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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.20 no.1 São Paulo ene./mar 2022  Epub 06-Mayo-2022

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2022v20i1p155-177 

Dossiê Temático CURRÍCULO, DIVERSIDADE E DIFERENÇAS CULTURAIS

O Cenarab como uma experiência do movimento negro educador na Educação de Jovens e Adultos

The Cenarab as an experience of the black educador movement in Youth and Adult Education

El Cenarab como una experiencia del movimento negro educador en la Educación de Jóvens y Adultos

Heli Sabino de OLIVEIRAi 
http://orcid.org/0000-0003-2097-0402

Erisvaldo Pereira dos SANTOSii 
http://orcid.org/0000-0003-3867-779X

i Doutor em Educação pela Faculdade de Educação de Minas Gerais. Prof. Adjunto do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenador da linha de Educação de Jovens e Adultos em Docência e Educação (PROMESTRE) da Faculdade de Educação de Minas Gerais. E.mail helisabino@yahoo.com.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-2097-0402.

ii Doutor em Educação com Pós-Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos - UFBA. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFOP: Mestrado e Doutorado - PPGE-UFOP, pesquisador da Educação e Relações Étnico-Raciais, coordenador da pesquisa do Edital-CEERT-2020, ativista do movimento negro e babalorixá no Ilê Axé Ogunfunmilayo em Contagem-MG. E-mail: erisvaldo@ufop.edu.br, erisvaldosanto@yahoo.com.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-3867-779X.


Resumo

Este trabalho examina a Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Centro de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (Cenarab), focalizando arranjos espaciais, o lugar simbólico da professora e o material didático usado em sala de aula. Conquanto não seja propriamente um local religioso, o Cenarab é marcado por símbolos de cultos de matrizes africanas que interferem na experiência educativa da EJA. Fruto de uma pesquisa qualitativa, o trabalho coloca em relevo os conceitos de política de identidade, reconhecimento e currículo silencioso. Tomando como referência a obra Movimento Negro Educador de Nilma Gomes (2017), recorremos aos estudos de Gonçalves, McLaren e Frago. Por meio de entrevistas semiestruturadas e observação participante, constatamos que a proposta da EJA pode contribuir para construção de uma sociedade em que o diferente não seja tratado com desprezo, nem como ameaça.

Palavras-chave: política de reconhecimento; religiosidades de matrizes africanas; EJA em espaço não escolar; Cenarab

Abstract

This work examines the Youth and Adult Education (EJA) in the Centre for Africanity and Afro-Brazilian Resistance (Cenarab), focusing on its special arrangements as a symbolic place by the teacher and the courseware utilized in the classes. Even if it is not a religious location, Cenarab is marked by symbols of cults rooted in African diaspora religions which denotes your position in the realm of the sacred. Such procedure interferes in the educational experience of EJA. The present study comes from a qualitative research highlighting the concepts of identity politics, politics of recognition and silent curriculum. Having as main reference Nilma Gomes’s book Movimento Negro Educador (Black Educator Movement) (2017), contemplating more references such as Gonçalves, McLaren and Frago. Through semi-structured interviews and participant observation, we found out that EJA’s proposal could contribute for the construction of a society in which the different is not treated with despise, neither as a threat.

Keywords: politics of recognition; african diaspora religions; EJA in a non-scholar space; Cenarab

Resumen

Este trabajo examina la Educación de Jóvenes y Adultos (EJA) en el Centro de Africanidad y Resistencia Afro Brasileña (Cenarab), centrándose en sus arreglos espaciales, el sitio simbólico ocupado por la profesora y el material didáctico usado en salón de clases. Aunque no sea propiamente un local religioso, el Cenarab es marcado con símbolos de cultos de matrices africanas que interfiere en la experiencia educativa de la EJA. Fruto de una investigación cualitativa, el presente trabajo pone de relieve los conceptos de política de identidad, reconocimiento y currículo silencioso. Tomando como referencia la obra Movimiento Negro Educador de la profesoraNilma Gomes (2017), recorrimos a los estudios de Gonçalves, McLaren y Frago. Por medio de entrevistas semiestruturadas y observación participante, constatamos que la propuesta de la EJA puede contribuir para la construcción de una sociedad en que el diferente no sea tratado con desprecio, ni con amenaza.

Palabras claves: política de reconocimiento; religiosidades de matrices africanas; EJA en espacio fuera de la escuela; Cenarab

1 INTRODUÇÃO

A gente é contra o ensino religioso. Por isso, não vamos ensinar religião no Cenarab 1 [...]. Vamos aceitar qualquer pessoa, independente do credo. Mas nem por isso vamos descaracterizar o ambiente. Quando chegam o católico e o evangélico, aqui ver símbolo do pemba, vão ver a imagem do Exu. Vai ser alfabetizado, aprendendo a escrever Zambi na letra /Z/, Oxalá na /O/. Nós vamos alfabetizar a partir da nossa realidade. Eis o nosso desafio! (OLIVEIRA, 2012, p. 191).

Este trabalho examina a Educação de Jovens e Adultos (EJA), em um espaço não escolar, o Centro de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (Cenarab). Além disso, reflete sobre o significado de um projeto de EJA, desenvolvido por uma entidade do movimento social negro, em defesa das tradições religiosas de matrizes africanas. Tomando como referência os estudos da professora Nilma Lino Gomes, desenvolvidos na obra “O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação”, pode-se dizer que essa entidade se constitui “como um ator coletivo e político que constrói, sistematiza e articula saberes emancipatórios produzidos pelos negros e negras ao longo da sua trajetória na sociedade brasileira” (GOMES, 2017, p. 38).

Cumpre salientar, de saída, que o interesse pela educação formal não constitui exclusividade do Cenarab. Suas raízes remontam às lutas empreendidas pela Frente Negra Brasileira - FNB (1931-1937), que buscava a integração do negro no mercado de trabalho urbano industrial e também ao mundo da política. O intuito da FNB, de acordo seu estatuto, era irradiar uma união política e social da “Gente Negra Nacional para a afirmação dos direitos históricos da mesma em virtude de sua atividade material e moral no passado e para a reivindicação dos seus direitos sociais e políticos atuais na Comunhão (sic) Brasileira” (CUTI, 2007, p. 95).

Outro movimento que lutou por uma educação formal, que tomasse como referência as especificidades da cultura negra no Brasil, foi o Teatro Experimental Negro (TEN), criado por Abdias Nascimento, na década de 1940. Tal movimento expressou, com maior radicalidade, sua perspectiva educacional face aos processos de segregação racial na sociedade brasileira, sustentando que seus objetivos visavam à materialização “através de uma pedagogia estruturada no trabalho de arte e cultura, tentar educar a classe dominante ‘branca’, recuperando-a da perversão etnocentrista de se autoconsiderar superiormente europeia” (NASCIMENTO, 2016, p. 161).

Silva (2021) apresenta a Frente Negra Brasileira e o Teatro Negro Experimental como partes integrantes das ações da genealogia da Educação Popular Negra no Brasil. Além de denunciar o racismo, tais movimentos buscaram fortalecer a população negra numa sociedade marcada pela segregação racial, bem como defender uma educação que levasse em conta as contribuições africanas na cultura brasileira. Convém destacar, no entanto, que tais movimentos não pautavam a dimensão religiosa, fortemente atacada pelo caráter eurocêntrico da cultura hegemônica.

Convém não se esquecer que os estudos realizados pelo estadunidense Donald Pierson datam desse período. Sua obra “Brancos e prêtos na Bahia” sustentava que, no Brasil, não há preconceito de raça; o preconceito contra o negro decorre de sua condição de classe social (PIERSON, 1971). Para demonstrar seu ponto de vista, ele nos apresentou os processos de assimilação pelos negros, sobretudo os de pele mais clara, dos valores civilizatórios europeus e o respectivo abandono dos padrões culturais africanos, quando inseridos no mercado de trabalho.

Em seus dados de pesquisa, Pierson cita o discurso de um baiano branco para quem o interesse pelo Candomblé se perderia quando um preto usasse gravata, sapato e aprendesse a ler. No mesmo parágrafo, registra o depoimento de um sobrinho de um destacado babalaô, afirmando que “todas essas crendices devem desaparecer. É sinal de gente atrasada” (PIERSON, 1971, p. 339). A disputa de poder e prestígio presente nos “mexericos” das lideranças dos terreiros mais ortodoxos foi identificada pelo sociólogo da Escola de Chicago como “indício de desintegração do mundo afro-brasileiro” (PIERSON, 1971, p. 339). Em outras palavras, uma pessoa, identificada com a cultura europeia, “considerava a maioria das crenças e práticas dos africanos como objeto de ridículo, desdém, menosprezo e reprovação” (PIERSON, 1971, p. 301).

Pode-se, na atualidade, notar, por um lado, que o trabalho de Pierson não possui, do ponto de vista empírico e teórico, sustentação no campo acadêmico e nas práticas sociais. Por outro lado, pode-se observar que o movimento negro, na última década do século XX, passa a pautar tanto a luta contra o racismo estrutural quanto a necessidade de valorização da história da África no currículo escolar, quanto se pensar uma pedagogia antirracista. Nesse processo, o racismo religioso acabou se constituindo como uma temática obrigatória (ROMÃO, 2005).

Nesse sentido, os trabalhos do Centro de Africanidade e Resistência Afro-brasileira (Cenarab) têm sido emblemáticos, produzindo uma pedagogia da insurgência e não apenas da diversidade, como propõe Gomes (2017). Como sujeito coletivo, o Cenarab mobiliza, dentre outras ações, adeptos do Candomblé e da Umbanda para ingressar na Educação de Jovens e Adultos, vinculada ao espaço da entidade, tendo como professora, uma pessoa candomblecista. Como se observa, tal prática contraria a conclusão a que chegou Donald Pierson, pois não houve o desaparecimento de crenças e práticas de africanos, nem a desintegração do mundo afro-brasileiro, como previra o pesquisador.

Vale lembrar que, no seio dos afro-religiosos, ainda existem pessoas como pouca escolaridade, que tiveram o direito negado à educação escolar na infância e na adolescência. Contudo, é importante frisar que existem, também, organizações do movimento negro, pressionando e articulando o poder público para garantir educação diferenciada. Esse é o caso do Cenarab. Além de evidenciar o fortalecimento no campo político de uma organização do movimento negro, o Cenarab se apoia no princípio de que a educação, como processo formativo, desenvolve-se, entre outros espaços, nos movimentos sociais, conforme assevera o artigo primeiro da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN (BRASIL, 1996).

Dessa forma, como projeto educativo do Movimento Negro, a turma de EJA do Cenarab vai ao encontro do que está normatizado nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004).

Cumpre sublinhar, no entanto, que não se trata, como se poderia imaginar a priori, de uma experiência educativa não formal, constituída às margens do processo de escolarização. A EJA, em questão, se desenvolve em articulação com o poder público, visando à elevação do nível de escolaridade de pessoas que tiveram seu direito à educação negado. Enquanto o Cenarab empresta seu espaço e mobiliário para realização das atividades pedagógicas, a Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte (SMED) se responsabiliza pelos aspectos legais da parceria: os alunos estão formalmente matriculados em uma escola do município e os professores, admitidos em concurso público, integram o quadro de funcionários da Rede Municipal de Ensino.

Conquanto não seja propriamente um local religioso, o Cenarab coloca em evidência símbolos de cultos de matrizes africanas, demarcando sua posição no campo do sagrado. Além disso, organiza o ambiente com materiais que denunciam o racismo e a intolerância religiosa no Brasil. Seus arranjos espaciais foram pensados em virtude dos objetivos políticos dessa entidade: fortalecimento das comunidades de terreiro, o estabelecimento do direito à diferença na esfera religiosa e luta contra as desigualdades étnico-raciais. Com efeito, a proposta pedagógica da Educação de Jovens e Adultos nesse espaço assume novos e inesperados contornos.

O texto está organizado em três seções e as considerações finais. O objetivo não é apenas descrever e analisar essa experiência educativa, mas também destacar a arquitetura do Cenarab, o lugar simbólico ocupado pela professora e o material didático usado em sala de aula, demonstrando o significado da experiência no contexto de defesa e afirmação da diáspora religiosa africana no Brasil. Na primeira seção, focalizamos o contexto histórico em que o Cenarab fora gestado no início da década de 1990, bem como suas lutas políticas e religiosas no movimento negro e no campo religioso. Na segunda seção, descrevemos e analisamos os arranjos espaciais desse local, a fim de demonstrar seus aspectos formativos. Na terceira seção, analisamos o lugar simbólico que a professora ocupa na turma de EJA, bem como o material pedagógico usado em sala de aula. Nas considerações finais, destacamos o caráter intencional e direcionado da proposta de EJA em uma entidade que assume a luta contra o racismo religioso.

Fruto de uma pesquisa, com enfoque qualitativo, este trabalho coloca em relevo os conceitos de política de identidade, território, reconhecimento, multiculturalismo, currículo silencioso e diáspora religiosa africana. Para tanto, recorremos, dentre outros pesquisadores, aos estudos de Gonçalves, McLaren, Stuart Hall, Escolano, Frago e Muniz Sodré. Os dados empíricos foram construídos a partir da observação participante e das entrevistas semiestruturadas. Como destaca Willis (1991), a observação participante é uma técnica de pesquisa capaz de representar e interpretar as articulações, práticas e formas simbólicas da produção cultural. As entrevistas semiestruturadas, além de documentar o não documentável, instigam, segundo Minayo (1997) a reconstituição da experiência, suscitam o encontro com o outro e permitem que o pesquisador construa novas interpretações sobre a realidade.

2 TERRITORIALIDADE, MULTICULTURALISMO E RELIGIÕES BRASILEIRAS DE MATRIZES AFRICANAS

As primeiras pautas do movimento negro deixaram de fora a questão do racismo religioso. Isso não quer dizer, no entanto, que não houve resistência na luta pela preservação das celebrações aos cultos dos Orixás. No ano de 1977, ao ser impedido de integrar a delegação brasileira no Festival Mundial de Artes e Cultura Negra na cidade de Lagos (Nigéria), Abdias Nascimento publicou um manifesto no qual assinou como um sobrevivente da República dos Palmares (NASCIMENTO, 2016). Além de denunciar o branqueamento da raça como uma estratégia de genocídio, apresentou o candomblé como religião que resistiu e conservou o culto dos Orixás em seu corpo de doutrina, cosmogonia e teogonia (NASCIMENTO, 2016).

No ano seguinte, Renato Ortiz (1978) publicou sua tese de doutoramento, denunciando o processo de constituição do racismo religioso. O autor sustentava que, para ser aceita pela elite branca brasileira, que pretendia se identificar com os valores europeus, as religiões africanas tiveram que passar por profundo processo de cristianização, classificado pelo autor como embranquecimento religioso. Nesse processo, o espiritismo kardecista passou a influenciar, em grande parte, a cosmovisão de terreiros e, principalmente, dos preceitos umbandistas.

Se na religião espírita encontramos resistência ao contato com as tradições mágicas, o mesmo não se dá no polo das crenças afro-brasileiras, É claro que, paralelamente à desagregação da memória coletiva negra, existe um movimento de resistência: o candomblé representa bem essa corrente que quer preservar o mundo simbólico afro-brasileiro. Mas, na medida em que o negro se integra na nova sociedade, o movimento de desagregação se acentua (ORTIZ, 1978, p. 36).

A despeito dos ataques empreendidos às religiões de matrizes africanas, o movimento negro não pautava essa questão em seus encontros. De acordo com Floriano (2009), essa situação começou a se modificar quando os terreiros de Salvador romperam publicamente com o sincretismo, com vistas ao restabelecimento das “verdadeiras raízes africanas”. A partir de um manifesto publicado em 1983 (CONSORTE, 2006), descortinou-se uma nova leitura sobre o Candomblé, visto agora como local de resistência africana em um ambiente social e cultural marcado por hostilidades. O processo de construção do manifesto mobilizou segmentos do movimento negro que não estavam tão envolvidos com o marxismo, como por exemplo, os(as) negros(as) do Grupo de União e Consciência Negra - Grucon (SANTOS, 1991).

A crise do marxismo, culminando com a queda do Muro de Berlim, em 1989, serviu para o movimento negro reavaliar o lugar das religiosidades de matrizes africanas na formação dos indivíduos. Como se sabe, o marxismo ortodoxo considera que a religião mistifica a realidade, mascarando as desigualdades e a injustiça social. Em razão disso, o movimento negro não empunhava como bandeira a luta contra a intolerância religiosa. Com a crise do marxismo, o movimento negro passou a rever suas posições em relação às religiosidades de matrizes africanas. Em vez de serem pensadas como elementos resultantes da dominação na esfera econômica, elas passam a ser compreendidas como parte constitutiva da realidade, como importante sistema de significação e representação, dando sentido e inteligibilidade às ações de uma parte significativa de indivíduos negros que preservam valores e culturas oriundas da África. No entanto, tal mudança de postura não foi mecânica e linear, mas fruto de acordos, negociações, conflitos no interior do movimento negro. Certamente, o divisor de águas dessa nova forma de se pensar as relações entre movimento negro e religiosidades de matrizes africanas foi o 1° Encontro Nacional de Entidades Negras (Enen), ocorrido nos dias 14 a 17 de novembro de 1991, na cidade de São Paulo. Isso não quer dizer que esse encontro fora articulado para tratar dessa questão. Pelo contrário, o 1° Enen procurou cercear qualquer tipo de debate em torno da religiosidade, colocando em pauta somente questões de ordem político-institucional. No entanto, esse encontro foi tomado de assalto por cerca de quarenta militantes que, discordando dessa postura, retiram-se do encontro para tratar da questão da intolerância religiosa. Nesse momento, são delineados os objetivos do Cenarab, bem como sua forma de atuar dentro do movimento negro e das religiosidades de matrizes africanas, especialmente do candomblé.

Segundo Floriano (2009), o Cenarab emerge no cenário brasileiro com três grandes objetivos: o primeiro é coordenar as comunidades de terreiros contra a intolerância religiosa, o segundo é mobilizar o movimento negro em favor das religiosidades de matrizes africanas e o terceiro é vincular a intolerância religiosa ao racismo.

O primeiro objetivo não é fácil de ser executado. Embora o Cenarab busque se constituir como coordenador e articulador dos interesses dos terreiros, nem todas as comunidades reconhecem essa entidade como sua legítima representante. De acordo com Floriano (2009), isso se deve, em parte, ao clima acusatório e de grandes desconfianças que há entre os grupos de religiosidades de matrizes africanas. O segundo desafio é travado na internalidade do próprio movimento negro do qual o Cenarab faz parte, já que diferentes visões de mundo integram esse movimento. O terceiro desafio, racializar a intolerância religiosa, é, no entanto, o mais complexo. Em primeiro lugar, porque, como observa Prandi (2005) o Candomblé se tornou uma religião “universal”, uma vez que seus contornos étnico-raciais não estão tão bem delineados como eram até pouco tempo. Agora, é uma religião que agrega brasileiros de distintas classes sociais, de diferentes orientações sexuais, de gênero e de raça. Outro aspecto que envolve essa questão é o número de pastores e fiéis negros pertencentes ao neopentecostalismo, movimento caracterizado, dentre outros aspectos, por seus ataques às religiosidades de matrizes africanas.

Para o Cenarab, a expansão do neopentecostalismo se deve a sua capacidade de articular símbolos da cultura popular brasileira, oriundas de diferentes matrizes simbólicas. Trata-se, portanto, de um movimento sincrético que se vale de ritos e mitos oriundos do protestantismo histórico, do pentecostalismo, do catolicismo popular e das religiosidades de matrizes africanas. Isso explica, em parte, a inserção de pessoas negras no neopentecostalismo. Ao estudar as sessões de descarrego na Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), Oro (2006) analisa a linguagem, os símbolos e os ritos dessa cerimônia religiosa, constatando que há um continuun entre as práticas religiosas neopentecostais e as religiosidades de matrizes africanas. Os pais de santos e mães de santos, convertidos ao neopentecostalismo, reproduzem, não raro, nos cultos neopentecostais, rituais de religiosidades de matrizes africanas.

De acordo com Campos (1997), a Iurd, durante os cultos de exorcismo, utiliza algumas simbologias da umbanda, como sal grosso e arruda, com o objetivo de desfazer possíveis trabalhos de “macumbaria”, “olho gordo” e “mau-olhado”. Além disso, a Iurd, paradoxalmente, cita os guias espirituais e os Orixás das religiões afro-brasileiras como sendo nomes particulares de demônios. Eis um exemplo de como, num processo de sincretismo, a religião pode se apropriar de símbolos e crenças da religião adversária, não para enriquecer o seu culto, mas para negar a experiência religiosa do outro.

O Cenarab contesta o sincretismo da Iurd, diferenciando-o do sincretismo das religiosidades de matrizes africanas. Este deve ser valorizado porque diz respeito às lutas, às estratégias de resistência da tradição de matriz africana em terras brasileiras. O mesmo não acontece com o sincretismo da Iurd que, ao incorporar ritos e de elementos simbólicos de religiosidades de matriz africana no culto, tem como objetivo a descaracterização das tradições afro-brasileiras.

Para enfrentar os três desafios arrolados anteriormente, o Cenarab coloca em questão o direito da diferença e da política da identidade, buscando explorar os sentidos mais profundos do conceito de multiculturalismo, considerado como um instrumento de luta racional e vivo na luta pela valorização e reconhecimento de culturas subordinadas.

Ao apresentar-nos o multiculturalismo como jogo das diferenças, Gonçalves e Silva (1998) nos possibilitam, de forma brilhante, compreender o caráter contestado e fecundo dessa categoria teórica e política. Trata-se, pois, de uma disputa, cujas regras não são conhecidas de antemão. Como sublinham os autores, o regulamento do jogo das diferenças só pode ser compreendido nas lutas sociais empreendidas por atores que, por uma razão ou outra, experimentaram o gosto amargo da discriminação e do preconceito no interior das sociedades em que vivem. Assim, não se pode conhecer as regras desse jogo, sem explicitar os contextos sócio-históricos nos quais os sujeitos agem no sentido de interferir na política de significados, sobre a qual dão sentido e inteligibilidade às ações enquanto atores.

O multiculturalismo diz respeito, assim, às lutas de minorias (não em quantidade, mas em influência e poder) contra representações e formas de preconceitos e discriminação, produzidas pelas sociedades euro-ocidentais, as quais privilegiam, arbitrariamente, a cultura branca, masculina, cristã, capitalista, cientificista e predatória (HALL, 2009). Os grupos marginalizados socialmente, além de serem, muitas vezes, silenciados, são inferiorizados pela cultura hegemônica. Nesse processo, não basta, apenas, reconhecer as diferenças culturais, como sustentam alguns autores liberais. O fundamental aqui é questionar conceitos e categorias que naturalizam as assimetrias sociais entre grupos, bem como colocar em xeque o poder, o privilégio, a hierarquia das opressões. McLaren (2000) salienta que, em uma perspectiva crítica e revolucionária, o multiculturalismo enfoca o caráter insurgente, polivocal, heteroglosso e antifundacional dos movimentos sociais.

O Cenarab se distancia do campo religioso cristão, colocando em relevo a questão da intolerância e do multiculturalismo religioso na sociedade brasileira.

Nos últimos anos, essa entidade passou a oferecer às comunidades de terreiros cursos de confecção de roupas, bordados em richelieu, cozinha afro-brasileira, percussão, História e Cultura da África e Informática. Tais ações visam não somente à inserção no mercado de trabalho de “pessoas de santo” que estivessem desempregadas, mas também produzir roupas e indumentárias que permitissem o barateamento do custo da prática religiosa de matriz africana. Todas essas atividades são fomentadas por debates e discussões, contribuindo, assim, na formação de pessoas comprometidas tanto na luta contra a intolerância religiosa quanto contra o preconceito e a discriminação étnico-racial. Além disso, há um curso de História e Cultura da África, ofertado às pessoas que frequentam terreiros de Candomblé e Umbanda. Foi nesse curso que se constatou o elevado número de analfabetismo e de baixa escolaridade nas comunidades de terreiros, o que motivou o grupo a pressionar a Secretaria Municipal de Educação a implantar, no Cenarab, turmas de Educação de Jovens e Adultos. Apresentaremos, a seguir, a linguagem, os signos, os símbolos e a arquitetura das salas de aulas, a fim de compreendermos suas implicações para a EJA.

3 ARRANJOS ESPACIAIS E SUBJETIVIDADE: FORMAS SILENCIOSAS DE ENSINO

Louro (1996) afirma que o prédio escolar informa com suas marcas, seus símbolos e arranjos arquitetônicos o motivo de sua existência. Além disso, pode-se compreender a partir das inscrições, dos signos e os símbolos que marcam os espaços que tipo de realidades busca se instituir e que tipo de homem e de mulher pretende formar.

Desde 2012, a sede nacional do Cenarab fica localizada na rua Desembargador Barcelos, 102, bairro Calafate, em Belo Horizonte. Trata-se de uma construção da época em que Juscelino Kubitschek foi prefeito de Belo Horizonte. Seu desenho arquitetônico foi idealizado por Oscar Niemeyer. O imóvel é tombado pelo Patrimônio Municipal de Belo Horizonte e foi cedido em comodato ao Cenarab pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Através de verba obtida por Emenda Parlamentar, a direção do Cenarab conseguiu restaurar o imóvel para desenvolver as ações que já estavam sendo realizadas.

Talvez alguns espaços escolares sejam sutis, não revelando, de imediato, suas intenções. Isso não pode, no entanto, ser dito a respeito do Cenarab. Ali os arranjos espaciais e os dispositivos materiais foram pensados para interferir no sistema de significação dos sujeitos que frequentam aquele espaço. Qualquer pessoa que chegue nesse local irá encontrar um ambiente moldado para expressar as crenças e os valores do Cenarab, pois nenhum objeto está, nesse espaço, disposto aleatoriamente. Assim, é necessário que indaguemos sobre quem se deu ao trabalho de organizar aquele espaço daquela forma? Por que o ambiente foi pintado de verde e não de outra cor? Qual o significado de cada objeto que se encontra nesse espaço? O que a presença das máscaras expostas nas paredes e no fundo da sala de aula da EJA estão afirmando?

Comecemos pela cor das paredes pintadas de verde. Esta cor simboliza baobá, árvore que representa o Cenarab. Quem chegar ao saguão do Cenarab, notará que logo a sua frente há duas portas. Uma porta à direita que conduz à sala da recepção e outra à esquerda que dá acesso à turma de EJA, vinculada à Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte.

Antes de definir em qual das portas entrará, a pessoa terá a oportunidade de observar alguns detalhes: ao lado esquerdo, ao lado da porta da recepção, existe uma placa, com os seguintes dizeres de Nelson Mandela: “Ninguém ama o que não conhece. Se nós aprendemos a odiar, nós também somos capazes de aprender a amar.” Há outras inscrições, prestando homenagens às entidades parceiras do Cenarab.

Na porta que dá aceso à sala de aula, há um vaso de argila, denominado no Candomblé de porrão, de mais de meio metro, cheio de água, enrolado por um lenço vermelho, denominado de atacan. O gargalo do porrão é tampado por um prato branco (prato de Oxalá, representando a paz). O porrão e o atacan não são meramente objetos de adornos, apesar de suas belezas estéticas. Trata-se, pois, de elementos que fazem parte da simbologia do Candomblé. O vaso, o lenço e a água representam a energia do feminino. Os entrelaçamentos desses objetos remetem à ideia de purificação. A presença do porrão e do atacan, ao lado da porta de entrada da turma de EJA, sugere a purificação dos estudantes e dos educadores que trabalham nesse espaço.

Quem entra pela porta da sala de aula ficará surpreso com a materialidade do espaço. Ali o professor e a professora dispõem de um aparelho de televisão, de DVD e data show. Há vários tipos de mapas, de cartazes, de banners. Além disso, há várias máscaras; algumas simbolizando Orixás, outras expressando a criatividade do estudante. Elas estão expostas em uma das paredes e sobre algumas mesas que estão no fundo da sala. Ocupando um espaço de mais de quarenta metros quadrados, esse espaço, amplo e arejado, conta ainda com uma lousa branca, criada para substituir o giz pelo pincel.

Frago (2001) afirma que as escolas introduzem a dialética do externo e interno, permitindo a diferenciação entre o que é próprio da escolarização e o que é próprio daquilo que é de outros espaços. A presença das mesas e carteiras, de livros e do quadro branco não nos deixa dúvidas de que nos encontramos em uma sala de aula. Escolano (2001) constata que a escola tem uma habitação ad hoc especializada nas funções de instrução.

No entanto, as palavras, as imagens e os objetos que marcam esse local nos dizem silenciosamente que ali é muito mais que uma sala de aula. Trata-se, acima de tudo, de um ambiente que expressa as finalidades políticas e religiosas do Cenarab. Há cartazes e banners com a logomarca da entidade, com símbolos das nações que compõem o Candomblé. Há, também, cartazes com emblemas da Prefeitura de Belo Horizonte (especificamente da Coordenadoria de Promoção da Igualdade Racial) e do Governo Federal (especialmente a Fundação Palmares, denunciando o preconceito étnico-racial, a condição da mulher negra, a intolerância religiosa e o direito da autodeclaração da cor/raça. As máscaras expostas em sala de aula remetem à tradição africana. As imagens de Orixás deixam clara a ligação do espaço com o Candomblé. Há, pelo menos, quatro Orixás caracterizados nesse espaço. Um é Obá, Orixá feminino, que é representado sem uma de suas orelhas2. Outro é Oxossi, nome de um Orixá caçador, responsável pela manutenção das comunidades africanas. Esse Orixá é patrono da nação keto, uma das vertentes do Candomblé.. A Iansã, considerada patrona do Cenarab caracterizada pelo vento, pelo raio, marcada pela firmeza e pela dinamicidade3. Nanã4 deusa mais velha de todos os Orixás, é representada em uma das máscaras que estão expostas em sala de aula.

Quem opta, por sua vez, pela entrada da porta da recepção do Cenarab não encontrará algo tão diferente do que foi descrito anteriormente sobre a sala de aula. Logo à frente de quem adentra esse espaço, há dois assentamentos de Orixás5 organizados sobre uma pequena estante. Da esquerda para direita, há o assentamento de Oxumarê6, que simboliza uma cobra: a quartinha branca (um objeto parecido com bule) representa a cabeça do réptil. Seu corpo é representado por três tigelas brancas cheias de água. Elas estão dispostas em ordem decrescente de tamanho. O assentamentanto de Ogun é, por sua vez, representado por outra quartinha (um pote de barro pequeno), ornado por feixe de mariô, isto é, uma haste de folhas secas de dendezeiro. A lança do Orixá está camuflada entre as referidas folhas. Representando a defesa espiritual do Cenarab, os assentamentos foram pensados com o objetivo de assegurar o equilíbrio, a paz e a harmonia do local7. A cobra Oxumarê8 simboliza, também, o olho que tudo vê. Na mesma sala, há cartazes, calendários e informativos, referindo-se tanto à questão da promoção da igualdade racial quanto à intolerância religiosa. Há outro cartaz com o poema “O analfabeto político”, de Bertold Brechet. No interior da recepção, há outra porta que dá acesso a um corredor que conduz à biblioteca, às salas da coordenação pedagógica, da coordenadora nacional do Cenarab e à sala do vice-presidente da entidade.

O acervo da biblioteca conta com uma variedade de autores que tratam, ainda, das especificidades das religiosidades de matrizes africanas e de livros da literatura brasileira. O estudante de EJA tem acesso a esse material. Durante o período em que estivemos acompanhando as aulas, a professora sugeriu, várias vezes, aos alunos nomes de filmes e de livros que tratavam de temáticas desenvolvidas em sala. Entre a biblioteca e a sala da coordenadora nacional, há outro porrão, similar ao que se encontra ao lado da porta da sala de aula. Tanto a sala da coordenação pedagógica quanto da coordenadora nacional são marcadas por símbolos de religiosidades de matrizes africanas e por cartazes e banners, abordando questões da mulher negra. Na sala do vice-presidente da entidade, existem imagens de Nossa Senhora Aparecida, do Exu e objetos ligados à simbologia do candomblé.

Os símbolos das religiosidades de matrizes africanas não estão somente distribuídos nas salas do Cenarab. Eles estão presentes nos colares usados por muitas pessoas que frequentam esse espaço. Denominados de guias, contas, runjeve, eles não são elementos de adorno. Assim como crucifixos, medalhas e terços representam objetos sagrados para os católicos, esses colares são elementos de religiosidades de matrizes africanas usados por iniciados ou simpatizantes. Suas cores têm relação direta com o Orixá e a energia que o religioso pretende buscar.

A arquitetura escolar e seus arranjos espaciais constituem, de acordo com Escolano, um currículo silencioso, cujo objetivo é instaurar determinadas subjetividades, nem sempre condizentes com aquilo que se ensina explicitamente em sala de aula. Isso não pode, no entanto, ser dito em relação ao Cenarab. As atividades realizadas em sala de aula reafirmam, de modo explícito, as intenções pedagógicas dessa entidade. Há um entrelaçamento pedagógico entre o espaço, o material didático e a mediação pedagógica. É o que veremos, a seguir.

4 IDENTIDADE DOCENTE E MATERIAIS PEDAGÓGICOS

A questão da identidade docente ganha destaque quando se analisa o contexto de modo geral. Sobre essa questão, Diniz-Pereira e Fonseca (2001) sustentam que a identidade docente é uma resultante do reconhecimento por parte dos alunos da legitimidade do outro que se coloca na condição de professor. Esses autores colocam em relevo o fato de a identidade docente ser construída na relação com o outro. Sem o revestimento de autoridade pedagógica, conferido pelo educando, e sem a constituição de uma turma para lecionar, não se inicia o processo de construção da identidade docente. Isso não ocorre, muitas vezes, sem tensões e conflitos.

No Cenarab, essa emergiu de uma maneira bastante peculiar. O reconhecimento da autoridade pedagógica da professora da Rede Municipal que atuava no Cenarab não se apoiou em títulos acadêmicos e nos conhecimentos advindos da universidade, mas da posição que ocupava no candomblé. Eis um trecho da entrevista em que ela nos explicita esse fato.

Quando cheguei aqui tive que lidar com pessoas que são reis e rainhas em seus terreiros. Eles não sabiam que era uma ekedi suspensa; alguns pensavam que era uma iaô, ou seja, uma iniciante, né? Como um iniciante vai ensinar o pai de santo que tem lá seus trinta e cinco, quarenta anos, cinquenta anos de santo? Como seria para eles entrar em sala e serem alunos de uma iaô. Essa situação se modificou apenas quando macota Celinha, nossa coordenadora, entrou em sala e disse para os alunos que eu era esposa de um ogã, bastante respeitado em Belo Horizonte e que eu era uma ekedi suspensa. Aí eu senti que deu aquela acalmada na turma (Professora da Rede Municipal de Ensino que atua no Cenarab).

O processo de reconhecimento não é, no entanto, unilateral. Os professores precisam (re)conhecer as particularidades dos alunos, o que não é uma tarefa fácil. No Cenarab, a educadora, profunda conhecedora das idiossincrasias daquele espaço e dos sujeitos que são adeptos do candomblé, construiu uma proposta pedagógica que atende quem precise se ausentar temporariamente das aulas para realizar suas obrigações religiosas.

Os alunos, às vezes, têm que se ausentar da sala de aula por conta de suas obrigações religiosas. Nós candomblecistas temos períodos de recolhimentos, chamados barcos ou feituras. Os alunos trabalhadores, cujos períodos de férias não coincidem com as férias escolares, são obrigados a se ausentar das aulas e procurar seu pai ou sua mãe de santo pra dar sua obrigação. Ele fica recolhido no terreiro. Cada caso é um caso. Há obrigação de uma feitura específica quando se completa um, dois, três, sete e quatorze anos de Candomblé. O tempo de duração da feitura vai variar, conforme o nível de inserção da pessoa no candomblé. No Candomblé se aprende no dia a dia, na prática. Como se trata de uma religiosidade baseada na oralidade, seus fundamentos mais importantes ocorrem paulatinamente. Você não vai dar pra um iniciante uma informação de uma magia, se nem sabe se ele vai continuar. O barco é quando há, em um terreiro, pelo menos três pessoas recolhidas. Se é feitura, como nós temos aqui na sala de aula de um iaô (aquele que incorpora), ele fica recolhido vinte e um dias; então, no caso de um ogã, de uma ekedi, dependendo da nação, são quatorze dias ou vinte e um dia. Temos que pensar então em atividades que permitam esse tipo de afastamento temporário. Na escola, ele fica faltoso; em alguns casos, até evadem; no Cenarab, ele recebe um tratamento diferenciado, a fim de que possa cumprir suas obrigações com seu pai ou mãe de santo (Professora da Rede Municipal de Ensino que atua no Cenarab).

Com enfoque na pedagogia diferenciada, ela procura individualizar o percurso escolar e diversificar a prática educativa, oferecendo uma educação sob medida. Há muitos agrupamentos em sala de aula. Uns que não dominam o sistema alfabético têm uma atenção especial. Eles são alfabetizados a partir palavras geradoras ligadas às religiosidades de matrizes africanas. Enquanto isso, os que já possuem certa autonomia na leitura e na escrita são desafiados a ler, elaborar textos e debater sobre o que estão estudando. As aulas expositivas dialogadas, os filmes e documentários são assistidos e analisados conjuntamente.

As particularidades do Cenarab não se encerram no entrelaçamento das identidades religiosas e docente e pela diversificação da prática educativa. Os materiais didáticos conferem uma grande centralidade no estudo da História e da Cultura da África. Como se sabe, a lei 10.639/03, que altera a lei 9395/96, instituindo a obrigatoriedade de os estabelecimentos escolares trabalharem tais conteúdos, busca enfatizar o caráter multicultural da formação da sociedade brasileira.

Embora a Secretaria Municipal forneça livros didáticos, a professora do Cenarab organizou uma coletânea de textos e de atividades pedagógicas para serem trabalhadas em sala de aula. Tal material, intitulado “Educando a partir da realidade de matriz africana”, é usado em quase todos os encontros, o que demonstra seu peso no processo educativo. O mesmo não se pode dizer a respeito das obras fornecidas pelo poder público, utilizadas pontualmente, e de forma bastante seletiva, no cotidiano escolar.

Ao examinar o material organizado pela professora, podemos afirmar que os textos foram selecionados a partir cinco intenções pedagógicas bastante claras: questionar as imagens e os estereótipos que essencializem a África como local de miséria, doenças e guerras; compreender a África como um continente de cultura, de relações sociais, históricas, econômicas e familiares complexas; descrever e analisar as influências e contribuições da cultura afro no processo de formação da sociedade brasileira; descrever e analisar as formas de resistências dos grupos africanos que foram trazidos à força para o Brasil; compreender e denunciar as diferentes formas de manifestação do racismo na sociedade brasileira e as personalidades negras que influenciaram a sociedade brasileira.

Os textos e as atividades que questionam as imagens e os estereótipos que representam a África como local de miséria, doenças e guerras são precedidos de duas atividades: reconhecimento desse continente no mapa, com seus respectivos países e capitais, bem como a identificação de pontos turísticos da África.

Na primeira atividade, os estudantes têm a oportunidade de compreender que se trata de um continente, composto por 54 países, que ocupa o segundo lugar em extensão no planeta. Na segunda atividade, eles têm condições de perceber que existem pontos na África que são visitados por turistas do mundo inteiro. Além de um texto informativo sobre as pirâmides de Gizé, das Cataratas Vitória, dos parques e reservas ecológicas do Zimbábue, Tanzânia e Quênia, deserto do Saara, as elevações de Kilimanjaro, local coberto constantemente por neve, a exuberância do Rio Nilo, os alunos são “convidados” a conhecerem, por meio de vídeos, tais lugares. As cidades de Lagos, na Nigéria; Casablanca, em Marrocos e Johanesburgo, na África do Sul são mostradas como locais marcados por um dinamismo econômico e político. Essas atividades são mediadas pela professora que busca demonstrar, com exemplos, que a África não pode ser pensada como um conjunto de imagens em um todo indiferenciado, como nos transmitem os meios de comunicação. Ela também não pode ser vista como um território exótico, primitivo, dominado e presidido pela desordem.

As duas atividades descritas anteriormente buscam criar um ambiente de aprendizagem significativa, que faça sentido para o público do Cenarab, constituído majoritariamente por pessoas negras, integrantes de comunidades de terreiros. O material apresenta, ainda, textos que destacam as peculiaridades do continente africano, tendo como eixo a população, a economia, os aspectos físicos e humanos.

Na parte do material didático que busca compreender a África como um continente de cultura, de relações sociais, históricas, econômicas e familiares complexas, há um texto que trata do Egito Antigo, destacando seus conhecimentos na área de engenharia, medicina e nos campos das artes. Além disso, apresenta seus mitos religiosos e sua organização política e social. Há também uma síntese dos costumes e tradições de grupos étnicos, tais como Axante, Ewe, Fante, Fon, Hauçá, Ijexá, Gá, Iorubá, Jeje, Malê, Malingue, Mina, Mouro e Nagô. As atividades de caça-palavras, palavras cruzadas buscam enfatizar as palavras-chave do conteúdo e as ideias centrais de cada texto. Nesse tópico, há uma grande ênfase na cultura nagô, destacando sua influência para a construção das religiosidades afro-brasileiras. Consta, no material, um vasto vocabulário crítico, com verbetes que definem expressões que dizem respeito às culturas de origem africana, tais como raça, etnia, resistência negra, consciência negra, Olodum, dentre outros.

Na parte que aborda as formas de resistências dos grupos africanos que foram trazidos à força para o Brasil, o material destaca não somente o peso das comunidades quilombolas e as fugas dos escravos, mas também a maneira como foram conservadas as religiosidades de matrizes africanas, os processos de sincretismos e os atos de intolerâncias sofridas pelas comunidades de terreiros. Um dos textos procura comparar o mito de criação de matriz judaico-cristã com o mito de criação de tradição nagô. Em outro, há uma receita de Ebó de prosperidade. Na parte que trata das diferentes formas de manifestação do racismo na sociedade brasileira, destaca-se não somente o racismo institucional, mas também sua manifestação velada. Outro ponto abordado é o lugar da mulher negra na sociedade brasileira. Na última parte do material, há uma seleção de personalidades negras que influenciaram a sociedade brasileira: Zumbi, Rainha Nzinga, Cruz e Souza, Dandara, Lélia Gonzáles, Luiza Mahin, Abdias do Nascimento, Aleijadinho, André Rebouças, Chica da Silva, Mestre Pastinha, Professor Milton Santos, Mestre Bimba, Mestre Didi, Luiz Gama, Mário de Andrade e João Cândido. Também se destaca a condição da mulher negra no Brasil, em uma perspectiva que articula gênero e raça como elementos que podem reforçar as desigualdades socais.

5 CONCLUSÃO

Sobre a experiência educativa no Cenarab, há três pontos que merecem ser destacados como um movimento negro educador, conforme a tese defendida por Nilma Lino Gomes (2017).

O primeiro diz respeito aos aspectos políticos que envolvem essa entidade. Ao indagar sobre as relações de poder que, explícita ou tacitamente, contribuem para manutenção das desigualdades étnico-raciais, o Cenarab irrompe no cenário nacional como um importante instrumento de luta em prol de políticas de reparações, de reconhecimento e de ações afirmativas. Ao insurgir-se como instrumento, a entidade se constitui como sujeito político e coletivo, não apenas contra a intolerância religiosa, mas também ressignificando o que havia sido dito e escrito sobre as heranças religiosas africanas no Brasil (PIERSON, 1971). Pode-se notar que há uma busca pela articulação de saberes críticos (NASCIMENTO, 2016) e emancipatórios produzidos pelos negros e negras na sociedade brasileira (GOMES, 2017).

O Cenarab coloca, assim, em questão um tema pouco debatido nos meios educacionais: a complexa relação entre raça e religiosidade. O Estado brasileiro privilegia, como destaca Cunha (2013), as religiões de matriz cristã, especialmente o catolicismo. Isso pode ser observado, conforme examinado por Oliveira (2009) nos nomes de certos estabelecimentos de educação pública (a lista de escolas com nomes de sacerdotes e de santos católicos é extensa), nos marcadores simbólicos que invadem o espaço escolar (crucifixos, imagens de Nossa Senhora e de Santos Católicos), nos componentes curriculares (Ensino Religioso) e nos rituais pedagógicos (Oração do Pai Nosso, no início das atividades escolares). Dessa forma, a organização espacial do Cenarab visa dar visibilidade a uma matriz religiosa que foi ativamente silenciada, embora faça parte da realidade brasileira.

O segundo ponto diz respeito aos aspectos educacionais nos quais o Cenarab encontra-se envolvido. Essa entidade atua tanto em conformidade com os princípios da lei 10639/03 quanto com as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Isso pode ser visto nos arranjos espaciais, na mediação pedagógica e na coletânea de textos, nas ilustrações e atividades trabalhadas em sala de aula. Como destacamos, há um entrelaçamento desses elementos, permitindo a construção de um ambiente formativo que visa, por um lado, a indagar sobre a manutenção de privilégios exclusivos para certos grupos com poder de governar e de influir na elaboração de políticas públicas e, por outro lado, a instituir o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, em uma perspectiva de promoção de uma educação étnico-racial.

O terceiro ponto diz respeito às possibilidades educativas suscitadas pela experiência educacional da EJA no Cenarab. Por se encontrar em uma zona de fronteira, essa proposta pode contribuir para o processo de inovação prática e teórica do campo da educação de jovens e adultos. Além disso, como um processo formativo, a experiência se configura dentro da concepção de educação estabelecida no artigo primeiro da Ldben. Como destacam Di Pierro; Joia e Ribeiro (2001), a EJA se notabiliza por abarcar uma série de iniciativas, visando à qualificação profissional, ao desenvolvimento comunitário, à formação política e a outras tantas questões culturais. As autoras sustentam que tais experiências podem ser estudadas com a finalidade de se repensar o cânone da escola regular, com seus tempos e espaços rigidamente delimitados. Em um momento em que se busca, por um lado, a implementação da lei 10.639/03 e, por outro lado, a construção de um espaço público, que fomente o direito à diferença, respeito à liberdade e o apreço à tolerância, a experiência da EJA no Cenarab pode se tornar uma fonte de inspiração para novas práticas educativas, em uma perspectiva emancipatória.

A proposta da EJA naquela entidade nos permite, portanto, repensar imagens hegemônicas que moldam nossos olhares sobre a África e sobre as comunidades de terreiros, o que pode contribuir para a construção de uma sociedade em que o diferente não seja tratado com desprezo, nem como ameaça.

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NOTAS:

1 O Cenarab, criado no estado de São Paulo, durante o 1° Encontro Nacional de Entidades Negras realizado nos dias 14 a 17 de novembro de 1991, no Estádio do Pacaembu. Por meio de diferentes ações, a entidade busca denunciar a intolerância religiosa e o racismo no Brasil, bem como valorizar a história e a cultura da África. Com sede em Belo Horizonte, o Cenarab se encontra estabelecido em 18 estados da União. Em seu site oficial, apresenta suas ações e suas perspectivas políticas na luta contra o racismo religioso e racismo institucional. Disponível em: http://www.cenarab.com.br/. Acesso em: 18 jan. de 2022.

2 A máscara de Obá, com a orelha esquerda mutilada, remete-nos a uma mitologia iorubá, narrada por Bastide (2009). Xangô tinha três mulheres: Iansã, Oxum e Obá. Ele preferia, no entanto, Oxum. Para atrair a simpatia do marido, Obá decide perguntar a Oxum qual era seu segredo. Oxum afirma que havia cozinhado uma de suas orelhas no caruru e servido ao marido. “Obá segue a receita e consegue apenas um gesto de asco do marido, que termina por repudiá-la quando, desfigurada, conta o ingrediente que pusera na comida. Este é o motivo pelo qual Obá, quando se manifesta no terreiro, através dos iniciados, esconde a parte mutilada com as mãos ou um turbante.” Para maiores detalhes, cf. Bastide (2009).

3 Iansã, representada com alfange, uma cauda de animal nas mãos e com um chifre de búfalo na cintura. Considerada senhora dos raios, ventos e tempestade, ela é vista no candomblé como guerreira, com liderança incontestável. Para maiores detalhes, cf. Oxaguiã e Kiluy (2009).

4 Nanã é considerada a primeira esposa de Oxalá. De acordo com a mitologia Iorubá, ela representa tranquilidade e segurança, mas não admite traição. Embora aja com rigor, suas decisões são ponderadas. Para maiores detalhes, cf. Oxaguiã e Kiluy (2009).

5 Os assentamentos sagrados dos Orixás são artefatos que representam feitura de santos. Os assentamentos simbolizam energia oriunda da natureza, emanada pelos Orixás.

6 Na mitologia Nagô, Oxumaré é representado por uma cobra arco-íris. Sua função é dirigir as forças que impulsionam o movimento. Para maiores detalhes, cf. Oxaguiã e Kiluy (2009).

7 As marcações simbólicas do Cenarab não são transparentes. Elas requerem, do observador, uma mínima inserção cultural no campo e uma mínima compreensão dos ritos e dos mitos das religiões de matrizes africanas. Em nosso caso, a descrição do ambiente somente foi possível porque a coordenadora pedagógica e o vice-presidente do Cenarab se dispuseram a nos decodificar as simbologias inscritas nas paredes, nos objetos distribuídos em várias partes do ambiente pesquisado. Nesse processo, sentimos como o personagem Macondo do romance Cem anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques, que, diante de sua imersão em uma realidade que lhe era completamente estranha, afirma espantado: “o mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las era preciso apontar com o dedo”.

8 Na mitologia Nagô, Oxumaré é representado por uma cobra arco-íris. Sua função é dirigir as forças que impulsionam o movimento. Para maiores detalhes, cf. Oxaguiã e Kiluy (2009).

Recebido: 29 de Junho de 2021; Aceito: 24 de Janeiro de 2022

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