SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.19 issue4A look at Quilombola School Education proposals in Brazil based on state curriculum referencesThe dialogue in the Science curriculum of the Municipality of São Paulo in different administrations: author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.19 no.4 São Paulo Oct./Dec 2021  Epub Apr 12, 2022

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2021v19i4p1748-1768 

Artigos

Questões epistemológicas no campo da didática:entre encantamentos, esquecimentos e insurgências

Epistemological issues in the field of didactic:between enchantments, forgetfulness and insurgencies

Cuestiones epistemológicas en el ámbito de la enseñanza:entre encantamientos, olvidos e insurgências

i Doutor em Educação pela Rutgers University (New Jersey, United States - US). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: streckdr@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-7410-3174.


Resumo

Este texto tem por objetivo identificar e discutir nuances da relação entre epistemologia e didática com atenção especial para continuidades e rupturas evidenciadas nas últimas décadas. A primeira parte do texto analisa o estatuto epistemológico da didática a partir da Didática Magna de Comenius. Segue-se uma reflexão sobre momentos na formação do autor deste texto como exemplo da historicidade das didáticas e das epistemologias que as orientam. O terceiro tópico identifica lugares de resistências epistemológicas na América Latina. Na tentativa de síntese, são apontados caminhos para a construção epistemológica na didática: o cultivo de uma atitude de humildade e vigilância; o reconhecimento da historicidade e da contextualidade das epistemologias; e a necessidade de assunção de autoria epistêmica. A conclusão aponta perspectivas de continuidade do diálogo sobre o tema.

Palavras-chave: Epistemologia; Didática; Insurgências; Educação popular; (De)colonialidade

Abstract

The text aims to identify and discuss nuances in the relationship between epistemology and didactics with special attention to continuities and ruptures evidenced in the last decades. The first part of the text analyzes the epistemological status of didactics based on Comenius’ “Didactica Magna”. Then, a reflection on moments in the formation of the author of this text follows, as an example of the historicity of didactics and the epistemologies that guide them. The third topic identifies places of epistemological resistance in Latin America. In the attempt to synthesize, paths for the epistemological construction in didactics are pointed out: the cultivation of an attitude of humility and vigilance; the recognition of the historicity and contextuality of epistemologies; and the need for the assumption of epistemic authorship. The conclusion identifies perspectives for the continuity of the dialogue on the theme.

Keywords: Epistemology; Didactic; Insurgencies; Popular education; (De)coloniality

Resumen

El texto tiene como objetivo identificar y discutir matices de la relación entre epistemología y didáctica con especial atención a las continuidades y rupturas evidenciadas en las últimas décadas. La primera parte del texto analiza el estatuto epistemológico de la didáctica con base en la “Didáctica Magna” de Comenius. Continúa una reflexión sobre momentos de la formación del autor de este texto, como ejemplo de la historicidad de las didácticas y de las epistemologías que las orientan. El tercer tópico identifica lugares de resistencias epistemológicas en América Latina. En el intento de sintetizar, son señalados caminos para la construcción epistemológica en la didáctica: el cultivo de una actitud de humildad y vigilancia, el reconocimiento de la historicidad y de la contextualización de las epistemologías, y la necesidad de asumir la autoría epistémica. La conclusión apunta a perspectivas de continuidad del diálogo sobre el tema.

Palabras clave: Epistemología; Didáctica; Insurgencias; Educación popular; (Des)colonialidad

1 INTRODUÇÃO

“Questões epistemológicas no campo da didática” foi o tema proposto para o painel integrador do XX Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, no qual a reflexão contida neste texto fez parte1. O painel, por seu turno, estava inserido na temática geral do Encontro: “Fazeres-saberes pedagógicos: diálogos, insurgências e políticas”. Os substantivos do subtítulo do presente texto - encantamentos, esquecimentos e insurgências - procuram corresponder à sugestão de que se trata de buscar conexões e interlocuções, e de identificar rupturas nas práticas e nas reflexões sobre essas práticas pedagógicas, bem como a sua expressão na institucionalidade que lhe dá sustentação.

O texto inicia com uma aproximação geral entre epistemologia e didática, uma relação complexa e multifacetada, a começar pela pergunta sobre o lugar epistemológico da didática. É ela uma ciência no sentido estrito do termo? Seria uma arte? Ou algum outro tipo de saber teórico-prático? Visito a obra clássica de João Amós Comenius sobre a didática, a qual contém elementos que nos desafiam a continuar buscando respostas que ora se complementam, ora se distanciam ou se contrapõem, evidenciando a historicidade e a contextualidade das práticas educativas, respectivamente, do significado que lhes é atribuído.

A reflexão sobre o tema me levou a rememorar momentos de minha formação como professor, que, ao longo de mais de cinco décadas de magistério, aprendeu com várias tendências e teorias didáticas. Possivelmente, colegas educadores e educadoras que passaram pelas mesmas experiências ou por experiências semelhantes seguiram outros caminhos em suas práticas, o que apenas revela a trama de fatores que fazem parte da formação. Dado o espaço limitado deste ensaio, as aprendizagens podem apenas ser anunciadas, mas espero que sirvam ao leitor e à leitora como estímulo para a reflexão sobre a sua experiência formativa como educadores e educadoras, a qual, obviamente, não se restringe aos aprendizados em aulas de didática ou de pedagogia. Educamo-nos continuamente nas práticas e contamos com as teorias para uma melhor compreensão dessas práticas e eventuais revisões.

No terceiro tópico, identifico resistências e insurgências na história do pensamento pedagógico latino-americano. Os atuais estudos sobre (de)colonialidade reforçam a crítica de como o transplante de pedagogias e suas respectivas epistemologias não conseguiram favorecer “saberes-fazeres pedagógicos” contextualizados. Em meio às resistências, há, também, muita criatividade e tentativas de promover uma educação que dê conta de superar as heranças coloniais que se revelam desde o uso predatório da natureza até a perpetuação das desigualdades sociais. Procuro exemplificar como essas insurgências estão presentes na história da educação latino-americana, embora pouco referidas nos currículos de formação dos profissionais da educação.

Na seção seguinte, trato de sistematizar alguns ensinamentos a partir desse processo reflexivo. Destaco a necessidade de cultivar uma atitude de humildade e de vigilância diante da multiplicidade de “óculos” para ler o mundo. Faz-se necessário, ao mesmo tempo, questionar as pretensões de universalidade das epistemologias, reconhecendo a sua historicidade e contextualidade. Trazendo a discussão para o âmbito da docência, enfatizo, ainda, a importância de o professor e a professora assumirem a autoria epistêmica, o que coloca algumas exigências, entre as quais o desenvolvimento da reflexividade sobre a própria prática.

Na conclusão, aponto como o caminho escolhido para essa reflexão evidencia possibilidades, mas sobretudo lacunas. Cada experiência referida deixa para trás outras tantas que, às vezes, de maneira diferente e contraditória, foram igualmente importantes para compor a relação entre epistemologia e didática. Na sombra de cada autor referido, há diversos outros, em especial mulheres que reclamam o seu espaço. Trata-se, enfim, de um convite para novas descobertas e construções, que serão mais prazerosas e profícuas se realizadas em diálogo.

2 EPISTEMOLOGIA E DIDÁTICA: QUE RELAÇÃO É ESSA?

O fato de a prática pedagógica implicar sempre uma dimensão epistemológica exige algumas considerações preliminares. Comecemos pelo próprio estatuto epistemológico da didática. Ela seria uma arte? Uma ciência? Algum outro tipo de “fazer-saber” que se situa à margem dos postulados epistemológicos clássicos? Comenius, na “Saudação aos leitores” da Didática Magna, situa o dilema que, de certa forma, parece perdurar no campo da didática: “Didáctica significa arte de ensinar. Acerca desta arte, desde há pouco tempo, alguns homens eminentes, tocados de piedade pelos alunos condenados a rebolar o rochedo de Sísifo, puseram-se a fazer investigações, com resultados diferentes” (COMÉNIO, 1957, p. 45).

A primeira identificação da didática é como arte de ensinar. Derivam-se de arte os substantivos artista, artesão/artesania e artífice. O primeiro, o artista, parece fugir a qualquer parâmetro formativo e pedagógico comum e costuma ser associado ao talento (inato), à inspiração e à criatividade. O artesão, por sua vez, é alguém que desenvolve habilidades - geralmente manuais - que expressam sua originalidade e sua criatividade. Já o conceito de “artesania” tem sido usado na formação de professores para expressar a inventividade inerente à aprendizagem e ao exercício do ofício de ensinar (ZUCHETTI; MOURA; MENEZES, 2014). A relação entre mestre e aprendiz, no sentido aristotélico de práxis (EIKELAND, 2007), é caracterizada pela combinação de uma profunda densidade humana e competência profissional, o que faz com que o aprendiz “de repente” se transforme em mestre. Como dito por Guimarães Rosa: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende” (ROSA, 1967, p. 235). Não existe uma fórmula “cientificamente comprovada” para produzir o mestre.

Entretanto, Comenius também aponta para a didática como um conhecimento com pretensões científicas. Ele fala dos homens eminentes que se dedicaram a aliviar a carga imposta a crianças e jovens para aprender e, ainda assim, esses sujeitos aprendiam pouco. Ele destaca a motivação para dedicar-se a esse estudo: no contexto de cristandade, esses homens eram movidos pela piedade porque a educação fazia parte de um plano de salvação de cunho religioso. Ele não descarta as observações empíricas, referindo-se a “[...] algumas observações externas recolhidas com o método mais fácil, ou seja, com o método prático, isto é, a posteriori, como lhe chamam” (COMÉNIO, 1957, p. 46). Ao mesmo tempo, ele “ousa” projetar uma didática mais abrangente derivando-a, a priori, da própria natureza. Assim se constituiria uma “arte das artes” que, segundo ele, consiste em “[...] formar o homem, o qual é o mais versátil e o mais complexo de todos os animais” (COMÉNIO, 1957, p. 47). Esse, por seu turno, é um “[...] trabalho sério e exige perspicácia e juízo, e não apenas de um só homem, mas de muitos pois um só não pode estar tão atento que lhe não passem desapercebidas muitíssimas coisas” (COMÉNIO, 1957, p. 47).

Há, nas páginas iniciais da Didáctica Magna, uma agenda que permanece válida para a didática. A primeira delas diz respeito à motivação para se dedicar a esse trabalho. No lugar da piedade religiosa alegada por Comenius, competem, hoje, motivações do mundo secularizado, tais como valores republicanos e de cidadania, a justiça socioambiental e o sucesso no mercado de trabalho. Cada uma dessas motivações traz, também, enfoques epistemológicos distintos, desde como se encara a produção do conhecimento e o seu manejo na prática educativa, até a escolha de conhecimentos a serem ensinados. Coménio (1957) lembra-nos que o que rege a didática e suas opções epistemológicas são visões de mundo, de ser humano e de sociedade.

A Didáctica Magna aponta, ainda, para outra dimensão epistemológica fundamental: trata-se de um trabalho de muitos2. Mesmo antes da constituição de várias disciplinas que hoje (in)formam o campo da didática, Comenius apontava o seu caráter interdisciplinar ou transdisciplinar. A didática, hoje, é articulada com várias disciplinas que se complementam, mas que também disputam a primazia da perspectiva epistemológica. Por exemplo, ora vemos a Filosofia, ora a Psicologia e ora a Biologia ou as Ciências da Computação tomando a dianteira na definição da perspectiva epistemológica.

Rousseau, outra referência clássica da didática, também nos lembra que “[...] nosso verdadeiro estudo é o da condição humana” (ROUSSEAU, 1995, p. 14). E o conhecimento dessa condição sempre é incompleto. Em suas palavras: “[...] que eu saiba, nenhum filósofo até agora foi suficientemente ousado para dizer: eis o termo aonde o homem pode chegar e que não seria capaz de ultrapassar. Ignoramos o que a nossa natureza nos permite ser; nenhum de nós mediu a distância que pode haver entre um homem e outro homem” (ROUSSEAU, 1995, p. 45). Igual a Comenius, Rousseau refere-se à educação como uma arte, uma vez que o sucesso, além de imprevisível, é praticamente impossível, visto que o único dos três mestres sobre os quais teríamos algum controle, o próprio homem, é, também, passível de enganos. Quanto aos outros dois mestres, a natureza não depende de nós e as coisas dependem só parcialmente. Todavia, igual à Didática Magna de Comenius, todo o Emílio é um esforço de apresentar uma narrativa sistemática e consistente, com base em observação empírica sobre a formação do cidadão para o contrato social.

Além da identidade epistemológica do campo, ainda pode ser acrescentado o caráter multifacetado da didática. As respectivas áreas de ensino têm especificidades epistemológicas que se transferem para a prática educativa. Uma professora de Literatura terá uma fundamentação teórico-epistemológica que possivelmente diferencia sua concepção de aprendizagem daquela da professora de Matemática ou de Educação Artística. Libâneo (2016) reforça a complementariedade do geral e do particular na didática:

[...] a didática não pode formular seu objeto de estudo sem a consideração dos conteúdos e métodos das ciências a serem ensinadas, assim como as didáticas específicas não podem cumprir sua tarefa na formação de professores sem os princípios de aprendizagem e ensino comuns a todas as disciplinas (LIBÂNEO, 2016, p. 354).

De não menor complexidade é o tema da epistemologia. Tornaram-se comuns expressões como “ecologia de saberes” e “epistemologias do sul” (SANTOS, 2000), “desobediência epistêmica” e “pensamento de fronteira” (MIGNOLO, 2010), “diálogo de saberes” (TORRES CARRILLO, 2007). Além disso, temos viradas de várias naturezas indicando perspectivas de conhecer o nosso mundo: virada linguística, virada pragmática, entre outras. Essa diversidade de nomenclaturas indica a busca de alternativas para as formulações clássicas que parecem não dar conta das mudanças em curso na sociedade e que exigem novas aproximações do conhecimento. Mudanças paradigmáticas ou mudanças de época, como a que estamos vivendo, possivelmente reclamam uma atenção especial às questões epistemológicas. Isso se deve ao fato, como apontado por Boaventura de Sousa Santos (1996, p. 77), de que “[...] todas as transições são simultaneamente semicegas e semi-invisíveis”, o que torna difícil nomear, adequadamente, a realidade vivida.

Em resumo, didática e epistemologia formam uma unidade dinâmica em movimento. Na seção que segue, mesclo aprendizagens em aulas de didática, práticas pedagógicas, com leituras que passaram a fazer parte de minha biografia como educador, forjada ao longo de mais de cinco décadas. Sugiro, com isso, implicitamente, que existem muitas outras experiências e tipos de formação que não tenho a pretensão de inventariar. Isso implicaria uma pesquisa empírica e bibliográfica que está muito além do alcance deste texto. São exemplificações da historicidade e da situacionalidade que caracterizam a didática e suas respectivas epistemologias.

3 ENTRE ENCANTAMENTOS E ESQUECIMENTOS

A preocupação manifestada em Comenius por criar uma didática apropriada para o seu tempo é retomada com palavras semelhantes por Hugo Assmann, na última década do século passado, quando ele sugere que se faz necessário um esforço para reencantar a educação e que, para isso, estariam disponíveis novos conhecimentos (ASSMANN, 1996). São quatro longos séculos de história moderna povoados por homens e mulheres que pensaram a educação com perspectivas epistemológicas que ora se aproximam e ora se distanciam ou se contrapõem: de Locke a Herbart, de Rousseau a Pestalozzi, de Fröbel a Montessori, de Condorcet a John Dewey, de Simón Rodríguez a Paulo Freire. Restrinjo-me, aqui, a um exercício de identificar algumas perspectivas epistemológicas que pautaram a educação em momentos da última metade do século passado, e que, em grande parte, acabaram no esquecimento. Recorro, para isso, a alguns exemplos de minha trajetória como professor.

Nos anos 1960, no curso normal3, aprendi a fazer planos de aula que lembram muito os passos clássicos Herbart, para quem o ensino se daria por meio de cinco passos: preparação (conexões com o tema anterior), apresentação, assimilação (ou associação/comparação), generalização (ou sistematização) e aplicação (GADOTTI, 2001). É uma perspectiva epistemológica que, mediante o encadeamento de ideias, vai conduzindo o aluno do concreto ao abstrato e, por fim, à aplicação. Um caderno com planos de aula de 1968 da estagiária em uma escola do interior do Estado do Rio Grande do Sul4 traz o que talvez fosse um típico plano de aula daquele tempo. O plano é organizado em torno de três perguntas: O quê? Para quê? Como? A primeira pergunta identifica o conteúdo; a segunda, os objetivos, divididos em formativos e informativos; e a terceira, os momentos que deveriam orientar a execução da aula: motivação (geralmente relacionada ao tema anterior), desenvolvimento, fixação e verificação (por exemplo, no caso de aula sobre medidas, medir o tamanho da sala ou de seu quarto).

Havia, no entanto, uma interessante movimentação pedagógica que anunciava mudanças. As ideias da Escola Nova chegavam no curso especialmente por meio de Afro de Amaral Fontoura, uma referência fundamental na didática da época (MACIEL; VIEIRA; SOUZA, 2012). A “Escola Viva”, segundo ele, deveria ser, também, um lugar de experimentação, uma escola ativa. Há mais de três décadas, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, já propunha que a passividade da escola tradicional deveria dar lugar à “atividade espontânea, alegre e fecunda” e que a escola deveria ser um “organismo vivo”, “uma comunidade palpitante” para enfrentar e resolver problemas (AZEVEDO et al., 1984, p. 416).

O clima de efervescência didática da época pode ser aquilatado na multiplicidade de “métodos ou sistemas de instrução” sobre os quais os inquiridores de Paulo Freire, no dia 1 de junho de 1964, haviam se informado. Eles citam “Dalton, Montessori, Decroly, Kilpatrik, Iena Peterson, Cousinet, sintético, analítico-sintético, Alfredina, Vespertina e Laubach” (ARAÚJO FREIRE, 2006, p. 184). É interessante ler esses nomes em um inquérito de polícia na cidade do Recife; ainda mais, ver a preocupação dos policiais em saber se, além de conhecer esses métodos, Paulo Freire estava ciente de seu “ponto de vista doutrinário”. Conforme os jornais da época, Paulo Freire já estivera no Rio Grande do Sul para coordenar a implantação dos círculos de cultura e difundir o método de alfabetização desenvolvido por ele e sua equipe, embora não fosse mencionado nas aulas5.

Na faculdade, no final da década de 1960 e início da década de 1970, a didática estava fortemente influenciada pela teoria comportamental de B. F. Skinner (1971). Aprender era associado à mudança de comportamento, o que, na sala de aula, se traduzia em ensino programado, no qual a recompensa pelo acerto era o reforço do comportamento. Os objetivos tinham de ser operacionais e o resultado definido com o maior detalhamento possível. Na aula X, o aluno terá que ter aprendido Y. Se um pombo é capaz de, com os devidos estímulos, aprender a tocar piano, por que não esperar que alunos incorporem novos repertórios ou mudem o seu comportamento? Carl Rogers (1977) surge como um contraponto a Skinner: há, segundo ele, uma tendência inata, uma tendência do próprio organismo para o crescimento e cabia ao professor facilitar a aprendizagem6.

Nos tempos de repressão, Lauro de Oliveira Lima (1921-2013), que também teve seus direitos políticos cassados pela ditadura militar, desempenhou um papel importante por unir a psicologia genética de Jean Piaget com princípios democratizantes na educação. No livro Tecnologia, educação e democracia, publicado em 1965, portanto um ano depois do golpe civil militar, ele denuncia a falácia daqueles que pregam uma educação aparentemente neutra: “De súbito, educação adquire uma conotação política que surpreende os próprios educadores. Esclarecer torna-se sinônimo de rebelião e estimular a participação afigura-se atentado ao direito de propriedade” (LIMA, 1965, p. 64). Educar, continua ele, jamais pode ser outra coisa que não seja ajudar cada pessoa a assumir o seu destino7.

Pelas margens da institucionalidade controlada pela ditadura no Brasil, penetra Paulo Freire com o clássico Pedagogia do oprimido, publicado no Brasil em 1970, e forma-se uma corrente pedagógica alinhada ao pensamento crítico caracterizada como educação popular (MEJÍA; AWAD, 2001). Perguntava-se, inicialmente, se essa pedagogia libertadora poderia ser “utilizada” na escola, uma vez que, além de questionar a tradicional educação bancária denunciada por Freire, ela aposta na educação como uma ação transformadora da realidade. O fato de Paulo Freire assumir o cargo de Secretário de Educação do Município de São Paulo (1989-1991), com a intenção expressa de “mudar a cara da escola” transformando-a em “centros de criatividade”, deixa claro que não há lugar prefixado para a educação popular (FREIRE, 1991).

Com a liderança de Esther Grossi, fortalece-se, principalmente no Sul do Brasil, o construtivismo piagetiano e pós-piagetiano (GROSSI; BORDIN, 1993), associado a uma grande e variada gama de autores, colocando o aluno como protagonista da aprendizagem. As pedagogias culturais, de cunho pós-estruturalista, desafiaram a conjugar a pedagogia e suas epistemologias no plural (VEIGA-NETO, 1995). As neurociências combinadas com os desenvolvimentos da informática, a conexão entre cérebro humano e tecnologias digitais exploram os limites da capacidade de adaptação e da criatividade humana (ASSMANN, 1996).

Essas são algumas tendências pedagógico-epistemológicas abrangentes que, dependendo do contexto político, direcionaram e continuam direcionando as práticas educativas. Elas apresentam rupturas e trazem novas metáforas que encantam, mas que, não raro, são substituídas pelas seguintes, entre campos epistemológicos diferentes ou dentro do mesmo campo. Fica-se à espera de eventual nova perspectiva epistemológica redentora. A pergunta é se haveria, na América Latina, sinais de insurgência epistemológica e, se houver, onde estariam? Essa questão será abordada no próximo tópico.

4 RESISTÊNCIAS E INSURGÊNCIAS

Um breve olhar para a constituição da pedagogia latino-americana permite-nos afirmar que essa insurgência está presente como movimento de resistência e de inventividade que encontra abrigo no que se conhece como educação popular (STRECK; ESTEBAN, 2013). Trata-se de um campo pedagógico para o qual confluem práticas e reflexões que brotam de lutas concretas por dignidade e por transformação, desde a luta por reconhecimento dos povos originários até os atuais movimentos pelo direito à terra e à moradia.

Cito, a seguir, alguns exemplos de uma vasta gama de insurgências esquecidas que se originam do trabalho que o grupo de pesquisa “Mediações pedagógicas e cidadania” realiza há algum tempo sobre as fontes do pensamento pedagógico latino-americano8. Um deles é Simón Rodríguez (2006), que se opunha à cópia da forma de pensar dos colonizadores, o que inclusive se manifestava na grafia do texto. Referindo-se à obediência cega ao Papa, ele afirma que esta converte “[...] milhões de almas em outras tantas ESTÁTUAS DE SAL” (RODRÍGUEZ, 2006, p. 54). Em outra passagem, quando trata da relação com os governantes, lemos: “Los Pueblos no han sido Monárquicos, sino Colonos, es dicir, que jamás pensaron en gobiernos, sino en mantenerse y obedecer” (RODRÍGUEZ, 2006, p. 185). Entretanto, ele também é propositivo em relação a como deveria ser esse pensamento: “Los conocimientos se dividen em teóricos y prácticos; y la teórica no es sino el conjunto de preceptos dados por su experiência consumada - teórica sin práctica es pura fantasia” (RODRÍGUEZ, 2006, p. 181). Em resumo, “sigamos imitando y errando” (RODRÍGUEZ, 2006, p. 202). Essa frase, de certa forma, identifica o caráter das insurgências que atravessam o lado esquecido da história da educação latino-americana.

José Martí, de modo semelhante a Simón Rodríguez, junta o “americanismo sadio”9 a um cosmopolitanismo crítico. Basta, para exemplificar, referir dois textos de sua autoria. Um deles é o artigo seminal Nuestra América, no qual lemos uma crítica contundente às universidades de seu tempo:

Como hão de sair das universidades os governantes se não há universidade na América na qual se ensine os rudimentos da arte de governar, que é a análise dos elementos peculiares dos povos da América? Os jovens saem pelo mundo a adivinhar, com óculos ianques ou franceses, e aspiram a dirigir um povo que não conhecem (MARTÍ, 2007, p. 52).

Opondo-se ao que poderia ser visto como uma xenofobia epistemológica, ele diz: “Enxerte-se em nossas repúblicas o mundo, porém o tronco há de ser o de nossas repúblicas. E cale-se o pedante vencido, porque não há pátria em que o homem possa ter mais orgulho do que em nossas doloridas repúblicas americanas” (MARTÍ, 2007, p. 53). O que são os óculos se não as perspectivas epistemológicas para ler o mundo? Sendo acessórios necessários para ver, José Martí provoca-nos a pensar sobre o tipo de óculos adequado, sua procedência e o que permite enxergar ou o que fica oculto à visão.

Além disso, seu ideal de universidade ultrapassa os tradicionais muros das instituições acadêmicas, como quando descreve a experiência educativa de Chantanqua, no Estado de Nova Iorque. Reproduzo, a seguir, uma passagem de sua bela descrição que representa uma experiência de democratização do conhecimento:

Cozinhando, ensina a cozinhar. Andando, ensina a andar. Retratando, ensina a retratar. Ensina a assar batatas e a medir as ondas da luz. É a escola livre de Chantanqua, que no verão abre suas alamedas, seu tempo de filosofia, suas cátedras ambulantes. [...]. Não há ali matrícula além da vontade, nem lista além do afã de saber, nem obrigação além da boa criação. É a universidade do povo, aberta no seio da natureza (MARTÍ, 2007, p. 111).

Um dos lugares epistemológicos no qual, historicamente, a resistência vira insurgência é entre os povos originários e afro-descentes. Jacqueline Caniguan, mapuche, mulher, poeta, professora de castelhano, linguista e dirigente territorial Lafquenchese, reconhece a linguagem como um lugar de resistência e de identidade que deve ser fortalecido. Não menosprezando a luta pela terra e pelas demandas econômicas, ela enfatiza a importância da cultura imaterial. O idioma de um povo é seu veículo para a vida. Ela pergunta: “Em quantas comunidades a organização social é o centro da conversação, o lugar onde as pessoas aprendem desde têxteis e cerâmica até liderança e direitos coletivos?” (RIVERA, 2019, p. 42). Uma pesquisadora canadense, Vanessa Andreotti10, relatava como, para um dos povos originários do Canadá, a educação é igual à saúde. O que aconteceria se substituíssemos a ideia de sucesso individual, que caracteriza nossa educação, por saúde em seu sentido amplo?

O projeto da Educação Escolar Quilombola exemplifica outro lugar em que resistência e insurgência se fundem não apenas para a preservação de uma identidade, mas para a manutenção de dimensões epistêmicas profundamente embebidas na vivência e na cultura de um povo. Nas palavras de Georgina Helena Lima Nunes, é um projeto “[...] dinâmico, reinventado, desafiador e provocativo de novas experiências de conhecimento pautado em possibilidades de contraposição a ordens vigentes e proposições de outras conformações societárias” (NUNES, 2019, p. 155).

Cabe mencionar a contribuição dos estudos sobre (des)colonialidade para desconstruir uma perspectiva epistemológica supostamente universal eurocêntrica que deixa de reconhecer a diversidade de formas de conceber e de lidar com o conhecimento (WALSH, 2013, 2017). São inúmeras as práticas espalhadas pelo subcontinente latino-americano que vivenciam suas insurgências epistemológicas como parte do movimento da sociedade em busca de justiça, de reconhecimento e de solidariedade.

5 CAMINHOS PARA A CONSTRUÇÃO EPISTEMOLÓGICA NA DIDÁTICA

Esse breve passeio por algumas perspectivas teórico-epistemológicas entre encantamentos, encobrimentos, diálogos, resistências e insurgências permite derivar alguns ensinamentos quanto às questões epistemológicas e sua relação com a didática. São caminhos para a construção de uma perspectiva epistemológica que considero necessária para o atual fazer pedagógico, uma perspectiva que seja, ao mesmo tempo, aberta a incorporar novas dimensões sem abdicar da radicalidade ético-política expressa pelo ser mais de Paulo Freire, pelo sumak kawsay dos povos andinos, pelo jopoi (solidariedade radical) dos povos guarani, pelo ubuntu sul-africano, entre outros.

5.1 Cultivar uma atitude de humildade e de vigilância

A variedade de perspectivas epistemológicas, no mesmo tempo histórico e em tempos diferentes, remete ao fato de que a busca do conhecimento e da maneira certa de conhecer exige humildade e vigilância. Não é por acaso que dois mitos de criação colocam o conhecimento como fundantes para as suas narrativas. Na história judaico-cristã relatada na Bíblia, a árvore do conhecimento do bem e do mal produz um fruto que é proibido aos humanos. A sagaz serpente, em Gênesis - capítulo 3, que convence Eva que, por sua vez, convence Adão de provar o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, leva, a nada menos, que a sua expulsão do paraíso, com todas as consequências (BÍBLIA SAGRADA, 1988). Sem entrar no mérito das muitas exegeses a que esse texto se presta, destaco apenas a mensagem aos humanos de que onisciência e onipotência não são para nós. Em vez de ler a história como uma ameaça para quem busca o conhecimento, prefiro ver nela uma lição sobre os limites, mesmo que jamais definíveis, da capacidade humana de compreender a si e a seu mundo.

Também no Popul Vuh, o livro sagrado dos maias, os deuses, após criarem homem e mulher a partir do milho, percebem que eles têm o desejo de saber o que apenas estaria reservado aos deuses. Assim, os criadores combinam entre si: “Refrenemos um poco sus deseos, pues no está bien lo que vemos. Por ventura se han de igualar ellos a nosotros, sus autores, que podemos abarcar grandes distancias, que lo sabemos e vemos todo?” (RECINOS, 2007, p. 127). Por precaução, lançam uma espécie de névoa que lhes impede de ver longe e com clareza. Um véu que - como fez com Descartes,11 o qual achava ter identificado a maneira de ver clara e distintamente - continua desafiando a todos nós, humanos.

Pesquisas sobre o cérebro e sobre a capacidade da mente humana para tomar decisão confirmam a advertência dos deuses. Depois de analisar ilusões a que os sentidos nos conduzem, neurocientistas comentam: “Em primeiro lugar devemos nos despedir de uma assunção bem quista, embora nem sempre formulada explicitamente, ou seja, que nossos olhos, ouvidos e nariz fornecem informações suficientes e unívocas sobre nosso ambiente” (BORST; GROTHE, 2011, p. 53). Daí a necessidade de sermos humildes diante das perspectivas epistemológicas emergentes, estarmos abertos para eventuais novos ângulos de apreensão de um fenômeno, objeto ou ideia. Ao mesmo tempo, advertem para cultivarmos uma atitude de vigilância para não adotarmos algum tipo de “fundamentalismo” epistemológico.

De maneira semelhante, Gerd Gigerenzer, pesquisador do Marx Planck Institute for Human Develpment, em Berlim, alerta para o fato de que parte considerável de nossa atividade mental, respectivamente de nossas decisões, é inconsciente, baseando-se em pressentimentos e intuições. “Mais informações, e até mesmo mais raciocínio, nem sempre é melhor, e menos pode ser mais” (GIGERENZER, 2009, p. 14). Isso não significa que informações não sejam importantes para tomar boas decisões, mas que além delas aceitemos um “grau benéfico da ignorância” e aprendamos a confiar nas intuições, as quais o pesquisador identifica como aptidões evolutivas construídas por gerações que nos antecederam.

5.2 Reconhecer a pluralidade e a contextualidade das epistemologias

Essa breve reflexão também sugere uma atenção para o tipo ou para a abrangência das mudanças epistemológicas. O que identificamos como insurgências se situam dentro de um âmbito ético-político emancipatório, reconhecendo a pluralidade e a contextualidade das epistemologias. Critica-se, assim, o eurocentrismo epistemológico como superior, se não o único. No caso da América Latina, aponto alguns lugares dessas resistências e insurgências.

No campo da educação popular, o estudo de Alejandro Moreno Olmedo mostra que o conhecimento popular se movimenta dentro de outra episteme, de “[...] outro modo geral de conhecer” (MORENO OLMEDO, 1993, p. 45). Ele analisa que tanto o pensamento moderno quanto o pós-moderno se movimentam dentro de uma episteme do “sujeito-indivíduo”, enquanto entre as classes populares teríamos uma “episteme da relação”. Esse caráter relacional, dialógico e intersubjetivo é uma das características da educação popular que tem em Paulo Freire uma de suas referências básicas.

A partir disso, também se aponta para a pluralidade de racionalidades. Acostumamo-nos a ver a racionalidade científico-técnica como maneira única e universal de conhecer. Ela coloca o ser humano como medida de todas as coisas e se apoia no primado da razão e do progresso técnico-científico. Mario Peresson (1994) destaca duas outras racionalidades fortemente presentes na cultura popular. Uma delas é a racionalidade simbólica que ele descreve como uma “[...] sensibilidade diferente frente ao real: uma sintonia, quase de simbiose cósmica, com a natureza, uma forte vivência da solidariedade humana [...], um grande sentido da integralidade da vida que inclui o corpo, o espírito, a criação e a história, o passado, o presente e o futuro [...]” (PERESSON, 1994, p. 118). O símbolo, segundo ele, e-voca e revela uma realidade para além do signo sensível; realiza o que significa, na medida em que se põe em relação com a realidade evocada; pro-voca porque leva a tomar posição diante da realidade evocada; e con-voca porque é uma linguagem capaz de promover a comunhão ao tocar a experiência dos outros (PERESSON, 1994, p. 121).

A ruptura epistemológica apontada por Peresson faz destaque ainda para o que ele denomina “racionalidade sapiencial”. Trata-se de um “saber radical” que é “[...] a capacidade de desvelar o horizonte de sentido e de felicidade presente no coração de todo ser humano” (PERESSON, 1994 p. 124). Ele aponta algumas características de uma leitura sapiencial: ajudar a intus-legere, isto é, ler o profundo das coisas e desde dentro da própria experiência; levar a uma militância positiva que nasce da paz e da consciência de justiça; ter como horizonte uma cultura de solidariedade, de esperança e de alegria.

5.3 Assumir a autoria epistêmica

Dentro desse quadro, cabe ao professor e à professora assumirem-se como autores e autoras diante das alternativas epistemológicas disponíveis. Para isso, são necessárias algumas condições, das quais destaco duas das mais pertinentes à discussão anteriormente proposta.

Em primeiro lugar, cabe termos consciência de que, do ponto de vista pessoal e profissional, a formação é um processo permanente. O nosso inacabamento enquanto humanos diz respeito também à formação profissional. O testemunho de Paulo Freire, em relação ao ser gente, pode ser traduzido também para o ser profissional: “Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo, inequívoco. Irrevogável que sou ou serei decente, que testemunharei sempre gestos puros. [...]. Gosto de ser homem, ser gente, porque sei que minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida” (FREIRE, 1996, p. 58). Ser professor e professora implica o reconhecimento dessa mesma consciência de inconclusão não apenas em termos de conhecimentos técnicos da área, mas da própria maneira de estar sendo docente.

Uma segunda condição é tomarmos a própria prática como ponto de partida e como ponto de chegada da reflexão crítica. O “saber da experiência feito” precisa passar pela “[...] rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade metodológica do sujeito” (FREIRE, 1996, p. 43). É uma reflexividade aprendida que abrange várias dimensões: a) o contexto social, cultural e político no qual se desenvolve a prática; b) as competências e as capacidades pessoais e interpessoais mobilizadas para a realização da prática; c) a compreensão dos sujeitos envolvidos na prática e sua participação na criação de conhecimentos a partir dessa prática. Devido a isso, a reflexão sobre a prática será tanto mais completa quanto mais amplo for o potencial de teorização, o que, por sua vez, exige estudos na própria área e áreas afins. Para isso, é importante construir o seu próprio cânone, quer dizer, um conjunto de autores e de autoras que servirão como referência. Além de autores e de autoras que sustentam a sua linha de argumentação, é importante incluir vozes dissonantes, e não esquecer os clássicos da área, em especial os esquecidos da América Latina.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O exercício a que me propus na escrita deste texto se revelou mais desafiador do que poderia imaginar ao iniciá-lo. A reflexão sobre a prática e sobre as próprias aprendizagens revela nuances que se escondem nas dobras do cotidiano com as suas exigências. Cada uma das partes deste ensaio se apresenta, agora, como a ponta de um gigantesco iceberg que instiga a curiosidade e traz novas descobertas. São muitos conhecimentos tácitos dispostos a sair das sombras em busca de explicitação.

Comenius foi tomado como ponto de partida para a discussão sobre didática e epistemologia. Não deveria estar ao lado dele o Ratio Studiorum dos jesuítas, o empirismo de John Locke ou a espiritualidade de Pestalozzi? As reflexões sobre minha formação profissional estão concentradas em alguns anos de educação formal. Não deveriam constar os encontros de formação com educadoras e educadores com suas ricas experiências? E não deveria ter constado Ivan Illich, William Glaser ou Louis Althusser com suas críticas à escola? Entre as insurgências, não deveria ter sido destacado o papel de mulheres como Sor Juana Inés de la Cruz ou Nísia Floresta? Os caminhos para a construção epistemológica não deixam de lado questões essenciais; então como estabelecer a relação entre as epistemologias e as respectivas ontologias e cosmologias?

As lacunas tornadas evidentes ao longo do texto revelam, como afirmado na introdução, que a relação entre epistemologia e didática é ampla e multifacetada porque ela remete, diretamente, à prática educativa, a qual, quando questionada e problematizada, revela sua incomensurabilidade. Nela se mesclam memórias do passado com projeções do futuro, lições da educação formal com experiências da escola da vida. Em vista disso, com alguma dose de sorte e inspiração, trazendo de volta Guimarães Rosa, quem sabe nos tornemos mestres, aqueles que, de repente, aprendem para ensinar melhor.

REFERÊNCIAS

ANDREOLA, Balduíno A.; PAULO, Fernanda dos Santos. Cronologia: presença de Paulo Freire no Rio Grande do Sul. In: MORETTI, Cheron Zanini; STRECK, Danilo Romeu; PITANO, Sandro de Castro (Orgs.). Paulo Freire no Rio Grande do Sul: legado e reinvenção. Caxias do Sul: EDUCS, 2018. p. 277-281. [ Links ]

ARAÚJO FREIRE, Ana Maria. Paulo Freire: uma história de vida. Indaiatuba: Villa das Letras, 2006. [ Links ]

ASSMANN, Hugo. Metáforas novas para encantar a educação: epistemologia e didática. Piracicaba: Unimep, 1996. [ Links ]

AZEVEDO, Fernando de et al. O manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 65, n. 150, p. 407-425, maio/ago. 1984. Disponível em: Disponível em: https://download.inep.gov.br/download/70Anos/Manifesto_dos_Pioneiros_Educacao_Nova.pdf . Acesso em: 1 dez. 2021. [ Links ]

BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1988. [ Links ]

BORST, Alexander; GROTHE, Benedict. Die Welt in Kopf: Das Gehirn und die Sinne. In: BONHOEFFER, Tobias; GRUSS, Peter. Zukunft Gehirn. München: C. H. Beck, 2011. 37-58. [ Links ]

COMÉNIO, João Amós. Didáctica Magna. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1957. [ Links ]

DESCARTES, René. Philosophical writings. New York: The Modern Library, 1958. [ Links ]

EIKELAND, Olav. Why should mainstream social researchers be interested in action research? International Journal of Action Research, Mering, v. 3, n. 1+2, p. 38-64, 2007. Disponível em Disponível em https://www.researchgate.net/publication/23779758_Why_Should_Mainstream_Social_Researchers_Be_Interested_in_Action_Research . Acesso em: 1 dez. 2021. [ Links ]

FREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. [ Links ]

GADOTTI, Moacir. História das ideias pedagógicas. 8. ed. São Paulo: Ática, 2001. [ Links ]

GIGERENZER, Gerd. O poder da intuição: O inconsciente dita as melhores decisões. Rio de Janeiro: BestSeller, 2009. [ Links ]

GROSSI, Esther Pillar; BORDIN, Jussara. Construtivismo pós-piagetiano: um novo paradigma sobre aprendizagem. Petrópolis: Vozes, 1993. [ Links ]

LIBÂNEO, José Carlos. A teoria do ensino para o desenvolvimento humano e o planejamento de ensino. Educativa, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 353-387, maio/ago. 2016. Disponível em: Disponível em: http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/educativa/article/view/5391 . Acesso em: 1 dez. 2021. [ Links ]

LIMA, Lauro de Oliveira Lima. Tecnologia, Educação e Democracia. Em Apêndice: Método Paulo Freire. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. [ Links ]

MACIEL, Lizete Shizue Bomura; VIEIRA, Renata de Almeida; SOUZA, Fátima Cristina Lucas de. Afro do Amaral Fontoura: estudos, produções e escola viva. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, v. 12, n. 47, p. 232-250, set. 2012. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.20396/rho.v12i47.8640049 . Acesso em: 01 dez. 2021. [ Links ]

MARTÍ, José. Educação em Nossa América: textos selecionados. Organização e apresentação de Danilo R. Streck. Ijuí: Unijui, 2007. [ Links ]

MEJÍA, Marco Raúl; AWAD, Myriam. Pedagogías y metodologías en educación popular. Quito: Fe y Alegria, 2001. [ Links ]

MIGNOLO, Walter. Desobediencia epistêmica: Retórica de la modernidade, lógica de la colonialidad y gramática de da descolonialidad. Buenos Aires: Del Signo, 2010. [ Links ]

MORENO OLMEDO, Alejandro. El aro y la trama: episteme, modernidade y pueblo. Caracas: Centro de Investigaciones Populares (CIP), 1993. [ Links ]

NUNES, Georgina Helena Lima. Abdias do nascimento. O quilombismo como projeto educativo de sociedade. Quilombo e quilombismo: primeiras aproximações. In: STRECK, Danilo R.; MORETTI, Cheron Zanini; ADAMS, Telmo (Orgs.). Fontes da pedagogia latino-americana: heranças (des)coloniais. Curitiba: Appris, 2019. p. 153-164. [ Links ]

PERESSON, Mario L. Educar desde las culturas populares. In: IV Simpósio de Renovación Educativa. Bogotá: Familia Salesiana, 1994. [ Links ]

RECINOS, Adrian. Popul Vuh. México, D.F.: Concepto, 2007. [ Links ]

RIVERA, Cecília Milan de. Jacqueline Margarita Caniguan: a árvore da palavra continua com os galhos firmes, e só falta um bom adubo para dar frutos. In: STRECK, Danilo R.; MORETTI, Cheron Zanini; ADAMS, Telmo. (Orgs.). Fontes da pedagogia latino-americana: heranças (des)coloniais. Curitiba: Appris , 2019. p. 37-44. [ Links ]

RODRÍGUEZ, Simón. La Defensa de Bolívar. Caracas: Rectorado, 2006. [ Links ]

ROGERS, Carl. Liberdade para aprender. 4. ed. Belo Horizonte: Interlivros, 1977. [ Links ]

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967. [ Links ]

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 1995. [ Links ]

SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo, Cortez, 2000. [ Links ]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade. 2. ed. São Paulo: Cortez , 1996. [ Links ]

SKINNER, Burrhus Frederic. Beyond freedom and dignity. New York: Bantam, 1971. [ Links ]

STRECK, Danilo R. (Org.) Fontes da pedagogia latino-americana: uma antologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. [ Links ]

STRECK, Danilo R.; ESTEBAN, Maria Teresa (Orgs.). Educação popular: lugar de construção coletiva. Petrópolis: Vozes , 2013. [ Links ]

STRECK, Danilo R.; MORETTI, Cheron Zanini; ADAMS, Telmo. (Orgs.). Fontes da pedagogia latino-americana: heranças (des)coloniais. Curitiba: Appris , 2019. [ Links ]

TORRES CARRILLO, Alfonso. La Educación Popular: Trajectoria y actualidad. Bogotá: El Buho, 2007. [ Links ]

VEIGA-NETO, Alfredo (Org.). Crítica pós-estruturalista em educação. Porto Alegre: Sulina, 1995. [ Links ]

WALSH, Catherine. Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo I. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2013. [ Links ]

WALSH, Catherine. Pedagogías decoloniales: Prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo II. Quito: Abya Yala, 2017. [ Links ]

ZUCHETTI, Dinorá Tereza; MOURA, Eliana Perez Gonçalves; MENEZES, Magali Mendes. A artesania de um fazer a prática do trabalho de educadores. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 19, n. 59, p. 967-985, out./dez. 2014. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-24782014000900008 . Acesso em: 1 dez. 2021. [ Links ]

NOTAS

1 O painel foi realizado no dia 29 de outubro, das 17 às 19 horas. Teve a coordenação de Walcea Barreto Alves da Universidade Federal Fluminense (UFF) e a participação em conferências de José Carlos Libâneo da Universidade Federal de Goiás (UFG) e da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC GO), de Evandro Ghedin da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e de Danilo R. Streck da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

2 Cabe apenas mencionar a preocupação de contemporâneos com o desenvolvimento do que viria a ser o método científico, entre eles Francis Bacon (1561-1626) e René Descartes (1596-1650). Na área da Educação, a obra de Comenius tem importantes semelhanças com a pedagogia de Wolfgang Ratke (1571-1635).

3 Escola Normal Evangélica, em São Leopoldo, hoje Instituto Ivoti, vinculado à Rede Sinodal de Educação. A Escola fornecia o diploma de professor primário após quatro anos de formação.

4 Trata-se dos cadernos de Valburga Schmiedt, estudante da Escola Nossa Senhora da Glória de Carazinho e estagiária na Escola Sete de Setembro, de Não Me Toque, filiada à Rede Sinodal de Educação.

5 Conforme consulta em documentos da época, Paulo Freire esteve duas vezes em Porto Alegre nesse período: em 1963, com o ministro da Educação, para tratar com Fiori da criação do Instituto de Cultura Popular; e em março de 1964, em palestra dirigida para docentes do Rio Grande do Sul (RS) sobre método de alfabetização (ANDREOLA; PAULO, 2018).

6 Carl Rogers não entrou na formação por meio da Licenciatura, mas do curso de Teologia, na Escola Superior de Teologia de São Leopoldo, na qual a não diretividade era ensinada como premissa para o diálogo no aconselhamento.

7 Nesse mesmo livro, é apresentado um longo apêndice sobre o “Método Paulo Freire”. Havendo participado de experiências na área periférica de Brasília para ver o funcionamento do método, ele descreve com detalhes o processo de alfabetização, destacando sua eficiência técnica e seu papel na formação de cidadãos aptos a participar, responsavelmente, na sociedade, sem serem manipulados.

8 Os livros Fontes da pedagogia latino-americana: uma antologia (STRECK, 2010) e Fontes da pedagogia latino-americana: heranças (des)coloniais (STRECK; MORETTI; ADAMS, 2019) são produzidos com o intuito de ampliar o campo de autores e de autoras que têm uma contribuição fundamental na construção da pedagogia na América Latina.

9 Em um artigo de 1884, José Martí descreve o que, para ele, seria uma americanismo saudável, nem submisso e nem xenofóbico: “Em nossa América há muito mais sentido do que se pensa, e nossos povos que passam por menores - e o são em território ou habitantes mais que em propósito e juízo - vão se salvando com timão seguro do mau sangue da colônia de ontem e da dependência e servidão a que os começava a levar, por equivocado amor a formas alheias e superficiais de república, um conceito falso e criminoso de americanismo” (MARTÍ, 2007, p. 63).

10 Vanessa Andreotti em diálogo no seminário Topics in Educational Research, na Unisinos, no dia 20 de outubro de 2020. Disponível em: https://edst.educ.ubc.ca/facultystaff/vanessa-andreotti/. Acesso em: 1 dez. 2021.

11 Na Meditação III, sobre a existência de Deus, Descartes descreve a procura por um princípio geral que permita não apenas saber que há uma apreensão clara e distinta dos fatos, mas também que essa apreensão ou percepção seja verdadeira (DESCARTES, 1958).

Recebido: 21 de Janeiro de 2021; Aceito: 08 de Maio de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons