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Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.20 no.1 São Paulo Jan./Mar 2022  Epub May 06, 2022

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2022v20i1p394-414 

Artigos

Práticas educativas interculturais:fissuras no processo formativo de docentes da educação profissional técnica

Intercultural educational practices:cracks in the formative process of teachers in technical professional education

Prácticas educativas interculturales:grietas en el proceso formativo de los profesores en educación técnica professional

Graziela Ninck Dias MENEZESi 
http://orcid.org/0000-0002-8879-5471

Jane Adriana Vasconcelos Pacheco RIOSii 
http://orcid.org/0000-0003-1827-3966

i Doutora em Educação e Contemporaneidade. Professora do Ensino Básico Técnico e Tecnológico do Instituto Federal da Bahia. E-mail ninckgdm@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-8879-5471.

ii Pós-doutora em Educação. Professora Titular Plena da Universidade do Estado da Bahia. Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade. E-mail jhanrios1@yahoo.com.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-1827-3966.


Resumo

O artigo resulta de uma pesquisa que cartografou a profissão docente na Educação Profissional Técnica a partir de experiências educativas com a diversidade. Reflete como o processo civilizatório construído pela Razão Indolente (SANTOS, 2011) incide sobre a educação e destaca como a produção de práticas educativas interculturais (TUBINO, 2016; FLEURI, 2017) gera fissuras no processo formativo dos docentes e os reposicionam na profissão (NÓVOA, 2017). O trabalho se desenvolveu a partir da aplicação de um questionário survey, rodas de conversa e cartas pedagógicas com docentes do Instituto Federal da Bahia. Os resultados apontam que, diante do contexto da diversidade como campo de disputa e insurgência dos sujeitos, as fissuras produzidas nos processos formativos anunciaram-se como reconhecimento da formação específica que amparem as dimensões metodológicas, curriculares e políticas que cercam o campo pedagógico.

Palavras-chave: práticas educativas; interculturalidade; diversidade; formação de professores; educação profissional técnica

Abstract

The article is the result of research that mapped the teaching profession in Technical Professional Education based on educational experiences with diversity. It reflects how the civilizing process built by Indolent Reason (SANTOS, 2011) affects education and highlights how the production of intercultural educational practices (TUBINO, 2016;FLEURI, 2017) it generates cracks in the training process of teachers and reposition them in the profession (NÓVOA, 2017). The work was developed from the application of a survey questionnaire, conversation circles and pedagogical letters with teachers from the Federal Institute of Bahia. The results show that, given the context of diversity as a field of dispute and insurgency of the subjects, the cracks produced in the training processes were announced as recognition of specific training that supports the methodological, curricular and political dimensions that surround the pedagogical field.

Keywords: educational practices; interculturality; diversity; teacher training; technical professional education

Resumen

El artículo es el resultado de una investigación que mapeó la profesión docente en Educación Técnica Profesional basada en experiencias educativas con diversidad. Refleja cómo el proceso de civilización construido por Reason Indolent (SANTOS, 2011) afecta la educación y destaca cómo la producción de prácticas educativas interculturales (TUBINO, 2016;FLEURI, 2017) genera fisuras en el proceso de capacitación de los docentes y los reposiciona en la profesión (NÓVOA, 2017). El trabajo se desarrolló a partir de la aplicación de un cuestionario de encuesta, ruedas de conversación y cartas pedagógicas con profesores del Instituto Federal de Bahía. Los resultados muestran que, dado el contexto de diversidad como un campo de disputa e insurgencia de los sujetos, las grietas producidas en los procesos de capacitación se anunciaron como un reconocimiento de la capacitación específica que apoyen las dimensiones metodológicas, curriculares y políticas que rodean el campo pedagógico.

Palabras clave: prácticas educativas; interculturalidad; diversidad; formación del profesorado; educación técnica profesional

1 INTRODUÇÃO

O texto apresentado discute como a produção de práticas educativas sob a perspectiva da interculturalidade produzem fissuras decoloniais no processo formativo docente. Resulta de uma pesquisa que teve por objetivo cartografar a profissão docente na Educação Profissional Técnica (EPT), a partir das experiências educativas com a diversidade. Essa pesquisa integra-se a um trabalho que vem sendo desenvolvido sobre Profissão Docente na Bahia, realizado pelo grupo de pesquisa das autoras.

Metodologicamente, o estudo foi produzido em três momentos: primeiro foi aplicado um questionário survey com 95% de docentes de dois campi do Instituto Federal da Bahia (IFBA), que atuam nos cursos de Ensino Médio Integrado (EMI) e que estavam habilitados a participar da pesquisa, o que perfez um total de 88 participantes. Em seguida, as informações resultantes desse questionário foram debatidas em 11 rodas de conversa, por 38 docentes; por fim, seis professores/as produziram trocas de cartas pedagógicas, nas quais refletiram sobre suas experiências educativas com os sujeitos da diversidade.

O trabalho realizado fundamenta-se nos estudos de Santos (2011) sobre a constituição do projeto civilizatório, a partir da compreensão epistemológica e política produzida pela Razão Indolente (SANTOS, 2011), que se caracterizou pelo caráter de definir no presente o que era válido, verdadeiro e civilizado centrado em seus próprios pressupostos. Além disso, tomou o modelo constituído como único horizonte possível para o futuro da humanidade.

Nesse sentido, o projeto de colonização fundou-se numa perspectiva monocultural (SANTOS, 2011) que promoveu um epistemicídio sobre muitas culturas, saberes e povos. Estes, a partir da violência constitutiva de tal processo, foram submetidos, desde então, a uma lógica universalizante que os reduziu a uma não existência. Assim, a diversidade como processo inerente à natureza humana e constitutiva de grupos étnicos, culturais, linguísticos e religiosos foi tomada como justificativa para produção de um domínio epistêmico, que definiu as diferenças constitutivas da singularidade humana como uma produtora das relações de dominação e de poder no processo colonial.

Tal processo incidiu sobre diversos campos, entre estes a educação, que se constitui nos dias atuais como um contexto crítico pela tentativa de ainda manter as monoculturas produzidas na modernidade, mas das quais emergem demandas advindas de sujeitos da diversidade. Estes, por meio de processos coletivos e/ou individuais, disputam o reconhecimento de suas existências singulares e requerem validade para outros estatutos epistêmicos, culturais, sociais, políticos, entre diversas dimensões da ação humana.

Nessa direção, o texto aponta como os docentes vêm se mobilizando na construção de práticas educativas fundadas numa perspectiva intercultural (TUBINO, 2016) que produzem fissuras, inclusive, sobre o processo formativo dos/as professores/as. O autor defende que uma educação intercultural “prioriza en ella la formación de ciudadanas y ciudadanos interculturales comprometidos en la construcción de una democracia multicultural inclusiva de la diversidad en nuestro país” (TUBINO, 2005, p. 3).

Essa pesquisa então compreende a diversidade como um campo de disputa de existencialidades, que promove uma disrupção na profissão docente, diante da compreensão de que é necessária a construção de uma nova territorialidade para a ação dos professores. Assim, o currículo, os processos formativos, os modos de atuar, as práticas educativas, os lugares que os professores ocupam no interior da profissão, como se posicionam e posicionam a instituição, enquanto espaço público, são reconstituídos e se reconfiguram como insurgências e anúncios de uma cultura profissional intercultural na EPT.

2 FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO CONTEXTO DA RAZÃO INDOLENTE

Entre diversos campos sobre os quais o projeto da Razão Indolente incidiu, a educação se consolidou como estruturante para a produção e manutenção de uma hierarquia de saberes e conhecimentos que definiu o que era válido para ser ensinado às gerações futuras e quais possibilidades epistêmicas seriam adotadas como modelo de formação cultural e social das sociedades colonizadas.

Desse modo, os modelos produzidos na Europa colonizadora foram matrizes que definiram o processo de fundação da educação brasileira e, em destaque, da formação de professores. Nesse sentido, observamos a constituição da docência pelos estudos de Nóvoa (1999), quando registra que, em Portugal, a partir da segunda metade do século XVIII, viveu-se um movimento de estatização, caracterizado por um controle mais rigoroso dos processos educativos, pela constituição de um corpo de profissionais docentes recrutados pelas autoridades estatais.

Esse movimento desenvolve-se, em Portugal e em toda a Europa, ancorado no modelo racional que constituiu o Estado Moderno e baseado no que Santos (1996) denomina de pilar da regulação e pilar da emancipação. O pilar da regulação é constituído pelos três princípios: Estado, mercado e comunidade. O pilar da emancipação seria a crescente racionalização da vida social, das instituições, da política e da cultura e é formado por três racionalidades: estético-expressiva, moral e prática e cognitivo-instrumental. Apesar da promessa de equilíbrio entre os pilares da regulação e da emancipação, esse projeto sucumbiu pela redução do pilar da emancipação ao pilar da regulação. Assim, em vez de se tornar um ponto de tensão, para garantir que o objetivo das promessas da emancipação social se cumprisse, o pilar da regulação acabou se impondo ao modelo societário cultural e epistemológico, já estando desequilibrado dentro de seus três eixos, ao ser dominado pelo mercado. Em decorrência, os modelos epistemológicos e sociais se fundiram na constituição do projeto moderno e suas consequências também se apresentam articuladas.

A tensão produzida entre regulação-emancipação constituiu duas formas de conhecimento: o conhecimento-regulação e o conhecimento-emancipação (SANTOS, 1996). O primeiro traduzia como ignorância o caos e como saber, a ordem. Por sua vez, o conhecimento-emancipação via a ignorância como colonialismo e a solidariedade como ordem. Considerando que o pilar da regulação teve hegemonia sobre o pilar da emancipação, o primeiro recodificou em seus termos o conhecimento-emancipação, transformando a solidariedade em caos e o colonialismo, em ordem. Com sua prevalência, o conhecimento-regulação, agora fundido ao conhecimento-emancipação, definiu a racionalidade cognitivo-instrumental como um ponto de referência para a definição do que é saber. Nessa esteira, construiu como fundamento do desenvolvimento de conhecimento e de formação, em geral, a ciência e a técnica e como modelo de organização social, o Estado, com seu processo de regulação, que se impôs como futuro, em uma perspectiva monocultural, que admitia apenas um modelo de mundo possível.

Nesse caminho, o modelo de profissionalização do magistério em Portugal, apontado por Nóvoa (1999) como fruto do Estado Moderno, desenvolveu-se tendo como horizonte o modelo da ordem e como referência para a produção do conhecimento a racionalidade cognitivo-instrumental. Além disso, não se desenvolveu em um único país, mas se replicou em outros locais onde a força de imposição do modelo ocidental acontecia (NÓVOA, 1999) e com a produção de uma monocultura de escala dominante, como adverte Santos (2011).

Na história político-educacional do Brasil (ROMANELLI, 2010), no processo de mudança do sistema político, que levou o País até a República, no século XIX, e iniciou, no século XX, o processo de urbanização e industrialização, observa-se que o trabalho educacional, estando à mercê dos valores que a sociedade dominante incorporou, submeteu-se à constituição de modelos educacionais que atenderiam sempre aos interesses das elites, quer oligárquicas ou da nova burguesia, que instaurou a República. Assumiu-se, aqui, o controle estatal, reproduzindo-se a ideia de controle sobre os processos educativos no Brasil, tal como salientou Nóvoa (1999), no modelo de constituição da profissão docente em Portugal.

Assim, no processo de instituição da profissão docente no País, teve centralidade a dimensão da formação. Os estudos de Catani e Silva (2007) mostram que, apesar de o processo de profissionalização dos professores remeter às várias dimensões que constituem a atividade da docência, destaca-se a relevância dos aspectos formativos nesse contexto.

Segundo Tanuri (2000), a formação de professores no Brasil tem seu nascedouro a partir do sistema europeu, mais especificamente o francês, resultante de nossa tradição colonial e do fato de que o projeto nacional adotado pelas elites foi baseado na formação cultural europeia. Em seu estudo, a autora revela que, apesar dos aspectos específicos de cada época, ao longo do século XX, observa-se que a formação de professores esteve sempre voltada para o atendimento de uma escola produtiva e eficiente, sobretudo na década de 1970, sob os ditames de uma compreensão tecnicista da educação. Apesar do movimento que se identifica na década de 1980, que trouxe exigências acadêmicas e de formação propedêutica para os cursos de professores nas universidades, e da reação dos docentes via organizações como Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE), para a superação de modelos instrumentalistas, a formação docente ainda é um campo em disputa.

Há uma constatação, também feita por Nóvoa (2009), de que as últimas décadas do século XX, no que tange à educação e à formação de professores, caracterizaram-se pela racionalização do ensino (década de 1970), as reformas educativas, centradas na estrutura dos sistemas escolares e dos currículos (década de 1980) e nas organizações escolares e seu funcionamento, administração e gestão (década de 1990), tendo acentuado os investimentos em políticas curriculares e de formação de professores, que passam a ter um caráter prescritivo.

Tal atenção especial aos professores coloca-os no centro das políticas e dos organismos internacionais, o que é considerado por Nóvoa (2009, p. 15) como “inflação discursiva”, pois gerou sobre eles “maior visibilidade social, o que reforça o seu prestígio, mas provoca também controlos estatais e científicos mais apertados, conduzindo assim a uma desvalorização das suas competências próprias e da sua autonomia profissional”. Assim, resguardando os momentos políticos e econômicos de cada época, é possível observar o avanço do conhecimento-regulação e da emancipação cognitivo-instrumental sobre a profissão docente, em seu caminhar histórico, por meio do processo formativo de professores.

Como parte dessa construção, os professores da EPT também têm sua trajetória marcada por um processo de regulação pautado pelas bases do conhecimento cognitivo-instrumental. De acordo com os estudos de Machado (2008; 2013), a docência na EPT, voltada à formação para o trabalho até a década de 1940, esteve completamente à parte do movimento educacional no Brasil. A educação para o trabalho manual era depreciada, uma vez que o caráter colonial e escravagista de nossa sociedade creditava o trabalho braçal aos escravos e aos pobres e, assim, inexistia no campo educacional. É o avanço do modelo desenvolvimentista, que adentra no País, na primeira metade do século XX, e demanda a formação de escolas para o trabalho e a preparação de professores para atuar em cursos específicos. Entretanto, esse movimento é pontual, sem articulação com a estrutura educacional do País, pois, segundo Machado (2013, p. 349), “a formação sempre foi caracterizada por cursos pontuais, apropriados ou emergenciais”.

Somente a partir da década de 1960 que o processo formativo de professores para a EPT passou a ser regulado pelo MEC, mediante o registro de professores e com suas normas estabelecidas por meio de portarias ministeriais. No fim dessa década e nos anos de 1970, no período da ditadura militar e de abertura do mercado para empresas estrangeiras, além da entrada de novas tecnologias, aumentou a exigência de formação para o trabalho pautada por conhecimentos científicos e técnicos.

Nas décadas de 1980 e 1990, mesmo com o advento da constituição federativa e da Lei de Diretrizes e Bases de 1996, há um silenciamento acerca dos professores da EPT e, em 1986, os órgãos que vinham cuidando dos cursos de formação foram extintos. Apenas em 1997, há um retorno da discussão sobre a formação de professores nessa modalidade educacional, mas com a proposição de carga horária inferior aos cursos que vinham sendo desenvolvidos anteriormente. Em 2002, reconhece-se, no Parecer do CNE n.º 37/2002, que é preciso pensar em uma política de formação de docentes para a EPT. Entretanto, afirma-se que há dificuldades para organizar licenciaturas específicas, em virtude da multiplicidade e das mudanças constantes nas áreas produtivas, além de orçamento adequado para sustentar licenciaturas dessa natureza.

Na última década, mesmo com o advento dos institutos federais e a ampliação das redes estaduais de EPT, a discussão sobre a profissão docente, nesse segmento, ainda se mostra restrita. Em 2008, Machado (2008) registra ainda a iniciativa de debater uma política de formação para os professores, mas que não gerou nenhuma ação para esse fim. Cabe salientar que, pela característica da modalidade educacional, são recrutados profissionais que possuem formação em licenciaturas, mas também em áreas técnicas ligadas aos diversos arranjos produtivos do País.

A reflexão sobre como, historicamente, a profissão docente tem sua gênese no processo de emolduramento dado pela indolência da razão moderna revela como o campo da educação sempre esteve submetido a uma lógica de construção de saberes marcados por modelos que compreendem a realidade como algo a ser moldado e definido pelos ditames de um pensamento solipsista e apartado das diversas formas de compreender e produzir a realidade.

3 MARCAS DA MONOCULTURA EPISTÊMICA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL TÉCNICA

Ao tecerem uma discussão acerca de seus processos formativos, os professores que participaram da pesquisa refletiram sobre como o modelo epistemológico hegemônico produzido pela indolência da razão se produz diante da política de formação inicial e continuada da instituição. Nos dois campi, em percentuais acima de 70%, os/as docentes indicaram que a graduação foi importante para a atuação na EPT, mas que essa formação não permitiu conhecer a realidade da escola básica, conforme revela a narrativa a seguir:

A licenciatura ela te volta para ser professor, ela não te volta para ser professor de escola técnica. Quando a gente discute formação integrada e formação técnica... você é professor. E aí tem a necessidade de você conseguir usar o caso da licenciatura e se entender com professor da Escola Técnica e conseguir pensar sua formação a partir desse lugar (Professor Raul,1 Campus 1, Roda de Conversa, 2018).

Observamos nessa narrativa e em outras que os professores apontaram como os processos formativos na graduação estão desarticulados do exercício profissional na escola básica. O professor Raul reflete ainda como inserir-se em uma realidade tão específica como a EPT integrada ao Ensino Médio requer a constituição de um modo de atuar com demandas e exigências próprias. Fica nítida tal percepção, uma vez que o professor mostra, entre os pares, a ausência dessa compreensão, fazendo com que os professores atuem sem a integração de práticas e saberes ou garantam a especificidade de uma educação vinculada à formação de uma profissão, mesmo no caso de professores licenciados que são a maioria nos dois campi.

As narrativas apontaram que ainda há um fosso entre a universidade e a escola básica, revelado na perspectiva dicotômica entre o saber acadêmico, tido como teórico, e os saberes dos professores ou as práticas desenvolvidas, o que marca a visão instrumental e hierárquica do conhecimento produzido no pilar da regulação em sua consolidação do projeto da modernidade.

Nóvoa (2017) assinala que a perspectiva da formação de professores, a partir de cursos universitários, trouxe ganhos significativos nos planos acadêmico, simbólico e científico, mas se perdeu no entrelaçamento com a profissão. Afirma ser importante pensar a formação inicial de docentes a partir de um espaço fronteiriço, entre a universidade e a escola, em que se pense a formação como um continuum, um espaço onde se produza não só a formação, mas também a profissão e seu reconhecimento público.

Nesse aspecto, as narrativas apontaram como tal questão se torna ainda mais aguda para os bacharéis, em razão da característica dos cursos de bacharelado que não possuem qualquer identidade com a profissão docente. No quadro de professores/as que atuam no EMI, 33% dos docentes dos campi fizeram suas graduações em cursos de bacharelado ou como tecnólogos. Portanto, um terço dos docentes que atuam na educação básica desses campi não possuem formação inicial para a docência.

Diante dessa realidade, os/as professores/as, bacharéis e tecnólogos, constataram que vivenciaram a entrada na profissão sem uma proposição formativa que orientasse a atividade educativa. Ainda apontaram que não tiveram qualquer formação ou orientação para atuar nas demandas específicas dessa etapa e modalidade de ensino. Durante as rodas de conversa, os docentes expressaram que o fato de terem formação acadêmica e até pós-graduação não garante a eles condições de atuar e dominar os processos pedagógicos.

Imagine que é uma escola técnica, que você precisa de professores da área técnica, são todos bacharéis, a gente chega aqui, imagine, eu cheguei em 2012, a gente vai aprender mesmo no dia a dia, na prática da sala de aula, nas vivências com os colegas, nas reuniões, na conversa (Professora Simone, Campus 1, Roda de Conversa, 2018).

A professora Simone revela, em sua narrativa, as condições de iniciação da docência na EPT. Sem uma política de formação, conforme preconiza a legislação, os/as professores/as bacharéis acabam construindo referenciais na prática e por meio de trocas com seus pares. Entretanto, a construção desse saber realiza-se de forma espontânea, sem a mediação de um processo formativo que possa problematizar as relações pedagógicas e educativas cotidianas e constituir saberes que promovam uma ação docente reflexiva.

Portanto, no processo de iniciação da docência, os/as professores/as bacharéis não acessam outros processos formativos que tenham foco na profissão e na especificidade do trabalho docente. Sem estabelecer um movimento reflexivo de indução à profissão, por meio de trocas que transmitam a expertise do exercício profissional, as referências constitutivas da identidade profissional podem abarcar elementos que não aproximam os docentes do universo escolar ou das atividades que constituem as especificidades delineadas pela profissão docente.

Ao discutirem a questão da formação continuada, os docentes deixaram claro os motivos pelos quais 30% dos/das professores/as do campus 1 e 29% dos/das professores/as do campus 2, que investiram na formação, buscaram cursos no campo da educação. No entanto, em percentuais bem maiores, 67% dos/das docentes do campus 1 e 35% do campus 2 realizaram esse investimento em cursos de suas áreas de formação. Ratificaram que os conteúdos técnicos e científicos de suas áreas são relevantes para a atuação e, por não conhecerem bem o campo pedagógico, ancoram todo o seu fazer nos conteúdos que dominam, supervalorizando os conhecimentos e as experiências originários da área de formação inicial. Ainda que reconheçam as necessidades do saber pedagógico, este é minimizado na prática docente.

Tal aspecto mostra que os processos formativos, quer dos/das licenciados/das ou dos/das bacharéis, ainda se assentam no modelo de uma razão metonímica (SANTOS, 2011) e consideram, como conhecimentos de ordem secundária, aqueles voltados às relações sociais, às questões da ética e da condição do próprio ser humano como ser cultural, que constituem matrizes no campo da educação. Assim, privilegia-se, na educação e na formação de professores e profissionais, em geral, a ideia de rigorosidade da técnica e da ciência cognitivo-instrumental, presente no conhecimento-regulação. Para Santos (1996, p. 25),

[...] a medida que a ciência moderna foi ganhando terreno sobre formas alternativas de conhecimento - dos saberes locais à religião, da filosofia às humanidades - e, sobretudo, à medida que foi se convertendo em força produtiva do capitalismo industrial, o equilíbrio sobre as duas formas de conhecimento rompeu-se e a ciência moderna passou a ser conhecimento-como-regulação por excelência.

Nessa direção, a ideia da formação docente, amparada no domínio específico de um conteúdo técnico ou na ciência normativa, tem matriz no modelo fragmentado de conhecimento também constituído nos moldes da modernidade científica, o que configurou o critério de confiança acerca do processo de ensino. Entretanto, tal aspecto vem sendo questionado, visto que o cotidiano escolar, sendo permeado por sujeitos de diferentes universos culturais, coloca em questão o papel de muitos desses conhecimentos. Assim, o conhecimento escolar é constituído por relações sociais e culturais, processos complexos de mediação que têm dinâmicas próprias e precisam ser ressignificados continuadamente, de acordo com os contextos vividos.

O modelo de formação de professores/as que privilegia o domínio de conteúdo específico, desenraizado das demandas cotidianas, tende a se afastar cada vez mais das exigências que a presença de sujeitos da diversidade anuncia, evocando diálogo e negociação em face de suas constituições identitárias.

Diante disso, uma questão suscitada nas rodas de conversa foi a promoção do processo formativo com relação à diversidade. Foi apontado por 80% dos/das professores/as do campus 1 e 96% dos/das professores/as do campus 2 que não houve orientações ofertadas pelos campi para atuarem com as questões da diversidade. Nesse ponto, os/as professores/as nortearam o tema com algumas questões que aprofundam o olhar sobre tal situação. A narrativa a seguir revela como alguns se posicionaram acerca dessa questão:

[...] a gente tem que pensar que devido à faixa etária dos professores, as temáticas de hoje não eram temáticas recorrentes de 10, 15, 20 anos atrás [...] cultura africana e indígena, é obrigatório. Só que a gente não está preparada, eu não estudei isso e aí quando eu tiver que dar aula, porque que não existe então para os professores que não tem, professores de português que não deram essa disciplina e que não conhecem, por que não existe um curso? Então, essas coisas deveriam ser pensadas ou que fosse a nível local, da direção de ensino ou que viesse lá da reitoria. Quem pensa a educação do instituto federal? (Professora Melissa, Campus 2, Roda de Conversa, 2018).

Na narrativa da professora, fica nítida a ausência de uma política e de ações diretivas no próprio campus acerca da formação docente. Percebemos, nos diálogos, que há uma demanda por formação. Foi revelado, em algumas rodas de conversa, o sentimento de abandono e até uma possível frustração, pois muitos docentes afirmaram entender que as orientações fariam parte do processo de iniciação ou inserção na docência na EPT, ao assumirem suas vagas nos concursos realizados. Tal questão fica expressa na narrativa da professora Melissa quando indaga “quem pensa a educação do instituto federal?”, pois mostra o vazio constituído e sentido por ela diante do desafio de atuar com temáticas que já reconhece como obrigatórias e pertinentes, questões que fazem parte do cotidiano de uma geração inserida numa contemporaneidade que se caracteriza pelo conflito entre a metanarrativa do Ocidente e o grito dos excluídos das diversas partes do mundo. Por outro lado, a professora também problematiza que há um esquecimento da formação docente, por setores de gestão do campus, retratando a necessidade de uma ação articuladora, que mobilize processos de encontro e discussões.

Entre os tantos temas que constituem a complexidade da formação docente, a questão da diversidade revelou-se um ponto nodal, uma vez que se acirra nas escolas a partir dos marcadores da diversidade, tratados como elementos de hierarquização, que acabam exigindo dos/das professores/as modos de atuar e se posicionar nas múltiplas situações que podem ocorrer. Como foi apontado na narrativa da professora Melissa, os/as docentes revelaram que, tanto na graduação como nas atividades de formação continuada, são poucos/as os/as que tiveram oportunidade de estabelecer uma reflexão acerca dessas situações.

Ao problematizar que as mudanças ocorridas nas políticas educacionais voltadas para as ações afirmativas, tal como a Lei 11.645/2008, não alcançaram o período formativo de alguns professores, a professora Melissa infere que não houve para esses/as professores/as a possibilidade de constituírem, em suas graduações, referências sobre esse aspecto que contorna o processo formativo. Outro aspecto suscitado referiu-se aos modelos formativos que constituem o campo cultural no qual são forjados nossos valores e percepções acerca da diversidade, como é revelado na narrativa a seguir

[...] a nossa cultura brasileira muito foi forjada no autoritarismo, não somos formados para pensar no diferente. Pelo contrário, a gente é formado para reprimir o diferente, com machismo, com racismo, com certo ódio à pobreza, uma repulsa à pobreza, não que ser pobre seja bom [...] a gente não tem essa formação muitas vezes na área de humanidades, onde você tem uma possibilidade de você criar certa consciência política nesse sentido de combate às repressões e de luta por direitos, mas aí a gente chega num espaço de trabalho como esse, sem essa dimensão, sem esse critério de sensibilidade, então, obviamente, você não vai né... (Professor Pedro, Campus 1, Roda de Conversa, 2018).

Na narrativa supra, o professor Pedro destaca especialmente as marcas de um imperialismo cultural (SANTOS, 1996), reveladas por ele como a repulsa à pobreza, o machismo e o racismo, que constituem modos de ver da nossa cultura e que os docentes, como sujeitos de um contexto, também podem reverberar tal visão. Nessa direção, sua provocação dirige-se à importância dos espaços de reflexão no campus, onde o conflito pedagógico e formativo possa ser instalado, visando à construção do que chama de “consciência política”, apontada pelo professor como uma possibilidade formativa que leve às ações de “combate à repressão e luta por direitos”.

Corroborando essa discussão, Santos (1996, p. 30) aponta que é importante criar espaços pedagógicos de conflito cultural e que tais conflitos devem “ocupar o centro de toda experiência pedagógica emancipatória”, para vulnerabilizar e desestabilizar os modelos epistemológicos dominantes e as “imagens criadas a partir das culturas dominadas e da marginalização, opressão e silenciamento a que estão sujeitas e, com elas, os grupos sociais que são seus titulares” (SANTOS, 1996, p. 30). Considerando essas reflexões, compreendemos que, quando o professor chama a atenção para o fato de que muitos docentes chegam à escola sem uma formação voltada para as humanidades, ele se dirige para a necessidade de constituição desses espaços de discussão, entretanto, isso só será possível se os diálogos gerarem uma “educação cidadã intercultural” (TUBINO, 2016), que, segundo esse autor, é capaz de mostrar os modos de opressão constituídos no âmbito social, econômico e político, para que esses espaços possibilitem um diálogo que engendre uma democracia intercultural e inclusiva da diversidade.

Tal problematização revela-se como uma dicotomia criada pela razão indolente, que toma a ciência apenas pelo seu caráter cognitivo-instrumental e dirige seu potencial para a produção de uma técnica que se afirma pela eficácia na transformação material da realidade, mas deslocada dos contextos de sua aplicação. Assim se consolidou, como modelo único constituidor de verdade, tentando dissolver problemas sociais, políticos e existenciais em problemas científicos, como se a lógica de algoritmos pudesse resolver. Santos (1996) chama a atenção para o conflito a ser estabelecido entre a aplicação técnica e a aplicação edificante da ciência, uma vez que, nesta última perspectiva, seja uma ciência comprometida com sua aplicação e seus efeitos na condição existencial, social e política dos seres humanos.

Entretanto, a construção de uma perspectiva integrada de ensino imbrica-se diretamente com a construção de um projeto formativo docente que leve em conta a diversidade e os processos de sua apropriação como um mecanismo de garantia da singularidade das pessoas.

4 PRÁTICAS EDUCATIVAS INTERCULTURAIS INSURGENTES E AS FISSURAS NA FORMAÇÃO DOCENTE

Ao relatarem e refletirem sobre as experiências educativas com a diversidade, os/as docentes que participaram da troca de cartas pedagógicas revelaram que vêm produzindo práticas educativas que andam à margem do modelo promovido pelo conhecimento-regulação. Esse movimento vem produzindo fissuras nos processos formativos nos modos de atuar com os sujeitos da diversidade.

Nessa direção, a professora Carla revelou que considera importante perceber as histórias, os movimentos vividos pelos estudantes, a partir das questões que os afetam enquanto sujeitos da diversidade. Ao narrar suas experiências educativas, ela reflete como pisar “no chão da escola”, em sua expressão, é fundamental para entender a dinâmica ali vivida:

[...] o chão da escola não é algo que está assentado apenas em planejamentos, organização, gestão, o é também, mas não se reduz a isto, escapa, transcende, faz curvas, burlas, fraturas, como disse antes, é dinâmico. [...] No entanto, é necessário a disposição para auscultar, ouvir, deixar-se ser tocada e aprender com estas experiências (Professora Carla, Campus Ilhéus, Carta Pedagógica, 22.07.2019).

A professora Carla revela o quanto ter pés fincados nas realidades dos estudantes colabora para a construção da prática intercultural, pois ao construir um espaço de atenção, de sentidos sobre estar e ser com o outro, pode compreender o quanto as discussões em torno da vida dos estudantes e do cotidiano escolar tornam-se olhar para as existencialidades que se manifestam e disputam direitos. Fleuri (2017, p. 106) afirma que na perspectiva intercultural:

A educação passa a ser entendida como o processo construído pela relação tensa e intensa entre diferentes sujeitos, criando contextos interativos que, justamente por se conectar dinamicamente com os diferentes contextos em relação aos quais os diferentes sujeitos desenvolvem suas respectivas identidades, se tornam ambientes criativos e propriamente formativos, ou seja, estruturantes de movimentos de identificação subjetivos e socioculturais.

Nesse caminho, os/as docentes indicaram a promoção de uma relação horizontal e de reciprocidade (FLEURI, 2017), mostrando que compreendem a importância de os/as estudantes atuarem no processo de aprendizagem, mas reconhecem que esse processo só é possível se gerado pelos próprios sujeitos. Em vista disso, questionam a docência na centralidade da produção do saber, como revela a narrativa do professor Raul a seguir:

O professor, antes de oferecer respostas, deve incitar o questionamento e provocar a reflexão. Mais do que portador de saber, ele deve suscitar momentos ou situações onde o aprendizado se possa fazer, por assim, pelo aluno, com a sua própria iniciativa ou responsabilidade. Nesse sentido, a responsabilidade pelo aprendizado não é apenas do professor, mas também do aluno (Professor Raul, Campus 1, Carta Pedagógica, 04.07.2019).

Em sua experiência, o professor Raul faz emergir a condição do/da estudante como um sujeito ativo no processo não por uma concessão de espaço possibilitado pelo docente, mas pelo reconhecimento da condição do/da estudante como protagonista, como possuidor de interesses e de projetos pessoais ou coletivos, vinculados ao mundo que o circunscreve. Assim, a relação de reciprocidade se estabelece entre sujeitos que podem definir, mutuamente, os caminhos do processo de conhecimento ali realizado, favorecendo a construção de uma consciência de si, em uma relação de corresponsabilidade, portanto, de compromisso com o outro que também participa ativamente da relação.

Outro aspecto pelo qual foi apontado agrega-se às experiências das práticas vividas em sala como lugar de passagem do processo educativo. Portanto, indicaram que os estudantes, enquanto sujeitos da diversidade, conectam-se com os processos de aprendizagem que se constituem de práticas com as quais convivem. Assim, é no experienciar que conferem sentidos às aprendizagens e produzem saberes significativos. Desse modo, as práticas educativas possibilitam uma passagem, um transitar dos sujeitos entre os saberes advindos dos meios culturais e os conhecimentos acadêmicos.

Posto isso, é preciso refletir sobre como os/as docentes, no processo de encontrar saídas para atuar com a diversidade, abrem espaço para seus processos formativos, como se a mesma raiz que possibilitasse o protagonismo estudantil e as insurgências de práticas conectadas com saberes significativos para os estudantes fossem a força viva com a qual os/as professores/as interagem e se constituem. Assim, abrir-se a novos saberes também é um modo de os/as professores/as reconstituírem seu processo formativo. O desafio de atuar com estudantes com tantas singularidades, envolvê-los na dinâmica de construção das aulas, move os/as professores/as em busca de respostas, de possibilidades para seus fazeres. Sobre isso, a professora Ariadne, que não é licenciada, fez a seguinte afirmação, quando escreveu em uma de suas cartas:

E aqui no IFBA, trabalhando com Educação Básica, vi a importância de muitos dos conceitos que ignorei naquelas disciplinas pedagógicas. Achava que os pedagogos só queriam, atravancar nosso dia a dia, mas hoje reconheço que meu pensamento era muito limitado. Reconheço a importância, principalmente na Educação Básica, das práticas pedagógicas, dos conceitos e ensinamentos ligados direta ou indiretamente à Pedagogia (Professora Ariadne, Campus 1, Carta Pedagógica, 12.07.2019).

Ao relatar esse movimento de aproximação dos conteúdos pedagógicos, a partir das demandas da Educação Básica, a professora revela como a relação pedagógica e os desafios concretos do ensino-aprendizagem surgem como espaços de deslocamento e de ressignificação de saberes, dos campos de conhecimento, da educação. Assim, a professora mostra que sua formação precisou se ampliar, entrelaçar-se a outros saberes, para que pudesse reconfigurar bases teóricas e metodológicas.

No mesmo movimento, o professor Erico também afirma que trabalhar com as questões da diversidade exigiu descolonizar a própria formação, permitiu reler seu trabalho com outros olhos. Como muitos/muitas docentes declararam, a formação inicial nas universidades não considera saberes de matrizes divergentes da hegemônica. Assim, formar-se continuamente para trabalhar com a diversidade implicou conhecer novos autores, novas teorias, pois, apesar de já se mostrar vinculado às práticas interculturais, encontrar fontes para o diálogo sobre esse fazer pode fazer diferença no processo formativo, como afirmou:

Eu descobri Joel Rufino [...] Foi através dos estudos de pós-colonialidade e estudos subalternos que a referência aÉpuras do socialchegou até mim. A leitura foi reveladora, poderosa. As referências às culturas populares, aos autores e autoras negras, a ideia de intelectuais pobres é absolutamente incrível. [...] Eu queria unir estudante aos terreiros, às comunidades tradicionais, aos rezadores etc. Agora encontrava o arcabouço conceitual. As razões teóricas. Por fim, ele trazia a experiência como mais relevante do que o ensino, a narrativa, a criação, mais importante que a passividade da compreensão da ciência histórica. Isto era muito do que buscava. Essa foi a base deste projeto didático de história (Professor Erico, Campus 2, Carta Pedagógica, 26.04.2019).

Para fundamentar seu fazer, o professor narra que o encontro de conhecimentos que pudessem dialogar com suas práticas passou a ser mais significativo. Cabe destacar que os processos de democratização da escola e das próprias subjetividades dos sujeitos passa não apenas por garantir que todos tenham acesso aos conhecimentos já consolidados, mas também que outros conhecimentos ganhem espaço nos processos formativos, quer de docentes ou discentes. Desse modo, urge reconhecer que os saberes podem emergir a partir do significado conferido às práticas. As práticas, o cotidiano, as relações de conflito e de disputa das existencialidades dos sujeitos podem movimentar os processos formativos, mas, de igual maneira, podem ser ressignificados por estes.

É preciso salientar que o movimento formativo dos/das docentes também advém de suas histórias pessoais, de seus processos de formação, ao longo da vida, transversalizados por suas condições identitárias. Ser docente não exclui as condições referentes à etnia, ao gênero, à religiosidade, enfim, às dimensões que constituem a vida social e espiritual de todo ser.

Os processos vividos pelos/as docentes apontam que, na formação pessoal, o encontro com as questões da diversidade ou com os modos como a própria diversidade constitutiva de cada um foi tratada, levou à construção de uma abertura, de um entendimento da diversidade como condição singular de cada sujeito. Nesse sentido, a professora Carla relatou em uma carta:

[...] No meu caso específico, além de professora das Ciências Sociais, que lida com as questões micro e macro, desde as relações intersubjetivas até a constituição das estruturas sociais, as formas de convivência e sociabilidade, as diferenças culturais e, não apenas por este motivo, como disse várias vezes anteriormente, mas pela minha própria formação social, política e profissional, as temáticas sobre a diversidade estão sempre latentes, seja nas questões como sexo, gênero, sexualidade, raça, etnia, etnocentrismo, identidade e outras (Professora Carla, Campus 1, Carta Pedagógica, 22.07.2019).

Em sua carta, a professora Carla tece sua definição sobre a diversidade como condição humana, revelando que os sentidos constituídos foram dados pelas suas experiências de ter traçado um caminho formativo que a colocou em contato, desde sempre, com essas questões.

Assim, ela define que a diversidade é constituidora da própria profissão, pois atravessa tanto o aspecto teórico como o político do campo de conhecimento em que atua, como define sua compreensão do que é ser docente. Entender a condição de ser singular, de ser distinto, faz com que o/a professor/a internalize a diversidade como um campo natural, constitutivo, afirmativo da profissão docente. Nessa direção, Nóvoa (2017, p. 1113) problematiza: “Como formar um professor?”. O autor responde sustentando que é necessário fazer a pessoa pensar, sentir e agir como um professor. Sendo assim, compreendemos que a experiência da diversidade e de sua condição de espaço de disputa das existencialidades humanas é fundante para a formação docente, visto que lidar com os/as estudantes como seres singulares já é, em si, um desafio da profissão.

As experiências narradas ainda apresentaram outro processo de produzir uma formação como reexistência, pela construção de práticas autoformativas e colegiadas. Assim, durante as rodas de conversa, os docentes narraram que, no cotidiano dos campi, eles buscam partilhar, discutir, problematizar seus discursos e fazeres. Foram comuns os relatos em que, apesar de apontarem que não há propostas consolidadas pelas coordenações dos campi para promoção de formação continuada, os/as docentes trocam saberes e constroem ações coletivas, como aponta o professor Erico.

Às vezes, na sala dos professores, a gente estava aqui conversando, antes ela disse que não se dava bem com todos os professores, com um grupo de professores da área das propedêuticas e tal. Mas tem uma coisa interessante que tem um processo autoformativo ali. Alguém leu o Le Monde Diplomatique da semana, outro viu outro negócio lá, está ali almoçando e conversando e aí transfere né? “Ah eu fiz uma piada machista e recebi uma censura” e aí a galera explica, porque eu não poderia falar e aí a gente vai. De fato, existe esse processo. E há então uma mudança de postura gigantesca, desde quando começaram essas atividades, há um engajamento dos colegas e dos colegas com essas atividades. Realmente a postura da galera foi mudando (Professor Erico, Roda de Conversa, campus 2, 2018).

A narrativa supra revela que são nos encontros, nos momentos em que o espaço colegiado se manifesta, que os/as docentes conseguem estabelecer diálogos formativos. A troca de saberes também se torna desafiante para os/as docentes, pois os mobiliza e provoca a realização de ações conjuntas para a produção das práticas pedagógicas. A compreensão de saberes, a desestabilização de preconceitos, pelo diálogo, mostra a eles e a elas que, mais do que dominar os conhecimentos, é preciso saber como intervir ou se colocar a serviço de novas práticas e novos entendimentos sobre as questões da diversidade. Assim, ainda assumem o lugar de protagonistas de sua profissão, pois desviam, reconstroem caminhos dentro do conflito que vivem.

5 CONCLUSÃO

As experiências escritas e narradas nas cartas e nas rodas de conversa, além das informações coletadas no questionário, revelam que, mesmo diante da lógica monocultural produzida pela indolência da razão moderna sobre os processos formativos docentes, os professores anunciam práticas educativas insurgentes diante dos sujeitos da diversidade nos dois campi do IFBA.

Nessa direção, revelaram que na formação inicial como na continuada, promovidas por agências formadoras como pela própria instituição, não tiveram acesso ao debate em torno dos desafios e possibilidades que o campo da educação tem em face das questões da diversidade que emergem no cenário contemporâneo.

Por outro lado, demonstraram que, diante do contexto da diversidade como campo de disputa e insurgência dos sujeitos, foram produzindo modos de realizar suas práticas que, por sua vez, provocaram fissuras em seus processos formativos.

Essas fissuras se anunciaram como reconhecimento da formação específica no campo educacional, da necessidade de conhecimentos que amparem as dimensões metodológicas, curriculares e políticas que cercam o campo pedagógico. Nesse sentido, apontam que o acesso a conhecimentos teóricos que aprofundam o debate é relevante para construção de um suporte teórico-metodológico para essa atuação.

Também reconheceram que experiências pessoais e a formação cultural dos/das professores/as são fundamentais para abertura às demandas da diversidade. Ainda apontaram que a ação colegiada produz um processo de autoformação compartilhado e que as vivências no cotidiano dos campi, entre os pares, provocam deslocamentos importantes para o trabalho com o cenário de disputa das existencialidades já traçado.

Em face dessas questões, compreendemos que se faz necessária a instituição de uma política de formação que induza, segundo as observações de Nóvoa (2017), os/as docentes na profissão, apoiando esse trabalho, sobretudo, por uma ação colegiada.

Por outro lado, o processo formativo não pode desconsiderar que a docência hoje se produz no contexto da diversidade que, como campo de disputa das existencialidades dos sujeitos, provocam os/as docentes a ressignificarem suas práticas e a própria docência. Tal aspecto atravessa hoje vários espaços, inclusive a EPT que, além de ser uma formação para o trabalho específica, precisa perceber que o processo educativo integra o sujeito na realidade política, social e cultural em que se insere. Assim, é fundante nesse processo observar a produção de uma educação cidadã intercultural (TUBINO, 2005;2016) que promova espaços inclusivos e democráticos.

Nesse sentido, entendemos que os/as docentes da EPT criam e recriam caminhos para a profissão, buscam redefinir valores, saberes, modos de agir e atuar na comunidade, dão outros sentidos ao fazer docente na EPT e vão instituindo uma cultura profissional intercultural, pois compreendem o mundo a partir da valorização de outras narrativas e outras epistemologias, transformando isso em práticas, experiências de insurgências e irrupções de subjetividades mais democráticas.

REFERÊNCIAS

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NOTA:

1 Em atendimento às normas do Comitê de Ética baseadas na Resolução n.º 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde, os professores colaboradores foram identificados por pseudônimos, garantindo-lhes a preservação da identidade ao longo da pesquisa.

Recebido: 30 de Junho de 2020; Aceito: 11 de Novembro de 2020

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