SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 número2“Pós-criticismo” ou atualização da teoria crítica?:Um estudo das habilidades relacionadas ao conhecimento químico presentes na Base Nacional Comum Curricular índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.20 no.2 São Paulo abr./jun 2022  Epub 21-Nov-2022

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2022v20i2p611-628 

Artigos

A Prova Brasil na ótica das crianças:o poder pastoral

The Prova Vrasil in children’s view:the pastoral power

La Prova Brasil en la óptica de los niños:el poder pastoral

Karla de Oliveira SANTOSi 
http://orcid.org/0000-0003-4954-8184

Laura Cristina Vieira PIZZIii 
http://orcid.org/0000-0001-9364-2464

i Doutora em Educação - PPGE/UFAL. Professora Adjunta da Universidade Estadual de Alagoas, Brasil. Membro do grupo de pesquisa CNPq “Currículo, atividade docente e subjetividades’. Membro associado da ABdC. E-mail: karla.oliveira@uneal.edu.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-4954-8184.

ii Doutora em Educação: Currículo (PUC-SP). Docente Titular do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas e do PPGE, Brasil. Líder do grupo de pesquisa CNPq “Currículo, atividade docente e subjetividades’. E-mail: lauracvpizzi@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-9364-2464.


Resumo

As reformas educacionais em curso desde a década de 1990 promoveram mudanças estruturais, principalmente com ênfase e intensificação na política de avaliações em larga escala. As escolas e o professor exercem um papel primordial no processo de condução das crianças que realizam as provas, para que as instituições alcancem as metas da qualidade educacional estabelecida pelas políticas. Neste trabalho, apresentaremos dados de uma pesquisa desenvolvida com a participação das crianças dos 5º anos do Ensino Fundamental de uma escola pública do município de São Miguel dos Campos - Alagoas que fazem a Prova Brasil. A investigação possui uma abordagem qualitativa, a partir do Estudo de Caso e da Análise do Discurso de Michel Foucault, buscando observar o poder pastoral e que tipo de tecnologias são mobilizadas institucionalmente e o papel docente com as crianças, conduzindo-as para os fins da Prova Brasil.

Palavras-chave: poder pastoral; crianças; professores; escola; Prova Brasil

Abstract

Educational reforms underway since 1990s, have promoted structural changes, mainly with an emphasis and intensification in the policy of large-scale assessments. Schools and teachers play a key role in driving the process of children who perform the tests, so that the institutions reach the educational quality goals established by the policies. In this work we will present data from a research carried out with the participation of children from de 5th years of elementary school in a public school in the municipality of São Miguel dos Campos, in the State of Alagoas, who are taking the Prova Brasil. The investigation has a qualitative approach, from the Case Study and Discourse Analysis of Michel Foucault, seeking to observe the pastoral power and what kind of technologies are mobilizes institutionally and the teaching role with children, leading them to the purposes of Prova Brasil.

Keywords: pastoral power; children; teachers; school; Prova Brasil

Resumen

Las reformas educativas en curso desde la década de 1990, promovió cambios estructurales, particularmente con el énfasis y la intensificación en la política de evaluaciones en gran escala. Las escuelas y los profesores desempeñan un papel crucial en el proceso de realización de los niños que realizan las pruebas, para que las instituciones alcancen los objetivos de calidad establecidos por las políticas educativas. En este trabajo presentaremos datos de una encuesta realizada con la participación de niños de los 5º años de educación básica en una escuela pública en el municipio de São Miguel dos Campos - Alagoas, que realizan la Prova Brasil. La investigación tiene un enfoque cualitativo, desde el estudio de caso y el análisis del discurso de Michel Foucault, tratando de observar el poder pastoral y qué tipo de tecnologías son movilizados a nivel institucional y el papel del docente junto a los niños, llevándolos a los fines de Prova Brasil.

Palabras clave: poder pastoral; niños; profesores; escuela; Prova Brasil

1 INTRODUÇÃO

As políticas educacionais na contemporaneidade têm implementado exames nacionais e políticas de avaliações externas, a exemplo da Prova Brasil1, desconsiderando aspectos internos e externos do contexto escolar e de vida dos sujeitos, responsabilizando escola, professores, estudantes e família, a partir da divulgação de resultados.

A Prova Brasil integra o sistema avaliativo nacional e ocorre desde 2005, a cada dois anos, sendo destinada aos estudantes dos 5º anos e 9º anos do Ensino Fundamental. Visa analisar desempenhos de estudantes e docentes, com a intenção de estabelecer parâmetros mensuráveis de qualidade do ensino, por meio do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), a partir da nota na avaliação oficial nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática e de taxas do fluxo escolar.

As crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental assumem um papel preponderante nesses resultados, orientadas por práticas de responsabilização e performatividade, tendo os professores a missão de guiar e conduzir suas rotinas para o alcance de metas. Sendo assim, buscamos compreender como os sujeitos infantis estão imersos nessa relação provocada pelo poder pastoral, que controla e forma subjetividades das crianças envolvidas nesses exames nacionais, conduzindo suas condutas.

A problemática central buscou observar como se deu a participação de crianças dos 5º anos do Ensino Fundamental na Prova Brasil de uma escola pública do município de São Miguel dos Campos/AL, e como percebem sua participação nessas políticas de avaliações educacionais e seu lugar como sujeitos ativos e afirmativos de direitos. Ressaltamos que a referida escola possuía o maior Ideb municipal para os anos iniciais do Ensino Fundamental em 2017, período de realização da pesquisa. Foram utilizados nomes fictícios para preservar a identidade das crianças, os quais foram escolhidos por elas e acolhidos prontamente.

De acordo com a problemática apresentada, buscamos analisar o poder pastoral, as tecnologias mobilizadas institucionalmente para o alcance de metas e o papel docente com as crianças, conduzindo-as para os fins da Prova Brasil.

2 NOTAS INICIAIS SOBRE O PODER PASTORAL

O poder pastoral, de acordo com Foucault (2008), tem seu início no Oriente, principalmente na sociedade hebraica, quando emerge a figura do rei (pastor) com a incumbência de ser o pastor dos homens, em uma relação de obediência, entre primeiramente Deus e o pastor - sendo o pastor a pessoa designada por Deus para cuidar do rebanho - e o pastor e o rebanho, que tem a missão de cuidar e zelar. O pastorado tem seu desenvolvimento e sua intensificação entre os hebreus, com um caráter religioso.

Foucault (2008, p. 168), em sua obra Segurança, território e população, na aula de 8 de fevereiro de 1978, inicia a apresentação do que seria denominado de poder pastoral e aponta que:

[...] o poder do pastor é um poder que não se exerce sobre um território, é um poder que, por definição, se exerce sobre o rebanho em seu deslocamento, no movimento que o faz ir de um ponto a outro. O poder do pastor se exerce essencialmente sobre uma multiplicidade em movimento.

O poder do pastor significa fazer o bem, é um poder de cuidado, de dedicação, de zelo, mas principalmente de vigilância sobre seu rebanho, para que nada de ruim aconteça, inclusive sacrificando-se pelo rebanho, para que nada aconteça e saia de seu controle.

O poder pastoral chega ao Ocidente, especialmente com o Cristianismo, representando uma institucionalização do pastorado. Foucault (2008) esclarece que a Igreja Cristã coagulou todos esses temas de poder pastoral e transformou em mecanismos precisos e em instituições definidas, organizando e implantando seus dispositivos de poder.

De acordo com o autor,

[...] O pastorado está relacionado com a salvação, pois tem por objetivo essencial, fundamental, conduzir os indivíduos ou, em todo caso, permitir que os indivíduos avancem e progridam no caminho da salvação [...]. Portanto ele guia os indivíduos e a comunidade pela vereda da salvação. Em segundo lugar, o pastorado está relacionado com a lei, já que, precisamente para que os indivíduos e as comunidades possam alcançar sua salvação, deve zelar para que eles se submetam efetivamente ao que é ordem, mandamento, vontade de Deus. Enfim, em terceiro lugar, o pastorado está relacionado com a verdade, já que no cristianismo, como em todas as religiões da escritura, só se pode alcançar a salvação e submeter-se à lei com a condição de aceitar, de crer, de professar certa verdade (FOUCAULT, 2008, p. 221).

O pastorado cristão estabelece uma dependência integral em uma relação de obediência e submissão ao pastor, que, segundo Bert (2013, p. 136):

O desenvolvimento do Cristianismo não faz desaparecer essa forma pastoral do poder, mas antes transforma radicalmente sua natureza, intensificando o laço de obediência existente na origem entre as ovelhas e o pastor e fazendo dele um laço de sujeição pessoal.

Outro ponto a ser destacado é o fato de o pastor ter a missão de ensinar, e esse ensinamento deverá ser pelo exemplo de sua própria vida. O ensino deve ter como objetivo dirigir a conduta dos indivíduos, mediante a observação, a vigilância e a direção da consciência e da imposição de verdades, por meio de procedimentos de individualização.

Contudo, o modelo de pastorado cristão dá forma à governamentalidade, passando de um governo das almas para um governo político dos homens e das populações. O pastorado conduz as almas, é a arte de governar os homens, dirigindo, guiando, controlando e manipulando. Na análise de Foucault (2008), é no limiar desse modelo de Estado Moderno que surge a governamentalidade, compreendida como uma prática calculada e refletida. Segundo Gadelha (2009), há um deslocamento da ênfase inicial no elemento religioso ou espiritual, que se transfere para uma racionalidade política assentada em uma razão do Estado.

Castro (2009) acrescenta que a racionalidade política se desenvolveu e foi imposta ao longo da história das sociedades ocidentais. Ela se enraizou primeiro na ideia de poder pastoral, depois, na razão de Estado. Dessarte, suas características se fazem presentes na sociedade. Não é apenas um poder exercido pelo Estado, mas também por empresas privadas e pela família.

Logo, há uma racionalização para o exercício do poder necessário para governar, a qual envolve as estratégias aplicadas no pastoral cristão e no governo dos homens. Por agrupar uma série de mecanismos de exercício de poder e do saber para o governo da população, entre os quais estão os do poder pastoral, é que a governamentalidade é um acontecimento moderno que tem seu prelúdio na pastoral cristã (TEMPLE, 2013).

As reformas educacionais em curso desde a década de 1990, com políticas de avaliações em larga escala, a exemplo da Prova Brasil, fazem surgir a figura do bom professor-pastor, que não só ensina, mas também forma subjetividades, conforme destaca Kohan (1996, p. 88).

Uma das figuras privilegiadas na adoção do poder pastoral pelo Estado Moderno, nas instituições educacionais, é a figura do professor-pastor. Ele assume a responsabilidade pelas ações e o destino de sua turma e de cada um dos seus integrantes. Ele se encarrega de cuidar do bem e do mal que possam acontecer dentro da sala de aula. Ele responde por todos os pecados que possam ser cometidos no “seu” espaço. Embora assuma modalidades leves e participativas entre o professor e a turma há uma relação de submissão absoluta; sem o professor os alunos não saberiam o que fazer como aprender, de qual maneira comportar-se; eles não saberiam o que está bem e o que está mal, como julgar a atitude de um colega, a falta de esforço de si mesmos para cumprir uma tarefa. Para cumprir adequadamente a sua missão, o professor necessita conhecer o máximo possível dos alunos; fará diagnósticos de suas emoções, capacidades e inteligências; conversará com seus pais para saber detalhes iluminadores de seu passado e de seu presente; ganhará confiança de cada aluno para que ele lhe confie seus desejos, angústias e ilusões. Por último, lhe ensinará que sem alguma forma de sacrifício ou renúncia de si e do mundo seria impossível desfrutar de uma vida feliz e de uma sociedade justa.

Dessarte, o poder pastoral contribui para o entendimento de como as crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental, que participarão da Prova Brasil, são cooptadas para atender às expectativas que essas avaliações em larga escala produzem, a partir do controle de suas condutas e produção de saberes que enfocam performatividades, premiações e responsabilizações a partir da apresentação de bons resultados impostos pelas políticas educacionais de caráter neoliberal.

3 O GOVERNO PASTORAL NUMA ESCOLA PÚBLICA MUNICIPAL DE SÃO MIGUEL DOS CAMPOS/AL

O governo pastoral preza pela benevolência e cuidado, sendo responsável pela salvação do rebanho e por assegurar os meios de sustento de suas ovelhas, os bons pastos. Ele cuida do rebanho, cuida de cada indivíduo do rebanho, zela para que as ovelhas não sofram, vai buscar as que se desgarram, cuida das que estão feridas (FOUCAULT, 2008).

Os indivíduos, no governo pastoral, são objeto prioritário para o exercício desse poder. Nesse caso específico em discussão sobre as avaliações em larga escala na educação, o poder pastoral serve para tornar as crianças sujeitos governáveis, visando bons resultados.

A pesquisa apresentada possui a abordagem qualitativa, a partir do estudo de caso, almejando um processo de reflexão e análise do contexto, por meio da pesquisa bibliográfica, tendo como fontes estudos sobre a infância e as obras de Michel Foucault. A investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), em Reunião Plenária do dia 20 de janeiro de 2015, sob o processo n.º 38534814.1.0000.5013.

A análise dos dados foi realizada por meio da análise do discurso, inspirada nos princípios da genealogia da teoria do discurso de Michel Foucault, ou seja, como os discursos e seus efeitos de poder produzem práticas, saberes e constituem o sujeito social.

As 11 crianças partícipes da pesquisa possuíam idades entre 10 a 11 anos de idade. Seguindo premissas éticas e metodológicas para pesquisas com crianças, destacamos que elas assinaram o Termo de Assentimento e tiveram autonomia na escolha de seus nomes fictícios apresentados neste artigo, prezando pela escuta, respeito de seu tempo e dando voz à pesquisa, reconhecendo-as como atores afirmativos e de direitos, possibilitando a elas uma participação mais ativa e uma voz mais direta na produção dos dados, sendo uma questão nodal no campo epistemológico. Seus responsáveis legais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

3.1 Transformando a escola em um “bom terreno para pastoreio”: dos simulados ao tapete vermelho

O município de São Miguel dos Campos, por intermédio da Secretaria de Educação, tem desenvolvido todo um aparato pedagógico voltado para as escolas, em ano de aplicação da Prova Brasil. As políticas criadas em âmbito municipal local delinearam-se a partir de um controle público dos resultados. Percebe-se um claro entendimento de que resultados positivos nas avaliações causam um marketing positivo aos gestores locais, que vai configurando e legitimando o Ideb como um parâmetro fidedigno de qualidade da educação pública do município.

No ano de 2017, ano da coleta de dados, o munícipio estava desenvolvendo ações sistemáticas para o alcance das metas estabelecidas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), além de sua participação na ‘Escola 10’, programa desenvolvido pela Secretaria Estadual de Educação de Alagoas e que, inclusive, fixava metas maiores até do que as propostas pelo Ministério da Educação (MEC) e recompensas financeiras para as escolas que lograssem êxito.

O treinamento das crianças para a Prova Brasil, por meio de simulados, era uma prática constante. Em um momento de observação, quando a professora comunica que haverá um simulado, uma das crianças fala: “de novo tia, de novo simulado!”. Os simulados eram encaminhados pela Secretaria Municipal de Educação ou produzidos pela própria escola, que também reforçava o treinamento, como atesta uma aluna: “Foi feito muito simulado, a gente fez um monte de simulado para ver o que a gente aprendeu e também testar a gente” (Eva, 2017).

As crianças, por sua vez, relatam como criam suas próprias estratégias para obterem sucesso na prova, tais como relembrar e estudar muito e muito:

Eu tenho um livro que é de todas as matérias, aí eu pegava as duas matérias que ia ter na Prova Brasil e começava a estudar, aí eu estudava um capítulo até terminar (Natália, 2017).

Porque a gente estudando para ela, tipo, a gente já tinha visto aquele assunto, a gente podia relembrar ele, e aprender alguma coisa que a gente ainda não tinha aprendido (Menina Azul2, 2017).

Toda essa prova seria um preparo pra nós, para o 6.º ano e também o preparo nas nossas notas, de uma questão mais nas nossas notas, aí todo mundo fica querendo tirar uma boa nota, e todos querem estudar muito e muito (Lucas, 2017).

Além da realização de simulados, a escola realizou gincanas aos sábados letivos, com a temática da Prova Brasil, na qual as tarefas estavam associadas aos descritores de Língua Portuguesa e Matemática. A escola possui dois 5º anos e era visível o sentimento de competitividade entre eles. As crianças incorporaram atitudes de competição estimulada pela escola, pois almejavam ter uma nota da Prova Brasil maior que a da turma concorrente. As crianças assimilam o processo como se as notas por turma fossem individualizadas e definidoras para que a escola tivesse sucesso e permanecesse como a de melhor Ideb do município. No caso da Prova Brasil, observa-se um forte incentivo institucional à competição.

“Por que tem outro 5º A e foi dito que eles estavam mais [com nota melhor] em português e matemática, a gente estava menos [com nota pior]. A gente queria vencer eles, queria competir, aí foi na hora que a professora resolveu fazer a maratona” (Paola, 2017).

A professora conduz a competição entre os estudantes das duas turmas. As expectativas por parte das crianças para obterem bons resultados na Prova Brasil também eram diariamente estimuladas pela escola. Ao entrarem na escola e inclusive no pátio dela, a coordenadora pedagógica enfatizava, com o uso de microfone, a aproximação do dia da Prova Brasil.

De acordo com as falas das crianças, no dia da aplicação da Prova Brasil, a escola utilizou estrategicamente um tapete vermelho como simbolismo de importância e glamorização tanto para amenizar a tensão do momento quanto para ressaltar a importância do evento de realização da prova, fundamentais para o sucesso da instituição nos resultados daquele período. Esse dia foi muito comentado pelas crianças.

Foi um dia muito bom, até tivemos um tapete vermelho (ênfase), que eles botaram lá para mostrar os 5º anos entrarem, enquanto os outros estavam lá, uma fila de todas as salas. Aí todos olhando pra gente, teve muitas mães, elas até choraram vendo isso, só deu pra ver os cliques de fotos, eu não sabia para onde olhar no dia. No início quando eu estava chegando na escola, eu fiquei muito nervoso, aí quando passou essa parte eu comecei a me acalmar [...] assim que a professora entrou na sala, eu já estava mais calmo, do que quando eu estava vindo pra escola (Lucas, 2017).

O ritual de realização da Prova Brasil organizado pela escola foi composto por várias etapas que marcariam aquele dia como um acontecimento muito especial, principalmente para os alunos do 5º ano que fariam a prova; seriam crianças especiais, envolvendo ainda suas famílias, ao serem convidadas, com os demais docentes e discentes da escola. Todos estavam lá para recepcionar, testemunhar, registrar e aplaudir. Foi um momento repleto de recompensas e motivação, após períodos de intensas atividades focadas na realização da Prova.

O tapete vermelho veio acompanhado de outras estratégias importantes, que serviam como estímulo, mas também como mecanismos de controle dos corpos:

A coordenação botou um tapete vermelho e botou uma música tocando, evangélica, conquistando o impossível, ela botou todos os alunos. Aí a gente entrou, botou as bolsas e lá teve uma (pausa) a professora de Educação Física passou um monte de exercícios pra gente fazer, e a gente subiu (Natália, 2017).

Foi como se fosse um dia normal, só que... mas não foi um dia normal, muita gente aplaudiu a gente. Aí não foi um dia normal, normal. Aplaudiram a gente, um monte de gente olhando pra gente, a escola todinha aplaudindo a gente. Eu pensei, a gente tem o conhecimento maior (Júnior, 2017).

Uma emoção, porque na hora que a gente entrou os 5º anos, aí todo mundo começou a bater palma e teve um tapete vermelho (Ronaldo, 2017).

Me senti honrada pela escola. Me senti preparada, porque eu estudava, prestava atenção nas aulas, não ficava conversando (Paola, 2017).

Chamou-nos a atenção o fato de a escola colocar uma música evangélica no ritual do tapete vermelho, reforçando o poder pastoral. Para Foucault (2008, p. 218-219), nenhuma civilização foi mais pastoral do que as sociedades cristãs:

O pastorado no cristianismo deu lugar a toda uma arte de conduzir, de dirigir, de levar, de guiar, de controlar, de manipular os homens, uma arte de segui-los e de empurrá-los passo a passo, uma arte que tem a função de encarregar-se dos homens coletiva e individualmente, ao longo de toda vida deles e a cada passo de sua existência.

O ritual do tapete vermelho, com músicas estimuladoras e aplausos da comunidade escolar e familiares, uma imitação do tapete vermelho das celebridades hollywoodianas no dia da entrega da premiação do Oscar, foi uma tentativa de exaltar e recompensar todo o esforço individual, de cada aluno dos 5º anos para o grande dia da realização da Prova Brasil. Funcionou bem para algumas crianças, mas não para todas:

Teve tapete vermelho pra gente, teve bolo, refrigerante na cantina, foi um dia bom, até uma menina lá da sala se emocionou. Ela estava com medo de errar, porque as notas dela eram muito baixas. Aí ela ficou com muito medo de errar (Paola, 2017).

Eu fiquei um pouco nervosa. É (pausa), no dia da prova foi (pausa), foi, depois ou foi antes do intervalo, eu estava bem preparada, só que no dia, eu fiquei um pouco nervosa e eu não sei se fui bem. Tinha um tapete vermelho e os dois 5º anos vinham subindo a escada (Vivian, 2017).

Pra mim foi calmo, é (pausa), a gente chegou, aí colocaram um tapete vermelho pra gente entrar (Menina Azul, 2017).

Bem tenso. Ela tratou a gente muito (pausa) tipo (pausa), como se a gente fosse rei e rainha mesmo. A gente lanchou, entramos pelo negócio, esqueci! Pelo tapete vermelho, aí a gente lanchou, depois a gente subiu e não saiu mais da sala até dá 11h30. Fez a prova e depois a gente foi embora (Bianca, 2017).

Ressaltamos que o pastorado é uma arte de governo, que conduz as boas ovelhas, a partir de estratégias de governamento, que poda a autonomia dos sujeitos, mantendo uma relação de dependência integral, professando verdades por meio dos vínculos estabelecidos. As verdades professadas às crianças diziam respeito ao valor social da Prova para a instituição. Esse valor dependia do desempenho individual delas. A imponência e a grandiosidade do ritual de realização da Prova demonstravam claramente a toda a comunidade escolar a importância da Prova.

Porque é uma prova muito importante, quase [...] nem todo mundo não faz essa prova. Aí aplaudiram a gente por causa do conhecimento da gente né? Aí, se o conhecimento fosse muito, é (pausa), como posso dizer, aí a escola ia ser muito boa também, a escola seria conhecida como boa (Júnior, 2017).

Eu me sentia muito estranha. É (pausa), ela (a escola) fez tudo isso, o tapete vermelho, e se a gente errar, como era que ia ficar! (Paola, 2017).

Como a gestão da escola ressaltava a todo momento a importância do desempenho de cada estudante, inclusive passando diariamente nas salas de aulas para se informar sobre a preparação das crianças para a Prova Brasil, criou-se uma grande expectativa. Esses fatores ocasionaram uma ansiedade antecipada, conforme expressam algumas crianças acerca de seus anseios antes e após a aplicação da avaliação oficial:

Foi uma prova surpresa, aí eu pensava que devia ser uma prova difícil, todos falavam aí eu fui vê e era uma prova fácil (Júnior, 2017).

Nossa, causava ansiedade, eu dizia, não vejo a hora dessa prova acontecer e depois eu falava: nossa, a prova foi tranquila e eu tava ficando com medo de nada (Eva, 2017).

É difícil. Tem tudo que a gente viu antes, mas algumas coisas a gente não lembrava, aí dava... era uma coisa complicada, mas a gente conseguiu fazer. (Bianca, 2017)

Gostei muito dessa prova, inclusive quando eu estava no 4.º ano, eu ficava doidinho pra passar, pra fazer essa prova e vê como ela era mesmo, porque muitos amigos meus mais velhos, tipo um menino, que é do judô e é mais velho que eu, que fez a prova e ele disse que gostou dessa experiência, então eu fiquei querendo muito, mas quando chegou esse ano, eu já comecei a ficar muito nervoso (Lucas, 2017).

Eu acho que ela não tinha nada de mais, mas a gente ficava tão nervoso que tinha isso, aí a gente ficava tão focado, tipo, querendo fazer a prova, mas, meio... será que eu consigo, será que não, meio que assim (Bianca, 2017).

Porque a prova estava fácil e não era todos os assuntos que a professora pediu (Menina Azul, 2017).

A escola é o lugar que reúne todas as formas de imposição de regras aos sujeitos do discurso; como apropriação social dos discursos, ela é o local de ritualização da palavra, ela determina e fixa os papéis dos sujeitos que falam, constitui e promove a difusão de doutrinas (FERNANDES, 2012).

Contudo, a escola aderiu fiel e cegamente, como deve ser um bom ambiente de pastoreio, às estratégias competitivas das políticas neoliberais de avaliação em larga escala e usou de todas as estratégias para fazer o mesmo com os estudantes.

3.2 Transformando o professor em um “bom pastor”: ensinar, amar, rezar e controlar

O poder pastoral exerce um poder vigilante sobre os sujeitos, pautado por uma relação de obediência, submissão e imposição de verdades. No cotidiano escolar, o docente assume um papel relevante no trato com o conhecimento, mas também de guia de condutas e comportamentos das crianças. Esse papel é decisivo para o sucesso das metas educacionais estabelecidas pelas políticas de avaliação em larga escala. Como expõe a aluna Paola: “Todos os dias a professora explicava, ela até passou um texto, vídeos sobre o Ideb, relatórios sobre o Ideb” (Paola, 2017).

Podemos observar a preocupação da professora em governar as crianças como forma de garantir bom resultado na Prova Brasil:

A professora fez um grupo WhatsApp só da nossa sala. Aí ela mandava áudio, fotos, dizia como ia ser. Ela até fez um horário, na hora da gente estudar, de mexer no celular, porque as meninas levam celular, ficam lá mexendo, não quer prestar atenção na aula. A professora disse que celular é só pra gente usar em casa e mandou o horário e falou pros pais no grupo. De 2h até às 4h eu estudava, 5h eu tomava banho, 6h eu jantava, aí 7h eu ia estudar de novo até às 8h e 9h eu ia dormir (Paola, 2017).

A professora passou, assim, a hora de comer, a hora de mexer no telefone, aí eu estudava de dia quando chegava da escola, de 2h até às 4h, estudava de 7h até as 8h30 (Júnior, 2017).

O controle docente sobre a vida dos alunos, em decorrência da Prova Brasil, extrapolou os muros da escola, afetando o cotidiano das crianças com suas famílias, ao estabelecer uma rotina a ser seguida em sua vida privada.

Foucault (2008, p. 172) apresenta uma problemática que foi denominada de ommes et singulatim, ou seja, “o pastor tem de estar de olho em todos e em cada um”. O autor ainda afirma que o pastor devia dispor de um conhecimento tão refinado de cada uma de suas ovelhas a ponto de ser capaz de “fazer uma contabilidade cotidiana do bem e do mal realizado com relação aos seus deveres” (FOUCAULT, 2008, p. 225), de modo a poder ajudá-las a superar suas faltas.

O poder pastoral implica uma condução da conduta que é individualizada e um conhecimento exaustivo do sujeito ou daquele que é conduzido. O pastorado requer um conhecimento pleno e total de cada uma das ovelhas pelo pastor, pois assim o guia do rebanho saberá empregar os meios de salvação do rebanho em sua totalidade plena (AVELINO, 2016).

Nos relatos apresentados pelas crianças, o medo do erro, de decepcionar, diante de tal responsabilidade, revela o vínculo de compromisso, resultando num forte envolvimento das crianças, conforme demonstra a aluna Gabriele:

Eu fiquei sabendo que a Prova Brasil é muito difícil, aí quando eu fui fazer a prova eu até chorei de medo, com medo de errar, aí quando foi na hora da prova que eu olhei, tudo que eu [...] que a gente estudou tinha na prova. Porque eu tinha medo de não passar de ano, eu pensava que a prova era tudo, as notas. A gente entrou pelo tapete vermelho, todo mundo do 5º ano, entrou pelo um tapete vermelho. Aí a gente subiu ficou na sala. Aí a gente ficou na sala, pegou o lápis, a caneta. Aí a gente subiu pra sala de cinemateca, aí começou a prova, quando acabou a prova, aí a gente foi pra casa todo mundo feliz, porque terminou a prova. Eu gostei porque (pausa) eu nunca tinha feito a prova brasil e a primeira vez foi no 5º ano, quando eu entrei na sala, aí (pausa) eu já me senti bem na prova, gostei quando a gente entrou na escola no tapete vermelho, gostei (Gabriele, 2017).

Podemos observar na fala da aluna Gabriele a relação de confiança por parte da professora quando ela relata seu nervosismo e medo nos momentos que antecederam a aplicação da Prova Brasil e o que a professora disse para ela. Ela foi a única criança a chorar antes da prova: a professora acalmou Gabriele, dizendo “que eu ia conseguir, não era pra eu chorar, que a prova era fácil, tudo que a gente tinha estudado estava na prova” (Gabriele, 2017).

O vínculo de confiança entre a professora e cada criança é um fator muito importante para o sucesso da prova, não apenas pelo fato de a professora seguir à risca o plano de estudos para a prova, mas sobretudo pela capacidade de tranquilizar as crianças no exato momento de fazer a prova.

As falas das crianças demonstra uma empatia entre a professora e a criança: Ela é divertida, ela gosta de todo mundo, aí eu gosto dela também (Menina Azul, 2017).

Um relacionamento muito bom, ela é a minha segunda mãe (Paola, 2017).

Ela conversa bastante, é engraçada (Jack, 2017).

A professora é aquela que cuida gentil e carismaticamente das crianças para que nenhuma se desvie do caminho ou que algo de ruim aconteça, sendo um poder do cuidado e da atenção.

Quando perguntamos o que Gabriele achou da Prova Brasil, ela responde: “Achei boa a prova, estava fácil, tudo que a gente estudou estava, no dia eu gostei, eu me senti muito bem no dia porque, quando eu chorei, estava a minha professora do 3º ano e a minha professora do 5º ano, ali comigo, eu agradeço muito a elas” (Gabriele, 2017). “O poder pastoral se dá sobre os indivíduos, e não sobre os territórios. O poder pastoral não se propõe a fazer mal aos inimigos, e sim fazer com que cada indivíduo faça o bem a si e aos outros” (FERNANDES, 2012, p. 55). Nesse caso específico, o bem, seria uma boa nota na Prova Brasil.

Podemos observar nas falas das crianças, com relação aos professores diretamente envolvidos no trabalho em prol do alcance de uma boa nota no Ideb, o desenvolvimento de atividades pedagógicas lúdicas e o oferecimento de prêmios, bem como a inserção de rituais religiosos, fortemente vinculados às religiões evangélicas, permeando constantemente e com naturalidade os preparativos para a realização da Prova Brasil:

O professor - formador da Semed - perguntou várias coisas, né? como se fosse uma prova, ele perguntou várias coisas, deu prêmio para quem ganhasse, aí pronto (Júnior, 2017).

A professora sempre fazia brincadeiras, envolvendo a matemática e o português, sempre fazia, tipo, é (pausa), muitas brincadeiras, aí a gente ficava tranquila. Até na educação física, a professora fazia brincadeiras que envolvia matemática e português (Bianca, 2017).

A professora de educação física fez alongamento e louvaram aqui. Teve a entrada, aí teve o lanche, teve o louvor, a professora de educação física, foi tudo antes da prova (Gabriele, 2017).

Foucault (2008) afirma que o poder pastoral não é um poder triunfante, e sim benfazejo. De fato, os fins parecem fazer valer todos esforços e sacrifícios de todos. O poder pastoral é primordialmente benemérito, existindo um laço de obediência e sujeição pessoal e, no caso da escola e dos docentes, recorrendo sutilmente ao poder religioso para a salvação. A salvação aqui é a nota da Prova Brasil:

A professora passou pra mim que teria a prova, desde o começo do ano, quando a gente vem estudando, ela ia dizer que ia ter a Prova Brasil, a secretaria (de educação) avisou a ela e eu peguei, avisei a minha mãe, a minha vó, o meu padrasto. [...] Elas (a gestão) falaram que era pra gente tá preparado, que tudo que tinha na prova tinha (pausa) que a gente estudou. Tudo isso! (Gabriele, 2017).

Segundo Foucault (2008, p. 172), “o pastor dirige todo o rebanho, mas ele só pode dirigi-lo bem na medida em que não haja uma só ovelha que lhe possa escapar”. Portanto, explicam-se as estratégias direcionadas pela escola de orientação e monitoramento das crianças dos 5º anos do ensino fundamental para o caminho da salvação, ou seja, alcançar a meta estabelecida pelo Ideb.

3.3 Oferecendo o “bom pasto”: o currículo precarizado como parâmetro

A partir da implementação de políticas neoliberais na educação, o currículo passa a ser um dos ingredientes mais importantes, uma vez que nele devem estar contidos os conhecimentos que vão ser cobrados na Prova Brasil. É, portanto, central na materialização da qualidade da educação, alicerçado nas avaliações em larga escala. Para Bonamino e Sousa (2012), há uma tendência universalista das propostas curriculares, reforçada por um consenso em escala mundial, no qual o currículo de cada país é comparável aos dos outros países, principalmente com a participação nas avaliações em larga escala, por meio do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). Há, portanto, um movimento de homogeneização curricular que vai determinar o que cada escola desse país vai ensinar. O Ideb se insere nesse modelo.

Há uma ênfase no trabalho pedagógico das escolas, principalmente em ano de aplicação da Prova Brasil, no qual priorizam essas áreas do conhecimento que serão testadas, no caso, as disciplinas presentes nas avaliações oficiais, ou seja, Língua Portuguesa e Matemática, em detrimento de todas as outras que compõem o currículo oficial municipal como História, Geografia, Ciências, Artes, Educação Física e como parte diversificada, Ensino Religioso e Literatura Infantil, como apontam as crianças:

A minha professora antes da prova, nós estudávamos muito português e matemática, porque iria cair. As disciplinas que mais trabalha são matemática e língua portuguesa, desde o início do ano. Ciências não é tão aprofundado assim (Lucas, 2017).

Porque (pausa), porque assim, português e matemática são as matérias mais importantes. Porque tem a ver com a Prova Brasil, porque na prova tem essas duas disciplinas (Bianca, 2017).

O principal assunto era a Prova Brasil, então se é aquele assunto, a gente tem que focar mais naquilo, mas também a gente fazia outras coisas, mas também tem que envolver a prova (Jack, 2017).

A gente tá bem atrasado nas matérias. Aí agora a gente tá tentando recuperar o que a gente perdeu, porque só era Matemática e Português, aí agora a gente já tá nas outras matérias (Bianca, 2017).

No ano em que há a testagem nacional da Prova Brasil, como forma de garantir um escore elevado, tende a ocorrer o estabelecimento de padrões que determinam os conhecimentos aos quais cada estudante deverá ter acesso, unificando as propostas curriculares em torno das duas disciplinas testadas, acompanhando os planejamentos de professores, monitorando o desempenho dos estudantes e com a exaustiva aplicação de simulados. Com isso, busca-se um forte engajamento dos docentes e estudantes nessa política, que revelam determinadas relações do poder governamental, produzindo efeitos de verdade sobre o currículo escolar:

Português e matemática, foram as que mais ela [professora] trabalhou. Porque eu acho que é meio que básico a gente aprender, português e matemática, eu acho que é o que ela deve passar (Eva, 2017).

Muitas pessoas na minha sala não leem direito, isso é para aperfeiçoar a leitura delas e matemática pra também saber mais assim que chegar no 6.º ano, porque no 6.º ano é mais coisa pra aprender, aí já tá ensinando agora a matemática (Lucas, 2017).

Dessarte, o sucesso ou fracasso na Prova Brasil acaba por ter um peso significativo no controle curricular dos conhecimentos que serão oferecidos para as crianças. Para tanto, os discentes consideravam necessária não apenas a homogeneização do currículo focando os exercícios da Prova Brasil, mas também sua redução a apenas duas áreas de conhecimento. Há um processo de naturalização, ainda que temporário, do currículo mínimo.

De acordo com Bonamino e Sousa (2012), as avaliações em larga escala parecem estar reforçando o alinhamento, nas escolas e secretarias de educação, entre o currículo ensinado e o currículo avaliado, provocando consequências em seu potencial de direcionar o que, como e para que ensinar.

Nessa perspectiva, o currículo torna-se uma tecnologia governamental preparatória para as avaliações em larga escala, priorizadas nas escolas em detrimento das avaliações da aprendizagem, realizadas cotidianamente pelos professores. As necessidades de aprendizagem dos estudantes são colocadas em suspenso para atender o propósito de atingir bons escores na Prova Brasil. Nesse sentido, não percebemos nenhum questionamento sobre a legitimidade da qualidade dos conhecimentos representados por esses testes, baseados em saberes tão restritos. Pelo contrário, o que observamos foi um discurso que buscava justificar sua redução, sempre em favor do bom desempenho dos estudantes na prova.

4 À GUISA DE CONCLUSÕES

Entendemos que o poder pastoral auxilia a compreender como o poder político governamental age, como uma espécie de cadeia, por meio das instituições e do poder exercido por um líder ou guia que salvará o rebanho, zelando por sua vida, estabelecendo uma relação de obediência e, consequentemente, de sujeição pessoal. A escola pesquisada revelou-se um espaço propício para a produção de discursos utilizados por dirigentes, gestores e professores para governar, do topo até a ponta, as crianças, objetivando o alcance de indicadores educacionais universais e quantificáveis. A escola estava unida em torno do objetivo maior de não deixar cair seu histórico de altos escores no ranqueamento do Ideb, que tem sido a forma como apresenta, com orgulho, sua qualidade de ensino à comunidade.

Observamos ativas e efetivas estratégias de cooptação das crianças e das famílias, conduzindo para os bons resultados na Prova Brasil, tais como o controle das atividades pedagógicas, do tempo, dos corpos e das mentes, dentro e fora da escola. Uso intensivo de testes, simulados, premiações, orações, olimpíadas, alimentando os valores mais caros ao neoliberalismo, que são a competição e a meritocracia.

Por conseguinte, alimenta-se outro sentimento importante, que é a responsabilização individual de cada sujeito no processo. Fica claro que as crianças são convocadas individualmente a se responsabilizarem pelos resultados da instituição no escore final do Ideb, gerando um sentimento de autorresponsabilização, assumindo o peso dos resultados, com uma carga de estresse elevada, que mobiliza também seus familiares, revelando uma autorregulação dos sujeitos, que chamam para si a responsabilidade pelo sucesso dos resultados de seus desempenhos.

Nesse processo todo, percebemos que o papel do currículo mínimo vem sendo naturalizado e legitimado como parâmetro de qualidade dos saberes testados e, portanto, da instituição. A qualidade da política de avaliação em larga escala do Ideb, criada em torno das disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática, foi claramente reconhecida pelas crianças ouvidas na pesquisa. Essa redução foi vista como necessária, sendo legitimado acriticamente como um modelo de qualidade precário. O poder pastoral atuando sobre as crianças parece ter se mostrado bastante eficaz como forma de levar a cabo seus propósitos, sem enfrentar grandes resistências.

REFERÊNCIAS

AVELINO, Nildo. Foucault, governamentalidade e neoliberalismo. In: RESENDE, Haroldo de (Org.). Michel Foucault: política, pensamento e ação. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. p. 163-178. [ Links ]

BERT, Jean-François. Pensar com Michel Foucault. São Paulo: Parábola, 2013. [ Links ]

BONAMINO, Alicia; SOUSA, Sandra Zákia. Três gerações de avaliação da educação básica no Brasil: interfaces com o currículo da/na escola. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 2, p. 373-388, abr./jun. 2012. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ep/v38n2/aopep633.pdf . Acesso em: 12 nov. 2017. [ Links ]

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo horizonte: Autêntica, 2009. [ Links ]

FERNANDES, Claudemar Alves. Discurso e sujeito em Michel Foucault. São Paulo: Intermeios, 2012. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collége de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008. [ Links ]

GADELHA, Sylvio. Biopolítica, governamentalidade e educação: introdução e conexões, a partir de Michel Foucault. Belo Horizonte: Autêntica , 2009. [ Links ]

KOHAN, Walter Omar. Pensando la filosofía en la educación de los niños. 1996. Tese (Doutorado em Filosofia) - Universidade Iberoamericana, México, 1996. [ Links ]

TEMPLE, Giovana Carmo. Acontecimentos, poder e resistência em Michel Foucault. Cruz das Almas: UFRB, 2013. [ Links ]

NOTAS:

1 Segundo dados no sítio eletrônico do Ministério da Educação, a Prova Brasil é de caráter universal, homogênea e padronizada, tendo como objetivo auxiliar os governantes nas decisões e no direcionamento de recursos técnicos e financeiros, assim como a comunidade escolar, no estabelecimento de metas e na implantação de ações pedagógicas e administrativas, visando melhorar a qualidade do ensino.

2 A criança participante da pesquisa optou por ser chamada de Azul. Ela é do gênero feminino. Sua escolha deve-se ao fato de ser sua cor preferida e no dia da realização da entrevista ela estava com os cabelos ondulados soltos e com mechas azuis.

Recebido: 31 de Maio de 2020; Aceito: 19 de Janeiro de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons