SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 número2Edição 20 (2) abril/junho 2022A proposta pedagógica curricular do curso de letras indígena da Universidade Estadual de Ponta Grossa-PR: índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.20 no.2 São Paulo abr./jun 2022  Epub 21-Nov-2021

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2022v20i2p510-533 

Artigos

A “Cátedra por Nariño” na Colômbia:possibilidades para um currículo emancipatório

The “Cátedra por Nariño” in Colombia:possibilities for an emancipatory curriculum

La “Cátedra por Nariño” en Colombia:posibilidades para un currículo emancipatorio

Daisy Johana Fernández GIRÓNi 
http://orcid.org/0000-0002-9671-2111

Helena Maria dos Santos FELÍCIOii 
http://orcid.org/0000-0002-6627-6304

i Mestre em Educação. Universidade Federal de Alfenas. E-mail: djf1803@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-9671-2111.

ii Doutora em Educação. Professora Associada da Universidade Federal de Alfenas. E-mail: helena.felicio@unifal-mg.edu.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-6627-6304.


Resumo

Neste artigo, analisa-se o desenvolvimento da “Cátedra1 por Nariño”, implementada nos anos de 1980 no Departamento2 de Nariño, Colômbia, a partir das percepções de seus participantes. Utilizaram-se como referenciais teóricos autores como: Shirley Grundy, Paulo Freire, Henry Giroux, entre outros. A metodologia de pesquisa qualitativa construtiva interpretativa consistiu em um levantamento bibliográfico acerca do objeto de estudo, bem como na realização de entrevistas com alguns professores envolvidos nesse processo curricular. Como resultados deste trabalho, apresentam-se como ocorreu o surgimento da “Cátedra por Nariño”, seu desenvolvimento, a conexão da proposta curricular alternativa com as lutas sociais da época, a expansão do projeto dentro de Nariño e a maneira como finalizou.

Palavras-chave: “Cátedra por Nariño”; currículo; currículo emancipatório; emancipação

Abstract

The objective of this article is to analyze the development of the alternative curricular proposal called “Cátedra por Nariño” implemented in the 1980s in Nariño, Colombia. To achieve the objectives, several theoretical references were utilized, such as Shirley Grundy, Paulo Freire, Henry Giroux; among others. The methodology of research is qualitative-constructive-interpretative, a bibliographic study was made, as well interviews with some involved teachers in this curricular process. As a product of this work, it is presented how the “Cátedra por Nariño” emerged and developed, and also the connection of the alternative curricular proposal with the social struggles of the time as well as the expansion of the project within Nariño, and the way how it ended.

Keywords: “Cátedra por Nariño”; curriculum; emancipatory curriculum; emancipation

Resumen

En este artículo se analizó el desarrollo de la “Cátedra por Nariño” implementada en los años de 1980 en el Departamento de Nariño, Colombia, a partir de los participantes de esa cátedra. Se utilizaron como referenciales teóricos autores tales como: Shirley Grundy, Paulo Freire y Henry Giroux, entre otros. Con base en la investigación cualitativa interpretativa, se hizo un estudio bibliográfico acerca del objeto de estudio, y se realizaron entrevistas con algunos profesores participantes en el proceso curricular mencionado. Como resultados de este trabajo se construyó como fue el surgimiento de la “Cátedra por Nariño”, su desarrollo, la conexión de la propuesta curricular alternativa con las luchas ciudadanas de la época, la expansión del proyecto dentro de Nariño y la manera como se finalizó.

Palabras clave: “Cátedra por Nariño”; currículo; currículo emancipatório; emancipación

1 INTRODUÇÃO

Cientes de que no contexto contemporâneo pensar em possibilidades para um currículo emancipatório, que contribua para que as pessoas sejam críticas, livres, reflexivas e deliberantes, pareça muito difícil, é totalmente válido, necessário e possível. De igual modo, considerando que o cotidiano escolar é um lugar, espaço e tempo destinado ao trabalho com o desenvolvimento integral do ser humano, em sociedade, entendemos que ele é a oportunidade para almejar a formação de pessoas com uma identidade.

Nesse sentido, este trabalho versa sobre o desenvolvimento curricular implementado pelos docentes da educação fundamental da região de Nariño, Colômbia, denominado “Cátedra por Nariño”, que, no contexto educacional colombiano, trata-se de um componente curricular constituído como um projeto curricular alternativo, implementado por professores de Nariño na década de 1980.

É preciso contextualizar que naquele momento existiam muitos problemas sociais na Colômbia, acarretando constantes mobilizações cidadãs e o surgimento de vários movimentos sociais, além dos movimentos guerrilheiros. Conforme Velasco (2004), nessa época, era evidente a incapacidade estatal para atender as necessidades básicas da grande maioria da população, o entorno albergava uma séria crise de legitimidade e credibilidade das instituições públicas, situação que se apresenta, de alguma maneira, como consequência dos atrasos deixados pelos dirigentes políticos, afiançando a exclusão e o abandono das regiões isoladas do interior do país, nesse caso, a região de Nariño.

Nos últimos anos da década de 1970 e começos da década de 1980, nasceu na Colômbia uma onda de movimentos políticos regionais, sendo o mais destacado no país aquele que surgiu em Nariño, com o nome de “Los Inconformes” (FALS BORDA, 1989), que militou em direção contrária daquilo que pregavam os partidos políticos tradicionais, os quais procuravam conservar o status quo e, no campo educacional, mantinham a orientação curricular do Estado em perfeito alinhamento com as opções políticas por meio da concretização de um trabalho escolar orientado para a prática, para o trabalho, para a empregabilidade - no qual a formação de pessoas tinha um caráter secundário.

As principais características dessa política educativa, segundo a Comisión Pedagógica del Magisterio de Nariño (1983c), eram: a incongruência da educação colombiana com as necessidades e interesses do povo e a nação; a falta de participação ativa por parte de docentes e cidadãos em geral nos processos educativos, o que converteu os métodos e conteúdo de ensino em algo impopular e impositivo; a implantação de modelos estrangeiros, estranhos à configuração cultural colombiana; o controle absoluto sobre o trabalho educacional, por meio da formulação extremamente detalhada dos conteúdos e formas de ensino; e que a educação estava principalmente a serviço das poderosas oligarquias que buscavam manter seu domínio ideológico, político e econômico sobre o povo.

Contrários a essas orientações, professores da região de Nariño organizaram, por intermédio do Sindicato de Mestres de Nariño (Simana), uma proposta curricular alternativa - “Cátedra por Nariño” -, que fazia parte do arsenal estratégico e de luta do Movimento Social por Nariño, com o objetivo de oferecer aos estudantes uma educação voltada para a construção de uma consciência de classe, de luta, de resistência e, consequentemente, de libertação e emancipação.

Essa Cátedra teve seu período de existência entre os anos de 1983 e 1984, construindo um processo de conscientização por intermédio das aulas e da relação com a comunidade, onde era possível refletir sobre as problemáticas principais da realidade local, naquele momento, bem como expressar-se coletivamente, saindo às ruas professores, estudantes e famílias a reivindicar ações por parte do governo, que conduziram à transformação da realidade.

Nesse contexto, busca-se responder, com esta investigação, a seguinte questão central: Como a proposta da “Cátedra por Nariño” interferiu no currículo oficial do Estado como uma forma de educação para a emancipação? Para tal, procura-se construir uma maior compreensão do que foi a “Cátedra por Nariño” e seu significado para alguns dos professores daquela região, que participaram daquele momento histórico, bem como a partir da recolha de informações em alguns documentos ainda encontrados, visto que, até o momento deste trabalho, constata-se a existência de pouca referência organizada sobre esse fato.

Assim, apresentamos tal construção, em um primeiro momento, mediante uma breve reflexão sobre o currículo com perspectivas emancipatórias; posteriormente, trazemos a metodologia desenvolvida neste estudo; e, finalmente, uma reflexão e análise das informações recolhidas, organizadas aqui a partir de indicadores que possibilitam compreender a “Cátedra por Nariño” e seu potencial na construção de um currículo com possibilidades emancipatórias.

2 O CURRÍCULO COM UMA PERSPECTIVA EMANCIPATÓRIA

Partindo da premissa de que as escolas são instituições responsáveis pela ampliação das capacidades humanas, pela preparação de sujeitos capazes de intervirem na realidade, transformando suas próprias condições de vida, bem como da sociedade onde vivem, defendemos que esse processo se desenvolve por intermédio do currículo, cuja compreensão ultrapassa a ideia de uma simples definição teórica e/ou de uma relação de conteúdos a ser “cumprida” em determinado período, no interior da escola.

Neste trabalho, entendemos o currículo como processo efetivado nas relações estabelecidas no cotidiano educacional, como práxis, que abarca em si um enfoque processual,

[...] historicamente situado, resultante de uma série de influências convergentes e sucessivas, coerentes ou contraditórias, geradoras de uma ação pedagógica que integra a teoria e a prática, com certo grau de flexibilidade, enquanto campo legitimado de intervenção dos professores (FELÍCIO; POSSANI, 2013, p. 131).

Outrossim, o currículo não é “um conceito, mas uma construção cultural. É dizer, que não se trata de um conceito abstrato que tenha algum tipo de existência fora e previamente à experiência humana. Em vez disso, é um modo de organizar uma série de práticas educativas humanas” (GRUNDY, 1998, p. 19-20).

Ainda conforme Felício e Possani (2013), essa prática não é neutra e depende, nomeadamente, do contexto, dos sujeitos dos interesses e das intenções que estão em jogo e dos diferentes âmbitos aos quais está submetido. Assim, se, por um lado, na hierarquia curricular, a escola está subordinada às definições do Estado, por outro, é, também, um contexto de decisão, perante as situações emergentes que demandam uma prática pedagógica que vai ao encontro de suas necessidades.

No contexto da “Cátedra por Nariño”, analisado neste trabalho, essas questões ficam latentes quando percebemos um movimento do Simana que se encaminha para a proposição de um currículo que busca superar as condições de dominação e tensões vivenciadas naquele contexto. Esse movimento se configura como “possibilidade de construir práticas curriculares com perspectivas emancipatórias, uma vez que tal tensão impulsiona os educadores na busca de alternativas para um processo de escolarização com mais significado para os educandos e educadores que dele participam” (FELÍCIO, 2010, p. 246).

A emancipação pode ser interpretada como um processo (histórico, ideológico, educativo, formativo) em que as pessoas ou grupos atinjam, cada vez mais, níveis independentes de tutelas política, econômica, cultural. Ela deve ser pensada “não somente como formas de resistência a realidades sociais adversas, mas, sobretudo, como contextos de proteção e de socialização dos quais podem emergir relações e práticas sociais alternativas à dinâmica societária em curso” (SILVA, 2006, p. 8). Logo, não se trata somente de resistir e enfrentar os poderes hegemônicos, senão também de explorar outros caminhos alternativos, o que se pode fomentar desde a educação.

Para Souza Filho (2014, p. 97), a educação emancipadora “é aquela que afasta o ser humano da repressão, aproveitando os aspectos produtivos da sua vida e sua cultura. Para alcançar este objetivo de não repetição da barbárie, a educação deve ser para a autonomia e para a autorreflexão dos/das educandos/as”, sendo necessário para tanto superar as barreiras que aprisionam algumas pessoas e as fazem ficar atrasadas diante de sua mesma civilização, o que se poderia conseguir por meio da educação.

Ainda nesse contexto, afirma Mashiba (2013) que emancipação é um termo, normalmente, usado como sinônimo de libertação e em contraposição à alienação, colocando em diálogo direto com o conceito de libertação trabalhado por Freire (1987), como superação da relação contraditória opressor-oprimido, em que o primeiro vive sob os ideais do segundo.

Explica Freire (1987, p. 35) que a libertação, “é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos”. É explícito para o autor que o processo emancipador ou libertário é bem difícil e doloroso. Nesse processo, “há que se saber oprimido e, ao tomar consciência da opressão que se sofre, o sujeito passa a ter forças para a ação libertadora, que ocorre pela transformação da realidade opressora” (MASHIBA, 2013, p. 84).

Nesse processo emancipatório, requer-se que os sujeitos consigam desvendar os olhos por intermédio da tomada de consciência da situação de opressão na qual se encontram inseridos. Isso é possível, no contexto de sociedades democráticas, por exigir um exercício, individual e coletivo, de liberdade, igualdade, autonomia e desalienação, de modo que esses sujeitos sejam construtores de seu próprio processo.

Essa possibilidade foi entendida pelos professores que assumiram a “Cátedra por Nariño” não só como um currículo prescrito pelo Simana, mas no cotidiano escolar, que pode apresentar perspectivas centradas na autonomia responsável, possível de ser construída a partir dos fazeres pedagógicos dos educadores.

3 PERCURSO METODOLÓGICO

A análise do desenvolvimento curricular da “Cátedra por Nariño”, intencionada por esta pesquisa, inscreve-se no que Ary et al. (2010) classificam como um estudo qualitativo interpretativo básico, desenvolvido a partir de uma coleta de informações no contexto, sobretudo porque buscou compreender tal Cátedra em seu desenvolvimento constitutivo e em sua significação para alguns dos participantes dela.

Merriam (2002) postula que essa abordagem busca ver o objeto investigado a partir da perspectiva do participante, o que foi possível por intermédio da realização de entrevistas semiestruturadas com sete professores que fizeram parte do processo da “Cátedra por Nariño”, que aqui serão identificados por nomes fictícios.

Atrelados ao movimento das entrevistas, buscamos ter acesso aos documentos sobre a “Cátedra por Nariño”, por entendermos que eles, conforme assinala Gil (2002), constituem fonte rica e estável de dados, uma vez que subsistem ao longo do tempo, tornando-se uma importante fonte de dados. Encontramos alguns deles nas bibliotecas principais de Pasto, Colômbia, e no site da Revista Educación y Cultura da Federação Nacional de Educadores (Fecode), que havia sido referenciado por alguns dos professores entrevistados.

Tais documentos produzidos na década dos anos de 1980, sobre a “Cátedra por Nariño”, e sobre o chamado “Movimento Pedagógico”, que teve incidência em Nariño, serviram de insumo para a análise, sobretudo no que diz respeito à origem e a dinâmica do desenvolvimento dessa prática, bem como contribuíram para entender melhor o que fora expressado pelos professores nas entrevistas.

A análise das informações baseou-se na “epistemologia qualitativa construtiva interpretativa” teorizada principalmente por González Rey (2010), a qual consiste em um enfoque epistemológico e metodológico para o estudo e a compreensão de fenômenos complexos, especialmente da ordem da subjetividade humana, propondo um enfoque dialógico da investigação, com ênfase em seu modus operandi e a singularidade do processo construtivo-interpretativo (PEREIRA; CONCEIÇÃO; MARTÍNEZ, 2016).

Para tanto, adotou-se, conforme orientam Aguiar e Ozella (2006), a realização de quatro passos sequenciais: construção de pré-indicadores, construção de indicadores, definição e análise de um núcleo de significação, que expressaram os pontos fundamentais de implicações dos sujeitos com a realidade estudada, fundamentando a análise das evidências.

4 O PROCESSO DA “CÁTEDRA POR NARIÑO”

Nesse núcleo de significação, pretende-se avançar na compreensão do desenvolvimento da “Cátedra por Nariño”, a partir dos seguintes indicadores: (1) o surgimento e desenvolvimento da Cátedra; (2) a luta social; (3) o alcance da Cátedra; (4) as razões da finalização; e, finalmente, (5) a avaliação do processo.

4.1 Surgimento e Desenvolvimento da “Cátedra por Nariño”

No final de 1981, nasceu em Nariño o movimento político-popular “Los Inconformes”, liderado principalmente pelos professores do ensino primário e secundário dessa região.

Nariño como resultado de uma série de eventos de natureza política que ocorreram em contraste com as desigualdades de natureza social e o descuido do governo nacional em nosso território, surgiu um movimento importante, chamado Movimento Popular “Los Inconformes”, [...], a maioria de nós éramos professores e vimos como o principal aspecto, considerando que, se quisermos fazer algo reivindicatório desde o ponto de vista regional, econômico ou político, teríamos que aprofundar e conhecer nossa própria história. Por esse motivo, foi realizado um processo de colocação interessante nas diferentes instituições, chamado de “Cátedra por Nariño” (Professor Gabriel).

Esse movimento popular era liderado pelos professores do Simana e, para ampliar seu trabalho social e político, usaram outros movimentos também liderados pelos professores do sindicato. Um dos braços desse movimento popular foi o Movimento Social por Nariño,3 que nasceu em fevereiro de 1983 e pelo se pretendia juntar diferentes setores da população de Nariño para reclamar ao governo central por uma série de reivindicações em temas sociais, econômicos e de infraestrutura.

A iniciativa de realizar a “Cátedra por Nariño” nasceu no comitê diretivo desse movimento social (COMISIÓN PEDAGÓGICA DEL MAGISTERIO DE NARIÑO, 1983a; 1983c). Explica a Comisión Pedagógica del Magisterio de Nariño (1983c) que a “Cátedra por Nariño” era uma das principais tarefas adotadas pelo Comité Social Popular por Nariño, coordenador do movimento em que os nariñenses estavam empenhados e comprometidos na procura de reivindicações para essa região. Explica a Professora Monserrat que, “nesse contexto da luta pelo movimento social, para gerar novas condições para a região, foi quando vimos a necessidade de organizar a ‘Cátedra por Nariño’”.

A “Cátedra por Nariño” foi a resposta dada pelo Sindicato de Mestres de Nariño ao currículo enviado pelo governo nacional na década de 1980, em meio a uma política educativa regressiva, na qual o professor era limitado a fazer o papel de um operário da educação. Como contestação a esse currículo oficial engessado, surgiu essa proposta alternativa que se esforçou por ganhar espaços no território curricular para ampliar o círculo de influência dos professores, educandos e de toda a comunidade educativa para transformar sua realidade.

Ela se baseava em conhecer melhor sua história verdadeira, sua cultura, suas tradições, suas potencialidades, seus problemas e suas respectivas causas, fazendo com que todos refletissem acerca da maneira de reverter o abandono do Estado central, para depois juntarem forças e mobilizarem-se para reivindicações ante o governo nacional. Tratava-se de usar todas as disciplinas acadêmicas nesse propósito, apropriando-se de espaços para discutir aspectos regionais em cada área de ensino. Em síntese, a “Cátedra por Nariño” era um complemento curricular do movimento sindical dos professores de Nariño que conseguiu tornar-se parte da prática de muitos docentes.

Outro braço do movimento político-popular “Los Inconformes” foi o chamado “Movimento Pedagógico”. Na verdade, esse movimento tinha cobertura nacional e era impulsado pela Fecode, correspondendo-lhe ao Simana seu impulso dentro da região de Nariño.

A semente que levou ao surgimento do Movimento Pedagógico em nível nacional foi a proposta chamada “função social da educação” apresentada pelo Simana, gestada em Nariño. Conforme o documento “Experiencias del Movimiento Pedagógico en Nariño” (COMISIÓN PEDAGÓGICA DEL MAGISTERIO DE NARIÑO, 1984) durante muito tempo, a luta do magistério centrou-se nas reivindicações econômicas e laborais, chegando quase a perder a iniciativa no campo pedagógico. Um grupo de professores de Nariño, preocupados com essa situação, apresentaram na XIII Assembleia de Simana, em 1982, suas inquietações e propostas plasmadas em duas questões: 1) a função social da educação; e 2) a política educativa oficial.

Segundo a Professora Monserrat, essas propostas discutidas dentro do SIMANA resultaram em um documento levado, posteriormente, à Fecode, em que se reivindicavam a caracterização do professor em forma integral (como trabalhador afiliado a um sindicato, como profissional dentro do campo da cultura e como cidadão ativo), bem como a constituição de uma comissão de professores que elaborassem uma reforma educativa que estivesse de acordo com os interesses da sociedade colombiana.

A política educativa nacional regressiva era a causa principal do surgimento desses processos com perspectivas emancipatórias. Tanto o Movimento Pedagógico como o surgimento da “Cátedra por Nariño” nasceram como respostas à imposição por parte do governo colombiano de políticas educativas restritivas da profissão docente.

Conforme o documento “Tesis sobre el Movimiento Pedagógico” (SIMANA, 1985b), em função da massificação e generalização por parte do Estado, o magistério em âmbito nacional adiantou as jornadas mais significativas em defesa da educação pública na Colômbia, o que serviu também para gerar uma discussão, estimular o estudo e a pesquisa no campo educacional e pedagógico.

Conforme Simana (1985a), a ideia do Movimento Pedagógico foi inicialmente nutrida pelos esforços teóricos e práticos de muitos professores que enfrentavam a imposição de políticas educacionais. “Tais políticas, além de regressivas às aspirações do povo ao direito à educação, tentaram violar as conquistas da profissão docente em matéria de carreira profissional, capacitação e autonomia” (SIMANA, 1985a, p. 42).

Assim, o Movimento Pedagógico foi uma estratégia política e cultural dos professores colombianos para contribuir com a criação da consciência histórica de uma nova escola e de uma nova sociedade. Procurava-se a maneira de enfrentar corretamente as políticas educativas oficiais e de colocar a educação pública a serviço da transformação socioeconômica e política da Colômbia (SIMANA, 1984).

Essencialmente, buscava-se resgatar a função do professor como trabalhador da cultura, de maneira que seu trabalho fosse realizado “com responsabilidade, assumindo como característica inerente a seu trabalho uma atitude investigativa, crítica, criadora e inovadora, abrindo o diálogo com pais de família e demais setores da comunidade” (SIMANA, 1984, n.p.), referendando a certeza de que não há um trabalhador do ensino como algo abstrato e que este também se reveste de um papel político do qual deve ser consciente e responsável de assumi-lo na sociedade (FREIRE, 2006).

Evidencia-se que esse movimento de cunho nacional desenvolveu-se nas regiões por intermédio dos sindicatos regionais, sendo o Simana, no caso de Nariño, o encarregado de fazê-lo prosperar. Segundo o Professor Rafael, umas das tarefas encomendadas aos sindicatos regionais foi o de estabelecer em cada região as comissões pedagógicas que deveriam estudar e pesquisar a problemática educativa, pedagógica e cultural e promover o Movimento Pedagógico nas regiões. Assim, “a ‘Cátedra por Nariño’ foi uma proposta que fez o sindicato do magistério de Nariño através do que se chamava a comissão pedagógica” (Professor Ignácio), o que coincidia e se articulava com os propósitos do Movimento Social por Nariño também liderado pelos docentes.

Conforme a Comisión Pedagógica del Magisterio de Nariño (1984), na XIV Assembleia general de Simana realizada em Pasto, em fevereiro de 1984, decidiu-se que o magistério deveria se posicionar com propostas concretas, contrárias à política educativa oficial, e colocar o Movimento Pedagógico a serviço da defesa da educação pública e das lutas populares, principalmente aquelas adiantadas pelo Movimento Social por Nariño.

Evidenciou-se na pesquisa documental a existência de uma proposta curricular alternativa dos professores de Nariño, feita por meio do “Documento guía para adelantar la Cátedra por Nariño”, elaborado no mês de março de 1983, conforme consta nas atas da comissão pedagógica, confirmando-se uma ampla participação dos professores de Nariño na construção desse documento. Essa proposta curricular obedecia aos interesses dos professores da época em ter a liberdade para trabalharem com um currículo próprio, diferente daquele enviado pelo governo nacional, como uma maneira de resistência, de lutar pela liberdade de cátedra e por dignificar o trabalho docente.

De acordo com o documento convidando o Congresso para a preparação da “Cátedra por Nariño” (COMISIÓN PEDAGÓGICA DEL MAGISTERIO DE NARIÑO, 1983b), os objetivos a alcançar com a realização desse congresso preparatório eram: vinculação mais forte ao movimento social popular por Nariño; iniciar uma orientação geral da cátedra, mediante a elaboração do material que sintetizara as conclusões do evento, que seria distribuído nos distintos estabelecimentos educativos; vincular novos companheiros às atividades da comissão pedagógica; impulsar o Movimento Pedagógico; iniciar a preparação do congresso pedagógico a realizar-se no mês de maio de 1983; introduzir inovações pedagógicas no desenvolvimento do trabalho como docentes; impulsar a pesquisa massiva sobre Nariño e a elaboração de textos; e revisar os textos sobre história e geografia de Nariño.

A “Cátedra por Nariño” desenvolveu-se a partir de abril de 1983, “no período em que estávamos na direção de Simana entre 1982 e 1984” (Professora Monserrat). Explica a professora que, nesse período, ocorreu um “maior impulso de nossa parte para a ‘Cátedra por Nariño’. Depois os professores seguiram por iniciativa própria”. O que significa que não se teve uma finalização definitiva, pois esta continuou de maneira independente por parte de cada docente, sem indicação do sindicato.

Segundo a Professora Monserrat, o início é marcado por uma série de atividades, entre as quais se destacam o contato com as comunidades e a capacitação dos docentes. Sobre esse contato com as comunidades, o Professor Gabriel explica que

[...] teve uma preponderância importante, devido ao seu relacionamento com as comunidades. Porque para adiantar a “Cátedra de Nariño”, tivemos que conhecer figuras importantes de diferentes setores, por exemplo, se fosse em Pasto, conversar com os líderes dos distritos, se fosse em outros municípios de Nariño, conversar com as pessoas que tinham especialmente liderança social, conversando com sacerdotes etc., para ir, aos poucos, desmascarando realidades.

No tocante à capacitação docente, a ideia era difundir a proposta, “através de conferências e oficinas com os professores, para que eles pudessem levar isso aos seus alunos de diferentes maneiras” (Professora Monserrat). Assim, os professores passaram a desenvolver com maior protagonismo o planejamento do currículo de sua instituição, a fim de realizar modificações referentes ao conteúdo. Em outras palavras, pedia-se aos professores que transgredissem esse território sagrado e fizesse a territorialização do currículo.

A luta dos docentes de Nariño nesse sentido é bem clara nos depoimentos dos professores entrevistados, sendo um ponto central das mudanças pretendidas: a liberdade para construir um currículo autônomo. O Professor Uriel assim manifesta-se: “reclamávamos a autonomia para poder não somente aplicar o nacional, mas ter autonomia para poder incorporar outros saberes e outros conhecimentos”. O Professor Ignácio explica que, para esses anos, o debate deles girava em torno de da proposta alternativa dos professores ao currículo oficial e que, em virtude do Movimento Pedagógico, de sua organização e do fervor dos professores no sindicato por construir um currículo autônomo, tal proposta avançou.

Portanto, avançava-se na implementação da “Cátedra por Nariño”, mas sem descuidar da luta gremial e da luta popular, a qual também progredia, uma vez que ambas se complementavam com aspectos culturais, por exemplo, a música e a arte, como uma estratégia de afiançar o próprio de sua cultura.

[...] o complementamos com aspectos culturais como a música, então, a banda de Nariño, com eles se organizavam concertos aos que se levavam aos estudantes por níveis, e de distintas instituições. Sim, era assim, distintas formas, utilizando a arte, utilizando a lúdica, para que os alunos se apropriassem, então tudo isso, nos leva a gerar uma grande motivação dentro dos alunos, professores e pais (Professora Montserrat).

No documento guia para adiantar a “Cátedra por Nariño” nos estabelecimentos educativos, mostra-se que em uma das semanas de abril de 1983 realizara-se um ato cultural em todos os estabelecimentos educativos para ressaltar os valores nariñenses, onde se fizera apresentação de poesias, danças, cantos de música popular regional etc. (COMISIÓN PEDAGÓGICA DEL MAGISTERIO DE NARIÑO, 1983c).

4.2 A Luta Social

Fruto do “Movimento Popular Los Inconformes”, a “Cátedra por Nariño” também contribui para a vitalidade e presença ativa dos professores daquela região na luta para transformar a realidade, entendendo que “os professores, como intelectuais transformadores, precisam constituir um movimento que se caracterize por um envolvimento ativo em esferas políticas democráticas, nas quais o primado do político é reafirmado” (GIROUX, 1987, p. 50).

Os professores entendiam que, como cidadãos completos - afiliados a um sindicato, intelectuais da cultura e cidadãos ativos -, deviam prestar contribuição a diferentes atividades de caráter social que se realizassem na defesa dos interesses do povo (SIMANA, 1984), o que significava ir além das escolas, assumindo que os problemas da sociedade eram, também, os problemas dos professores.

Explica a Professora Monserrat que, “como parte da Comissão Pedagógica, nós também vimos que era necessário participar dos movimentos sociais que já estavam consolidados”, o que evidencia o imperativo de fazer alianças para ampliar a participação na luta. Nesse sentido, conforme a professora entrevistada, os professores passaram a realizar reuniões com os pais em todas as escolas, envolvendo-se nas causas da sociedade mais geral e incluindo a comunidade nas causas dos educadores, que de fato eram bem amplas. Assim, passaram a se encontrar, regularmente, com camponeses, indígenas, sindicalistas, comerciantes, estudantes e pais de família em geral, na transformação da realidade dos nariñenses. Portanto, fazia-se o trabalho intelectual “apoiado por condições práticas, sustentadas, concomitantemente, por ideologias democráticas” (GIROUX, 1987, p. 51).

As conclusões da XIV Assembleia do Simana (1984) motivaram os educadores nariñenses na tomada de consciência da importância histórica e social da luta pela defesa da educação pública. Por outro lado, buscava-se estender as tarefas de informação, análises e debate aos estudantes, pais de família e, em geral, aos diferentes grupos sociais, procurando gerar um movimento grande em favor da educação pública, cuja crise afeta fundamentalmente os setores populares e os docentes da Colômbia.

Desse modo, os professores procuravam dar ênfase à centralidade da educação e da cultura, uma vez que os professores entendiam que, “sem educação e cultura, hoje não podemos conseguir desenvolvimento integral do homem” (COMISIÓN PEDAGÓGICA DEL MAGISTERIO DE NARIÑO, 1984, n.p.). Também se dizia que “não basta lutar pelo salário do trabalhador, há que defender a educação de seus filhos; não basta conseguir rodovias, pontes, avenidas, há que conseguir educação e cultura para a gente” (COMISIÓN PEDAGÓGICA DEL MAGISTERIO DE NARIÑO, 1984, n.p.), reconhecendo, assim, a dimensão pedagógica da luta cidadã nas ruas, uma vez que eles insistiam que “lutando também se ensina e ensinando também se luta” (SIMANA, 2016, p. 157).

Conforme Simana (1984, n.p.), “como resultado da luta popular, o povo de Nariño, depois de grandiosas jornadas de pressão, obrigou ao próprio Presidente da República a fazer presença naquela região e assumir importantes compromissos de obras e ações para nossa região”, sobretudo no que diz respeito à infraestrutura que a região solicitava.

O Professor Uriel ratifica como conquistas dessa luta social, “acima de tudo, os inegáveis resultados dos movimentos sociais, os dois principais sendo o da interconexão e o da rodovia [ao mar], que já estão incorporados como conteúdo histórico” (Professor Uriel). De igual modo, o Professor Miguel afirma:

Muitos resultados. As coisas foram realizadas, algo nos foi deixado, porque também lutávamos naquela época pela rodovia Pasto-Tumaco. [...], não foi que isso foi promovido lá, mas que isso já havia se promovido antes. Aqui houve apenas grandes lutas, porque as pessoas são rebeldes, os professores foram rebeldes, nós fomos rebeldes (Professor Miguel).

Também o Professor Olivo expressa que, adicionalmente, as reivindicações referentes ao melhoramento dos serviços públicos na região foram atendidas e que da totalidade de solicitações ao governo central “algo foi alcançado, por exemplo, as lutas que ocorreram pelos serviços públicos, as pessoas participaram muito, na luta pela mesma refinaria, pelas rodovias, o mesmo, as pessoas lutaram” (Professor Olivo).

Ainda nas conclusões da XIV Assembleia (SIMANA, 1984), expressam-se como ganhos da vigorosa luta social popular a conscientização e a organização de setores amplos do povo, como “formas de expressão autenticamente populares e estão conseguindo desenvolver obras e ações contra o atraso e abandono em que se há mantido nossa região”. O mesmo documento esclarece que, por conseguinte, o magistério foi um indiscutível motor na gestação e manutenção da luta social, demostrando com sua participação nos comitês sociais dos diferentes municípios que se havia iniciado uma nova etapa na vida sindical, na qual os professores como grêmio assumiram uma luta social que serviu para instruir o povo sobre seus direitos, que educou o mesmo grêmio sobre a realidade que o contornava.

4.3 Alcance da “Cátedra por Nariño”

Esse currículo alternativo foi implementado não somente em Pasto - a capital -, mas também em outros municípios de Nariño. Explica o Professor Ignácio que o Simana tinha cobertura regional e que a cátedra se implementou nos principais municípios de Nariño, considerando que existiam limitações por parte dos professores de setores da região que eram mais distantes.

Segundo o Professor Miguel,

[...] os educadores de básica e secundária foram os que implementaram a “Cátedra por Nariño” em alguns municípios, fundamentalmente no município de Pasto, acredito que, em Ipiales, Túquerres e Tumaco, tal vez, Cumbal e Guachucal, porque são zonas ou foram zonas de conflito. Me parece que, em Pasto, Ipiales Túquerres e Tumaco, é dizer são zonas, e talvez Cumbal e Guachucal, porque são zonas indígenas, por exemplo, Cumbal e Guachucal são zonas majoritariamente indígenas, ali estão os cabildos. O mesmo Túquerres, Túquerres é o centro, foi o centro do desenvolvimento económico da costa, e do Sul.

Segundo esse professor entrevistado, a presença da “Cátedra por Nariño” coincidia com áreas de marcada violência, assim como em zonas indígenas da região. Uma questão similar é anotada pelo Professor Olivo que situa a “Cátedra por Nariño” especialmente em Tumaco, uma cidade localizada no Oceano Pacífico, em uma zona marcada pela violência e onde quase toda a população é afrodescendente. “Em Tumaco teve lutas boas também como consequência ou como parte, digamos desta atividade curricular, sobretudo a participação dos estudantes” (Professor Olivo).

A presença da “Cátedra por Nariño” coincidiu com setores da região, onde as iniquidades sociais, as injustiças e o abandono do governo central eram mais evidentes. Entretanto, embora Pasto tenha sido o centro do processo, a “Cátedra” se expandiu pela região, dependendo do interesse de cada professor em levar essa proposta para sua prática docente, uma vez que ela “foi uma cátedra que não foi aprovada pelo governo” (Professor Rafael).

4.4 Razões da Finalização

A “Cátedra por Nariño” teve, por impulso do Simana, seu funcionamento até 1984; depois disso, foi enfraqueceu-se e foi implementada posteriormente somente por alguns educadores que prosseguiram de maneira voluntária e por iniciativa própria.

Uma das primeiras razões da finalização da “Cátedra por Nariño” foram as mudanças na direção sindical de Simana e de Fecode. Os professores de Nariño que lideraram o processo da “Cátedra por Nariño” estiveram na comissão pedagógica no período 1982-1984 e sua saída da comissão acabou prejudicando a continuidade do processo. Explica o Professor Ignácio que, “com a mudança da direção, outras direções não estavam muito interessadas no assunto pedagógico, então entra em crises o pedagógico, não tendo mais como impulsionar a Cátedra por Nariño”.

A nova direção do Sinama retorna com ênfase nas reivindicações de trabalho e econômicas dos professores, abandonando aquela vertente que propunha a reflexão a partir da tripla condição do professor - como sindicalista, cidadão ativo e intelectual da cultura - levando à descontinuidade do impulso da “Cátedra por Nariño”, restringindo-se somente a iniciativas próprias de cada docente, mas não como uma política do sindicato.

Essas mudanças aconteceram tanto no nível regional como no âmbito nacional na Fecode, de modo que os ideais pedagógicos perderam o impulso e a vitalidade. Entretanto, é importante esclarecer que o Movimento Pedagógico não morreu imediatamente, tendo sido possível trabalhar pela importância do projeto pedagógico alternativo nos anos subsequentes de maneira permanente. O Professor Gabriel agrega que, além do regional,

[...] houve uma leve letargia no contexto nacional. Se falamos sobre a Fecode, isto é, a organização de professores no nível nacional, na qual também houve diferentes passos dados pela liderança sindical, e alguns deles colocam mais interesse no sindicato do que nos aspectos culturais e políticos da profissão docente.

Explica ele que, “com o passar do tempo, certamente, havia outras prioridades, mais ligadas à reivindicação sindical, e mais políticas” (Professor Gabriel). Dessa maneira, o pedagógico, desde a direção sindical, nacional e regional, perdeu centralidade. Essa situação demonstra que a descontinuidade se deu pela falta de apropriação do processo por parte de maioria dos educadores, ficando à vontade de quem quisesse continuar com esse propósito sem que fosse uma política diretiva sindical, regional ou nacional.

O Professor Ignácio esclarece bem isso em seu depoimento, manifestando que acabou:

[...] porque não havia consciência e clareza suficientes dos professores sobre como consolidar verdadeiramente um currículo [alternativo], que ficou um pouco à mercê das iniciativas dos professores nos municípios, ou seja, não havia clareza aqui, para dizer, bem, isso foi construído aqui, e devemos continuar com isso.

Evidencia-se que existia uma conexão total entre a “Cátedra por Nariño” e o Movimento Social por Nariño, que também “já se esfria um pouco quando consegue suas demandas” (Professor Miguel).

Nesse contexto, a proposta curricular alternativa, com o tempo, foi se debilitando, uma vez que, por um lado, não tinha o respaldo sindical e, por outro, o movimento social já havia alcançado alguns de seus objetivos. Em todo ciclo de vida há um início, um crescimento, uma fase de maduração e uma declinação, questão que aconteceu nesse desenvolvimento curricular. Explica o Professor Miguel que ele acredita “que há coisas que, tanto no que o governo promove e [o que nasce] por meio de iniciativas de algum setor, no caso dos educadores, pois mudanças vão ocorrendo nas instituições de ensino e acho que, ao fazer as avaliações, elas pareciam já ter completado um ciclo”. Acrescenta que dessa maneira as pessoas foram esquecendo, ficando sujeitas à política de ensino de história e geografia, como mandava o Estado.

O Professor Olivo mostra essa conexão existente entre a “Cátedra por Nariño” e a luta pelas reivindicações populares dessa região, explicando que o enfraquecimento desses esforços diz respeito também à promulgação da nova constituição política da Colômbia no ano de 1991, a qual traz muito otimismo e confiança aos professores, uma vez que eles participaram diretamente de sua redação. Assim, acreditaram, ingenuamente, muitos dos problemas da educação pública colombiana já haviam sido solucionados.

Para o Professor Ignácio, o enfraquecimento da proposta curricular alternativa ocorreu quando as pessoas começaram a aceitar as definições muito claras e diretivas do poder central sobre o que deveria ser ensinado nas escolas, demonstrando, assim, que “o currículo é uma questão de saber, identidade e poder” (SILVA, 2015, n.p., segunda orelha).

Uma última explicação da descontinuidade da “Cátedra por Nariño” se dá pela repressão da violência armada que vitimou muitos professores da educação pública colombiana, debilitando a continuidade da luta social e, consequentemente, de um projeto curricular alternativo.

Em nenhum sindicato ocorreram mais mortes na Colômbia do que na Fecode, e ser docente é uma das profissões mais perigosas de exercer nesse país, onde, com o tempo, a repressão violenta apareceu, espalhando medo entre os educadores de Nariño. Conforme a Fecode, entre 1986 e 2010, no marco do conflito armado, “6.119 docentes foram vítimas de distintas ações de violência, entre elas assassinato, deslocamento e ameaças. Destas, 94% seguem impunes”. Segundo Peña-Castañeda (2018), desde 1980 até julho de 2018, a Fecode registrou 1.088 homicídios de docentes afiliados, dos quais 45 professores assassinados eram do Simana, sendo Nariño uma das regiões mais afetadas pela violência armada.

Possani (2008, p. 7) manifesta que, para forjar currículos emancipatórios, “é necessário que se considerem os campos da utopia, da ética e da ação pedagógica, além de conciliar os tempos da política, dos governos e da ação pedagógica”. Nessa época em que estiveram esses dirigentes na comissão pedagógica do Simana, convergiram várias situações: de um lado, uma política educativa oficial restritiva, acrescida por graves problemas sociais e econômicos em Nariño, e, de outro, professores investidos de altos graus de autonomia, responsabilidade e utopia, com um povo disposto a fazer valer seus direitos de cidadão nos espaços públicos. Uma vez que algumas dessas situações divergiram e surgiram novas situações no contexto, o processo foi se diluindo.

4.5 Avaliação do Processo

De acordo com os professores entrevistados, não foram realizadas avaliações que pudessem mensurar os possíveis resultados e implicações da “Cátedra por Nariño”, como um “currículo realizado” (GIMENO SACRISTÁN, 2007), para a sociedade nariñense a médio e longo prazos. Para o Professor Ignácio, “fazer um balanço dos resultados foi deixado à mercê, à vontade dos professores de cada instituição”. No entanto, a Professora Monserrat acredita que os impactos “tiveram níveis diferentes, de acordo com o comprometimento dos professores e as condições em que estavam”.

O Professor Rafael manifesta que ele esperava que “a conscientização fosse criada nos alunos, que eles valorizassem o que foi feito, bem, esperamos que tenha tido bons resultados”. Entretanto, para o Professor Ignácio, essa avaliação dependeria de pesquisas específicas sobre essa fase do desenvolvimento curricular.

Não houve pesquisa rigorosa para verificar se esses estudantes depois foram mais ou menos isso, ou seja, se eles foram líderes, porque caberia a nós ver quem recebeu essa abordagem e depois se ele se tornou um aluno que foi participativo, reflexivo ou mais deliberativo, é possível que em Pasto tenha havido mais avanços nisso, mas em todo Nariño é difícil saber que os alunos mudaram um pouco sua visão (Professor Ignácio).

Essas percepções dos docentes revelam que não há avaliações do que seriam os resultados da “Cátedra por Nariño” a longo prazo, uma vez que seriam necessárias pesquisas específicas e amplas para isso. Percebe-se que o interesse dos professores era formar para a luta social com o intuito de transformar a realidade, mas com objetivos de curto prazo.

Deve-se esclarecer que o Movimento Pedagógico continuou em funcionamento por décadas, o que fez com que a luta pelo currículo alternativo não acabasse imediatamente. De fato, para a maioria dos entrevistados, a “Cátedra por Nariño” não morreu com a finalização de seu período no sindicato e que essa iniciativa continua até hoje por meio de outras experiências como a “Cátedra Nariño”, adiantada pela Academia Nariñense de História e o Proyecto Innovador Educativo Municipal para los Saberes y la Alternatividad (PIEMSA), da Prefeitura Municipal de Pasto.

5 CONCLUSÃO

Partindo da representação dos professores de Nariño entrevistados neste trabalho e dos textos e documentos da época coletados e analisados, fica evidente que os professores de Nariño, nos anos de 1980, por intermédio de suas lutas, tanto nas ruas como nas aulas, alcançaram importantes reivindicações para o povo nariñense. Demostraram que era possível transformar sua realidade socioeconômica conhecendo-a primeiro, desvelando situações por meio da reflexão e partindo, posteriormente, para a ação.

A política educativa nacional regressiva foi a causa principal do surgimento desses processos com perspectivas emancipatórias. Tanto o Movimento Pedagógico quanto a proposta da “Cátedra por Nariño” ocorreram como respostas à imposição por parte do governo colombiano de políticas educativas restritivas da profissão docente.

Em síntese, a “Cátedra por Nariño” centrava-se fundamentalmente em três aspectos: 1) o fortalecimento da identidade regional; 2) a contextualização da educação por meio do conhecimento dos problemas reais de Nariño, enfrentados pelos estudantes e suas famílias; e 3) a autonomia dos docentes para construir o currículo conforme suas experiências, conhecimentos, necessidades, expectativas e criatividade.

Pretendia-se com o currículo alternativo fortalecer os estudantes para o enfrentamento dos problemas reais, mediante uma educação problematizadora, trazendo para a aula situações existenciais dos educandos. O currículo alternativo era informado principalmente pelo interesse emancipatório, enquadrado no que se chama de currículo como práxis. Ali existia flexibilidade para construir e moldar o currículo alternativo, pois era outorgada a autonomia a cada docente para levar à prática a “Cátedra por Nariño”, valendo-se cada um de sua criatividade e inteligência e, assim, os educadores eram formuladores e implementadores desse currículo.

Apesar dos inumeráveis obstáculos que enfrentaram os professores da “Cátedra por Nariño”, essa proposta curricular alternativa com perspectivas emancipatórias guiou o surgimento de outras propostas curriculares, mas de maneira oficial. Este trabalho permitiu também, desde a academia, demonstrar um reconhecimento àqueles professores que fizeram parte da “Cátedra por Nariño”.

A “Cátedra por Nariño” deixou uma semente no sentido de valorizar e ressaltar os valores culturais nariñenses, servindo, segundo a representação dos educadores, de inspiração para implementar novos processos educacionais nessa região. Na representação dos educadores, um dos ganhos das lutas pelo currículo alternativo foi a autonomia para incluir os conteúdos regionais nos currículos oficiais regionais e municipais, o qual propiciou a expedição da nova constituição política da Colômbia no ano de 1991 e da nova lei geral de educação no ano de 1994.

Finalmente, acreditamos que este estudo é capaz de remover do anonimato a experiência da “Cátedra por Nariño”, como currículo alternativo, para tê-lo como exemplo que permite balizar outros processos com perspectivas emancipatórias.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Wanda; OZELLA, Sergio. Núcleos de significação como instrumento para a apreensão da constituição dos sentidos. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 26, n. 2, p. 222-245, 2006. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1590/s1414-98932006000200006 . Acesso em: 21 maio 2020. [ Links ]

ARY, Donald et al. Introduction to Research in Education. 8. ed. Belmont: Wadsworth Cengage Learning, 2010. [ Links ]

COMISIÓN PEDAGÓGICA DEL MAGISTERIO DE NARIÑO. Acta n. 2 de la Comisión Pedagógica. Pasto, 1983a. [ Links ]

COMISIÓN PEDAGÓGICA DEL MAGISTERIO DE NARIÑO. Documento de invitación al Seminario para la preparación de la Cátedra por Nariño. Pasto, 1983b. [ Links ]

COMISIÓN PEDAGÓGICA DEL MAGISTERIO DE NARIÑO. Documento guía para adelantar la Cátedra por Nariño. Pasto, 1983c. [ Links ]

COMISIÓN PEDAGÓGICA DEL MAGISTERIO DE NARIÑO. Análisis del Decreto 1002 de 1984. Pasto, 1984. [ Links ]

FALS BORDA, Orlando. Movimientos sociales y poder político. Análisis Político, n. 8, p. 49-58, 1989. Disponível em: Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/colombia/assets/own/analisis08.pdf . Acesso em: 21 maio 2020. [ Links ]

FELÍCIO, Helena. Currículo e emancipação: redimensionamento de uma escola instituída num contexto advindo do processo de desfavelização. Currículo sem Fronteiras, v. 10, n. 2, p. 244-258, jul./dez. 2010. Disponível em: Disponível em: http://www.curriculosemfronteiras.org . Acesso em: 12 maio 2020. [ Links ]

FELÍCIO, Helena; POSSANI, Lourdes. Análise crítica de currículo: um olhar sobre a prática pedagógica. Currículo Sem Fronteiras, v. 13, n. 1, p. 129-142, 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.curriculosemfronteiras.org . Acesso em: 21 maio 2020. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Educação na cidade. 7. ed. São Paulo: Editora Cortez, 2006. [ Links ]

GIL, Antonio. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002. [ Links ]

GIMENO SACRISTÁN, José. El curriculum: una reflexión sobre la práctica. 9. ed. Madrid: Ediciones Morata, 2007. [ Links ]

GIROUX, Henry. Escola crítica e política cultural. São Paulo: Cortez, Autores Associados, 1987. Disponível em: Disponível em: https://id.b-ok.org/book/3657534/adf04c . Acesso em: 21 maio 2020. [ Links ]

GONZÁLEZ REY, Fernando. Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de construção da informação. São Paulo: Cengage Learning, 2010. [ Links ]

GRUNDY, Shirley. Producto o praxis del curriculum. 3. ed. Madrid: Ediciones Morata , 1998. [ Links ]

MASHIBA, Glaciane. Emancipação humana em Theodor Adorno e Paulo Freire. 2013. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.ppe.uem.br/SITEPPE 2010/teses/2013-Glaciane.pdf . Acesso em: 21 maio 2020. [ Links ]

MERRIAM, Sharan. Introduction to qualitative research. In: MERRIAM, Sharan; GRENIER, Robin (ed.). Qualitative research in practice: examples for discussion and analysis. San Francisco: The Jossey-Bass. 2002. p. 3-17. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1353/csd.2003.0041 . Acesso em: 21 maio 2020. [ Links ]

PEÑA-CASTAÑEDA, Camilo. Cada 12 días asesinan a un profesor en Colombia. El Tiempo, Bogotá, Aug. 25, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.eltiempo.com/vida/educacion/cada-12-dias-asesinan-a-un-profesor-en-colombia-260198 . Acesso em: 21 maio 2020. [ Links ]

PEREIRA, Alciane; CONCEIÇÃO, María; MARTÍNEZ, Albertina. Epistemología cualitativa de González Rey: una forma diferente de análisis de datos. Revista Tecnia, v. 1, n. 1, p. 17-31, 2016. Disponível em: Disponível em: https://revistas.ifg.edu.br/tecnia/article/view/3 . Acesso em: 15 mar. 2020. [ Links ]

POSSANI, Lourdes. Currículos emancipatórios para a educação de jovens e adultos na perspectiva das políticas públicas: resistências e esperanças. 2008. Tese (Doutorado em Educação: Currículo) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008. Disponível em: Disponível em: https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/10103/1/LourdesdeFatimaPaschoaletto Possani.pdf . Acesso em: 19 maio 2020. [ Links ]

SILVA, Alexandre. Escola e emancipação: o currículo como espaço-tempo emancipador. 2006. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. Disponível em: Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/8690/000586536.pdf?sequence=1&isAllowed=y . Acesso em: 21 maio 2020. [ Links ]

SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. [ Links ]

SIMANA. Conclusiones de la XIV Asamblea Departamental de Delegados. Pasto: SIMANA, 1984. [ Links ]

SIMANA. Conclusiones de la XV Asamblea Departamental de Delegados. Pasto: SIMANA , 1985a. [ Links ]

SIMANA. Tesis sobre el Movimiento Pedagógico. Educación y Cultura, n. 5, p. 42-45, 1985b. [ Links ]

SIMANA. El movimiento pedagógico en las zonas socioculturales de Nariño. Revista Educación y Cultura, p. 47-48, abr. 1987. [ Links ]

SIMANA. SIMANA por la construcción de este poema: un País que sueña. Memorias de lucha sindical e hitos de resistencia por la verdad, la justicia y la dignidad del magisterio. 1951-2016. Pasto: Editorial SIMANA, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.simana.org.co/images/PDFS/texto_Simana_historia_13.docx.-3.pdf . Acesso em: 21 maio 2020. [ Links ]

SOUZA FILHO, José O. X. de. Escola e emancipação: um papel para as ciências? 2014. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/81/81131/tde-20072015-115904/pt-br.php . Acesso em: 21 maio 2020. [ Links ]

VELASCO, Mario. Rebelión desde la región. Movimiento popular “Los Inconformes” de Nariño 1980 - 1990. Pasto: Empresa Editora Nariño EDINAR, 2004. [ Links ]

NOTAS:

1 No contexto educativo colombiano, cátedra significa uma disciplina acadêmica de um status superior. Nariño é o nome de um dos 32 departamentos em que se divide política e administrativamente a Colômbia. Neste trabalho, “Cátedra por Nariño” refere-se a um componente curricular alternativo implementado por alguns professores de Nariño como forma de contestação das políticas educativas oficiais regressivas implementadas na década de 1980 na Colômbia.

2 A Colômbia é um Estado social de direito, organizado em forma de República unitária, que na sua divisão política-administrativa, e para fins administrativos, segmenta-se em departamentos. Dessa maneira, quando referimos a departamentos, estamos fazendo alusão a uma divisão do país, similar a um estado numa república federativa.

3 O nome original do movimento foi Movimento Cívico por Nariño, mas, como o termo cívico no contexto brasileiro tem conotações negativas ligadas à época da ditadura militar, preferimos adotar essa designação.

Recebido: 03 de Novembro de 2020; Aceito: 18 de Setembro de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons