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Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.19 no.4 São Paulo Oct./Dec 2021  Epub Apr 12, 2022

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2021v19i4p1483-1512 

Dossiê: De que currículo precisamos em tempos de democracia fraturada

Tudo deve mudar para que tudo fique como está”:Análise das implicações da Base Nacional Comum Curricular para a Educação em Ciências

"Everything must change so that everything stays the same":Analysis of the implications of the Base Nacional Comum Curricular for Science Education

"Todo debe cambiar para que todo esté como está":Análisis de las implicaciones de la Base Currícula Nacional Común para la Educación en Ciencias

i Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGECT-UFSC). Doutoranda do PPGECT-UFSC. E-mail: larissazancan@yahoo.com.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-4326-616X.

ii Doutora em Educação: ensino de ciências naturais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora titular do Departamento de Metodologia de Ensino (MEN/UFSC) e Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica da UFSC. E-mail: adriana.mohr.ufsc@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-6741-2112.


Resumo

O estudo busca identificar e analisar as intencionalidades formativas prescritas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para as ciências da natureza. Nesse sentido, realizamos a análise de conteúdo de documentos. Os resultados da investigação evidenciam que a BNCC retoma perspectivas formativas presentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais, alinhando princípios formativos da escola com demandas do mercado global. Sobre a educação em Ciências, constatamos diferenças entre as versões da BNCC. Na terceira versão, verificou-se ênfase na realização de atividades investigativas, retomando perspectivas epistemológicas positivistas, além da influência da STEM education no documento. Nossas conclusões apontam que há uso de conceitos, metas e ideais pouco aprofundados e discutidos na BNCC, os quais são esvaziados de significados diante da polissemia que engendram.

Palavras-chave: Currículo; BNCC; Educação Básica; STEM Education

Abstract

The study seeks to identify and analyze formative intentions prescribed by the Base Nacional Comum Curricular (BNCC) for the natural sciences. In this sense, we carry out document content analysis. The results show that the BNCC resumes formative perspectives present in the Parâmetros Curriculares Nacionais, aligning the school's formative principles with the demands of the global market. On Science Education, we found differences between the different versions of the BNCC. In the third version, there was an emphasis on carrying out investigative activities, resuming positivist epistemological perspectives, besides we realized the influence of STEM education in the document. Our conclusions point out that there is use of concepts, goals and ideals that are not well developed and discussed at the BNCC, which are emptied of meaning because of the polysemy they engender.

Keywords: Curriculum; BNCC; Basic education; STEM Education

Resumen

Em el trabajo, identificamos y analizamos las intenciones de formación prescritas por la Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para las ciencias naturales. En este sentido, realizamos análisis de contenido de documentos. Los resultados muestran que el BNCC retoma las perspectivas formativas presentes en los Parâmetros Curriculares Nacionais, alineando los principios formativos de la escuela con las demandas del mercado global. En Educación Científica, encontramos diferencias entre las diferentes versiones del BNCC. En la tercera versión, se hizo énfasis en actividades investigativas, retomando perspectivas epistemológicas positivistas, además verificamos la influencia de la STEM education. Nuestras conclusiones señalan que hay uso de conceptos, metas e ideales que no están bien desarrollados en el BNCC, los cuales se vacían de significado ante la polisemia que engendran.

Palabras clave: Currículum; BNCC; Educación básica; STEM Education

1 INTRODUÇÃO

No dia da redação final do presente texto1, o Brasil apresentava a soma de quase 22 milhões de casos registrados de Covid-19 e o registro de mais de 600 mil mortes. É importante reiterar tais números, uma vez que a presente situação de calamidade sanitária poderia ter sido evitada, não fosse o contundente esforço, por parte do governo federal, de divulgação de informações desencontradas, omissão de dados acerca da gravidade da situação, recomendação de medicamentos sem eficácia para a população, além da pouca celeridade na aquisição de vacinas.

Sob clima de cetismo generalizado e em meio a um tecido social degradado, tem-se aflorado descrenças nas mais variadas instituições. De acordo com Roque (2020), o fenômeno da pós-verdade aglutina múltiplas crises, entre as quais a perda da confiança na ciência e na política. Logo, contradizer argumentos falsos passou a ter pouca relevância, pois evidências e consensos científicos têm sido contestados com base em convicções ou experiências pessoais. Nesse sentido, para reverter essa situação aprender ciências, aprender sobre ciências e fazer ciências se tornou, hoje, vital.

Partindo desse pressuposto, realizamos uma pesquisa qualitativa (MINAYO, 1994), em que documentos (texto da Base Nacional Comum Curricular - BNCC em suas três versões, bem como parecer e resolução de implantação) foram usados como fontes de informações. Com o intuito de identificar e analisar as intencionalidades formativas preconizadas, utilizamos roteiro de análise textual (BARDIN, 1977), baseado em dois itens estabelecidos a priori, a saber: a) processo de elaboração e aprovação da BNCC; e b) conteúdos da educação em Ciências.

Concordamos com Gimeno Sacristán (2013) quando afirma que currículo é processo e práxis: se constitui pela proposição de um plano ou texto que é público, pelas ações que são empreendidas com o intuito de influenciar o processo de ensino/aprendizagem e pelos efeitos decorrentes nos/as envolvidos/as. Mesmo assim, estamos cientes de que o recorte desta investigação permite examinar apenas uma das dimensões “[da] parte visível do iceberg” (GIMENO SACRISTÁN, 2013, p. 27). Ou seja, focamos na análise do texto da política. Na seção que segue, fazemos uma análise panorâmica da conjuntura atual e seus reflexos na política educacional. Na seção 3, detalhamos o processo de elaboração e aprovação da BNCC, destacando a prática do chamado consenso por filantropia, descrita por Tarlau e Moeller (2020). Na quarta seção, apresentamos nossas análises da BNCC da área de ciências da natureza para os anos finais do ensino fundamental e, ao final, tecemos considerações articulando esses três tópicos.

2 BREVE ANÁLISE DA CONJUNTURA ATUAL E SEUS REFLEXOS NA POLÍTICA EDUCACIONAL

Na presente pandemia, a banalização da morte é evidente. Achille Mbembe (2016), ao defender que o racismo de Estado, estruturante das sociedades contemporâneas (ALMEIDA, 2019), fortalece políticas de morte, cunhou o conceito de necropolítica (MBEMBE, 2016). No Brasil, as políticas de (não)enfrentamento da pandemia são exemplos contundentes: em levantamento feito pela agência Pública, divulgado em maio de 2020, demonstra-se que o número de mortes e hospitalizações de pretos e pardos foram maiores que em brancos2. A situação só agrava um quadro que já era ruim. De acordo com dados do IBGE3, em cinco anos, o número de pessoas no país em situação de insegurança alimentar grave aumentou significativamente. Mais de 40 milhões de brasileiros/as vivem, hoje, na extrema pobreza no Brasil4.

Tais dados permitem a caracterização da Covid-19 como sindemia (SINGER, 1994): uma doença que interage com condições pré-existentes (comorbidades), mas que tem relação com o posicionamento social das pessoas e com os diferentes marcadores sociais da diferença (classe, raça, gênero, localidade, geração etc.).

No que tange à educação, o posicionamento social dos estudantes traz uma série de implicações aos processos de ensino/aprendizagem, especialmente no contexto de isolamento social e de aulas não presenciais. De acordo com dados de reportagem do Nexo Jornal5, que reúne resultados de um conjunto de pesquisas sobre educação no contexto da pandemia, a maioria de estudantes teve/tem acesso a celular para acompanhar as aulas (95%), mas, quando se trata de acesso à internet em banda larga, esse percentual de acesso cai para 59%. Isso sem considerar condições de realização de estudo, ou seja, de existir um computador que seja, de fato, pessoal e com bom funcionamento, além de espaço adequado para estudo e leitura.

Em adição, no cenário pandêmico, a presença física na escola - espaço público por excelência para a socialização de conhecimentos e de práticas de vivência pública (DUSSEL, 2020) - foi inviabilizada, o que fez com que o espaço doméstico se tornasse escolar. Ao mesmo tempo, o domicílio se tornou mais violento (física e psicologicamente), tanto em relação às crianças e adolescentes, quanto a mulheres e idosos6, o que carrega implicações na formação dos/as estudantes.

Em meio a tudo isso, e mesmo que a pandemia continue a assolar nosso país, as escolas retomaram suas atividades, com condições longe daquelas consideradas adequadas pelas normas sanitárias: sem que os profissionais da educação tivessem sido vacinados de forma massiva e que as escolas passassem por adequada preparação para receber estudantes. Cogitou-se, inclusive, que avaliações em larga escala fossem aplicadas à semelhança de anos anteriores. Nesse caso, pode-se citar a fala do então ministro da Educação de que o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) teria que ser realizado, pois: “[o Enem] Não é para atender injustiças sociais, é para selecionar os melhores”7. Na campanha publicitária que circulou em prol da manutenção do exame, foi realizado o seguinte apelo: “Estude, de qualquer lugar, de diferentes formas, pelos livros, internet, com a ajuda a distância dos professores”8.

Para compreender a situação em tela, é preciso resgatar as contribuições das teorias da reprodução que circularam no campo da sociologia da educação a partir da década de 1970. Assim, por mais que reconheçamos que as escolas, potencialmente, sejam espaços em que práticas educativas emancipadoras são realizadas, vislumbrando-se projetos de transformação social, esta possui, como uma instituição social semelhante às demais, faceta ligada à reprodução das relações sociais de produção.

Nesse sentido, concordamos com Souza e Evangelista (2020), quando apontam que dentre um vasto leque de aspectos, a pandemia se constituiu em “oportunidade de negócios” para muitas empresas. Alguns trabalhos como os de Chaves (2010), Marques (2013), Franca (2017) e Seki (2020) já vinham apontando o processo de expansão e a oligopolização do ensino superior privado no Brasil desde a década passada. Com as recentes mudanças no Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), os grandes conglomerados educacionais, com ações na bolsa, passaram a considerar a educação básica como sendo mais resiliente em cenários de crise9. A educação básica, até pouco tempo, foi campo inexplorado, tanto em relação a matrículas, quanto para a venda de materiais didáticos e consultoria pedagógica, conforme mostram os trabalhos de Adrião et al. (2016) e Adrião (2018). Com a pandemia, o mercado sofreu expansão. Segundo afirmação de Daniel Cleffi, diretor do Google for Education na América Latina: “A pandemia do novo coronavírus acelerou uma importante transformação digital para o setor educacional que não deve mais voltar a ter um modelo focado apenas no ensino presencial10. Tal ideia se faz presente, também, em documentos publicados pelo Banco Mundial e pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (BANCO MUNDIAL, 2021; OCDE, 2021). Ainda, segundo dados de Souza e Evangelista (2020), ao menos seis estados brasileiros realizaram parceria com o Google, sendo que aplicativos e plataformas de tecnologia doados aos estados e municípios foram quase que automaticamente aceitos, sem questionamento sobre o uso dos dados de estudantes.

Em adição, as atividades pedagógicas não presenciais - e o consequente ensino híbrido que se quer implementar em um hipotético período de pós-pandemia - teve e tem respaldo em legislações que foram aprovadas antes do cenário pandêmico. Ou seja, a pandemia, na verdade, agudizou um processo anterior, que Freitas (2016) denomina de reforma empresarial da educação. Sob essa égide, há a incorporação paulatina, pelos sistemas educacionais públicos, de ideias como privatização, meritocracia e responsabilização para atendimento de demandas do capital globalizado e neoliberal.

Sobre as medidas que já tinham sido aprovadas e que poderão ser mantidas, pode-se citar as Novas Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio (BRASIL, 2018) que permitem que 20% da carga horária seja feita a distância. Para estudantes de cursos noturnos, a autorização chega a 30% e para a Educação de Jovens e Adultos (EJA) o texto permite até 80%. Assim, a continuidade do ensino não presencial parece já estar decretada antes mesmo de sabermos até quando a pandemia de Covid-19 se estenderá!

Para além da referida Resolução nº 3/2018, outras políticas têm sido aprovadas (sobretudo após 2015) e promovem alinhamento entre processos ensino-aprendizagem-avaliação-formação (RODRIGUES; PEREIRA; MOHR, 2020). Nesse processo, a BNCC tem sido peça central, já que, após a sua aprovação, em 2017 para o ensino fundamental e em 2018 para o ensino médio, todas as demais políticas educacionais têm derivado dessa. Aspectos do processo de elaboração e aprovação da BNCC constituem a próxima seção deste trabalho.

3 SOBRE O PROCESSO DE ELABORAÇÃO E APROVAÇÃO DA BNCC

Quanto à proposição de bases nacionais, com a Lei nº 5.692 de 1971, definiram-se as Diretrizes e Bases para o ensino de 1º e 2º graus. Ali se introduziu, pela primeira vez de maneira explícita na legislação educacional, a ideia de núcleo comum de currículos, obrigatório em todo o território nacional, ao qual deveria ser agregada uma parte diversificada, destinada a atender às peculiaridades locais das escolas e às diferenças dos estudantes (artigo 4).

Já no contexto de abertura democrática, a Constituição de 1988 estabelece, em seu artigo 210, a ideia de uma formação básica comum para a população brasileira: “Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” (BRASIL, 1988). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de 1996 utiliza, em seu texto original, termos como “formação comum” (artigo 22) e “base nacional do currículo” (artigo 38)11 - sendo que o termo “Base Nacional Comum Curricular”12 não é mencionado.

É importante destacar, conforme apontam Ferreti e Silva (2017), que, na época de publicação da LDBEN, pairavam documentos como “Educación y conocimiento: eje de la transformación productiva com equidad”, de 1992, da Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina (Cepal), e o Relatório Delors, de 1996, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Esses materiais reverberavam os preceitos discutidos na Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien, em 1990. Assim sendo, o governo brasileiro, em sintonia com o Consenso de Washington13 e fortalecido politicamente no plano interno, promoveu uma série de reformas, inclusive educacionais.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) foram elaborados e divulgados sob influência do Relatório Delors. Este sugeria que o aprendizado de estudantes deveria ser voltado para a aquisição de competências e habilidades. Essas, por sua vez, deveriam estar de acordo com as “novas demandas do século XXI” e organizadas em pilares como aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser. A relação do relatório com os PCNs é nítida quando vemos sua publicação como livro (Educação: um tesouro a descobrir) no ano de 1998, o mesmo da publicação dos PCNs do ensino fundamental e um ano antes do documento voltado para o ensino médio. Ainda, o livro teve a nota de introdução redigida por Paulo Renato Souza, então ministro da Educação, na qual explicita a importância do documento para se repensar a educação brasileira.

De acordo com Saviani (2013), o “aprender a aprender” dos PCNs busca dotar os indivíduos de comportamentos flexíveis, de maneira que esses se ajustem às condições de uma sociedade em que as próprias necessidades de sobrevivência não são mais plenamente garantidas, haja vista a guinada neoliberal do capitalismo (HARVEY, 2008). A respeito disso, os resultados do estudo de Ricardo e Zylbersztajn (2008) são importantes. Os autores apontam que não há nos PCNs um conceito explícito ou mesmo uma compreensão clara do que se entende por competências e habilidades. Mediante entrevistas com os elaboradores dos PCNs, os autores afirmam que a adoção do discurso das competências ocorreu diante de busca por objetivos educacionais que superassem a transmissão de conteúdos como fim em si, ancorada apenas no acúmulo de informações. Entretanto, chama atenção nas falas dos elaboradores que a proposta já se fazia presente no MEC:

[...] a gente não definiu que a proposta deveria ser Parâmetros Curriculares Nacionais baseados em competências e habilidades. Isso já foi uma proposta do próprio MEC, quer dizer, nem nós tínhamos clareza, nem fomos nós que optamos que a proposta deveria ser através de competências e habilidades (A2) (RICARDO; ZYLBERSZTAJN, 2008, p. 260, grifos nossos).

Da mesma forma, o parecer ligado à aprovação da BNCC (BRASIL, 2017) também aponta que não havia consenso, naquele momento, acerca do estabelecimento de uma base comum nacional: se ela deveria ser mais centrada em conhecimentos disciplinares ou mais centrada em finalidades gerais da educação.

É preciso entender o percurso histórico de elaboração desses documentos. Com os limites do neoliberalismo de terceira via (FERRETI; SILVA, 2017), houve mudanças no quadro político nacional nos anos 2000 e novos documentos curriculares foram propostos. Entre 2002 a 2012 ocorreu a publicação de uma série de Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), sendo a maioria aprovada entre 2009-2012. Alguns trechos das DCNs da educação básica de 2013 expressam que essas visavam garantir uma formação básica comum aos estudantes brasileiros, usando como referência os mesmos marcos legais que, hoje, também são referenciados na justificação da BNCC, conforme podemos identificar no extrato de texto abaixo:

Em que pese, entretanto, a autonomia dada aos vários sistemas, a LDB, no inciso IV do seu artigo 9º, atribui à União estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os municípios, competências e diretrizes para a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum.

[...] Por outro lado, a necessidade de definição de Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica está posta pela emergência da atualização das políticas educacionais que consubstanciem o direito de todo brasileiro à formação humana e cidadã e à formação profissional, na vivência e convivência em ambiente educativo. Têm estas Diretrizes por objetivos: I - sistematizar os princípios e diretrizes gerais da Educação Básica contidos na Constituição, na LDB e demais dispositivos legais, traduzindo-os em orientações que contribuam para assegurar a formação básica comum nacional, tendo como foco os sujeitos que dão vida ao currículo e à escola; [...].

Nesse sentido, as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica visam estabelecer bases comuns nacionais para a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, bem como para as modalidades com que podem se apresentar, a partir das quais os sistemas federal, estaduais, distrital e municipais, por suas competências próprias e complementares, formularão as suas orientações assegurando a integração curricular das três etapas sequentes desse nível da escolarização, essencialmente para compor um todo orgânico (BRASIL, 2013, p. 7-8 grifos nossos).

Assim sendo, se as DCNs de 2013 já estabeleciam “bases comuns nacionais” por que houve a elaboração de uma BNCC?

Entre 2009 e 2012, a Diretoria de Currículos e Educação Integral da Secretaria de Educação Básica do MEC conduziu uma série de discussões para o estabelecimento de uma base para além das diretrizes, por exemplo, a partir do Programa Currículo em Movimento (2009-2010) e do trabalho do GT sobre Direitos à Aprendizagem e ao Desenvolvimento - GT-DiAD (2012-2013). Contudo, o processo, que até aquele momento estava sendo desenvolvido, foi interrompido mediante a formação de uma nova equipe responsável pelos trabalhos14.

De acordo com Tarlau e Moeller (2020), com um poder econômico crescente, a Fundação Lemann elegeu a BNCC como o seu mais importante projeto filantrópico. Nesse sentido, por volta de 2013, essa Fundação organizou um dito movimento nacional denominado Movimento pela Base Nacional Comum. Em seu site, o Movimento se identifica como sendo “um grupo não governamental que, desde 2013, reúne entidades, organizações e pessoas físicas, de diversos setores educacionais, que têm em comum a causa da Base Nacional Comum Curricular”15. Ainda segundo Tarlau e Moeller (2020), a Fundação promoveu o seminário “Liderar reformas educacionais: fortalecer o Brasil para o século XXI”, realizado em abril de 2013, na Universidade Yale, o qual é reconhecido como um marco importante para a criação de uma rede de apoiadores da BNCC no Brasil:

Os participantes do seminário também receberam quatro documentos como anexos ao convite, descritos no email como “um resumo das ações concretas que poderiam ser implementadas pelo grupo no Brasil, sob orientação dos debates no seminário”. Escritos por Susan Pimentel e traduzidos em português para os participantes, os quatro documentos eram relativamente curtos: “About the Standards” (sobre os padrões); “Common Core English Language, History/Social Studies, and Science Intro” (introdução à língua inglesa, à História/Estudos Sociais e à Ciência no Common Core); “Common Core Mathematics Intro” (introdução à Matemática no Common Core); e “The Process” (o processo). A Fundação Lemann pediu a todos os participantes que lessem esses documentos antes do seminário. Entre os convidados, estavam funcionários governamentais, como atuais secretários da Educação nos estados e seus predecessores ou altos funcionários do Ministério da Educação (MEC), e representantes de outras fundações e ONGs. [...] A Fundação Lemann pagou todas as despesas de cada um para participar do seminário (TARLAU; MOELLER, 2020, p. 567, grifos nossos).

Após o referido seminário, de acordo com Tarlau e Moeller (2020), a Fundação Lemann procurou solidificar a ideia da BNCC como objetivo legislativo brasileiro oficial, vislumbrando essa possibilidade no Plano Nacional de Educação (PNE), que seria aprovado no ano seguinte e que determina objetivos educacionais brasileiros para cada década. É no texto do PNE 2014-2024 (Lei nº 13.005 de 2014) que ocorre a primeira menção a uma “base nacional comum dos currículos” para a Educação Básica na legislação, havendo previsão de metas e estratégias específicas (meta 2, com as estratégias 2.1 e 2.2; meta 3, com a estratégia 3.2; e meta 7, com a estratégia 7.1).

Após a vitória legislativa, a Fundação continuou a atuar para promover a ideia da BNCC em diferentes instâncias, já que a mera inclusão do termo em um texto não garantiria a sua implementação. Foi em meados de 2014 que a Secretaria de Educação Básica do MEC publicou um primeiro esboço de padrões curriculares nacionais. Tal documento não define conteúdos disciplinares que devem fazer parte das programações curriculares, mas apresenta grandes componentes sociais e históricos para cada tópico. De acordo com Tarlau e Moeller (2020):

Como se afirma no início do documento, o texto baseou-se em múltiplas conferências e grupos de trabalho organizados entre 2009 e 2014. Beatriz Luce, a secretária de Educação Básica do MEC, viajou por todo o país em 2014 para conversar sobre o documento com diferentes organizações de professores e com entidades da sociedade civil voltadas para a educação. Segundo João, membro executivo do Movimento pela Base e consultor da Fundação Lemann, seus pares ficaram “muito preocupados” quando Luce apresentou o documento em São Paulo: Aquele MEC entendia que esse documento era a primeira versão da Base, mas estava muito longe da expectativa. O nível de detalhe era bem diferente daquilo que a gente tem hoje. Era mais um documento subjetivo, teórico, pouco claro. As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) já tinham feito isso. Como esse novo documento ajudaria? Precisávamos dar uns passos adiante. O Movimento ficou muito preocupado quando a Beatriz nos apresentou esse documento (TARLAU; MOELLER, 2020, p. 570-571, itálico e aspas no original, grifos nossos).

Isto é, o Movimento pela Base, que foi se tornando protagonista do processo, queria um documento que especificasse os conteúdos que os educadores deveriam ensinar. Também, e em conformidade com o acima exposto, no parecer CNE/CP nº 15/2017 (BRASIL 2017), a necessidade de uma BNCC é constituída em decorrência de uma dita “existência de prescrições curriculares demasiadamente amplas”:

[...] o CNE estabeleceu a necessidade de produção de diretrizes para as diversas etapas e modalidades da Educação Básica, que teriam, estas sim, caráter normativo, advindas diretamente de uma disposição legal. O Conselho dedicou-se a esta tarefa durante muitos anos, tendo, direta ou indiretamente, retomado o conceito de base nacional comum [...].

Apesar de estas Resoluções serem mais propositivas sobre o que, de fato, constitui a base nacional comum, suas disposições não são suficientes para orientar os currículos, sob a égide de uma formação básica comum, já que, apesar de indicarem áreas do conhecimento a serem incluídas na base, omitem-se em relação à extensão da presença e a profundidade e detalhes da cobertura de cada área (BRASIL, 2017, p. 5-6, grifos nossos).

Destacamos ainda que quando Manuel Palácios, novo secretário de Educação Básica após as eleições de 2015, foi questionado sobre as origens da ideia da BNCC, afirmou:

Não precisei inventar nada não, já era uma questão na agenda da Secretaria, o tema já estava lá. Numa das primeiras reuniões com o ministro para tratar do assunto, o pessoal da Lemann, por exemplo, já estava lá. Eu acho até que a reunião foi provocada pela Lemann (TARLAU; MOELLER, 2020, p. 571, grifos nossos).

Novamente, é importante notar: a ideia de padrões curriculares mais delimitados “já estava lá”! Aqui, lembramos que, em maio de 2015, ocorreu o Fórum Mundial de Educação16, realizado em Incheon/Coréia do Sul. Este teve o objetivo de estabelecer uma nova visão para a educação para os próximos quinze anos, reforçando o movimento global Educação para Todos, iniciado em Jomtien/Tailândia (1990), da qual o Relatório Delors foi consequência, e que foi reiterado em Dakar/Senegal (2000). Na conferência, houve o reconhecimento de que avanços quanto ao acesso à educação em nível mundial foram atingidos, mas que melhorias ainda eram necessárias.

O Marco de Ação da Educação 2030, resultante da Conferência de Incheon, foi adotado por 184 Estados-membros da Unesco, inclusive o Brasil, em 4 de novembro de 2015. Isso é, a ênfase na obtenção de resultados de aprendizagens efetivos, enquanto projeto educacional mais amplo, que ressoa na BNCC, tem relação com acordos firmados para além do contexto nacional, de tempos presentes e anteriores.

Entre os dias 17 e 19 de junho de 2015, foi realizado o “Seminário Internacional da Educação Básica: conhecimento e currículo” em Brasília. Naquela ocasião, foi publicada a Portaria nº 592, de 17 de junho de 2015 que instituiu uma nova Comissão de Especialistas para a Elaboração de Proposta da Base Nacional Comum Curricular. Essa comissão elaborou a primeira versão da BNCC, desconsiderando trabalhos anteriores, conforme já mencionado. No seminário de 2015, houve a divulgação de supostas experiências exitosas de currículos nacionais de vários países, sendo que casos como os da Austrália, Chile, Estados Unidos e Inglaterra foram muitos referenciados.

Em setembro de 2015, a primeira versão da BNCC foi divulgada e, mesmo sob intensas críticas, as equipes criadas para a formulação da BNCC tiveram certa estabilidade. A estratégia da Fundação Lemann de mobilizar apoio multipartidário via “ampla participação da sociedade civil”, em um conturbado momento político, conforme apontam Tarlau e Moeller (2020), foi exitosa.

Entre os dias 2 e 15 de dezembro de 2015, escolas de todo o Brasil fizeram discussões sobre o documento preliminar da Base e realizaram o envio de suas contribuições em plataforma online de consulta pública. De acordo com Cássio (2017), o MEC anunciou ter recebido mais de 12 milhões de supostas contribuições. Ao analisar os microdados da consulta, o autor evidencia que o número de contribuintes é muito inferior ao divulgado. Além disso, Spinelli Junior e Cássio (2017) apontam que essas colaborações pouco influenciaram a tessitura da segunda versão da Base.

Em 3 de maio de 2016, quando a segunda versão da BNCC foi publicada, a instabilidade política encontrava-se em seu grau máximo. Em 17 de abril, o Congresso aprovou a abertura de um processo para destituir Dilma Rousseff da Presidência da República e, em maio, com o vice-presidente Michel Temer assumiu o cargo. Mendonça Filho foi colocado à frente do ministério da Educação. Incertos de como as mudanças políticas afetariam a BNCC:

[...] o Movimento teve a presença de espírito de agir antes que Dilma saísse do cargo. Assim que o MEC publicou a segunda versão da Base, o ministro Aloízio Mercadante e o secretário de Educação Básica, Manuel Palácios, “entregaram” o documento ao Conselho Nacional de Educação (CNE). O objetivo era tirar a BNCC do controle do MEC e transferir esse controle para o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). Esses conselhos poderiam encarregar-se de organizar seminários em cada estado brasileiro, o que permitiria o encontro de centenas de professores por dois dias para avaliar a segunda versão da BNCC. Esses 27 seminários ocorreram rapidamente, entre junho e agosto de 2016, a despeito de alguns dos maiores abalos na história política do Brasil (TARLAU; MOELLER, 2020, p. 585, grifos nossos).

Consed e Undime, acima mencionados, contam com membros do executivo (secretários estaduais e municipais de educação) e são apoiados por várias instituições privadas, as quais também estão presentes em grupos como o Movimento pela Base e o Todos pela Educação (RODRIGUES; PEREIRA; MOHR, 2020).

Com a deflagração do golpe, uma série de medidas foram aprovadas (AGUIAR, 2019). Com a Portaria nº 790, de 27 de julho de 2016, o MEC dividiu a elaboração da BNCC, buscando a formação de uma base para a educação infantil e o ensino fundamental e outra para o ensino médio. Isso se deu frente à suposta urgência de aprovação da MP 746, mesmo que assim fosse provocado o rompimento da noção de integralidade da educação básica, vigente desde a LDBEN de 1996 (AGUIAR, 2018). Tarlau e Moeller (2020) informam que o acordo do governo com o Consed era discutir a reforma do ensino médio depois de aprovada a BNCC. Diante disso, os seminários estaduais foram finalizados, sendo que Consed e Undime ficaram encarregados de sintetizar todas as sugestões em um único documento público, que foi entregue ao MEC em setembro de 2016:

Além da consulta a professores brasileiros nos seminários, a Fundação Lemann também contratou mais de 20 tradutores para colocar esse documento em inglês e enviou a tradução para especialistas em currículo na Austrália, já citados aqui, e nos Estados Unidos -tudo a toque de caixa, em pouco mais de 15 dias. Os especialistas consultados fora do país também enviaram rapidamente seus comentários, que foram traduzidos para o português.

Depois disso, a secretária executiva do MEC, Maria Helena Guimarães de Castro, indicou uma pequena equipe de especialistas para escrever a terceira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) -a versão final. O governo limitou deliberadamente o número de pessoas envolvidas, de forma a escrever “um documento mais claro, mais coerente” [...] (TARLAU; MOELLER, 2020, p. 590, aspas no original).

Em abril de 2017, quase um ano depois dos seminários estaduais, o MEC publicou uma terceira versão da BNCC. Entre junho e setembro de 2017, o CNE promoveu cinco seminários regionais para supostamente colher opiniões sobre essa terceira versão. Contudo, esses encontros foram apenas consultivos e serviram meramente de elo com a sociedade civil, com a finalidade de tentar conferir legitimidade política ao processo.

No dia 15 de dezembro de 2017, foram votados, em sessão pública do CNE, o parecer e a resolução referentes à BNCC da educação infantil e ensino fundamental, sendo que no dia 20 desse mesmo mês a Base foi homologada. A Figura 1 localiza temporalmente o processo descrito.

Fonte: Elaboração das autoras (2021).

Figura 1 Processo de elaboração da BNCC para o ensino fundamental 

Pelo exposto nesta seção, reconhecemos a BNCC como sendo uma prescrição curricular que deu continuidade a um projeto educacional que vinha sendo construído, sobretudo, desde os anos 1990 nos âmbitos nacional e internacional. O texto da BNCC a apresenta como:

Referência nacional para a formulação dos currículos dos sistemas e das redes escolares dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e das propostas pedagógicas das instituições escolares, a BNCC integra a política nacional da Educação Básica e vai contribuir para o alinhamento de outras políticas e ações, em âmbito federal, estadual e municipal, referentes à formação de professores, à avaliação, à elaboração de conteúdos educacionais e aos critérios para a oferta de infraestrutura adequada para o pleno desenvolvimento da educação (BRASIL, 2018, p. 8, grifos nossos).

Sob nosso ponto de vista, o que este documento faz, na verdade, é retomar e padronizar competências e habilidades que devem ser aprendidas por estudantes, as quais são relacionadas com a adequação das intencionalidades formativas da escola às demandas do mercado de trabalho em um contexto neoliberal. Afirmamos isso, pois há no texto da BNCC argumentos como:

[...] no novo cenário mundial, reconhecer-se em seu contexto histórico e cultural, comunicar-se, ser criativo, analítico-crítico, participativo, aberto ao novo, colaborativo, resiliente, produtivo e responsável requer muito mais que o acúmulo de informações (BRASIL, 2018, p. 14).

Nesse paralelo convergente entre BNCC e PCN, julgamos que a primeira é muito mais normativa e engessa sobremaneira tanto aspectos internos de seu conteúdo - expressos em uma miríade de itens alfanuméricos, quanto externos - na sua ligação com outras políticas educacionais de material didático, formação de professores e avaliações em larga escala, por exemplo.

Importante também é notar que se pode identificar na BNCC, diferente do que ocorreu com os PCNs, a prática do consenso por filantropia, tanto na elaboração quanto na aprovação da prescrição curricular, a qual, segundo Tarlau e Moeller (2020), refere-se ao uso de recursos materiais, conhecimento, mídia, tanto por redes formais quanto informais, por parte de fundações privadas. Destarte, essas instituições acabam por ocupar cadeiras nos debates mais importantes e, mediante argumentos supostamente técnicos (por elas produzidos, revisados e publicados), vêm estabelecendo consensos entre os membros do alto escalão do poder executivo acerca de que políticas públicas devem ser adotadas. Tal prática de consenso por filantropia, afirmam as autoras, faz parte do movimento de lideranças corporativas/fundações privadas não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. Isso faz com que o setor público se assemelhe ao setor privado, o que tem sido levado a cabo não só por conta do grande poder econômico dessas instituições, mas também em função de cortes sistemáticos de recursos na esfera pública.

4 SOBRE A BNCC DE CIÊNCIAS

Conforme mencionado anteriormente, houve cisões nos processos de elaboração das versões da BNCC, sobretudo da primeira e a segunda versões para a terceira (AGUIAR, 2019). Quanto às perspectivas formativas para a educação em Ciências, na primeira versão do documento, lia-se que:

O ensino de Ciências da Natureza tem compromisso com uma formação que prepare o sujeito para interagir e atuar em ambientes diversos, considerando uma dimensão planetária, uma formação que possa promover a compreensão sobre o conhecimento científico pertinente em diferentes tempos, espaços e sentidos; a alfabetização e o letramento científicos; a compreensão de como a ciência se constituiu historicamente e a quem ela se destina; a compreensão de questões culturais, sociais, éticas e ambientais, associadas ao uso dos recursos naturais e à utilização do conhecimento científico e das tecnologias (BRASIL, 2015, p. 149).

Em relação à dimensão estrutural, nessa primeira versão, sugerem-se quatro eixos estruturantes: “conhecimento conceitual”, “contextualização histórica, social e cultural”, “processos e práticas de investigação” e “linguagens”. Também, há proposta de organização do componente curricular por unidades de conhecimento denominadas “materiais, substâncias e processos”, “ambiente, recursos e responsabilidades”, “bem-estar e saúde”, “terra - constituição e movimento”, “vida - constituição e reprodução” e “sentidos - percepções e interações”.

Na segunda versão, afirma-se que:

O ensino de Ciências, como parte de um processo contínuo de contextualização histórica, social e cultural, dá sentido aos conhecimentos para que os/as estudantes compreendam, expliquem e intervenham no mundo em que vivem, estabelecendo relações entre os conhecimentos científicos e a sociedade, reconhecendo fatores que podem influenciar as transformações de uma dada realidade (BRASIL, 2016, p. 137).

Nesse documento, manteve-se a estrutura geral da primeira versão, mas são especificados eixos de formação que se articulam em cada etapa: “letramentos e capacidade de aprender”, “leitura do mundo natural e social”, “ética e pensamento crítico” e “solidariedade e sociabilidade”. Para esses eixos, são identificados objetivos gerais de formação, além de temas especiais: “economia, educação financeira e sustentabilidade”, “culturas indígenas e africanas”, “culturas digitais e computação”, “direitos humanos e cidadania” e “educação ambiental”.

Na versão final do documento, para a educação em Ciências, propõem-se que:

Nessa perspectiva, a área de Ciências da Natureza, por meio de um olhar articulado de diversos campos do saber, precisa assegurar aos alunos do Ensino Fundamental o acesso à diversidade de conhecimentos científicos produzidos ao longo da história, bem como a aproximação gradativa aos principais processos, práticas e procedimentos da investigação científica (BRASIL, 2018, p. 321).

Diferentemente do que estava presente nas primeiras versões do documento - que passaram por algum processo de consultas e debate públicos (mesmo que problemáticos) - há forte ênfase da versão final da proposta no letramento científico e na proposição de atividades investigativas para os estudantes. Essas devem ser realizadas de acordo com as seguintes etapas: “definição de problemas”, “levantamento, análise e representação”, “comunicação” e “intervenção”, conforme exemplifica a figura 2:

Fonte: Brasil, 2018a.

Figura 2 Proposta de organização de atividades investigativas de acordo com a BNCC 

Na figura, é possível identificar a realização de processos tanto indutivos (sobretudo no momento de definição de problemas e levantamento, análise e representação) quanto dedutivos (principalmente no momento de comunicação) por parte dos estudantes. Ora, tais procedimentos remetem a uma ultrapassada e errônea identificação da abordagem das ciências naturais na escola com aquelas utilizadas em seus campos de origem. Além disso, a própria visão de ciência expressa na BNCC é de uma extemporaneidade assustadora.

Cupani (1985) afirma que o positivismo reconhece a ciência como sendo composta por um conjunto de conhecimentos objetivos, explicativos e prospectivos, ainda que provisórios, no qual as hipóteses explicativas do cientista passariam por um processo de teste bastante rígido e sequencial, a partir, sobretudo, de observação e/ou de experimentação, em que as hipóteses, se comprovadas, poderiam contribuir para a elaboração de leis e, se possível, teorias. Esses processos são permeados por comunicação intersubjetiva entre os membros da comunidade científica. Analisando as etapas dos processos investigativos da BNCC, reconhecemos que ideias positivistas, já difundidas no passado do ensino de Ciências (KRASILCHICK, 1987), permeiam o que se pretende ensinar na disciplina, em detrimento do reconhecimento de que “a ciência é tanto uma atividade (aquilo que os cientistas fazem), quanto um corpo de conhecimentos (aquilo que os cientistas sabem)” (MAYR, 2008, p. 48). Ou seja, deixa-se de reconhecer aquilo que o campo da filosofia da ciência já sabe há mais de 80 anos: que a ciência apresenta aspectos que são internos, de cunho teórico-conceitual e prático-metodológico, quanto externos, como a influência de aspectos sociais, culturais, religiosos, políticos, entre outros (MOURA, 2014) e que esses podem gerar influências mútuas.

São oito as competências específicas elencadas para o componente Ciências para o ensino fundamental. Como forma de atendimento dessas, propõem-se três unidades temáticas recorrentes e 73 objetos de conhecimento específicos em cada ano, conforme o quadro a seguir:

Quadro 1 Unidades temáticas e objetos de conhecimento para o componente curricular de Ciências 

UNIDADE TEMÁTICA OBJETOS DE CONHECIMENTO Anos iniciais
1º ano 2º ano 3º ano 4º ano 5º ano
Matéria e Energia • Características dos materiais • Propriedades e usos dos materiais
• Prevenção de acidentes domésticos
• Produção de som
• Efeitos da luz e nos materiais
• Saúde auditiva e visual
• Misturas
• Transformações reversíveis e não reversíveis
• Propriedades físicas dos materiais
• Ciclo hidrológico
• Consumo consciente
• Reciclagem
Vida e evolução • Corpo humano
• Respeito à diversidade
• Seres vivos no ambiente
• Plantas
• Características e desenvolvimento dos animais • Cadeias alimentares simples
• Micro-organismos
• Nutrição do organismo
• Hábitos alimentares
• Integração entre os sistemas digestório, respiratório e circulatório
Terra e universo • Escalas de tempo • Movimento aparente do Sol no céu
• O Sol como fonte de luz e calor
• Características da Terra
• Observação do céu
• Usos do solo
• Pontos cardeais
• Calendários, fenômenos cíclicos e cultura
• Constelações e mapas celestes
• Movimento de rotação da Terra
• Periodicidade das fases da Lua
• Instrumentos óticos
UNIDADE TEMÁTICA OBJETOS DE CONHECIMENTO Anos finais
6º ano 7º ano 8º ano 9º ano
Matéria e Energia • Misturas homogêneas e heterogêneas
• Separação de misturas
• Materiais Sintéticos
• Transformações Químicas
• Máquinas simples
• Formas de propagação do calor
• Equilíbrio termodinâmico e vida na Terra
• História dos combustíveis e das máquinas térmicas
• Fontes e tipos de energia
• Transformação de energia
• Cálculo de consumo de energia elétrica
• Circuitos elétricos
• Uso consciente de energia elétrica
• Aspectos quantitativos das transformações químicas
• Estrutura da matéria
• Radiações e suas aplicações na saúde
UNIDADE TEMÁTICA OBJETOS DE CONHECIMENTO Anos iniciais
1º ano 2º ano 3º ano 4º ano 5º ano
Vida e evolução • Célula como unidade da vida
• Interação entre os sistemas locomotor e nervoso
• Lentes corretivas
• Diversidade de ecossistemas
• Fenômenos naturais e impactos ambientais
• Programas e indicadores de saúde pública
• Mecanismos reprodutivos
• Sexualidade
• Hereditariedade
• Ideias evolucionistas
• Preservação da biodiversidade
Terra e universo • Forma, estrutura e movimentos da Terra
• Composição do ar
• Efeito estufa
• Camada de ozônio
• Fenômenos naturais (vulcões, terremotos e tsunamis)
• Placas tectônicas e deriva continental
• Sistema Sol, Terra e Lua
• Clima
• Composição, estrutura e localização do Sistema Solar no Universo
• Astronomia e cultura
• Vida humana fora da Terra
• Ordem de grandeza astronômica
• Evolução estelar

Fonte: Elaboração das autoras (2021).

Em relação ao número de objetos por unidade temática, Matéria e Energia, com conteúdos mais relacionados à física e à química, tem 27/73 objetos, o que corresponde a 38% do total. A unidade Vida e Evolução, com conteúdos da biologia, tem 23/73 objetos e 31% de representação. A unidade Terra e Universo, que abarca questões de geociências, possui 23/73 objetos e 31% de presença. A unidade Vida e Evolução tem mais objetos nos anos iniciais, enquanto nos anos finais predominam objetos da unidade Matéria e Energia.

Reconhecemos que na BNCC existem objetos de conhecimento ligados à física e à química desde o 1º ano do ensino fundamental. Esse novo formato difere do que geralmente está presente em programações curriculares e livros didáticos de Ciências. Até aqui, via de regra, conteúdos de biologia, química, física e geociências ocorrem de forma apartada uns dos outros, cada grupo restrito a um ano específico e desarticulado dos demais. Por isso, a presença da unidade temática Vida e Evolução, ao longo de todos os anos da educação básica, pode representar um avanço se a evolução biológica começar a ser tratada, de fato, como eixo central da estruturação dos conhecimentos biológicos durante a escolarização. Porém, o exame da estrutura interna da BNCC mostra graves problemas.

Podemos caracterizar, a partir de uma análise panorâmica e geral, a presença dos conteúdos na Base como um currículo do tipo em espiral. Entretanto, tais como propostos na BNCC, os conteúdos de Ciências acarretam ainda mais fragmentação em comparação com o que é proposto hoje para ser ensinado, já que muitos objetos de conhecimento não são articulados e retomados. Por exemplo, os sistemas orgânicos do corpo humano que são, hoje, tradicionalmente, ensinados no 7º ano, estão indicados para o 1º, 6º e 7º anos. Ainda, conteúdos relacionados com temas de botânica e de zoologia são previstos para serem estudados apenas no 2º e 3º anos, o que pode dificultar o estudo de questões socioambientais.

Sobre as últimas, apesar de cinco competências específicas da área de Ciências - 2, 3, 4, 5 e 8 - enfocarem questões socioambientais, há certo isolamento das habilidades propostas para tal através dos anos do ensino fundamental. Por exemplo, no 6º ano apenas a habilidade EF06CI04 cita questões socioambientais de um total de catorze propostas; no 7º ano, a habilidade EF07CI05 é apenas uma dentre dezesseis e o mesmo ocorre com a habilidade EF08CI06 do 8º ano. Ainda, todas essas habilidades estão localizadas na unidade temática Matéria e Energia e não há indicação para habilidades nos eixos de Vida e Evolução e Terra e Universo. Dentre as habilidades mencionadas para o 9º ano, duas são bastante interessantes, uma vez que provocam a atuação coletivas para a resolução de problemáticas ambientais (EF08CI05 e EF09CI13), mas são as únicas no conjunto da prescrição curricular. No Quadro 2, apresentamos o detalhamento das habilidades aqui referenciadas.

Quadro 2 Habilidades relacionadas com questões socioambientais 

Código Descrição
EF06CI04 Associar a produção de medicamentos e outros materiais sintéticos ao desenvolvimento científico e tecnológico, reconhecendo benefícios e avaliando impactos socioambientais.
EF07CI05 Discutir o uso de diferentes tipos de combustível e máquinas térmicas ao longo do tempo, para avaliar avanços, questões econômicas e problemas socioambientais causados pela produção e uso desses materiais e máquinas.
EF08CI06 Discutir e avaliar usinas de geração de energia elétrica (termelétricas, hidrelétricas, eólicas etc.), suas semelhanças e diferenças, seus impactos socioambientais, e como essa energia chega e é usada em sua cidade, comunidade, casa ou escola.
EF08CI05 Propor ações coletivas para otimizar o uso de energia elétrica em sua escola e/ou comunidade, com base na seleção de equipamentos segundo critérios de sustentabilidade (consumo de energia e eficiência energética) e hábitos de consumo responsável.
EF09CI13 Propor iniciativas individuais e coletivas para a solução de problemas ambientais da cidade ou da comunidade, com base na análise de ações de consumo consciente e de sustentabilidade bem-sucedidas.

Fonte: Brasil, 2018a.

Quanto às questões ligadas à Educação em Saúde, a competência específica 7 trata do tema. Apesar de identificarmos cinco habilidades que podem ser abarcadas nesse contexto, três delas (EF01CI03, EF03CI03, EF05CI08) enfatizam a promoção de “hábitos saudáveis”, o que promove um anacrônico prescricionismo e uma normatividade inconveniente ao processo educativo escolar (VENTURI; MOHR, 2021). Duas habilidades (EF07CI09 e EF07CI10), previstas para o 7º ano, têm relação com saúde pública, mas são as únicas. Pode-se observar, portanto, descontinuidade entre os objetos, assim como sua ampliação sucessiva sem existência de alicerce sólido. O detalhamento das habilidades aqui referenciadas está presente no Quadro 3.

Quadro 3 Habilidades relacionadas com Educação em Saúde 

Código Descrição
EF01CI03 Discutir as razões pelas quais os hábitos de higiene do corpo (lavar as mãos antes de comer, escovar os dentes, limpar os olhos, o nariz e as orelhas etc.) são necessários para a manutenção da saúde.
EF03CI03 Discutir hábitos necessários para a manutenção da saúde auditiva e visual considerando as condições do ambiente em termos de som e luz.
EF05CI08 Organizar um cardápio equilibrado com base nas características dos grupos alimentares (nutrientes e calorias) e nas necessidades individuais (atividades realizadas, idade, sexo etc.) para a manutenção da saúde do organismo.
EF07CI09 Interpretar as condições de saúde da comunidade, cidade ou estado, com base na análise e comparação de indicadores de saúde (como taxa de mortalidade infantil, cobertura de saneamento básico e incidência de doenças de veiculação hídrica, atmosférica entre outras) e dos resultados de políticas públicas destinadas à saúde.
EF07CI10 Argumentar sobre a importância da vacinação para a saúde pública, com base em informações sobre a maneira como a vacina atua no organismo e o papel histórico da vacinação para a manutenção da saúde individual e coletiva e para a erradicação de doenças.

Fonte: Brasil, 2018a.

Observamos que as habilidades sugeridas, de forma mais ampla, restringem-se à compreensão e resolução de problemas cotidianos dos/as estudantes. Questões ligadas a aspectos históricos, filosóficos e sociológicos da ciência pouco transparecem, diferentemente do que preconiza a competência específica 1. Nesse sentido, a crítica de Silva (2008) deve ser relembrada, uma vez que, na pedagogia das competências, a experiência formativa passa a ser reduzida à aplicação de soluções imediatas, o que impede que o conhecimento seja objeto de experiência e reflexão críticas. Saviani (2013) adiciona que tal pedagogia pode ser compreendida, também, como da exclusão:

Trata-se de preparar os indivíduos para, mediante sucessivos cursos dos mais diferentes tipos, se tornarem cada vez mais empregáveis, visando a escapar da condição de excluídos. E, caso não o consigam, a pedagogia da exclusão lhes terá ensinado a introjetar a responsabilidade por essa condição. Com efeito, além do emprego formal, acena-se com a possibilidade de sua transformação em microempresário, com a informalidade, o trabalho por conta própria, isto é, sua conversão em empresário de si mesmo, o trabalho voluntário, terceirizado, subsumido em organizações não governamentais, etc. Portanto, se diante de toda essa gama de possibilidades ele não atinge a desejada inclusão, isso se deve apenas a ele próprio, a suas limitações incontornáveis. Eis o que ensina a pedagogia da exclusão (SAVIANI, 2013, p. 431).

A análise da lista de 111 habilidades permite, ainda, a identificação de grande ênfase no “saber fazer” por parte dos estudantes, de modo que o verbo mais utilizado no texto é “identificar”, conforme ilustra a nuvem de verbos presentes nas habilidades da BNCC, a seguir:

Fonte: Elaboração das autoras (2021).

Figura 3 Verbos presentes nas habilidades da BNCC 

Ainda sobre os verbos, em material de trabalho da comissão de elaboração da BNCC, identificamos a influência da Taxonomia de Bloom, a qual foi criada em 1956 e propõe uma classificação de aprendizado em níveis de complexidade e especificidade:

No que concerne à alteração da demanda cognitiva das habilidades, segunda estratégia adotada para garantir a progressão de aprendizagem, tomou-se, como referência de análise, a taxionomia modificada de Bloom, já referida no Relatório Consed e Undime e no Relatório Movimento Pela Base (BRASIL, s.d., grifos nossos).

Também, reconhecemos ser necessário contradizer o argumento dos propositores da política que alardeiam que a BNCC não é currículo: “a definição da BNCC deve se dar no sentido de que não se trata de estabelecer um currículo único nacional, o que precisa ser sublinhado” (BRASIL, 2017, p. 8), ou, ainda, que “Quanto ao caráter da BNCC, é necessário enfatizar que ela não é um currículo e, portanto, não é suficiente para abrigar e dar concretude às muitas dimensões nele envolvidas [...]” (BRASIL, 2017, p. 26). O que constatamos é que ela o será diante de sua grande extensão. Como vimos, só para o componente de Ciências do ensino fundamental há a proposição de desenvolvimento de 111 habilidades!

A análise realizada no componente curricular Ciências da natureza da BNCC permite, portanto, constatar que perspectivas curriculares tecnicistas do passado (SAVIANI, 2013) são usadas como base para a Base. Percebemos isso a partir da ênfase em atividades investigativas, que dominaram o ensino de Ciências nas décadas de 1960 e 1970, e também na “renovação” da programação curricular: há, por exemplo, a inclusão, desde o 1º ano do ensino fundamental, de objetos de conhecimento ligados aos campos da física, química e geociências. Entendemos que este último aspecto se dá em função da crescente influência do movimento da STEM education (sigla do inglês que pode ser traduzida para “Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática”) no mundo e, agora, no Brasil.

Para Pugliese (2020) a STEM education é mais uma suposta “proposta inovadora” para o ensino de Ciências que busca o rompimento com o ensino tradicional passivo de modo a promover uma formação em acordo com as demandas do século XXI. Para o autor, a origem do movimento tem relação com a intenção de despertar mais interesse nos jovens por carreiras STEM e caracteriza-se como uma proposta contemporânea baseada em currículo multidisciplinar que integra quatro áreas. Para Pugliese, a STEM education pode ser incorporada nos sistemas educacionais de diferentes formas. No Brasil, o movimento ainda é pouco expressivo, mas:

É preciso notar que em qualquer uma das frentes, os discursos pró-STEM vêm quase que invariavelmente associando-o como um “modelo de sucesso” nos EUA. No caso das organizações não governamentais, elas têm trabalhado politicamente para que programas STEM cheguem até a escola pública. É perceptível o respaldo, financiamento e operacionalização feitos por meio de doações de empresas estadunidenses ou multinacionais para que essas organizações se tornem referência STEM. No caso das empresas educacionais e das escolas privadas, ocorre o mesmo não no sentido do financiamento para programas STEM, mas sim de que o modelo estadunidense de STEM education é apresentado como argumento para sustentar e orientar os programas STEM nas escolas privadas (PUGLIESE, 2020, p. 217).

Isto é, a STEM que está presente na BNCC amplia a influência de orientações curriculares externas em nosso país, assim como promove “atualizações” na programação curricular da disciplina escolar de Ciências de maneira a buscar a qualificação dos/as estudantes por meio de competências e habilidades alinhadas com demandas do século XXI. Elas atendem, conforme explicitado anteriormente, demandas de mercado.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tudo deve mudar para que tudo fique como está.

O Leopardo - Giuseppe di Lampedusa

Iniciamos esta seção retomando uma frase que compõe o título deste trabalho. Fazemos isso pois, com esta investigação, constatamos que a BNCC traz elementos retóricos que podem parecer interessantes sob um primeiro olhar: defesa de uma formação crítica e reflexiva para a cidadania, ou mesmo de um aprendizado de ciências que possa contribuir para se pensar o mundo e construir uma sociedade justa, democrática e inclusiva, em que não exista preconceito.

Contudo, tais conceitos, metas e ideais são esvaziados de significados, uma vez que, muito polissêmicos, carecem no texto de qualquer desenvolvimento ou aprofundamento teórico-conceitual. Dessa forma, abre-se margem para que sejam compreendidos em múltiplos sentidos, de acordo com a inclinação do leitor. O fenômeno é potencializado pela junção de (pseudo/anacrônicos) fundamentos como a pedagogia de competências e a taxonomia de Bloom presentes na BNCC. Infelizmente, há, também, no texto analisado para o componente curricular Ciências uma valorização de processos indutivos para a produção de conhecimentos, assim como de procedimentos previamente fixados, aspectos esses que têm um cunho positivista no modo de relação com o conhecimento científico, perspectiva considerada ultrapassada na pesquisa na área de Educação em Ciências.

Além disso, o alinhamento de políticas de ensino-aprendizagem-formação-avaliação vai de encontro a pressupostos democráticos e republicanos presentes nas versões originais da Constituição Federal e na LDBEN (RODRIGUES; PEREIRA; MOHR, 2020). Essa nova política educacional, dentre outros problemas, engendra uma responsabilização exagerada do professor em relação aos resultados de aprendizagem dos estudantes, a qual é medida via testes e avaliações padronizados em avaliações de larga escala. Também, cria a compreensão e condições para que o trabalho docente seja cada vez mais precarizado, entendido como sendo simples e passível de ser controlado e padronizado. Precisamos, assim, cerrar as fileiras de resistência e, coletivamente, fazer com que esses novos/velhos currículos recentemente prescritos não sejam implementados.

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 8 de outubro de 2021.

4 Mais informações em: https://www.dieese.org.br/boletimdeconjuntura/2021/boletimconjuntura29.html. Acesso em 8 out. 2021.

8 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=apufjiGlIY0. Acesso em 8 out. 2021.

9 Segundo informações presentes no site institucional da Kroton, em 2018, ocorreu a associação entre Kroton e Somos, que atua no mercado de educação básica com escolas próprias, cursos pré-vestibulares e idiomas, além de sistemas de ensino e livros (é dona das editoras Ática, Scipione e Saraiva, do Anglo, da escola de inglês Red Ballon, entre outros negócios). Já em 2019, a Kroton mudou de formato de operação. Antes, a empresa tinha dois grandes "braços", um para a Educação Superior e outro para Educação Básica. Com a mudança, ela passou a ter quatro divisões que formaram, cada qual, uma nova empresa e, administrativamente, criou-se a Cogna Educação, empresa responsável por gerir e tomar as decisões comuns ao grupo. De acordo com informações presentes no site institucional da Cogna Educação, essa é uma companhia brasileira, considerada como uma das principais organizações educacionais do mundo, e que ela é “Formada pelas instituições Kroton, Platos, Saber e Vasta Educação/Somos Educação, a holding oferece soluções e serviços tanto para o segmento B2B como para o B2C.”

11 O termo “base nacional comum curricular” (art. 26, 35-A, 36,44 e 62) foi introduzido no texto da LDBEN mediante redação dada pela Lei nº 13.415 de 2017.

12 Segundo Rodrigues, Pereira e Mohr (2018), a redação original da LDBEN (Lei nº 9.394, 1996) mencionava apenas o termo base nacional comum. A primeira menção a uma “base nacional comum dos currículos” ocorreu apenas em 2014 no PNE (Lei 13.005, 2014, p. 115), sendo que foi em 2017, a partir da Lei n. 13.415 (denominada como “Reforma do Ensino Médio”), que houve alteração na LDBEN, após mais de duas décadas de sua promulgação, para menção do termo “Base Nacional Comum Curricular”, em sentido prescritivo. Ou seja, mesmo que no passado se mencionasse a ideia de base, não travava, necessariamente, das bases curriculares que têm sido elaboradas e aprovadas.

13 Conforme Silva (2015), em novembro de 1989, "os governos conservadores, diretores executivos e representantes das instituições financeiras internacionais, ministros da Fazenda, presidentes de bancos centrais e representantes dos governos das economias em desenvolvimento reuniram-se em Washington, a fim de procederem a uma avaliação da economia dos países tomadores de empréstimos, que apresentavam resultados insuficientes segundo lógica de acumulação de capitais" (p. 2005, p. 156). Durante a reunião, defendeu-se a realização de reformas estruturais, de aplicação de um plano de estabilização econômica e ratificou-se a proposta neoliberal como condição de realização de empréstimos aos países periféricos. Para expressar as convicções acertadas, John Williamson elaborou um documento que ficou conhecido como Consenso de Washington. A autora afirma que o governo brasileiro tornou-se sujeito ativo na implementação de políticas sociais de corte neoliberal, alterando a Constituição Federal de 1988 por meio de emendas e leis infraconstitucionais, além ocorrer a publicação de medidas provisórias. Nesse sentido, Silva afirma que para subscrever acordos internacionais com Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, exigiu-se que o governo, no nível interno, instituísse preceitos jurídicos e normativos que reconfigurassem a ordem econômica e social do país.

15 Mais informações em: http://movimentopelabase.org.br/quem-somos/. Acesso em 8 out. 2021.

16 O Fórum foi organizado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Banco Mundial, Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), ONU Mulheres e Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).

Recebido: 08 de Outubro de 2021; Aceito: 09 de Novembro de 2021

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