamento dos “conhecimentos (tanto no que diz respeito às vivências corporais como em termos de conceitos) que os alunos já trazem e, daí partindo para uma compreensão crítica da realidade” (PA.06) e pela correlação do “estudo da natureza com a realidade local, regional e global” (PA.12).

Em relação aos três planos que fazem parte do núcleo diversificado, a contextualização não foi claramente explicitada, mas foi possível perceber sua utilização dentro do planejamento anual nos campos de objetivo e conteúdo programático. Estes planos permitiram a percepção da tentativa de situar o conteúdo disciplinar a ser ensinado dentro das perspectivas históricas, sociais e em questões do cotidiano. Porém, se resumiram em anúncios breves, sem delongas e menções concretas deste elemento singular do currículo integrado.

Entende-se que para que o sujeito se aproprie e intervenha na realidade, é necessário partir do princípio “de que todo fato só é compreensível em seu contexto e no todo” (KOSIK, 1976, p. 53). Destarte, os Planos de Ensino Anuais ao transparecerem uma tentativa de contextualizar os conteúdos gerais e diversificados inerentes ao CTI em Química, apontam para uma formação para o trabalho na qual a classe trabalhadora tenha condições mínimas de identificar ou aplicar esses conhecimentos e conceitos em sua realidade para transformá-la.

A contextualização, assim como a interdisciplinaridade e a pesquisa como princípio educativo, é um elemento imprescindível para dar corpo e organicidade ao currículo integrado dentro dos Institutos Federais de Educação. Segundo Machado (2010, p. 88), “a contextualização exige dar centralidade à relação teoria e prática, integrar áreas de conhecimento e desenvolver as capacidades de observação, experimentação e raciocínio”. Conquanto, esta característica não foi percebida em nenhum plano do núcleo específico.

Nas disciplinas de caráter técnico não foi possível perceber tentativa ou intenção de promover relações entre a teoria e prática, entre conteúdo programático e realidade do aluno, entre a sua vivência e a atividade que ele vai desempenhar no seu ambiente de trabalho. Este dado desvela a tendência dos docentes do núcleo específico em enfatizar apenas o aspecto teórico e bacharelesco do conteúdo disciplinar em seu trabalho pedagógico. Tal fator permite presumir que as referidas disciplinas foram apresentadas por uma concepção “atomístico-racionalista” (KOSIK, 1976, p. 51) de totalidade, na qual a realidade é compreendida apenas como uma “soma” dos fatos e elementos mais simples.

Nenhum conteúdo profissional ou de formação geral se justifica por si mesmo. Esta desvinculação dos conteúdos técnicos com a realidade foi criticada por Ramos (2009), ao alertar que, no currículo integrado, os conceitos científicos, tecnológicos e de formação geral devem ser apresentados na relação com a realidade produtiva e, simultaneamente, fundamentados nas suas perspectivas históricas. Como resultado, o estudante tem a capacidade de perceber a interdependência entre trabalho, técnica, ciência e cultura na promoção da existência humana ao mesmo tempo em que se percebe como sujeito ativo dentro da trama social.

4.3 A interdisciplinaridade no planejamento do currículo integrado

A totalidade em sua concepção dialética concebe a realidade com um todo estruturado cujas partes estão interligadas. Nesse sentido, Kosik (1976), defende a necessidade de se criar uma ciência unitária, uma explicação integrada e orgânica da realidade, que revele ao indivíduo que os fragmentos da ciência moderna, na verdade, constituem uma “unidade do real”. Nas palavras do autor:

O paralelismo do desenvolvimento nos vários ramos da ciência - especialmente biologia, física, química, tecnologia, cibernética e psicologia - conduz à problemática da organização, da estrutura, da inteireza, da interação dinâmica, e com isso a constatação de que o estudo das partes e dos processos isolados não é suficiente; ao contrário, o problema real consiste em ‘relações organizadas que resultam da interação dinâmica, fazem com que o comportamento da parte seja diverso, se examinado isoladamente ou no interior de um todo’ (KOSIK, 1976, p. 46, grifos do autor).

Em concordância com esta proposição, de que o “estudo das partes e dos processos isolados não é o suficiente”, Moura (2007) afirma que o caminho a ser trilhado no ensino integrado, para superar os limites do ensino fragmentado, alicerça-se na interdisciplinaridade. Porém, este trabalho não deve ser interpretado como uma fusão ou somatória de disciplinas, mas como uma forma de apresentar aos sujeitos as interfaces dos conhecimentos historicamente produzidos e acumulados.

A interdisciplinaridade é condição sine qua non para o trabalho pedagógico a ser realizado em um currículo integrado. Não é possível apresentar a realidade concreta como uma totalidade apenas pelo olhar imediato tradicional ‘imediatizado’ por um pacote disciplinar. Não é possível transpor o ensino fragmentado, dicotômico, que polariza os espaços do fazer e do pensar, a partir dos limites impostos pelo tradicionalismo bacharelesco. É necessário, portanto, dissolver as ‘barreiras e muros’ construídos em torno dos conteúdos, técnicos e gerais, presentes na formação escolar e evidenciar que um fenômeno, natural ou social, somente poderá ser compreendido pelos sujeitos quando este for saturado com as explicações oriundas das mais diversas ciências.

Em relação a este importante pilar formativo, os dados deste estudo revelam uma tímida tentativa de se promover a interdisciplinaridade entre os núcleos disciplinares e/ou entre disciplinas. Quando se analisou a presença deste eixo no PPC foi possível identificar apenas uma menção ao termo interdisciplinaridade, especificamente no que se refere à organização da matriz curricular.

Em relação aos Planos de Ensino Anuais, conforme apresenta a Tabela 3, apenas 10 planos, distribuídos nos núcleos geral, diversificado e específico, tentaram apropriar a interdisciplinaridade no desenvolvimento do currículo integrado do CTI em Química.

Tabela 3 Quantidade de Planos Anuais de Ensino que apresentaram o elemento interdisciplinaridade 

Núcleo Quantidade %
Comum 7 14,0
Específico 1 2,0
Diversificado 2 4,0
Total 10 20,0

Fonte: Elaborada pelas autoras com base nos Planos de Ensino Anuais.

Por mais que este estudo não se trate de uma pesquisa estritamente quantitativa, este valor numérico, por si só, apresenta dois fatores alarmantes e preocupantes: a manutenção do tradicional ensino disciplinar e a reprodução de uma educação que dissocia o trabalho manual e o trabalho intelectual. A ausência da interdisciplinaridade nos Planos de Ensino Anuais apenas denota o quão inconsistente encontra-se o diálogo entre as disciplinas e núcleos que compõe o curso e o quanto os docentes que atuam nesta modalidade de ensino carecem de uma formação continuada específica para uma atuação pedagógica que coadune e avance para uma formação contra-hegemônica para o trabalho.

Destaca-se que a materialização de práticas educativas interdisciplinares pode ser alcançada, segundo Machado (2010), por meio de diferentes recursos, como a organização da grade curricular, contemplando aproximações temporais entre as diferentes disciplinas; fusões de conteúdos; realização de estudos e pesquisas compartilhadas; promoção conjunta de seminários, eventos e implementação de métodos de ensino por projetos e temas geradores. Cabe a cada instituição organizar-se na utilização dos recursos mais próximos de sua realidade.

No entanto, não foi esta a manifestação percebida nos supracitados 10 Planos de Ensino Anuais. Em síntese, estes planos anunciaram o caráter interdisciplinar da disciplina, porém não explicitam o formato e as dimensões das interações com os demais campos do conhecimento. Foi encontrado, nos 50 planos analisados, apenas um planejamento concreto de atividade interdisciplinar, o qual visava integrar uma disciplina da área de Ciências da Natureza do núcleo comum com uma disciplina do núcleo específico.

O que se percebe é que o CTI em Química do IFG Campus Anápolis ainda reproduz uma educação sistematizada em programas rígidos de saber, os quais são mais proveitosos ao mercado de trabalho do que ao desenvolvimento das potencialidades do sujeito e sua emancipação. Nesse processo, os homens (alunos e professores) tendem a ser compreendidos alienadamente, como objetos, como instrumentos da máquina produtiva e não mais como seres capazes de interpretar a realidade como uma totalidade.

4.4 A flexibilidade no planejamento do currículo integrado

Além da interdisciplinaridade e contextualização, o último elemento proposto por Moura (2007), como eixo norteador para uma Educação Profissional Técnica de nível médio integrada ao Ensino Médio é a flexibilidade. O trabalho educativo, quando baseado na flexibilização do conteúdo, permite “a operacionalização do processo ensino-aprendizagem” (MOURA, 2007, p. 26), apontando o caráter não linear e dinâmico das ciências, das produções tecnológicas e da realidade.

Nesse aspecto, não foi possível identificar no PPC nenhuma defesa da necessidade de se desenvolver um currículo de caráter adaptável e dinâmico. Entretanto, ao se investigar a presença de uma postura flexível foi possível perceber a tentativa dos docentes adequarem os conteúdos de suas disciplinas com as modificações intrínsecas da realidade em si e com a realidade do aluno. Conforme esboça a Tabela 4, 28% dos planos analisados deixaram transparecer no corpo do documento a tentativa de adequar a disciplina à dinamicidade da realidade.

Tabela 4 Quantidade de Planos Anuais de Ensino que apresentaram o elemento interdisciplinaridade 

Núcleo Quantidade %
Comum 8 16,0
Específico 2 4,0
Diversificado 4 8,0
Total 14 28,0

Fonte: Elaborada pelas autoras com base nos Planos de Ensino Anuais.

Desse modo, tais documentos apresentaram uma flexibilidade na organização e distribuição dos conteúdos e atividades avaliativas, visando adequação à realidade escolar, conforme exemplifica o seguinte excerto de um Plano de Ensino Anual da área de Linguagens:

A ordem dos conteúdos a serem ministrados, o número de aulas especificadas para cada conjunto deles, bem como as formas de avaliação poderão sofrer alterações previamente comunicadas no decorrer do calendário acadêmico de acordo com o andamento das aulas, visando a melhor adequação do plano de ensino à realidade escolar (PA.20).

Esta postura flexível dentro do currículo foi apreendida, principalmente, quando se analisou os procedimentos didático-metodológicos, a organização do conteúdo programático e os instrumentos avaliativos utilizados pelo professor.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta de Educação Profissional integrada ao Ensino Médio apresenta caráter contra-hegemônico e visa romper com o paradigma da formação para o trabalho oposta à formação geral. Neste estudo, a análise dos três últimos eixos propostos por Moura (2007) para a oferta de uma Educação Profissional Técnica de Nível Médio integrada ao Ensino Médio indicou que os agentes do Curso Técnico Integrado em Química do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás, Câmpus Anápolis, ainda se encontram em um momento de apropriação dos aportes primários e basilares de um currículo integrado, dentre eles: a interdisciplinaridade e a articulação dos núcleos específico, diversificado e comum.

A compreensão de realidade como uma totalidade deve primar, dentro do currículo integrado, pela apresentação das interfaces do conhecimento e pela relação com a vida cotidiana. Deve-se enfatizar ao estudante-futuro-trabalhador que um fenômeno pode ser explicitado, simultaneamente, por diversas áreas do conhecimento e que quanto mais contribuições das diferentes ciências este fenômeno agregar, mais próximo da essência do fenômeno essa explicação se encontra.

No entanto, esta investigação de caráter documental apontou que, por mais que o curso se intitule como integrado, escassas foram as proposições nos Planos de Ensino Anuais que transpareceram a compreensão e/ou a aplicação da pesquisa como princípio educativo; ou que contextualizaram os conteúdos ou que anunciaram flexibilizar o planejamento. Todavia, foi a análise do elemento interdisciplinaridade que se materializou como dado mais alarmante.

Frigotto e Araújo (2018), Machado (2010), Moura (2007), Ramos (2009; 2012) e Torres Santomé (1998) são uníssonos ao defender que a execução de uma proposta integrada de ensino deve sustentar-se, impreterivelmente, na interdisciplinaridade. É este o elemento didático-metodológico que permite, minimamente, romper com as fronteiras do conteúdo exclusivamente disciplinar nos processos de ensino. Entretanto, não foi esta a característica encontrada nos documentos analisados, dado que apenas 20% dos Planos de Ensino Anuais anunciam este elemento.

O Curso Técnico Integrado em Química é declarado como integrado no seu PCC, é afirmado que os núcleos comum, diversificado e específico devem dialogar entre si, com vistas a superar o paradigma conteudista e a histórica dicotomia entre formação geral versus formação profissional. Todavia, não são estas características que emergiram ao se investigar a existência de práticas interdisciplinares, e este não primar pela interdisciplinaridade torna o currículo integrado inexequível.

O currículo do CTI em Química aparenta, pela forma, ser integrado, contudo, a análise dos Planos de Ensino Anuais revelam a predominância da disciplinaridade e polarização dos conteúdos. Como resultado, a realidade ainda é apresentada de forma fragmentada, fator que ofusca a compreensão dos fenômenos naturais e sociais de forma crítica e dialética, resultando em impossibilidades na emancipação dos sujeitos.

Com base nos dados levantados, não foi possível observar uma atitude pedagógica integrada em relação à utilização da pesquisa, contextualização, interdisciplinaridade e flexibilidade nos planejamentos, indicando que os professores tendem a primar pelo desenvolvimento do conteúdo programático, perpetuando “o modelo tradicional de ensino - fragmentação dos saberes [...], dicotomia teoria/prática e hierarquização dos saberes” (RIBEIRO; MENDES, 2020, p. 278).

Diante dos limites apontados, conclui-se que o CTI em Química do IFG, Câmpus Anápolis, necessita implementar um “caminho curricular” que promova a dissolução das interfaces do conhecimento disciplinar e aproximação entre as dimensões do pensar e do fazer, da cabeça e das mãos, do trabalho intelectual e do trabalho manual, inerentes à condição e à formação humana e imprescindíveis para a constituição de um aluno-futuro-trabalhador autônomo, crítico, criativo e emancipado.

Por fim, anunciamos que este estudo não visa apresentar fim em si mesmo, ou seja, não objetiva apenas denunciar uma realidade inserida da proposta integradora, mas contribuir para inquietações frente ao fazer docente, à postura pedagógica e ao engajamento político-ideológico na Educação Profissional; desconfortos necessários para a promoção da emancipação do estudante-futuro-trabalhador.

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NOTA:

1 Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética e Pesquisa (CEP), sendo aprovada no dia 10 de setembro de 2018, através do Parecer Consubstanciado de número 2.881.768.

Recebido: 19 de Junho de 2020; Aceito: 05 de Agosto de 2020

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