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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.20 no.2 São Paulo abr./jun 2022  Epub 21-Nov-2022

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2022v20i2p534-551 

Artigos

A proposta pedagógica curricular do curso de letras indígena da Universidade Estadual de Ponta Grossa-PR:uma leitura decolonial

The curricular pedagogical proposal of the indigenousletters course at the State University of Ponta Grossa-PR:a decolonial reading

La propuesta curricular pedagógica del curso de alfabetización indígena en Universidade Estadual de Ponta Grossa-PR:una lectura descolonial

Diogo Bandeira de SOUZAi 
http://orcid.org/0000-0003-2460-9083

Maria Walburga dos SANTOSii 
http://orcid.org/0000-0002-9304-5800

Rafael Romeiro DOINiii 
http://orcid.org/0000-0002-4255-2407

i Doutorando em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba. Orientador Pedagógico da Rede Municipal de Ensino de Sorocaba, SP. Professor de Língua Portuguesa da Rede Privada de Ensino de Sorocaba, SP. E-mail: souzabdiogo@gmail.com - ORCID iD: http://orcid.org/0000-0003-2460-9083.

ii Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Federal de São Carlos, UFSCar, campus Sorocaba. E-mail: walburga@ufscar.br - ORCID iD: http://orcid.org/0000-0002-9304-5800.

iii Doutorando em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba. Bolsista Capes. E-mail: rafael.doin@hotmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-4255-2407.


Resumo

O artigo desenvolve análise da Proposta Pedagógica Curricular do Curso de Letras da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná, a fim de promover uma leitura decolonial do currículo proposto pela instituição. A epistemologia decolonial mostra-se como uma alternativa de conhecimento que escuta/dá voz a outras formas de pensamento que não apenas as oriundas de cânone europeu ou estadunidense. É uma epistemologia que se soma a outras e não visa substituir saberes, mas ampliar a concepção de conhecimentos válidos. O texto buscará, de modo principal, explicitar a(s) relação(ões) entre currículo e identidade, intentando refletir interfaces/possibilidades estabelecidas entre currículo e questões educacionais indígenas, considerando, entre outros, o pensamento de Tomaz T. da Silva, Alice C. Lopes, Elizabeth Macedo, Stuart Hall, Boaventura de S. Santos, Daniel Munduruku e Paulo Freire.

Palavras-chave: currículo; identidade; decolonialidade

Abstract

The article develops an analysis of the Curricular Pedagogical Proposal of the Letters Course at the State University of Ponta Grossa, Paraná (Brazil) in order to promote a decolonial reading of the curriculum proposed by the institution. Decolonial epistemology shows itself as an alternative of knowledge that gives voices to other forms of thought that not only come from the European or American canon. It is an epistemology that is added to others and does not aim to replace knowledge, but to expand the conception of valid knowledge. The text will seek, mainly, to explain the relationship(s) between curricullum and identity, trying to reflectinterfaces/possibilities established between curriculum and indigenous educational issues, considering, among others, the thinking of Tomaz T. da Silva, Alice C. Lopes, Elizabeth Macedo, Stuart Hall, Kathryn Woodward, as well as Walter Mignolo, Boaventura de S. Santos, Daniel Munduruku, and Paulo Freire.

Keywords: curriculum; identity; decoloniality

Resumen

Nuestro artículo desarrolla el análisis de la Propuesta Pedagógica Curricular del Curso de Letras de la Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná, con el fin de promover una lectura decolonial del currículo propuesto por la mencionada Institución de Educación Superior. La epistemología decolonial se muestra como una alternativa de conocimiento que da voz a otras formas de pensamiento distintas a las originadas en un canon europeo o americano. Es una epistemología que se suma a otras, no busca reemplazar el conocimiento eurocéntrico. Nuestro texto buscará, de manera principal, explicar la (s) relación (es) entre currículum e identidad, a fin de reflejar las relaciones que se establecen entre el campo del currículum y la problemática educativa indígena. Para ello utilizaremos autores como: Tomaz T. da Silva, Alice C. Lopes, Elizabeth Macedo, Stuart Hall, Kathryn Woodward, así como Walter Mignolo, Boaventura de S. Santos, Daniel Munduruku y Paulo Freire.

Palabras clave: currículo; identidad; decolonialidad

1 INTRODUÇÃO: AFINAL, O QUE É CURRÍCULO?

Segundo o pesquisador Silva (2020), qualquer livro que busque debater o conceito de “currículo” de forma consistente introduz essa abordagem a partir de sua definição linguística, ou seja, pelo verbete da palavra. Entendemos que, apesar de soar como lugar-comum iniciar exatamente assim a discussão sobre esse tema, ainda é produtiva tal estratégia de apresentação do objeto, porquanto favorece uma leitura didática de algo complexo em sua existência prática, concreta. Isso posto, o vocábulo currículo é assim definido:

1 Ato de correr; corrida, curso. 2 pequeno atalho, desvio em um caminho. 3 programação total ou parcial de um curso ou de matéria a ser examinada (no primeiro dia, os professores apresentam os currículos dos cursos de matemática e física. 4 etimologia: latim ‘curriculum’; corrida, carreira, lugar onde se corre, campo, liça, hipódromo, picadeiro, do v. lat. ‘currere’, ‘correr’ (HOUAISS, 2007, p. 894).

O verbete nos apresenta a definição de currículo, inclusive expondo-nos sua origem etimológica e, no plano geral, o texto é válido porque nos aponta a seguinte compreensão: currículo como trajetória, caminho, programação de curso no âmbito educacional (o que mais nos interessa precisamente). No entanto, em sua significação estritamente lexical, também temos a palavra campo em destaque. Tal vocábulo pode ser explicado como “assunto, motivo, tema, esfera de ação, domínio, âmbito, espaço, meio para se realizar ou debater algo” (HOUAISS, 2007, p. 589), ou seja, o campo é espaço de disputa política.

Partindo desse raciocínio, podemos afirmar que o currículo, agora por nós assumido neste artigo exclusivamente na perspectiva educacional (não familiar), é um campo de enfrentamento. Mas de qual enfrentamento estamos tratando e quem está à frente dessa questão?

Essas perguntas não são facilmente respondidas (pelo menos não em termos práticos ou concretos de existência, isto é, para além da reflexão teórica). Não podemos compreender o currículo apenas como um conceito lexicalmente posto, mas, principalmente, como uma práxis historicamente constituída. Logo, o currículo é um campo de disputa em que determinados grupos buscam estar na dianteira do processo educacional e com isso promover sua visão de mundo e de sociedade, isto é, de formação humana. A esse entendimento dá-se o nome de hegemonia. Então, não é, inicialmente, possível pensar currículo fora do conceito de campo e de seu processo histórico de constituição, ou seja, não podemos nos furtar de pensar o currículo como importante instrumento de consolidação de poder simbólico. Segundo Bourdieu (2009, p. 8-9), esse poder é

[...] invisível, o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem [...]. O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo.

O poder, por conseguinte, é a concretização dos ideais hegemônicos que agem sobre os indivíduos e suas relações com o mundo sem que estes tenham sua plena consciência. Logo, não pode ser desvinculado das relações humanas historicamente constituídas.

Partindo desse pressuposto, é possível reiterar o que afirmamos em parágrafos anteriores: o currículo é um campo de disputa entre aqueles que estão ou pretendem estar à frente da formação humana, uma vez que o currículo é uma das expressões culturais humanas. Conforme Lopes e Macedo (2010, p. 17-18):

[...] o campo do Currículo se constitui como um campo intelectual: o espaço em que diferentes atores sociais, detentores de determinados capitais social e cultural na área, legitimam determinadas concepções, sobre a teoria de Currículo e disputam entre si o poder de definir quem tem a autoridade na área. Trata-se de um campo capaz de influenciar propostas curriculares oficiais, práticas pedagógicas nas escolas, a partir dos diferentes processos de recontextualização de seus discursos, mas que não se constitui dessas mesmas propostas e práticas. O campo intelectual do Currículo é um campo produtor de teorias sobre currículos, legitimadas como tais pelas lutas concorrenciais nesse mesmo campo. As produções do campo do Currículo configuram, assim, um capital cultural objetivado no campo.

Das palavras das autoras podemos extrair que o campo do currículo, por intermédio de seus intelectuais, é responsável por elaborar concepções teóricas que influenciam diretamente práticas docentes e discentes, ou seja, que agem sobre o espaço educacional e, portanto, são instrumento de poder. Para Silva (2020, p. 15):

O currículo é sempre o resultado de uma seleção: de um universo mais amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte que vai constituir, precisamente, o currículo. As teorias do currículo, tendo decidido quais conhecimentos devem ser selecionados, buscam justificar por que ‘esses conhecimentos’ e não ‘aqueles’ devem ser selecionados.

Por conseguinte, o pesquisador deixa latente que o currículo determina e fomenta, por meio de seu repertório teórico, o conjunto de conhecimentos que formarão o tipo de indivíduos que estamos visando como ideal para nossa sociedade. Dito disso, Apple (2006) também nos traz importante contribuição, uma vez que reitera o campo do currículo como algo indissociável da realidade coletiva e cultural (formação de uma sociedade), bem como o reforça como práxis tanto educativa - relação docente/discente - quanto educacional - inerente à gestão do espaço educativo:

Para sermos honestos com nós mesmos, devemos reconhecer que o campo do currículo finca suas raízes no próprio solo do controle social. Seu paradigma intelectual tomou primeiramente forma no início do século XX, e tornou-se um conjunto identificável de procedimentos para a seleção e organização do conhecimento escolar - procedimentos a serem ensinados aos professores e a outros educadores (APPLE, 2006, p. 85).

Após essas reflexões iniciais, voltemos ao questionamento que orienta nosso texto neste momento: O que é currículo? Ao considerarmos os recortes que fizemos até aqui, podemos afirmar que o currículo é práxis política e espaço de disputa, de poder. Envolve intelectuais, estudiosos do campo da educação que buscam a prevalência de suas ideias. Estes acabam por definir o currículo como espaço de práxis educacional e educativa porquanto são responsáveis diretos pela seleção dos conteúdos que engendram o referido documento e que incidem sobre o cotidiano nos diversos edifícios (prédios) em que se dão os trabalhos de educação. Todavia, Silva (2020, p. 15) nos alerta para o que, em seu entendimento, é o ponto nevrálgico dessa importante questão e que se soma à ideia de que o currículo é responsável pela formação de pessoas desejáveis em sociedade:

Será a pessoa racional e ilustrada do ideal humanista de educação? Será a pessoa otimizadora e competitiva dos atuais modelos neoliberais de educação? Será a pessoa ajustada aos ideais de cidadania do moderno estado-nação? Será a pessoa desconfiada e crítica dos arranjos sociais existentes preconizada nas teorias educacionais críticas? A cada um desses ‘modelos’ de ser humano corresponderá um tipo de conhecimento, um tipo de currículo. No fundo das teorias do currículo está, pois, uma questão de ‘identidade’ ou de ‘subjetividade’ (grifos nossos).

2 IDENTIDADE E DIFERENÇA NO CONTEXTO DO CURRÍCULO: ABORDAGEM PÓS-CRÍTICA

Adotamos como base na elaboração desse diálogo sobre identidade e currículo o livro de Hall (2000) A identidade cultural na pós-modernidade e de Lopes e Macedo (2011) Teorias de currículo. Embora o tema possa ser discutido considerando diversos momentos históricos, as concepções apresentadas serão a partir da Modernidade, pois, de acordo com Lopes e Macedo (2011, p. 218),

A Modernidade inaugura o homocentrismo, eliminando essa ideia de particular e transformando o homem no próprio universal. Isso inaugura a discussão da identidade como a conhecemos, ao mesmo tempo que a aprisiona em torno de um núcleo essencial que define o humano.

Nessa perspectiva, Hall (2000) nos apresenta três definições referentes à identidade: a primeira sobre o sujeito no Iluminismo; a segunda com base no sujeito sociológico; e a terceira, o sujeito na pós-modernidade. Perceber a construção pela qual o termo identidade passa no decorrer da história dá-nos um embasamento mais coeso para demonstrar nossas proposições ao longo da leitura.

Segundo Hall (2000), o sujeito, pela perspectiva do Iluminismo, é voltado para si, porquanto é dotado de razão e é a ela que devem ser direcionadas a criação e a elaboração de sua identidade. Partindo desse pressuposto, Lopes e Macedo (2011, p. 218) contribuem para tal reflexão apontando que:

O homem é entendido como um indivíduo uno e centrado, um ser racional e consciente que possui um núcleo interior essencial com o qual nasce e que desenvolve ao longo de sua vida. Esse núcleo essencial constitui a identidade do indivíduo, uma identidade inata.

Por sua vez, o sujeito sociológico - conforme os preceitos da sociologia clássica - apresentado pelo autor de A identidade cultural na pós-modernidade (HALL, 2000) defende a tese de que existe uma relação entre o sujeito e o mundo do qual ele faz parte. É nessa relação que ele se constituirá e desenvolverá sua identidade. Entretanto, as autoras Lopes e Macedo (2011) apontam como essa elaboração acabou levando em consideração muito mais a relação do coletivo do que uma troca entre o individual e o coletivo.

É importante perceber que as duas definições apresentadas, embora diferentes entre si, ainda revelam concepções definidas de identidade, trazida pelo sujeito ou pela comunidade em que está inserido. Logo, ela não é fluida, e sim fixa. Não só isso, mas também essa elaboração nos levou a uma perspectiva em que as identidades existem a partir de seus opostos e, assim, construímos nossa identidade considerando aquilo que não somos, do olhar fruto de uma relação de oposição em relação ao outro e deste sobre nós. Com essa dicotomia entre minha identidade e a do outro (diferente de mim), perdemos todas as nuances que se encontram entre uma e outra, limitando nossa percepção acerca de outras possibilidades de ser e de estar.

[...] as identidades são definidas pela sua diferença em relação a outras identidades e não por algo que lhes é próprio. Uma vez definidas, recebem marcadores simbólicos que fazem com que sejam vistas como se fossem essenciais: a cor da pele, o pênis, o córtex, a posse dos meios de produção (LOPES; MACEDO, 2011, p. 223).

Não que essas e outras características não contribuam com nossas escolhas e maneiras de viver e de ser/estar no mundo, porém elas não são fatores que devam determinar nossas escolhas sem a percepção e a escolha referentes a elas. Opondo-se a essas duas definições apresentadas, Hall (2000, p. 13) aponta:

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar - ao menos temporariamente.

Pensando nessa identidade fluida mencionada, a definição do sujeito da pós-modernidade, segundo Hall (2000), é construída e descontruída a partir das necessidades dos sujeitos, não se tornando algo imposto, e sim uma escolha que vai durar o tempo necessário para aquele sujeito. Essa elaboração está ligada ao modo como a sociedade moderna se relaciona. Hall (2000, p. 14) afirma que nossas identidades na contemporaneidade podem ser erigidas “por definição, sociedade de mudança constante, rápida e permanente”. Por conseguinte, essa sociedade, em constante mudança, não se conecta a um sujeito com identidades preestabelecidas; os sujeitos que constroem e se relacionam nessa sociedade moderna estão, assim como ela, em permanente mudança.

Refletir sobre essas formas e observar como as identidades vão se construindo e se inserindo na vida dos indivíduos leva-nos a perceber como ela se configura dentro dos currículos elaborados. Como verificamos anteriormente, trata-se de um campo de disputa de poderes. Nesse sentido, cabem as seguintes indagações: Qual concepção de sujeito está sendo empregada, majoritariamente, nos currículos? Como podemos romper com essa dicotomia das identidades que se apresenta tão fixa e excludente na maioria dos currículos? Com relação às identidades apresentadas nos currículos, Lopes e Macedo (2011, p. 231) aduzem: “Não importa quão plural sejam essas identidades, elas serão sempre aquelas que podem ser projetadas dos espaços de poder que nos encontramos. Correspondem à renúncia a outras possibilidades de ser dos sujeitos”.

Os autores Hall (2000) e Lopes e Macedo (2011) defendem que essa construção (de sujeitos) deve acontecer para além das identidades fixas e ser elaborada levando em consideração a diferença e o sujeito político. Nessa perspectiva, a diferença se apresenta com uma proposta mais ampla, que busca não excluir as nuances que se perdem quando olhamos para as identidades que foram construídas com base no binarismo. Dessarte, Lopes e Macedo (2011, p. 227) relatam que “Abrir o currículo à diferença implica recusar a perspectiva da identidade, rechaçar as fixações que criam as identidades como golpes de força sobre a possibilidade de ampla significação”.

Essa mudança só ocorrerá, segundo os autores, a partir de uma consciência política de cada sujeito, pois são suas lutas políticas que o caracterizaram como um grupo, podendo ser elas pontuais ou não.

Nesse sentido, o que constitui os negros, brancos, indígenas, capitalistas e trabalhadores como grupos são as decisões de dar centralidade a uma dada demanda e fazer dela algo como uma bandeira de luta. As formas de garantir essa centralidade são definidas na luta política, pela articulação de demandas e de grupos em torno de posições que precisam ser hegemonizadas (LOPES; MACEDO, 2001, p. 229).

Portanto, Hall (2000, p. 21) ainda acrescenta:

Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é automática. Ela tornou-se politizada. Esse processo é, às vezes, descrito como constituindo uma mudança de uma política de identidade (de classe) para uma política de diferença.

Refletir sobre concepção/ões de currículo, identidade, diferença e sujeitos políticos faz-nos entender certos caminhos que são trilhados ao longo da história e cabe-nos, de forma crítica, identificar essas escolhas para lutarmos por espaços e tipos de currículo que busquem quebrar essa hegemonia voltada para a exclusão e o apagamento daquilo que não se encaixa no binarismo imposto pelo status quo.

Nesse sentido, assim elucida Woodward (apudSILVA, 2014, p. 50-51):

Essa concepção de diferença é fundamental para se compreender o processo de construção cultural das identidades... A diferença pode ser construída negativamente - por meio da exclusão ou da marginalização daquelas pessoas que são definidas como ‘outros’ ou forasteiros. Por outro lado, ela pode ser celebrada como fonte de diversidade, heterogeneidade e hibridismo, sendo vista como enriquecedora: é o caso dos movimentos sociais que buscam regatar as identidades sexuais dos constrangimentos da norma e celebrar a diferenças. Uma característica comum à maioria dos sistemas de pensamento parece ser, portanto, um compromisso com os dualismos pelos quais a diferença se expressa em termos de oposições cristalinas - natureza/cultura, corpo/mente, paixão/razão.

Fica evidente que não se trata de desconsiderar que as diferenças existem e muito menos de mitigar a relevância delas no âmbito das identidades. Não obstante, as binaridades que fomentam a “tradição” das dualidades correspondentes às relações sociais promovem a hierarquização das identidades, ou seja, há uma parcela da sociedade, a qual denominaremos hegemônica, que subjuga o outro, atribuindo-lhe a pecha de inferior e/ou atrasado.

Logo, a manutenção da cultura social pautada pela lógica das binaridades, e não pela interculturalidade - elemento central da Proposta Pedagógica Curricular da UEPG, como veremos a seguir -, tem o propósito de ser um mecanismo de continuidade do discurso eurocêntrico, que marginaliza e fustiga os pensamentos e os saberes que se contrapõem à visão de mundo colonial.

3 CURRÍCULO E DECOLONIALIDADE: A PROPOSTA PEDAGÓGICA CURRICULAR DO CURSO DE LETRAS DA UEPG

A Proposta Pedagógica Curricular (PPC) para licenciatura em Letras destinada aos indígenas do Paraná, desenvolvida pelo Departamento de Estudos da Linguagem da UEPG, trata-se de uma ação conjunta das demais universidades públicas do estado para a formação de professores, professoras, gestores e gestoras educacionais pertencentes à etnia - que em sua maioria pertencem às comunidades indígenas Guarani, Xetá e Kaingang, residentes tanto em aldeias quanto em centros urbanos -,com o intuito de atuarem em escolas indígenas e não indígenas.

As referidas universidades que compõem a iniciativa de política afirmativa da qual a UEPG faz parte são: Universidade Estadual de Maringá (UEM); Universidade Estadual do Centro Oeste (Unicentro); Universidade Estadual do Paraná (Unespar); e Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Todas as Instituições de Ensino Superior mencionadas promovem em seus campi, ou em extensões deles, licenciaturas outras.

Vale uma ressalva. Neste artigo, tratamos especificamente do trabalho desenvolvido no Paraná, com foco na ação afirmativa via universidades estaduais. Todavia, assinalamos que há formas outras de tratar e encaminhar as políticas afirmativas e acesso às comunidades indígenas ao ensino superior. A Universidade Federal de São Carlos, no estado de São Paulo, por exemplo, destina uma vaga de cada curso de graduação a ser preenchida por estudante indígena, via vestibular próprio e específico para tal fim, não havendo, portanto, cursos que atendam exclusivamente formação de grupos indígenas. Portanto, trata-se de uma iniciativa que busca também a inserção de saberes não eurocêntricos no contexto acadêmico universitário, não obstante com outro método de atuação para atingir essa finalidade.

É importante realçar que essas licenciaturas ofertadas pelas universidades estaduais, as quais ficam geograficamente em espaços distintos no Paraná e que igualmente compreendem culturas indígenas diferentes, são definidas a partir de diálogos com as comunidades dos povos originários, cuja representação se dá por meio de seus líderes. Segundo consta no PPC da UEPG:

Este projeto foi motivado, inicialmente, pela apresentação de uma demanda específica, endereçada à UEM, pelo cacique e lideranças da Terra Indígena Ivaí, localizada no município de Manoel Ribas, estado do Paraná. A comunidade e as lideranças indígenas da TI Ivaí solicitaram a abertura de um curso de História que formasse professores indígenas para atuar nas suas escolas e também nas 39 escolas indígenas existentes no Paraná. Na carta, o cacique e lideranças reconheciam o valor acadêmico e formativo da UEM, por meio de trabalhos desenvolvidos em parceria com o Programa Interdisciplinar de Estudos de Populações - Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-história da UEM (LAEE), e o Departamento de História, junto aos povos Kaingang, Guarani e Xetá que habitam o território paranaense (UEPG, 2020, p. 9).

Torna-se, portanto, evidente que as comunidades indígenas têm voz ativa no processo de construção dos PPCs voltados à formação acadêmica de seus integrantes e futuros estudantes de licenciaturas das universidades estaduais do Paraná, bem como reconhecem a importância dos espaços em destaque. Outrossim, é patente que as instituições de ensino universitário envolvidas no processo valorizam essa iniciativa das lideranças que representam seus pares no presente contexto.

Nesse sentido, o curso de Letras da UEPG, de que trata este artigo, cuja duração mínima e máxima será de 4 a 6 anos, respectivamente, com início - muito provavelmente - em 2021, tem como um de seus pilares

[...] a socialização do saber filosófico, científico, artístico e tecnológico do mundo acadêmico com essas comunidades, mas, ao mesmo tempo, a compreensão do saber filosófico, científico, artístico e tecnológico que elas trazem para, num movimento pautado no ensino, na extensão e na pesquisa, a produção de conhecimentos relacionados à formação intercultural de um(a) professor(a) indígena (UEPG, 2020, p. 8).

O movimento dialético da Proposta nos é bastante evidente e pode suscitar um importante questionamento de ordem prática: como se dará essa relação universidade/estudantes indígenas? Para tal, a UEPG assume como prática pedagógica nessa licenciatura a práxis de “pedagogia de alternância”, a qual traz em seu bojo o Tempo Universidade e o Tempo Comunidade. No que tange ao Tempo Universidade, no caso da UEPG, os estudantes ficarão nas dependências de um colégio na cidade de Ponta Grossa (e não necessariamente em um dos campi da Instituição), o qual conta com vasto alojamento, onde poderão cumprir administrativamente a condição de curso de tempo integral e, no âmbito social, conviver uns com os outros, o que possibilitará trocas de experiências entre comunidades distintas. Esse fato enriquece ainda mais o propósito da ação, pois amplia o conceito de interculturalidade textualmente expresso na referida PPC.

A interculturalidade, inicialmente, é lida como um espaço de inter-relações envolvendo apenas os “homens brancos” e os indígenas. Todavia, a Proposta nos revela que a relação entre culturas se dará entre povos indígenas e não indígenas e entre os próprios povos de comunidades distintas, bem como entre os povos indígenas habitantes de aldeias e os habitantes de centros urbanos.

Desse modo, o conceito de interculturalidade é amplo e complexo, haja vista que estamos diante de uma gama de diferenças e de identidades. Isso também é passível de acontecer - e ousamos dizer que muito provavelmente ocorrerá - entre os docentes do curso, porquanto o quadro é composto por professores indígenas e não indígenas, sejam eles da UEPG ou de outras universidades vinculadas à Política Afirmativa em destaque.

Com efeito, a horizontalidade característica da Proposta apresenta-se como um importante traço da epistemologia decolonial. Ao assumir uma posição não dominadora perante a cultura indígena, mas de diálogo entre os saberes de matriz eurocêntrica e os saberes dos povos originários, a universidade rompe com uma das marcas de preconceito que muitas vezes engendram a relação entre essas pessoas, bem como enfrenta o estruturalismo próprio do espaço acadêmico, o qual, não raro, leva os estudantes indígenas à adaptação e à assimilação. Ainda que pese o fato de que esses estudantes indígenas não estarão exatamente em contato com outros estudantes da UEPG em seus campi, crítica válida em nosso entendimento, não diminui o importante passo dado pela universidade.

De acordo com o documento, “o espaço universitário será fundamental para promover a formação intelectual, política, prática, ética e cidadã desses(as) futuros(as) professores(ras) para o trabalho na educação básica, tanto em escolas indígenas quanto em escolas não indígenas” (UEPG, 2020, p. 14). Na presente passagem, há uma importante questão a ser observada: o direito ao espaço público e a seu consumo. No que tange a essa questão, Harvey (2006, p. 213), importante geógrafo e pesquisador, afirma que: “a tarefa do Estado é situar o poder nos espaços controlados pela burguesia, privando dele os espaços que movimentos de oposição têm mais condições de controlar”. Santos (2010, p. 14-15), por sua vez, define a mentalidade colonial de controle dos espaços da seguinte forma:

[...] el proceso histórico que condujo a las independencias es la prueba de que el patrimonialismo y el colonialismo interno no solo se mantuvieran después de las independencias, sino que en algunos casos inclusos se agravaran. La dificultad de imaginar la alternativa al colonialismo reside en que el colonialismo interno no es solo ni principalmente una política de Estado, como sucedía durante el colonialismo de expanción extranjera; es una gramática social muy vasta que atraviesa la sociabilidad, el espacio público y el espacio privado, la cultura, las mentalidades y las subjetividades. Es, em resumen, un modo de vivir y convivir muchas veces compartido por quienes se benefician de él y por los que lo sufren.

Ao abrirem suas portas à comunidade indígena, as universidades estaduais do Paraná assumem um posicionamento político contrário ao poder burguês, o qual impõe uma única visão de realidade e de ciência como válida (universalismo) e que, consequentemente, busca cessar as diferentes vozes que oferecem resistência a esse modo de vida proposto pelo “espírito” colonizador fecundado no processo de colonização e que ainda ressoa na sociedade contemporânea, uma vez que imprimiu suas marcas na cultura ocidental.

No que diz respeito de modo específico à UEPG, a Proposta apresentada pelo Departamento de Estudos da Linguagem promove a decolonização desse espaço universitário, o qual será de fato produtor de saberes, de ciências, mas que também será, essencialmente, um local de vivências, isto é, de cosmologias pluriversais, e não mais universais. Na esteira desse raciocínio, Mignolo (2008, p. 290) nos apresenta uma importante reflexão:

A opção descolonial1 (sic) é epistêmica, ou seja, ela se desvincula dos fundamentos genuínos dos conceitos ocidentais e da acumulação de conhecimento. Por desvinculamento epistêmico não quero dizer abandono ou ignorância do que já foi institucionalizado por todo o planeta... Pretendo substituir a geo- e a política de Estado de conhecimento de seu fundamento na história imperial do Ocidente dos últimos cinco séculos, pela geo-política (sic) e a política de Estado de pessoas, línguas, religiões, conceitos políticos e econômicos, subjetividades etc., e que foram racializadas... Consequentemente, a opção descolonial (sic) significa, entre outras coisas, aprender a desaprender..., já que nossos cérebros tinham sido programados pela razão imperial/colonial (grifos do autor).

Ao conceituar a opção decolonial - grafia que assumimos desde o princípio de nosso texto -, Mignolo (2008) nos põe diante de duas categorias importantes para essa epistemologia: a desobediência epistêmica e a geopolítica de pessoas, isto é, a práxis de identidade, cuja célula corresponde a questões de raças e etnias. A desobediência epistêmica equivale ao reconhecimento de outras formas de vida e de saberes, os quais não advêm da Europa e de outros espaços colonizadores, ou seja, “uma genealogia de pensamento que não é fundamentada no grego e no latim, mas no quéchua e no aymara... nas línguas dos povos africanos escravizados” (MIGNOLO, 2008, p. 292).

Portanto, “o pensamento descolonial (sic) vive nas mentes e corpos de indígenas, bem como nas de afrodescendentes”. E mais: “As memórias gravadas em seus corpos por gerações e a marginalização sócio-política (sic) a qual foram sujeitos por instituições imperiais diretas” (MIGNOLO, 2008, p. 291).

Seguindo essa lógica argumentativa, Mignolo (2008, p. 313) é categórico em dizer que “o poder não está no Estado, mas nas pessoas politicamente organizadas”. Em síntese, o pensador argentino está afirmando que a opção decolonial não é uma teoria nos moldes tradicionais, mas, antes, uma forma de identidade em política. Conforme já tratamos neste texto, a identidade na pós-modernidade não equivale à busca pelo unívoco e universal, mas pela multiplicidade e pela flexibilidade dessas identidades (práxis política), as quais rompem com as binaridades. Assim, a PPC da UEPG não visa reproduzir a cisão entre os saberes, de modo a reforçar a supremacia daqueles que são oriundos de uma matriz eurocêntrica, cuja mentalidade do Norte subjuga - ou procura o tempo todo subjugar - a do Sul, uma vez que isso seria reproduzir a lógica do opressor, bem como do binarismo identitário que erige dessa mesma mentalidade universalizante. O que de fato se deseja promover é uma “ecologia de saberes”, conforme Santos (2010) define essa hibridação de conhecimentos.

Em citação ao Parecer CNE/CES 492/2001, a PPC da UEPG reitera o propósito do Curso de Letras para os povos originários do Paraná, cujo cerne seria “formar profissionais interculturalmente competentes, capazes de lidar, de forma crítica, com as linguagens... conscientes de sua inserção na sociedade e das relações com o outro” (Parecer CNE/CES 492/2001 apudUEPG, 2020, p. 16).

Segundo Lopes e Macedo (2010, p. 47),

a hibridação [...] ocorre com a quebra e a mistura de coleções organizadas por sistemas culturais diversos, com a desterritorialização de produções discursivas variadas, constituindo e expandindo gêneros impuros. [...] Uma das principais marcas do pensamento curricular brasileiro atual é mescla entre o discurso pós-moderno e o foco político na teorização crítica. Nesse sentido, são associadas a perspectiva teleológica de um futuro de mudanças, fundamentada na filosofia do sujeito, na filosofia da consciência e na valorização do conhecimento como produtor dos sujeitos críticos e autônomos, com o descentramento do sujeito, a constituição discursiva da realidade e a vinculação constitutiva entre saber e poder.

É relevante esclarecer que o descentramento do sujeito, mencionado pelas autoras, é definido - conforme pudemos observar anteriormente neste artigo - por Hall (2000), ao cunhar o conceito de “deslocamento” de Laclau (1990 apudHALL, 2000, p. 16-17) como equivalente à ruptura da lógica da existência de um centro, uma vez que este “é deslocado, não sendo substituído por outro, mas por ‘uma pluralidade de centros de poder’”. Nesse sentido, a sociedade “está constantemente sendo ‘descentrada’ ou deslocada por forças fora de si mesmas”.

A PPC da UEPG mostra-se afinada com essa concepção de sujeito intercultural a fim de contribuir para a formação de professores e gestores escolares que tenham uma “postura crítica-reflexiva diante dos processos de ensino e de aprendizagem” (UEPG, 2020, p. 16) e que possa atuar de maneira contínua, seja em espaços indígenas ou não indígenas de modo a combater, entre outras, principalmente a lógica colonial, na qual:

[...] pode ser observada a criação de justificativas ideológicas para a opressão do colonizador europeu as quais consistiam em deturpar de forma pejorativa a imagem dos indígenas e reproduzir esses preceitos no seio da sociedade brasileira, caracterizando um processo de inferiorização, marginalização e exclusão das minorias étnicas que estigmatizam, até os dias atuais, as sociedades indígenas. Em síntese, no período caracterizado como exterminacionista, centenas de povos e milhares de pessoas sucumbiram ao emprego da violência física e cultural: o genocídio concretizado pela escravidão, pelas doenças estranhas, pela ganância homicida dos apresadores de índios, aliado ao etnocídio promovido pela Igreja, por meio da catequese, em sua política de proibição, demonização e inferiorização das culturas indígenas (MUNDURUKU, 2012, p. 29-30).

Nas palavras de Munduruku (2012), pesquisador (e) indígena, encontramos, talvez, o resumo necessário à compreensão da visão decolonial como uma epistemologia de identidade em política, a qual é principalmente exercida por grupos sociais que sofreram as mais diversas formas de silenciamento (violências), com destaque neste artigo para sua gama de saberes, ou seja, para o “epistemicídio” praticado pelos “conquistadores” (usurpadores) da terra. Estes, por meio da desterritorialização - mediante o apagamento cultural - dos indígenas, praticaram, nas palavras de Dussel (1993, p. 79) o “encobrimento do outro”.

Tal encobrimento, no contexto educacional, o qual mais nos interessa propriamente, reflete numa visão unilateral da história e reproduz a lógica dos colonizadores, a qual é combatida e questionada pela identidade em política e que aqui se personifica por meio das pessoas que farão esta PPC, que ora estudamos, realizar-se. Por meio de uma práxis educativa e educacional que não está à disposição da extensão, mas, sim, da comunicação, para romper com os preceitos da invasão cultural, a qual “pressupõe a conquista, a manipulação e o messianismo de quem invade. Sendo a invasão cultural um ato em si mesmo de conquista, necessita de mais conquista para manter-se” (FREIRE, 2011, p. 49). Essa conquista, no âmbito da lógica colonizadora, talvez se dê por meio do “cínico argumento de que tal política consistia no combate à barbárie dos infiéis, para que se pudesse construir uma nova civilização sob os auspícios do desenvolvimento e da riqueza” (MUNDURUKU, 2012, p. 30). Conforme Munduruku (2012), temos a denúncia, à luz do saber indígena, daquilo que Dussel (1993) definiu como o “mito da modernidade” e que ainda em dias atuais fomenta a lógica do capitalismo que erigiu nas mentes e corpos, em escala global, o comportamento consumista para retroalimentar tal sistema econômico, cultural e social.

Portanto, uma prática epistêmica decolonial - como entendemos ser a PPC da UEPG - assume politicamente a ruptura das metanarrativas colonizadoras não por meio de sua substituição por outro modelo de saber, mas por contraposição crítica ao saber dominante; pelo desvelamento do discurso de dominação eurocentrado e capitalista sedutor, o qual transforma o saber outro em algo sem valor ou equivalente ao não ser, criando-se, assim, o paradigma da “diferença” como sinônimo de inferior, visto que sempre é observado por meio da lógica do colonizador, este que se autointitula como superior; este que se projeta ao mundo como ser messiânico e garantidor da vida próspera; detentor do saber válido e irrefutável, ou seja, o “não diferente” conforme Hall (2000) denomina.

4 CONCLUSÃO

Ao longo do artigo, propusemos como reflexão, a partir da perspectiva decolonial de pensamento, a qual se aproxima da concepção pós-crítica de leitura e entendimento da realidade, compreender a PPC do curso de Letras da UEPG. Essa análise nos levou ao entendimento de que a interculturalidade não significa dizer que as diferenças étnicas - o que de fato nos interessa pensar neste texto - devam ser superadas em prol de uma homogeneização.

Diferentemente, a interculturalidade no espaço universitário (e escolar) é uma maneira de estabelecer um diálogo entre as distintas culturas, modos de pensar e de fazer ciência, ou seja, baseia-se na horizontalidade das relações humanas visando a superação da matriz colonial que nos foi estabelecida como paradigma de “pensar certo”, ou seja, que promove outra concepção de sujeito, sendo ela não pautada pelo binarismo ou por quaisquer outras formas universalizantes de compreensão das pessoas; considerar um currículo que fomenta práticas educativas pluriversais, as quais reverberarão na sociedade de modo a romper com a mentalidade colonial, consequentemente.

Não podemos, todavia, perder de vista que o espaço universitário ainda é predominantemente eurocêntrico em diversos aspectos; não obstante, há também movimentos contrários a essa prevalência, pois advogam, estando nesse mesmo local, a presença de outras identidades além da padronizada ao longo da história.

As novas vozes se somam às anteriores. Essa característica ética dos movimentos de identidade em política que se valem da epistemologia decolonial é uma de suas principais marcas. O aprender a desaprender, que se revela nesse processo de formação humana permanente, não equivale ao silenciamento do outro - como o pensamento colonial historicamente o fez -, mas, sim, à apresentação de pontos de vista diversos sobre a realidade à luz de grupos cuja importância social e científica, por exemplo, sempre foi diminuída e definida como um “pensar errado”.

Assim, a PPC da UEPG mostra-se, em consonância com as demais Propostas voltadas às comunidades indígenas que residem em aldeias e em espaços urbanos do Paraná e em outros territórios do Brasil, como práxis decolonial de suma importância à superação das mentalidades que enxergam os povos originários de maneira estereotipada e que, por conseguinte, potencializam preconceitos vários, permitindo a reconfiguração do próprio espaço universitário em destaque e de seu currículo na área estudada.

REFERÊNCIAS

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DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Conferências de Frankfurt. Petrópolis: Vozes, 1993. [ Links ]

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NOTA:

1 O uso do prefixo “des-” por parte do autor, dá-se ainda num período em que os demais estudiosos, em sua maioria, também o utilizavam. A mudança da grafia para decolonial não ocorre tão somente por um anglicismo, conforme alguns pesquisadores que ainda mantêm a escrita com o prefixo de negação, mas, principalmente, como um meio de diferenciar a superação de um período histórico datado (colonização terrestre e descolonização do espaço terrestre: independência), ou seja, a decolonização corresponde à análise dos reflexos culturais e afins desse momento histórico e, de forma essencial, à postura política daqueles que lutam pelo rompimento dessa lógica. Essa linha de raciocínio também se encontra presente nas palavras de Santos (2010) em citação já apresentada neste artigo.

Recebido: 22 de Fevereiro de 2021; Aceito: 11 de Julho de 2021

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