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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.20 no.1 São Paulo jan./mar 2022  Epub 06-Maio-2022

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2022v20i1p6-13 

APRESENTAÇÃO

Dossiê Temático CURRÍCULO, DIVERSIDADE E DIFERENÇAS CULTURAIS

Alípio CASALIi 
http://orcid.org/0000-0003-3883-3051

Hildizina Norberto DIASii 

Suely Dulce de CASTILHOiii 
http://orcid.org/0000-0002-8070-7174

i Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, Brasil. E-mail: a.casali@uol.com.br

ii Universidade Pedagógica de Maputo - UPM, Moçambique. E-mail: hildizinanorbertodias@gmail.com

iii Universidade Federal do Mato Grosso - UFMT, Brasil. E-mail: castilho.suely@gmail.com


Ideais iluministas de civilização e progresso seguem sustentando discursivamente o projeto de uma ‘civilização global’, dissimulando seu ímpeto originário de dominação monocultural. Não bastaram as resistências que os colonizadores europeus enfrentaram nas Américas, Ásia e África, desde o século XVI, e das quais saíram politicamente perdedores. Ademais, a Antropologia, desde o final do século XIX, ao mergulhar na diversidade de culturas (especialmente as de povos mais ancestrais) e revelar sua complexidade, corroborou as razões pelas quais tal projeto monocultural eurocêntrico deveria ter sido declarado violento e ilusório desde o início. Não obstante, ignorando lições da História, a intensificação da globalização, no pós-Guerra (1945), entendeu ser possível avançar o capitalismo contemporâneo mediante imposição de padrões via mercado. Mais uma vez, contradições e ambivalências se revelaram e, ao encarar as diferenças e buscar anular suas forças, o capitalismo globalizado logrou apenas diminuí-las parcialmente; em acréscimo, produziu todos os efeitos contrários, de revelação mais acentuada das mesmas diferenças e de potencialização de suas identidades, cujo vigor em pouco tempo se manifestou em protagonismos vários, no campo cultural. Não obstante seu relativo fracasso nessa iniciativa, o capitalismo contemporâneo assimilou essa imposição da diversidade, tratando inclusive de explorar suas potencialidades mercadológicas, e o resultado disso é que o tema da diversidade cultural tornou-se até mesmo discurso global das elites empenhadas na cooperação internacional e na governança global que lhes interessa.

Com sentido distinto, fortemente voltado a uma internacionalidade multilateral e uma certa universalidade, a valorização da diversidade cultural por organismos multilaterais internacionais, especialmente a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), vem cumprindo uma demarcação de mais largo alcance, em defesa e promoção da diversidade. Em 1996, o relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI - Educação, um Tesouro a Descobrir (Relatório DELORS) já assinalara a indispensabilidade da tolerância para a construção de um futuro comum via educação. Em 1997, o relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento intitulado Nossa diversidade criadora, assinado por Javier Pérez de Cuéllar, reafirmava essa virtude da tolerância. Em 2001, na III Conferência Mundial da ONU Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlata (Durban, África do Sul), a Unesco estabeleceu o respeito à diversidade cultural não apenas como um direito, mas também como uma condição para o diálogo entre os povos e a sustentabilidade social da humanidade. Em 2002, com forte apoio nesse sólido relatório de Durban (2001), a Unesco elaborou a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural, em cujo artigo primeiro institui a diversidade cultural como um “patrimônio comum da humanidade”, tão vital para os seres humanos quanto a biodiversidade. Esses posicionamentos internacionais, multilaterais, que não se esgotam nessas referências, revelam a emergência de um novo tipo de universalismo global (um novo tipo de cosmopolitismo), que já não é mais o da universalidade unívoca, totalitária, e sim análoga, democrática, que se apresenta agora como um imperativo ético-moral pluriversal. As sociedades “líquidas” modernas deverão ser capazes de acolher em sua positividade as diferenças dos grupos étnicos e nacionais, de gênero, sexo, classe, geração e outras, e levá-las em consideração nas práticas curriculares, em projetos de educação multi/intercultural voltados à construção de uma sociedade democrática e ao desenvolvimento de uma cidadania crítica e participativa.

Nada disso escapara ao olhar dos Estudos Culturais, que, desde os anos 1960, atentavam para as dissimuladas extensões da guerra e do capital mediante dispositivos simbólicos e discursivos falaciosos. Os Estudos Culturais vêm a partir de então impulsionando novos conceitos e práticas curriculares, alimentando os estudos curriculares com análises de contexto histórico-cultural tomado como estruturante do currículo. Com efeito, a escola se deu conta dessas contradições e de que não poderia ignorar a diversidade cultural dos que percorrem seus tempos e espaços na condição de aprendentes, nem dos que nela atuam profissionalmente. Muito mais que isso, convenceu-se do valor fundamental da diversidade, da sua potencialidade e de que deverá promovê-la, tensionando-a com a universalidade inerente à sua missão histórica.

No Brasil, tais temas não deveriam soar como novidade. Esta é uma Nação fundada a partir de conflitos da diversidade étnico-cultural, que miscigenou indígenas autóctones, colonizadores e aventureiros europeus, africanos deportados e escravizados, imigrantes europeus e asiáticos, refugiados. Sangues e símbolos misturaram-se, mestiçaram-se, quase sempre mediante violências, como parte de um racismo estruturante, inerente ao colonialismo ibérico, dissimulado até hoje nos discursos oficiais, e que ocasionalmente emerge das relações cotidianas, em formas variadas de violência física e simbólica.

Entretanto, como o elogio da diferença sempre poderá resvalar para formas restritivas e excludentes de (des)classificação social, impõe-se como mantra o aforisma de Santos (1997, p. 97), de que “as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza e o direito a ser diferentes, quando a igualdade os descaracteriza”.

A dramaticidade desse tema certamente ajuda a explicar o notável afluxo de submissões de artigos de qualidade à publicação neste dossiê. Por essa razão, como organizadores, adotamos como parâmetro final de seleção dos quatorze artigos aqui publicados aquele único critério compatível com o próprio projeto do dossiê: o da diversidade (internacional, regional, institucional e temática). Buscamos a diversidade para falar da diversidade.

Os leitores perceberão a ampla gama de contribuições ao Currículo possíveis de aflorar a partir de cada um e todos os artigos aqui publicados.

Abrimos o dossiê com uma entrevista de Jurjo Torres Santomé. O artigo foi escrito por Arlindo Paiva Carvalho Jr., Andrea Rosana Fetzner e Jurjo Torres Santomé, das Universidades do Rio Janeiro, Brasil, e de La Coruña, Espanha. A entrevista aborda questões de justiça curricular e sobre como tal conceito poderá contribuir para práticas escolares e pedagógicas inclusivas. Jurjo Torres Santomé, fazendo referência ao campo do currículo, trata do respeito à diversidade no campo educacional. Versa também sobre aspectos acerca da formação de professores, do currículo integrado, da justiça curricular e das políticas educacionais.

O segundo artigo, de autoria de Crislane Barbosa Azevedo, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e Bernard Charlot, da Universidade Federal de Sergipe, analisa a percepção de profissionais da educação da disciplina de História e gestores de escolas públicas do País, sobre a relação entre educação e diversidade. Os resultados demonstraram a necessidade de apropriação dos fundamentos da educação inclusiva e das atuais discussões acadêmicas, políticas públicas e diretrizes curriculares sobre diversidade, bem como aprofundamento de processos formativos, tendo em vista mudanças em percepções e práticas profissionais materializadas no currículo escolar.

As autoras Kátia Evangelista Regis, Nilma Lino Gomes e Emília Afonso Nhalevilo, respectivamente da Universidade Federal do Maranhão, Universidade Federal de Minas Gerais, no Brasil, e da Universidade de Maputo e da Universidade Pungué, em Moçambique, refletem sobre os fundamentos epistemológicos para o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana no Brasil. O artigo discute a preponderância do eurocentrismo e a integração curricular das Histórias e Culturas, construídas pelos/as próprios/as africanos/as e apresenta os desafios das políticas curriculares na África do Sul e em Moçambique para a incorporação de Indigenous Knowledge Systems (IKS). O artigo conclui que há dificuldades para que tais conhecimentos integrem os currículos devido à permanência da percepção de deslegitimidade desses conhecimentos em relação aos de base eurocêntrica.

Telma Amorgiana Fulane Tambe, Candida Soares da Costa e António Cipriano Parafino Gonçalves, das Universidades do Mato Grosso, no Brasil, e Eduardo Mondlane em Moçambique, analisam de que forma o desenvolvimento (tecnológico) afeta a participação das mulheres nas matrículas em áreas específicas de Ciências da Natureza, Engenharia, Agricultura e Saúde (CNEAS) do Ensino Superior Moçambicano, com base em indicadores socioeconômicos. O artigo revela que há maior participação das mulheres nas áreas de CNEAS em Maputo. Os autores concluem que os indicadores de desenvolvimento socioeconômico e urbanização/infraestrutura são preditores positivos para maior participação das mulheres nos cursos de saúde, mas preveem negativamente sua participação nos cursos de tecnologias de informação e engenharias.

Osvaldo Martins de Oliveira, da Universidade Federal do Espírito Santo, Luana Ribeiro da Trindade, da Universidade Federal de São Carlos/SP, e Paula Aristeu Alves, da Universidade Federal do Espírito Santo, refletem a respeito da diversidade do currículo escolar a partir de reivindicações de estudantes negros/as e quilombolas pela inclusão da cultura afro-brasileira e das trajetórias de escolarização de personagens e intelectuais negros/as no currículo escolar de todos os níveis de ensino. Os dados levantados e analisados deixam entrever que a história, memória e legados de autores/as negros/as no Brasil e na diáspora que escrevem sobre história e culturas negras influenciam as ações desses estudantes, mas esses personagens foram silenciados e não reconhecidos nos currículos das escolas e dos cursos universitários. A reivindicação é de que sejam incluídos.

O artigo de Heli Sabino de Oliveira, da Universidade Federal de Minas Gerais, e Erisvaldo Pereira dos Santos, da Universidade Federal de Ouro Preto, examina a Educação de Jovens e Adultos (EJA), em um espaço não escolar: o Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (Cenarab), focalizando seus arranjos espaciais, o lugar simbólico ocupado pela professora e o material didático usado em sala de aula. A pesquisa coloca em relevo os conceitos de política de identidade, reconhecimento e currículo silencioso. Aborda também sobre a importância da organização do espaço e produção do material didático adotado pela entidade na Educação de Jovens e Adultos. Por meio de entrevistas semiestruturadas e observação participante, os autores verificaram que a proposta da EJA naquela entidade pode contribuir para a construção de uma sociedade em que o diferente não seja tratado com desprezo, nem como ameaça.

O artigo de António Salvador Domingos Espada, da Academia de Ciências Policiais (ACIPOL), de Moçambique, realça algumas percepções sobre a diversidade cultural baseada na idade. Tal diversidade manifesta-se nas salas de aula, principalmente no curso noturno, onde há uma mistura de educandos considerados crianças, jovens e adultos. O artigo destaca a urgência para o desenho e implementação de um currículo específico até a 12.ª classe para os educandos adultos que ingressam na Alfabetização e Educação de Adultos.

A partir de uma discussão teórico-conceitual da globalização e das teorias pós-coloniais ou decoloniais, José Augusto Pacheco e Ila Beatriz Maia, da Universidade do Minho, Portugal, e Jacqueline Cunha Serra Freire e Mariza Felippe Assunção, da Universidade Federal do Pará, Brasil, tratam dos saberes da educação quilombola nas Ilhas de Abaetetuba, Amazônia. Usando as vozes dos atores e observando os espaços culturais, situa-se o contexto das comunidades remanescentes de quilombo e são tratados seus atuais desafios, perante uma lógica de uniformização, que tem contribuído para a perda de identidade desses espaços de formação.

Janina Moquillaza Sánchez, da Universidade de São Paulo, Brasil, María Flores Gutiérrez e Oscar Gutiérrez Huamaní, da Universidad Nacional de San Cristóbal de Huamanga, Peru, relacionam o currículo com a crise epistemológica cultural. O artigo analisa, por meio da reflexão qualitativa hermenêutica cultural, as bases para a formação de professores, diante da epistemologia cultural racionalista, eurocêntrica. Os autores concluem que se mantém um paradigma excludente no currículo nacional que gera conflitos didático-pedagógicos, fragmentações, tensões éticas, antropológicas, sociológicas e de identidades.

O artigo de Leila Maria Camargo, da Universidade Estadual de Roraima, Salomão Antônio Mufarrei Hage, da Universidade Federal do Pará, e de Raimunda Kelly Silva Gomes e Arthane Meneses Figueiredo, da Universidade Federal do Amapá, traz como campo de análise a diversidade sociocultural existente nas múltiplas Amazônias e suas inter-relações com o currículo, ao compreender o território em sua pluralidade socioambiental. Trata-se de uma pesquisa qualitativa bibliográfica e documental desenvolvida por integrantes do NUCFOR, que integra o Procad/Amazônia. Discute a importância da diversidade como direito de todos os povos e compreende as amazônicas em suas múltiplas formas de estar no mundo, a fim de resistir à fragmentação, hierarquização e padronização que vêm sendo propostas pelas políticas curriculares brasileiras, a exemplo da BNCC e da BNC-Formação, que recentemente passaram a traçar as diretrizes curriculares nacionais, oferecendo outras propostas e possibilidades.

O artigo de Heiberle Hirsgberg Horacio, da Universidade Estadual de Montes Claros/MG, argumenta em favor da indissociabilidade entre Literatura Indígena e Regimes de Conhecimento Indígena, para a realização de atividades, em escolas não indígenas, em observância à Lei 11.645/2008, que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. O problema que orienta o debate tem relação com certa concepção que mobiliza a Literatura Indígena de “modo estanque”; desconsidera as dinâmicas próprias das literaturas desses povos; negligencia suas diversidades e as diferenças, sobretudo com relação a determinadas literaturas não indígenas. O artigo foi construído a partir de leituras de referências de diferentes áreas, mas, principalmente, da relação do autor com as literaturas e com professoras(es) indígenas, sobretudo professores e obras Xakriabá.

Debora Mate Mendes, da Universidade Federal do Amapá, Kamila Karine dos Santos Wanderley, da Universidade Federal da Paraíba, e Karla Fornari de Souza, da Universidade Federal do Pernambuco, apresentam dados de uma pesquisa intitulada “Educação e práticas comunitárias: educação indígena, quilombola, do campo e de fronteira nas regiões Norte e Nordeste do Brasil”, realizada em parceria com a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais e Porticus, no Brasil, no ano de 2020. O recorte proposto tem como enfoque as informações levantadas sobre a Educação do Campo e foi desenvolvido a partir da análise das Matrizes de Projetos para a referida pesquisa e de informações coletadas nos Projetos Político- Pedagógicos dessas iniciativas. Constitui-se como um estudo de cunho qualitativo, do tipo descritivo-analítico. Os resultados indicam que, apesar da constante negação de direitos que a Educação do Campo, das Águas e das Florestas enfrenta, seus povos se organizam e constroem experiências educativas vinculadas aos saberes locais de seus territórios.

O artigo de Mara Lopes Figueira de Ruzza, professora e supervisora escolar da rede municipal de ensino de São Paulo, discute o Protagonismo Surdo, considerado central no Currículo, e sua contribuição para o processo de conscientização do Sujeito Surdo e para romper lógicas impostas por construções históricas, culturais e políticas. São apresentadas referências bibliográficas que embasam as reflexões sobre a relevância de significar a diferença linguística, cultural e epistemológica da Comunidade Surda como garantia do direito de existência digna do Sujeito Surdo.

Fechando o dossiê, o artigo de Luciana Pasqualucci e Alberto Luiz Schneider, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil, e de Judite Primo e Mario Moutinho, da Universidade Lusófona de Humanidade e Tecnologias, Lisboa, Portugal, fundamentado na sociomuseologia, reflete sobre o cenário dos museus e das instituições de memória e suas interfaces com o currículo do curso de Especialização em Museologia, Cultura e Educação. O artigo tem o objetivo de compreender algumas das habilidades e competências requeridas ao profissional da área de museus na contemporaneidade, a fim de evidenciar o alargamento das funções e das práticas museológicas e enfatizar o museu contemporâneo como lócus de diversidade no ensino, pesquisa e extensão.

Esperamos que as reflexões contidas nos artigos aqui publicados sejam inspiradoras de novas práticas curriculares, capazes de contribuir para a realização simultânea da igualdade e da diferença como marcadores da dignidade humana.

Agradecemos a toda a equipe editorial da Revista e-Curriculum, nas pessoas de seus Editores-Chefes, Professores Antônio Chizzotti e Maria Elizabeth B. de Almeida, e de sua Editora Gerente, Professora Márcia Maria Rodrigues Uchôa. Agradecimento especial também aos pareceristas e revisores e, não menos destacado, a todos os pesquisadores-autores que atenderam à chamada e compartilharam conosco suas valiosas reflexões.

- Organizadores do Dossiê -

março de 2022

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