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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.19 no.4 São Paulo out./dez 2021  Epub 12-Abr-2022

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2021v19i4p1769-1790 

Artigos

O diálogo no currículo de Ciências do Município de São Paulo em diferentes gestões: 1 uma análise comparada à luz de Freire

The dialogue in the Science curriculum of the Municipality of São Paulo in different administrations:a comparative analysis in the light of Freire

El diálogo en el currículum de Ciencias del municipio de São Paulo en diferentes gestiones:un análisis comparativo a la luz de Freire

Elis Laura Pinto Rieger HIPPLERi 
http://orcid.org/0000-0002-0353-8549

Antonio Fernando Gouvêa da SILVAii 
http://orcid.org/0000-0002-8915-9952

i Mestranda do curso universitário em Política, Gestão e Direção de Organizações Educativas da Universidade de Valência, Espanha, e é mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) - campus Sorocaba. Participa do Grupo de Pesquisa em Teorias e Fundamento da Educação (GPTeFE). E-mail: elislaura.bio@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-0353-8549.

ii Doutor em Educação. Professor e pesquisador da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) - campus Sorocaba. Pesquisador e coordenador do Grupo de Integração entre Pesquisa e Ensino de Ciências (GIPEC). Desenvolve pesquisa sobre o legado de Paulo Freire junto à Cátedra Paulo Freire da PUC-SP. E-mail: gova@uol.com.br - ORCID iD: http://orcid.org/0000-0002-8915-9952.


Resumo

Diante da influência de Freire nas diversas políticas curriculares, sua pedagogia disseminou-se, sendo mencionada como fundamento em diferentes perspectivas curriculares. Assim sendo, esta pesquisa buscou compreender se a concepção de diálogo presente no currículo de Ciências proposto pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo - SME SP (2019) se relaciona com a concepção adotada na gestão de Freire na SME SP (1989-1992). Com uma abordagem qualitativa, que contou com as contribuições pedagógicas e epistemológicas de Freire, realizou-se uma pesquisa documental comparativa dos currículos de Ciências de São Paulo de 2019 e de 1992, para compreender quais foram as permanências e as modificações ocorridas sob a perspectiva freireana da categoria no contexto curricular de Ciências. Concluiu-se que a categoria “diálogo” abordada no currículo de Ciências de 2019 se relaciona a uma concepção não crítica, distando-se de uma concepção de currículo freireana.

Palavras-chave: Currículo crítico em Ciências da Natureza; Currículo de São Paulo; Diálogo; Pedagogia freireana

Abstract

Faced with Freire’s influence on the various curricular policies, his pedagogy has spread, being mentioned as a foundation in different curricular perspectives. Thus this research sought to understand whether the conception of dialogue present in the Science curriculum proposed by the São Paulo Municipal Secretary of Education (Secretaria Municipal de Educação de São Paulo - SME SP (2019)) is related to the conception adopted in Freire’s administration at the SME SP (1989-1992). With a qualitative approach, which included Freire’s pedagogical and epistemological contributions, a comparative documentary research was carried out on the Science curricula of São Paulo in 2019 and 1992, in order to understand what the permanences and modifications were under the Freirean perspective of the category in the context of the Science curriculum. It was concluded that the “dialogue” category addressed in the 2019 Science Curriculum is related to a non-critical conception, distancing itself from a Freirean conception of curriculum.

Keywords: Critical curriculum in Natural Sciences; São Paulo curriculum; Dialogue; Freirean pedagogy

Resumen

Ante la influencia de Freire en las diversas políticas curriculares, su pedagogía se ha diseminado, siendo mencionada como fundamento en diferentes perspectivas curriculares. Siendo así, esta investigación buscó comprender si la concepción del diálogo presente en el currículo de Ciencias propuesto por la Secretaría Municipal de Educación de São Paulo -SME SP (2019), se relaciona con la concepción adoptada en la gestión de Freire en la SME SP (1989-1992). Con un enfoque cualitativo, que contó con las contribuciones pedagógicas y epistemológicas de Freire, se realizó una investigación documental comparativa de los currículos de Ciencias de São Paulo de 2019 y 1992 para comprender cuáles fueron las permanencias y las modificaciones ocurridas bajo la perspectiva freireana de la categoría, en el contexto curricular de Ciencias. Se llegó a la conclusión de que la categoría diálogo abordada en el currículo de Ciencias de 2019 se relaciona con una concepción no crítica, alejándose de una concepción de currículum freireana.

Palabras clave: Currículum crítico en Ciencias de la Naturaleza; Currículum de São Paulo; Diálogo; Pedagogía Freireana

1 INTRODUÇÃO

São Paulo, a maior cidade do Brasil, possui mais de 12 milhões2 de habitantes e contempla uma diversidade populacional, cultural e socioeconômica que abrange desde padrões de países ricos até os mais pobres no contexto mundial, caracterizando-se como uma cidade heterogênea e de complexa economia. Além das questões socioeconômicas, o município apresenta, ao longo de sua história, drásticas flutuações em sua gestão política entre “progressistas” e “conservadores” (ISHII, 2016), que influenciaram, também, na promoção de concepções curriculares tanto progressistas quanto conservadoras.

Como exemplo, tem-se o mandato de Jânio Quadros (1986-1988) que contou com Paulo Zigg como Secretário da Educação. Juntos, implementaram uma orientação educacional com políticas repressivas que objetivava tomar o poder democrático dos conselhos escolares por meio de processos burocráticos de hierarquização. Já a gestão seguinte, de Luiza Erundina de Sousa (1989-1992), teve Paulo Freire como Secretário da Educação, o qual propôs uma política curricular alinhada à construção coletiva de uma escola pública popular, democrática e com qualidade social, de modo a viabilizar a elaboração de um novo posicionamento político-epistemológico para a construção curricular orientado pela racionalidade emancipatória, objetivando dispor os conhecimentos científicos a fim de promover práxis pedagógicas comprometidas com a superação de uma visão tradicional de currículo (SAUL; SILVA, 2011).

As experiências realizadas pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SME SP), no período em que Paulo Freire assumiu a pasta (1989-1992), tornaram-se referências para as políticas de currículo na perspectiva crítica no Brasil desde a década de 1990 (SAUL; SILVA, 2011).

Estudos foram realizados por diferentes autores que identificaram, em projetos educacionais posteriores, a inspiração advinda do Movimento de Reorientação Curricular ocorrido durante a gestão de Paulo Freire na SME SP, como Dias (2012), que analisou o Projeto da Escola Cabana da Rede Municipal de Ensino de Belém, Pará (PA), no período de 1997 a 2004; Gerone Junior (2012), que analisaram o Projeto Escola Açaí implementado pela gestão municipal de Igarapé-Miri - PA (2009-2012); Silva (2004), que acompanhou e assessorou 14 sistemas públicos municipais e estaduais no Brasil3; e Menezes (2012), que revelou ações pautadas nessa concepção educacional desenvolvidas pela Secretaria de Educação de Pernambuco e pelo Município de Camaragibe.

No mandato do Município de São Paulo, no período de 2017 a 2020, que teve, em um primeiro momento, João Dória (2017-2018) como prefeito, substituído, posteriormente, por Bruno Covas (2018-2020), foi publicado o documento Orientações Didáticas do Currículo da Cidade e a segunda versão do Currículo da Cidade (SÃO PAULO, 2019). Essa política curricular foi anunciada como a primeira do país a estar alinhada com as diretrizes preconizadas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) - política pública normativa e de abrangência nacional na área da Educação (BRASIL, 2018; SÃO PAULO, 2019).

Nesse contexto, no documento Currículo da Cidade para o ensino de Ciências Naturais (SÃO PAULO, 2019), é possível identificar vários elementos e conceitos oriundos de perspectivas pedagógicas críticas de currículo, como os presentes na concepção educacional freireana, particularmente na seção intitulada “Concepção de Currículo”:

Currículos também precisam dialogar com a realidade das crianças e adolescentes, de forma a conectarem-se com seus interesses, necessidades e expectativas. [...]. Considerando a relevância para os estudantes da Rede Municipal de Ensino, o Currículo da Cidade estrutura-se de forma a responder a desafios históricos, como a garantia da qualidade e da equidade na educação pública, ao mesmo tempo em que aponta para as aprendizagens que se fazem cada vez mais significativas para cidadãos do século XXI e para o desenvolvimento de uma sociedade e um mundo sustentáveis e justos (SÃO PAULO, 2019, p. 19, grifos nossos).

Com base nessas proposições, questiona-se: Quais foram as permanências e as modificações no currículo municipal de Ciências de São Paulo em relação à categoria “diálogo” apresentada pelas duas gestões - a de Freire, em 1989, e a proposta no documento Currículo da Cidade, de 2019 -, e, ainda, quais as implicações das possíveis alterações do documento para o ensino de Ciências da Natureza? Dessa forma, o objetivo geral deste trabalho é buscar compreender se a concepção da categoria “diálogo” proposta no currículo de Ciências da Natureza no Município de São Paulo, em 2019, se relaciona ou não com o entendimento sobre essa categoria quando implementada pela proposta curricular da gestão de Paulo Freire na SME SP (1989-1992).

Para atender a esse objetivo, buscou-se, por meio de uma abordagem qualitativa, realizar uma análise documental, utilizando como principal fundamentação as contribuições pedagógicas e epistemológicas de Paulo Freire (1985, 1987, 2001, 2002). Para isso, foram selecionados documentos considerados pertinentes para a pesquisa, com a análise do Caderno de Formação oriundo da gestão de Freire na SME SP (1989-1992), publicado em 1992, chamado “Visão da Área de Ciências”, bem como o documento elaborado pela SME SP, no ano de 2019, intitulado Currículo da Cidade de Ciências Naturais (2ª edição).

Assim, este trabalho foi organizado da seguinte forma: (1) a presente introdução que expõe a temática e a estrutura do estudo realizado; (2) a apresentação da fundamentação teórica que embasou a investigação a partir dos princípios e das diretrizes da política curricular implementada pela gestão de Freire na SME SP (1989-1992); (3) a metodologia que aborda os procedimentos utilizados; (4) a análise dos dados e dos resultados fundamentados na bibliografia adotada; (5) e as considerações finais, com ponderações sobre a investigação e sugestões para pesquisas futuras.

2 A PRÁXIS CURRICULAR DIALÓGICA PARA O ENSINO DE CIÊNCIAS EM DIFERENTES GESTÕES DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO

Nesta seção, discorre-se sobre a fundamentação teórica que baseou este estudo, o qual se deu a partir dos princípios e das diretrizes da política curricular implementada pela gestão de Freire na SME SP (1989-1992).

2.1 O diálogo na concepção pedagógica freireana

Em Pedagogia do oprimido, Freire (1987) desenvolve seu entendimento acerca do diálogo no campo educacional com o propósito de desenvolver a criticidade, a humanização e a transformação sociocultural por meio de uma educação comprometida com a libertação dos sujeitos em condições de opressão.

Ao iniciar a discussão sobre diálogo, o autor volta-se à compreensão do que entende ser seu principal constituinte - a palavra. A partir disso, Freire (1987) atenta para a importância das partes integrantes da palavra, já que, nessa perspectiva, o diálogo se consubstancia não em qualquer conjunto de palavras, mas mediante a pronúncia das “palavras verdadeiras”, que se concretizam pela união da reflexão e da ação, não podendo ser dicotomizadas. Desse modo, o diálogo, para ele, materializa-se como “práxis autêntica”, e a palavra, que possui esse sentido ontológico, manifesta-se por intermédio de um processo humanizador.

Freire (1987, p. 107) afirma que “[...] não há palavra verdadeira que não seja práxis. Daí que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo”. Para ele, o “antidiálogo” sacrifica a ação em detrimento da reflexão e vice-versa, e é constituído pela “palavra inautêntica”, não se configurando, portanto, como palavra comprometida com a formação e a emancipação de um sujeito histórico.

Nesse sentido, para proporcionar um processo educativo dialógico, de acordo com os pressupostos freireanos, é necessário que, para além da reflexão e da ação, se compreenda a importância de apreender a dimensão ontológica desse processo, isto é, entender o potencial que os sujeitos detêm de “serem mais”. Nessa concepção pedagógica, os sujeitos são entendidos como seres que se transformam incessantemente, pois estão, de modo constante, em estado de inacabamento, sempre buscando aprender, melhorar e querendo tornar-se cada vez mais humanos. Assim, é o diálogo entre os sujeitos, mediados pelos respectivos contextos, que pode viabilizar esse processo humanizador (FREIRE, 1987).

A pedagogia freireana está imbricada em uma concepção de educação que, por meio do diálogo, parte da realidade concreta dos educandos, buscando compreender como esses entendem e atuam em suas realidades, em seu mundo concreto. Essa perspectiva salienta a exigência de resgatar-se as visões de mundo dos educandos, por meio de uma abordagem pedagógica que contemple as vozes dos sujeitos em um determinado contexto histórico, uma vez que é a partir de problematizações dialógicas sobre as situações concretas relatadas pelos sujeitos que se pode identificar as contradições sociais vivenciadas (FREIRE, 1987).

Tais contradições expressas pelos educandos caracterizam-se como “situações-limites” para Freire (1987). Elas estão eivadas de temas significativos que deverão ser investigados para, posteriormente, serem legitimados como situações de ensino e de aprendizagem que necessitam ser tomadas como objeto de estudo para a compreensão crítica da realidade a ser transformada.

A investigação mencionada dos temas, ou “investigação temática” (FREIRE, 1987), configura-se como parte desse processo pedagógico que contempla a investigação coletiva da realidade concreta da comunidade em foco e, para tanto, precisa da participação de todos os envolvidos no processo educativo (educadores, educandos, pais e comunidade escolar como um todo). Por esse motivo, a investigação temática não se inicia, necessariamente, somente com a chegada ao ambiente escolar, mas pode ocorrer até mesmo antes disso, pela aproximação com o cotidiano da comunidade que se pretende investigar.

Dessa maneira, o educador e/ou coletivo de pesquisadores investigam a realidade dos sujeitos para conhecê-la em suas dimensões materiais, culturais e sociais para, com base nisso, delinear os possíveis “temas geradores”. Esses temas são oriundos dos limites evidenciados pela comunidade escolar para a apreensão crítica da realidade vivenciada. Dessa forma, é por intermédio da investigação temática que se compreende, dialeticamente, a relação entre objetividade e subjetividade e que se estabelece as relações entre as condicionantes socioculturais concretas à vida dos educandos e as possibilidades de referências factuais para a seleção de conteúdos programáticos específicos (FREIRE, 1987).

Nota-se, assim, que a perspectiva freireana de educação denuncia e se contrapõe às concepções oriundas da educação tradicional e conservadora. De acordo com Triviños (1987), essas concepções estão comprometidas com a reificação dos sujeitos envolvidos no processo educacional a partir de uma racionalidade instrumental em que o conhecimento não humaniza, mas coisifica. Além disso, no processo de coisificação do educando, o educador também se coisifica, já que não se reconhece como sujeito que produz sua própria prática e consequentemente não é protagonista de si mesmo. Em contrapartida, para Freire (1985, p. 27), o ato de conhecer para o ser humano “[...] não é o ato através do qual um sujeito, transformado em objeto, recebe, dócil e passivamente, os conteúdos que outro lhe dá ou impõe. Requer sua ação transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante”.

Em vista disso, conceber um currículo em conformidade com os pressupostos freireanos requer pensá-lo a partir de uma concepção pedagógica crítica e dialógica, para proporcionar que os sujeitos envolvidos no processo educacional sejam concebidos como sujeitos históricos. Isso implica entender que as pessoas pertencem a um tempo-espaço histórico, condicionado por construções humanas, e, assim sendo, a realidade e esses indivíduos são passíveis de modificação, de transformação (DELIZOICOV; ANGOTTI; PERNAMBUCO, 2002).

2.2 A práxis curricular à luz de Freire: uma síntese a partir da experiência de 1989 a 1992 em São Paulo

No ano de 1989, Luiza Erundina de Souza foi eleita prefeita da cidade de São Paulo, exercendo seu mandato até dezembro de 1992. Foi em sua administração que Paulo Freire assumiu a pasta da Educação no Município (SAUL, 2009). Na gestão de Freire na SME SP aconteceu a implementação da proposta político-pedagógica chamada Escola Democrática que tinha por intuito promover a construção de uma escola pública democrática, de qualidade e popular. Tal proposta tinha a participação, a descentralização e a autonomia como princípios básicos e fundamentais (FREIRE, 2001).

De maneira contrária às reformas educacionais oficiais anteriores do Município de São Paulo, Freire partiu da busca das experiências sociais e culturais dos educandos, da comunidade e dos educadores para que fossem sistematizados os conhecimentos que integrariam o processo educativo. Assim, por intermédio do desenvolvimento da autonomia e da participação de todos os envolvidos no processo, deveria se dar a construção do currículo escolar. Freire defendeu e propôs uma educação construída pelos e para esses sujeitos envolvidos, pensando em uma pedagogia crítico-libertadora e contra-hegemônica, comprometida não com qualquer sujeito, mas com aqueles das classes marginalizadas e populares que, em sua concepção, possuem a potência e o poder de produzir e transformar a cultura e a educação (FREIRE, 2001).

Nessa concepção de educação, as transformações e as mudanças não se dão de forma impositiva e autoritária ou com medidas centralizadoras, mas de “baixo para cima”, com a participação de todos (pais, educadores, educandos, funcionários), enfim, da comunidade em que a escola se situa e dos especialistas das diferentes áreas de conhecimento mediatizados pela realidade (FREIRE, 2001).

Nesse sentido, o Movimento de Reorientação Curricular configurou-se como um processo de construção coletiva dos sujeitos envolvidos no processo educativo, considerando seus integrantes internos e externos vinculados às suas determinadas comunidades escolares particulares, de maneira a propiciar o diálogo entre escola e comunidade, e cabendo aos educadores em geral e aos especialistas das diversas áreas possibilitarem, por meio da práxis, a criação e a recriação das experiências curriculares que embasaram novas práticas pedagógicas (SAUL, 2012).

A partir do momento em que é feita a proposta do Movimento de Reorientação Curricular pela SME SP às escolas, em agosto de 1989, iniciam-se várias discussões entre os educadores da Rede Municipal e os assessores de universidades, a fim de problematizarem as questões pertinentes ao currículo e organizarem, de forma sistemática, os dados oriundos dessas discussões para posteriormente retorná-los às unidades escolares (SÃO PAULO, 1992).

No que diz respeito à área de Ciências, foram realizadas as mesmas ações supracitadas; no entanto, seu detalhamento será tratado na próxima seção com o intuito de consubstanciar a práxis do diálogo - diretriz da política de gestão de Freire na SME SP (1989-1992).

2.3 A práxis formativa para a construção curricular no ensino de Ciências na gestão de Freire (1989-1992)

Em 1990, foi elaborado um documento preliminar que contemplava a visão da área de Ciências no Município de São Paulo, fruto do Movimento de Reorientação Curricular da gestão de Freire. Esse documento, resultado da construção coletiva dos educadores da Rede Municipal, deu origem, no final de 1991, ao caderno de Visão da Área de Ciências, síntese das proposições apresentadas pelos diferentes sujeitos envolvidos no processo (SÃO PAULO, 1992). Segundo esse caderno, o objetivo era “[...] ampliar a discussão sobre o ensino de Ciências Naturais” e “[...] propor parâmetros para a construção de programas pelos educadores” (SÃO PAULO, 1992, p. 1). O caderno era dividido em três seções principais, intituladas: “Reflexões sobre a história do ensino de Ciências Naturais”, “Estrutura da Área” e “Concepções de Área e Estrutura da Área”. No entanto, a seguir, abordaremos, neste artigo, as seções que contemplam a concepção de diálogo.

Na seção que diz respeito às Concepções de Área, em seu primeiro tópico, nomeado “Concepções de Ensino de Ciências Naturais”, o documento fundamenta-se, de maneira geral, na dialogicidade. Assim, começa com a denúncia sobre a forma transmissiva de ensinar na área, oriunda da concepção positivista de Ciência, argumentando que essa concepção não permite que os sujeitos reflitam sobre a produção e a distribuição das Ciências da Natureza e das tecnologias. Nesse contexto, o documento conclui que práticas transmissivas no ensino de Ciências não propiciam a autonomia dos sujeitos, tornando-os incapazes de realizar questionamentos sobre o contexto social concreto, de maneira a subordiná-los aos interesses alheios, impedindo-os de transitar de uma interpretação de realidade imediatista e fatalista para uma compreensão crítica sobre a realidade em que estão inseridos (SÃO PAULO, 1992).

O documento anuncia, ainda, na mesma seção, as relações necessárias entre o conhecimento do senso comum, provindo do contexto dos educandos - caracterizado, muitas vezes, pela compreensão fatalista e imediatista da realidade -, e os conhecimentos científicos suscitados pelo educador - de maior complexidade por estabelecer relações e questionamentos constantes de forma processual -, ressaltando que precisam dialogar entre si de forma crítica, a fim de buscar superações para os problemas provenientes da realidade concreta. Assim,

[...] à medida que ambos (senso comum e conhecimento científico) falam da realidade imediata na qual os indivíduos estão inseridos, através do diálogo, é possível levá-los a aprender e apropriar-se dos conhecimentos científicos através de uma problematização do seu senso comum, dando-lhes a oportunidade de transitar entre os dois conhecimentos, usando-os quando e onde forem necessários. Introduzir o conhecimento científico sem considerar o senso comum leva os indivíduos a decorarem simplesmente o novo conhecimento e continuar a pensar e agir somente a partir do senso comum. Nega aos indivíduos a oportunidade de acesso a maneira de pensar que tem sido base para a construção da sociedade contemporânea (SÃO PAULO, 1992, p. 11).

Dessa forma, compreende-se que o diálogo entre os sujeitos que apresentam visões distintas - educandos e educadores que pronunciam a realidade - torna possível, por meio da problematização do senso comum, a apropriação e a construção de conhecimentos científicos. Isso porque se pretende promover o trânsito entre as duas dimensões de conhecimento (senso comum e científico), no sentido de propiciar aos educandos a tomada de consciência, para que possam assumir decisões críticas em relação à realidade vigente e sobre ela atuar, o que, para Freire (1987), se caracteriza no plano da conscientização.

Na seção “Estrutura da Área”, aborda-se, mais especificamente, o que significa partir da realidade concreta do educando na perspectiva dialógica freireana. Para tanto, foca a discussão sobre a escolha dos conteúdos pertinentes à realidade, enfatizando que o conhecimento científico precisa ser compreendido de forma mais ampla e interdisciplinar. Nessa perspectiva, “[...] o grau de aprofundamento ou de complexidade dos recortes da realidade que se quer trabalhar depende de situações concretas” (SÃO PAULO, 1992, p. 12), das quais se selecionam conhecimentos sistematizados comprometidos com seu desvelamento em busca de superações.

Em outras palavras, o documento ressalta que a seleção de conteúdos deve partir da realidade concreta, da visão de mundo do educando sobre ela, e precisa estar a serviço da superação de uma situação-limite, que se configura como obstáculo para uma atuação crítica na realidade (FREIRE, 1987). É a partir dessas situações a serem superadas que se torna possível, por meio de um processo educativo dialógico e crítico, a transformação do pensar e do agir dos sujeitos que atuarão na realidade, agora também de maneira transformada (SÃO PAULO, 1992).

[...] ou seja, iniciamos pelo conhecer - racional e sensivelmente - a realidade na qual se inserem a escola e aluno. Isso não implica um puro resgate informativo dessa realidade, mas sim no desencadear de um processo de estudo sobre as contradições envolvidas nas relações sociais, econômicas e culturais do local. Nesse processo, é levantado um conjunto de contradições e situações, que para serem consideradas relevantes, significativas, devem contemplar o individual e coletivo. É a partir da apreensão dessa realidade complexa, interdisciplinar, significativa para os alunos que serão introduzidos os conhecimentos sistematizados das diferentes áreas [...] (SÃO PAULO, 1992, p. 27).

Percebe-se que, para desenvolver-se um processo educativo na área de Ciências que viabilize que os sujeitos se transformem bem como as suas realidades, além da concepção dos sujeitos sobre um contexto concreto de realidade, a seleção de conteúdos precisa ser pertinente a eles, isto é, pautada por um processo dialógico de apreensão do real.

Garantir a dialogicidade do processo é uma preocupação que deve permear, desde a elaboração até a execução do programa pelos diferentes professores. em todos os momentos, entender e proporcionar ao aluno a possibilidade de reconstrução permanente de seu pensamento, bem como de acesso a novas formas de pensar; assim como a recriação coletiva do conhecimento e o explorar de suas possibilidades para além das questões imediatas que geraram a sua necessidade como uma síntese que é permanentemente refeita (SÃO PAULO, 1992, p. 28).

Assim, com base na terceira seção do documento, presume-se que o diálogo é, também, um processo metodológico dialético e participativo para organizar a prática pedagógica docente, não se restringindo a uma mera técnica didática (SILVA, 2004).

Por fim, o documento apresenta como proposição a dinâmica didático-pedagógica dos “momentos pedagógicos” (DELIZOICOV, 1982, 1991). Para caracterizar e ressaltar melhor as prioridades de tal dinâmica, deve-se evitar a imposição dos conteúdos da área aos educandos envolvidos. Dessa maneira, os momentos abarcam a problematização de situações codificadas na vivência dos educandos para, então, escolher conhecimentos científicos que propiciem tanto a descodificação quanto o planejamento de práticas comprometidas com a transformação da realidade. Essa sistematização possibilitou o desenvolvimento dessa dinâmica didático-pedagógica que se apropriou de categorias freireanas, articulando dialogicidade, problematização e contextualização, denominado processo de “investigação temática” por Freire (1987).

De maneira geral, o documento referente à “Visão da Área de Ciências” possibilitou evidenciar a concretude do pensamento freireano sistematizado e colocado em prática no Município de São Paulo, contemplando, assim, uma concepção mais ampla e crítica de currículo para a área de Ciências da Natureza.

3 METODOLOGIA

A pesquisa realizada caracteriza-se como qualitativa por abranger não somente o produto (escopo da pesquisa), mas todo o processo de pesquisa em que o significado que os sujeitos possuem sobre um objeto e suas próprias vidas é de grande importância para o pesquisador (ANDRÉ, 2001).

Pesquisas que possuem como objeto documentos utilizados como meio ou fonte de informações e de esclarecimentos, por possuírem conteúdos que podem ser analisados perante determinadas questões de interesse do pesquisador, são chamadas de “pesquisa documental”, procedimento que usa de métodos e de técnicas para realizar a análise dos mais diferentes documentos (ANDRÉ, 2001).

Nesse contexto, realizou-se uma análise documental (PIMENTEL, 2001) que cotejou as concepções da categoria “diálogo” presentes no currículo de Ciências de São Paulo (2019) com o implementado na capital paulista na gestão de Freire (1989-1992), para identificar aproximações e distanciamentos teórico-metodológicos entre esses documentos.

A abordagem da categoria “diálogo” foi o referencial crítico de análise, tendo como base o Caderno Visão da Área de Ciências da gestão de Freire bem como algumas de suas obras (FREIRE, 1985, 1987, 2001, 2002).

4 RESULTADOS: O COTEJAMENTO DE DOCUMENTOS EM ANÁLISE

De acordo com o caderno Visão da Área de Ciências, o diálogo é uma categoria dinâmica que permeia todo o processo educativo e os sujeitos envolvidos. Dessa maneira, exige-se, segundo essa concepção, um diálogo problematizador, imbricado em uma práxis educativa autêntica que viabiliza a transformação das visões de mundo dos sujeitos socialmente excluídos, oprimidos e privados de seus direitos. Tal diálogo possui o potencial de proporcionar a modificação da realidade a partir da intervenção transformada dos próprios sujeitos.

Na apresentação do currículo de Ciências da Natureza, publicado em 2019, são contempladas as informações acerca do percurso e das ações que culminaram na construção do documento, finalizando com as premissas que a embasaram, sendo elas: “continuidade”, “relevância”, “colaboração” e “contemporaneidade”. Das quatro premissas citadas, encontra-se, na premissa “colaboração”, a primeira evidência de que há um discurso que pressupõe o diálogo no documento, visto que “[...] foi elaborado considerando diferentes visões, concepções, crenças e métodos, por meio de um processo dialógico e colaborativo, que incorporou as vozes dos diversos sujeitos que compõem a Rede” (SÃO PAULO, 2019, p. 11).

Observa-se que o documento afirma conceber o diálogo como um processo que proporcionou a elaboração da proposta curricular contemplando as diferentes visões e concepções dos diversos sujeitos envolvidos. Nesse sentido, pode-se estabelecer certa relação com o que se propõe em um currículo de Ciências pautado nos fundamentos freireanos, no que tange a uma construção democrática de currículo, considerando as visões dos sujeitos baseadas em um processo dialógico. Entretanto, tem-se, também, um distanciamento das concepções freireanas, pois, ao afirmar-se que o documento - o currículo de Ciências - já foi elaborado e nele se encontra uma organização fixa, inclusive de conteúdo, por mais que o documento reitere ser construído de maneira dialógica, não o faz no sentido freireano, dado que o diálogo, para este último, é um processo dinâmico que ocorre em todos os momentos do fazer pedagógico e curricular. Em outros termos, a concepção de diálogo do documento curricular de 2019 remete-nos a uma concepção que não se relaciona com a vertente curricular que se fundamenta nos pressupostos freireanos.

De maneira oposta ao currículo municipal da SME SP (2019), o documento Visão da Área de Ciências ressalta que seu objetivo é “[...] ampliar a discussão sobre o ensino de Ciências Naturais e propor parâmetros para a construção de programas pelos educadores” (SÃO PAULO, 1992, p. 1), dando autonomia para construir, coletivamente e de forma dialógica, o currículo mediado por meio da realidade vivida pela comunidade escolar, de modo a compreendê-lo como formativo e não normativo.

O segundo momento em que o currículo de Ciências de 2019 contempla um discurso sobre a categoria “diálogo” é na seção intitulada “Concepções e conceitos que embasam o Currículo da Cidade”, que trata, como o próprio título já diz, dos conceitos e das concepções do currículo do Ensino Fundamental, o qual “[...] considera a organização dos tempos, espaços e materiais que contemplem as vivências das crianças no seu cotidiano, a importância do brincar e a integração de saberes de diferentes Componentes Curriculares, em permanente diálogo” (SÃO PAULO, 2019, p. 15).

Na seção subsequente, “Concepção de Currículo”, o documento faz uso da categoria “diálogo” novamente, frisando sua relação não só com as vivências das crianças, mas com a realidade do educando de modo geral. Segundo o documento, os “[...] currículos também precisam dialogar com a realidade das crianças e adolescentes, de forma a conectarem-se com seus interesses, necessidades e expectativas” (SÃO PAULO, 2019, p. 19).

Com base nessas citações, nota-se que a abordagem da categoria “diálogo” aparenta ter o intuito de demonstrar que o currículo pretende contemplar a realidade do educando e articulá-la com os diferentes conhecimentos das áreas, como um currículo pautado nos fundamentos freireanos preconiza. No entanto, visto de maneira ampla, pode-se interpretar o ato de “contemplar as vivências das crianças” e/ou “dialogar com a realidade das crianças e adolescentes” no processo educativo, como evidenciado nos enunciados dos trechos citados, como margem para uma abordagem estritamente contemplativa da realidade, já que a ideia é de um currículo que, depois de pronto, passe a dialogar, de maneira ilustrativa, com a realidade dos educandos e, dessa forma, os conteúdos sejam trabalhados de forma transmissiva e nada dialógica, se comparada à abordagem curricular freireana.

Para que se tenha uma prática que contemple o diálogo de forma crítica, pautada nos preceitos freireanos, é preciso, necessariamente, que a seleção dos conteúdos parta da realidade do educando, da relação dialética entre objetividade e subjetividade e, também, expresse uma contradição social. Assim, não se trata de relacionar os conhecimentos com situações do cotidiano de maneira puramente contemplativa, usando o diálogo apenas como uma técnica para a transmissão do conhecimento, mas de abordar as situações reais vivenciadas que possuem aspectos político-sociais de modo problematizador, ou seja, de elencar situações que estão associadas a um contexto histórico, cultural e econômico, visando sua transformação.

Ainda na mesma seção, observa-se que o documento contempla um discurso sobre a categoria “diálogo” no seguinte trecho:

[...] cabe ressaltar que os currículos devem ser sempre revisados e atualizados, seja para adequarem-se a mudanças que ocorrem de forma cada vez mais veloz em todos os setores da sociedade, seja para incorporarem resultados de novas discussões, estudos e avaliações. Embora a função do currículo não seja a de fechar-se à criatividade e à inovação, sua característica mais fundamental é a clareza com que enuncia princípios e que cria clima e roteiros instigantes ao diálogo, à aprendizagem e à troca de experiências mediadas por conhecimentos amplos e significativos da história (SÃO PAULO, 2019, p. 18).

Com base no excerto, pode-se apontar distanciamentos no que diz respeito à concepção freireana da categoria, uma vez que, por mais que seja possível encontrar um discurso que possui o intuito de vincular os princípios do currículo para instigar que o diálogo ocorra, este não pode, em uma concepção freireana, ser mediado pelos conhecimentos, mesmo com a justificativa de que são amplos e significativos da história. No processo dialógico pautado em Freire, quem medeia o diálogo entre os sujeitos é a realidade, mas ele não ocorre de maneira hierarquizada, já que tanto o educando quanto o educador são sujeitos que possuem vozes que refletem visões de mundo distintas e participam de forma ativa do processo educativo.

Dessa maneira, os conhecimentos devem ser significativos para os educandos, o que implica que os educadores os selecionem a posteriori, quer dizer, a partir das demandas de superações provindas dos educandos.

Ao discutir no tópico “Conceito de Educação Integral” sobre o que o currículo compreende ser Educação Integral, é abordada a categoria “diálogo”:

[...] as novas definições de Educação Integral que começaram a emergir a partir de meados da década de 1990 apontam para a humanização do sujeito de direito e entendem o conhecimento como elemento propulsor para o desenvolvimento humano. Indicam, também, que tais processos educativos acontecem via socialização dialógica criativa do estudante consigo mesmo, com os outros, com a comunidade e com a sociedade. Nesse caso, os conteúdos curriculares são meios para a conquista da autonomia plena e para a ressignificação do indivíduo por ele mesmo e na sua relação com os demais (SÃO PAULO, 2019, p. 20).

O diálogo, em sua dimensão freireana, admite a relação entre os sujeitos e o reconhecimento entre eles; porém observa-se que há uma abordagem da categoria nesse trecho apenas para o ato de socializar e não no sentido de estimular a emancipação dos sujeitos e a transformação da realidade, pois, ao contrário, estimula a aceitação e a adaptação de ambos, não condizendo, assim, com a perspectiva de diálogo no sentido freireano, uma vez que, para o autor, o diálogo é “[...] práxis, é transformar o mundo [...]. [...] por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros [...]. O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu” (FREIRE, 1987, p. 44). Desse modo, não basta dialogar para saber de si como mero instrumento de adaptação e de aceitação, mas, de forma contrária, dialogar de maneira praxiológica, que consiste na reflexão crítica e na ação transformadora (FREIRE, 1987).

Na seção destinada aos Ciclos de aprendizagem, encontra-se o enunciado que contempla a categoria “diálogo”:

O Ciclo Interdisciplinar (4° ao 6° ano) tem a finalidade de integrar os saberes básicos constituídos no Ciclo de Alfabetização, possibilitando um diálogo mais estreito entre as diferentes áreas do conhecimento. Busca, dessa forma, garantir uma passagem mais tranquila do 5º para o 6º ano, período que costuma impactar o desempenho e engajamento dos estudantes. O Currículo da Cidade para o Ciclo Interdisciplinar valoriza, fortalece e dialoga com experiências já desenvolvidas pela Rede Municipal de Ensino [...] (SÃO PAULO, 2019, p. 42).

Observa-se que, nesse momento, a categoria “diálogo” é empregada e compreendida como uma postura epistemológica em relação à Ciência, a qual proporciona a conexão de uma temática científica com outra - neste caso, associada às diferentes áreas do saber sistematizado.

Por mais que no currículo freireano essa relação seja vista como fundamental para a ampliação da leitura crítica do mundo, no trecho supracitado não é indicado se há uma relação entre as diferentes áreas do conhecimento para proporcionar uma leitura mais crítica e ampla sobre a realidade concreta em estudo, viabilizando a atuação consciente e ética dos sujeitos. Além disso, nem sequer é mencionada a relação da realidade com o pensamento-linguagem do educando, com seus saberes, para sua posterior análise crítica com o objetivo de sua apreensão transformadora e superação de situações de desumanização.

Ainda na mesma seção, nota-se, novamente, a compreensão da categoria reduzida a um procedimento relacional mecanicista, como mencionado no seguinte trecho: “[...] no 6° ano, a abordagem também está com foco na formação das rochas e do solo, o que possibilita um diálogo com o eixo Matéria, Energia e suas Transformações” (SÃO PAULO, 2019, p. 80).

Em ambas as citações do documento, apresentadas anteriormente, destitui-se o potencial epistemológico da categoria “diálogo” e de suas relações dialéticas com a apreensão crítica da realidade; em outras palavras, não se entende o diálogo como práxis transformadora, mas como simples mecanismo relacional e contemplativo entre conteúdos específicos de uma área e de eixos temáticos preestabelecidos.

Já na seção intitulada “Currículo da Cidade na Prática”, ao discutir avaliação, o documento aborda a categoria “diálogo” na seguinte parte do texto:

[...] a implementação do novo currículo demanda a revisão dos processos e instrumentos de avaliação utilizados pela Rede Municipal de Ensino. Entendida como ação formativa, reflexiva e desafiadora, a avaliação da aprendizagem contribui, elucida e favorece o diálogo entre o professor e seus estudantes, identificando em que medida os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento estão sendo alcançados no dia a dia das atividades educativas. Por outro lado, a nova proposta curricular também vai requerer a reestruturação das avaliações externas em larga escala, realizadas pela SME com a finalidade de coletar dados de desempenho dos estudantes e propor ações que possam ajudar escolas, gestores e professores a enfrentar problemas identificados (SÃO PAULO, 2019, p. 50).

Nesse trecho em questão, é explicitada uma concepção de diálogo avessa à compreensão freireana da categoria. Isso porque o diálogo é entendido como algo unilateral e individual, ocorrendo em um único sentido, o do professor para o aluno, em que este último é considerado um ser inanimado e anistórico. Tal entendimento está vinculado ao aparente fim de averiguar-se os conhecimentos transferidos e se eles estão sendo bem reproduzidos para, posteriormente, serem aferidos por meio de avaliações em larga escala.

Diante das análises realizadas, pondera-se que a concepção de diálogo abordada pelo currículo das Ciências da Natureza da cidade de São Paulo apresenta limitações no que se refere a sua relação com uma concepção ampla e crítica fundamentada nos preceitos freireanos, devido aos indícios de que o entendimento do diálogo presente no documento está vinculado a uma concepção técnica e extensionista da categoria. Para Freire (1985), em sua obra Extensão e Comunicação,

[...] a ação extensionista envolve, qualquer que seja o setor em que se realize, a necessidade que sentem aqueles que a fazem, de ir até a “outra parte do mundo”, considerada inferior, para, à sua maneira, “normalizá-la”. Para fazê-la mais ou menos semelhante a seu mundo. Daí que, [...], o termo extensão se encontre em relação significativa com transmissão, entrega, doação, messianismo, mecanicismo, invasão cultural, manipulação etc. E todos estes termos envolvem ações que, transformando o homem em quase “coisa”, o negam como um ser de transformação do mundo. Além de negar, como veremos, a formação e a constituição do conhecimento autênticos. Além de negar a ação e a reflexão verdadeiras àqueles que são objetos de tais ações (FREIRE, 1985, p. 13).

De acordo com Freire (1985), essa concepção só possui significado caso se compreenda a educação como meio de adaptação e de domesticação, já que

[...] educar e educar-se, na prática da liberdade, não é estender algo desde a “sede do saber”, até a “sede da ignorância” para “salvar”, com este saber, os que habitam nesta. Ao contrário, educar e educar-se, na prática da liberdade, é tarefa daqueles que sabem que pouco sabem - por isto sabem que sabem algo e podem assim chegar a saber mais - em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem, para que estes, transformando seu pensar que nada sabem em saber que pouco sabem, possam igualmente saber mais (FREIRE, 1985, p. 15).

A partir do exposto, foi elaborada uma síntese, exposta no Quadro 1, sobre a concepção de diálogo apresentada no Currículo da Cidade de São Paulo, proposto para a área de Ciências em 2019, em comparação à concepção da categoria quando fundamentada nos preceitos freireanos do documento Visão da Área de Ciências da gestão de Freire na SME SP.

Quadro 1 Síntese da concepção da categoria “diálogo”, com base no Currículo da Cidade de São Paulo da área de Ciências da Natureza e a partir de Freire (1987) no caderno de Visão da Área de Ciências  

Diálogo na concepção do Currículo da Cidade de São Paulo da área de Ciências da Natureza (SÃO PAULO, 2019) Diálogo na concepção do caderno de Visão da Área de Ciências (SÃO PAULO, 1992)
Diálogo como referência ilustrativa, meio para a transmissão de um conhecimento preestabelecido, visando a adequação e a adaptação ao mundo. Diálogo como processo praxiológico que ocorre em todos os momentos da atividade pedagógica para a construção do conhecimento selecionado a posteriori, visando a transformação/superação da realidade.
Ocorre de forma unilateral e hierarquizada. Ocorre de forma coletiva, problematizadora e horizontal.
É mediatizado pelo professor a partir de produtos científicos descontextualizados e escolhidos a priori. É mediatizado pelas contradições sociais presentes na realidade concreta e expressas pelos educandos.

Fonte: Os autores (2021).

Assim, as análises realizadas no currículo de Ciências da Natureza do Município de São Paulo (2019) resultaram na identificação das concepções presentes no documento sobre diálogo, as quais variam em função da polissemia e da abrangência do conceito. Em alguns momentos, foram identificados elementos críticos e freireanos relacionados à categoria, como, por exemplo, quando o documento aborda a necessidade de o currículo dialogar com a realidade dos educandos. Entretanto, uma análise apurada levantou dúvidas e questionamentos de como o documento estava compreendendo as categorias analisadas, de modo genérico e pouco preciso. Em outros momentos, não se teve dúvidas de que a compreensão sobre a categoria se distanciou da abordagem na concepção freireana. Como exemplo, tem-se a forma hierarquizada de compreender o diálogo entre educador e educando.

Entende-se, aqui, que a função do currículo escolar é proporcionar reflexões, ações, discussões e a formação de sujeitos conscientes de sua dimensão histórica e sociocultural, que podem estar comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa e humanizada. Desse modo, a concepção curricular preconizada por Freire (1982, 1987) e o entendimento de diálogo procedente dessa concepção representam um caminho viável para proporcionar ações transformadoras que contribuam para as relações éticas de igualdade. Em outras palavras, considera-se que a concepção crítica da categoria “diálogo” está comprometida com a transformação das contradições sociais vividas na realidade concreta, com a emancipação dos sujeitos e com a promoção de uma sociedade mais digna e justa.

Compreende-se, portanto, que há implicações haver concepções não críticas de diálogo para o ensino crítico de Ciências, dado que essas concepções implicam a promoção de currículos que reproduzem e legitimam uma formação adaptativa dos educandos à sociedade vigente, bem como de suas condições desumanizantes e desiguais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vertente curricular crítica fundamentada na pedagogia freireana busca proporcionar uma educação humanizadora com o propósito de transformar a realidade de opressão em que os sujeitos se encontram. Essa concepção pedagógica está voltada à formação de sujeitos conscientes, responsáveis, solidários e críticos que compreendem seu papel histórico de recriar a sociedade vigente. Para tanto, supõe-se uma concepção crítica de diálogo que considera os aspectos sociais, culturais, históricos e econômicos, almejando a superação da sociedade dividida em oprimidos e opressores, característica da organização social oriunda do modelo de produção capitalista.

A experiência de Paulo Freire na SME SP evidenciou ser possível um currículo de Ciências assumir um caráter crítico e atuante, proporcionando uma prática educacional que preconize a formação de sujeitos coletivos autônomos. Para tanto, é fundamental que se reconheça que as práticas curriculares não são estáticas, mas, sim, um local dinâmico de disputas culturais e de interesses e que elas podem ser modificadas, viabilizando a reflexão e a atuação crítica no âmbito pedagógico.

Acredita-se que, para promover tal modificação curricular, no que tange ao entendimento crítico da categoria analisada, faz-se necessário o engajamento de todos os sujeitos envolvidos no processo educativo. Compreende-se que o processo de elaboração e de implementação de um currículo não pode ser feito de forma verticalizada, como ocorreu em 2019, e o currículo não pode ser entendido como normativo, pois acredita-se que ele deva ser uma orientação dinâmica para que cada comunidade escolar exerça seu protagonismo. Para tanto, o currículo deve ser uma construção coletiva que possua sentido e significado para os sujeitos envolvidos no processo educacional e não atenda somente aos interesses institucionais e políticos de terceiros que compreendem a educação como instrumento de adaptação ao contexto sociocultural vigente, visando à manutenção do status quo.

A partir das análises realizadas, considera-se que, de maneira geral, por mais que os enunciados do documento analisado aparentem aproximações léxicas com a vertente curricular crítica freireana, a concepção de diálogo ali presente se relaciona muito mais à concepção acrítica e instrumental encontrada em tendências curriculares tecnicistas.

Ressalta-se que não foi esgotado o potencial analítico sobre a categoria “diálogo” presente em documentos curriculares das várias políticas públicas no Brasil, como a BNCC. Assim sendo, outras investigações poderão contribuir para um maior esclarecimento das análises aqui realizadas.

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 Este artigo faz parte da pesquisa de Mestrado da primeira autora concluída na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em 2020, intitulada A Proposta Curricular de Ciências no município de São Paulo (2019): aproximações e distanciamentos com a concepção educacional freireana (HIPPLER, 2020).

2 Consultado em 2019 no site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

3 As redes públicas de ensino acompanhadas pelo Silva (2004) foram: Angra dos Reis - RJ (1994-2000), Porto Alegre - RS (1995-2000), Chapecó - SC (1998-2003), Caxias do Sul - RS (1998-2003), Gravataí - RS (1997-1999), Vitória da Conquista - BA (1998-2000), São Paulo - SP (2001-2003), Belém - PA (2000-2002), Maceió - AL (2000-2003), Dourados - MS (2001-2003), Goiânia - GO (2001-2003), Criciúma - SC (2001-2003), Estado do Rio Grande do Sul (1998-2001) e Alagoas (2001-2003).

Recebido: 25 de Outubro de 2020; Aceito: 12 de Junho de 2021

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