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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.20 no.2 São Paulo abr./jun 2022  Epub 21-Nov-2022

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2022v20i2p735-758 

Artigos

Diálogos (im) possíveis:quando o currículo encontra a intolerância

Possible (im) dialogues:when the curriculum meets intolerance

Posibles diálogos (im):cuando el currículo se encuentra con la intolerancia

Carmen Tereza VELANGAi 
http://orcid.org/0000-0002-1324-4704

Carlos Alberto BOSQUÊ JUNIORii 
http://orcid.org/0000-0001-5857-7441

Melissa Velanga MOREIRAiii 
http://orcid.org/0000-0001-6269-363X

i Doutorado em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Pós-Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Titular da Universidade Federal de Rondônia (Unir). E-mail: carmenvelanga@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-1324-4704.

ii Mestrado em Educação Profissional Escolar pela Universidade Federal de Rondônia (Unir). Professor da Educação Básica, Técnica e Tecnológica do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (Ifro). E-mail: bbosquejr@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-5857-7441.

iii Mestrado em Letras/Português pela Universidade Federal de Rondônia (Unir). Professora de Língua Portuguesa e Literatura. E-mail: melissavelangamoreira@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-6269-363X.


Resumo

O objetivo é refletir sobre a função do professor de artes no Ensino Médio e a nova Base Curricular Comum Nacional na prática docente. A pesquisa possui abordagem qualitativa descritiva, os sujeitos são professores de artes, alunos e membros da comunidade. Foram utilizadas autonarrativas, entrevistas e registros documentais, no período de 2019-2020, em um Instituto Federal na fronteira Brasil-Bolívia. As contribuições teóricas estão nos estudos de Currículo, Colonialidade do Poder e Ensino de Arte. A narrativa traz os preconceitos sofridos e as penalidades à produção artística livre na instituição. Resultados indicam o crescimento da censura e da intolerância à liberdade de expressão e do magistério; um currículo acrítico vinculado à obrigação de reproduzir conhecimentos padronizados; discursos e documentos oficiais pressupondo o contrário.

Palavras-chave: currículo; ensino médio; ensino de arte; decolonialidade

Abstract

The objective is to reflect on the role of the Arts teacher in High School and the new National Common Curriculum Base in teaching practice. The research has a descriptive qualitative approach, the subjects are art teachers, students, and community members. Self-narratives, interviews, and documentary records in the period 2019-2020, in a Federal Institute on the Brazil-Bolivia border. Theoretical contributions are in the studies of Curriculum, Coloniality, and Art Teaching. The narrative brings the prejudices suffered and the penalties for free artistic production in the institution. Results indicate the growth of censorship and intolerance to freedom of expression and teaching; an uncritical curriculum linked to the obligation to reproduce standardized knowledge; official speeches and documents assuming the opposite.

Keywords: curriculum; high school; the teaching of art; decoloniality

Resumen

El objetivo es reflexionar sobre el rol del docente de artes en el Bachillerato y la nueva Base Curricular Común Nacional en la práctica docente. La investigación tiene un enfoque descriptivo cualitativo, los sujetos son profesores de arte, estudiantes y miembros de la comunidad. Se utilizaron auto-narrativas, entrevistas y registros documentales, en el período 2019-2020, en un Instituto Federal en la frontera entre Brasil y Bolivia. Los aportes teóricos se encuentran en los estudios de Currículo, Colonialidad y Enseñanza del Arte. La narrativa trae los prejuicios sufridos y las sanciones por la libre producción artística en la institución. Los resultados indican el aumento de la censura y la intolerancia a la libertad de expresión y enseñanza; un currículo acrítico ligado a la obligación de reproducir conocimientos estandarizados, discursos y documentos oficiales que presuponen lo contrario.

Palabras clave: currículo; escuela secundaria; enseñanza del arte; decolonialidad

1 INTRODUÇÃO

Há uma obra inspiradora da literatura feminista, negra e de resistência, portanto, decolonial, de uma mulher americana, que se inspira em Paulo Freire para falar sobre a sua Pedagogia da Transgressão. Ela relata, a partir de seu universo americano, de mulheres negras e periféricas, as salas de aula universitárias repletas de resistência reacionária, ao rejeitar novas epistemologias, novas teorias e formas de fazer pesquisa. A resistência à abertura das mentes se encontra entranhada na cultura ultraconservadora (hooks, 2017). Contudo, para todo discurso hegemônico e práticas de tolhimento da liberdade, há que haver uma resistência de transgressão, analisada por Foucault (1999), com seus apontamentos conceituais, como: onde há poder, há resistência, e, portanto, transgressão, refletindo sobre como os discursos são construídos no campo da arte, analisando o nu artístico, entre outras temáticas, contribuindo para a compreensão sobre a questão da transgressão e da censura.

No campo da arte, transgredir ganha cores e valores de emancipação humana.

Uma das transgressões que julgo fundamentais para uma Nova Educação é a inclusão das Artes no contexto curricular das várias disciplinas, seja nos cursos elementares, seja nos universitários. Sempre busquei nesse meu currículo, transgressor, trazer para a sala de aula poesias e desenhos de meus alunos, para que eles deixassem fluir suas emoções sempre prisioneiras das tradicionais provas e notas da escola bancária, como denunciado por Paulo Freire (ESPÍRITO SANTO, 2011, p. 44).

Qual é o papel de um professor de arte? Que poder transformador poderia ele ter em um currículo crítico e numa prática libertadora? Buscando compreender o papel do professor de arte diante do currículo do ensino médio implantado pela nova Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), este artigo objetiva analisar qual é a função da arte no currículo que se vivencia em um Instituto Federal de Ensino Médio em uma cidade na fronteira da Região Norte brasileira. Trazemos o autodepoimento de um professor de arte, cuja voz foi silenciada, apesar da perplexidade e resistência de seus jovens alunos, que estavam conquistando o pensar independente, criativo, transformador que somente a arte, por sua possibilidade transgressora, poderia proporcionar. A relevância dessa pesquisa está em registrar a discriminação, o preconceito e a xenofobia que podem envolver a docência nesses tempos nos quais a educação brasileira se encontra aprisionada pela ignorância e falsos valores, alertando-nos para atitudes não apenas de resistência e de denúncia, mas também pela possibilidade de anúncio de um novo tempo que começa agora, nas salas de aula onde haja um professor e uma obra que inspire a liberdade.

O fato aconteceu em meados do ano 2019 em um Instituto Federal de Ensino Médio e Tecnológico em uma pequena cidade fronteiriça às margens do Rio Mamoré, em Rondônia. A pesquisa, ocorrida no período de 2019 a 2020, teve abordagem qualitativa, do tipo descritiva e contou com a participação do professor em foco, seus alunos e membros da comunidade, utilizando os instrumentos: entrevista semiestruturada, autodepoimento e registro documental. Para o tratamento dos dados, utilizamos a análise de conteúdo, especificamente a análise temática (BARDIN, 2011). Os aportes teóricos que embasaram a pesquisa foram os estudiosos do Currículo, do Colonialismo e do ensino da Arte, além dos documentos oficiais como a BNCC, entre outros.

O artigo compõe-se de 3 partes, sendo a primeira unidade uma discussão acerca do Currículo na perspectiva de uma educação crítica e emancipatória, e a arte na nova BNCC; a segunda unidade traz uma discussão acerca da Colonialidade do Ser e do Saber, e a terceira apresenta o relato de experiência, depoimentos e uma reflexão sobre o papel do professor de arte na contemporaneidade, diante da negação da ciência, da arte e das práticas pedagógicas cuja liberdade está em risco nestes tempos inenarráveis.

2 O LUGAR DA ARTE NO CURRÍCULO: ENTRE A INVISIBILIDADE E A POSSIBILIDADE EMANCIPATÓRIA

O conceito geral de currículo remete ao latim currere, significando um caminho ou rota. Na estrutura educacional, representa o centro da proposta pedagógica com a organização do percurso escolar, contemplando a matriz curricular, a seleção de conteúdo, as atividades de ensino, e as competências a serem desenvolvidas, visando ao desenvolvimento pleno do educando, incluindo os fundamentos filosóficos e sociopolíticos da educação, os marcos teóricos e referenciais técnicos e tecnológicos que o concretizam na sala de aula. Assim, configura-se, na relação entre princípios e operacionalização, teoria e prática, planejamento e ação.

No entanto, o currículo, como a educação, por sua natureza dialética, não poderia ser politicamente neutro diante da desigualdade, dos preconceitos, e da exclusão social. Buscamos em Paulo Freire, na sua obra Pedagogia do Oprimido, essa certeza de que a educação como um ato político liberta os indivíduos por meio da consciência crítica e transformadora, que suscita no homem o reconhecimento de si como sujeito da própria história, e o desejo de “Ser Mais” na “prática de liberdade”. Na defesa da criticidade, na formação do educando o currículo deveria ir além de uma “grade” de matérias, conteúdos estanques que não se comunicam entre si, nem mesmo com a realidade social, portanto, continua sendo importante desenvolver a educação que desaliena e pode decolonizar o currículo, pois, é preciso mais do que nunca, fazer a crítica ao capitalismo selvagem e às suas mazelas. E não há poder maior e transgressor que uma educação crítica, como afirma Paulo Freire (1979, p. 84): "Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo".

O Currículo é este lugar em que os saberes se entrecruzam, anunciando e denunciando, como enfatiza Silva (1996, p. 23):

O currículo é um dos locais privilegiados onde se entrecruzam saber e poder, representação e domínio, discurso e regulação. É também no currículo que se condensam relações de poder que são cruciais para o processo de formação de subjetividades sociais. Em suma, currículo, poder e identidades sociais estão mutuamente implicados.

O Currículo é central e está associado à identidade da instituição escolar, a sua estrutura, organização, funcionamento e ao papel social que exerce - ou está buscando exercer - a partir das concepções, das expectativas e das necessidades dos que integram a comunidade escolar, com foco na aprendizagem do aluno, a fim de potencializar o seu desenvolvimento integral, viabilizando a operacionalização do projeto pedagógico da escola.

Como o Currículo se concretiza na prática escolar? Fazendo uma breve distinção entre os documentos norteadores do currículo normativo, observamos que a Nova Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018) estabelece os objetivos que se espera que os estudantes venham a atingir, enquanto o currículo define como alcançar esses objetivos. A BNCC trata-se de um documento que regulamenta quais são as aprendizagens essenciais a serem trabalhadas nas escolas brasileiras públicas e particulares de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio para garantir o direito à aprendizagem e o desenvolvimento pleno de todos os estudantes. Enquanto as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) são leis, apresentando metas e objetivos a serem buscados em cada curso, os Parâmetros Nacionais Curriculares (PCN) são referenciais curriculares. Criados em 1997, foram instrumentos utilizados para a renovação e reelaboração da proposta curricular da escola até a definição das diretrizes curriculares.

Observamos que a educação libertadora como utopia freiriana, na qual professores e escolas teriam liberdade para fazer escolhas na construção de um projeto político pedagógico que dialogasse e entendesse a realidade social dos educandos e educadores, parece estar cada vez mais distante. Já na campanha presidencial, em 2018, o atual presidente bradava que, para que a educação brasileira melhorasse, seria necessário “expurgar a ideologia de Paulo Freire” das escolas. Em 13 de abril de 2012 foi sancionada a Lei nº 12.612, que declara o educador Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira. Diante de muita desinformação e ignorância sobre a obra e a relevância dela na formação humana, apoiadores do governo acreditavam e disseminaram que a pedagogia do educador representa uma tentativa de “doutrinação marxista”. Aos educadores, leitores e estudiosos de Paulo Freire têm restado a indignação, movimentos de resistência e luta em prol de uma educação emancipatória, de qualidade e para todos. Estamos vivendo esses tempos paradoxais, quando é preciso explicar para aquele que não lê - na concepção freiriana, a leitura do mundo precede a leitura da palavra - o que ele, por rejeitar qualquer espécie de diálogo, não entenderá jamais. Para ilustrar nossos tempos e continuar acreditando na esperança: A Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado (CDH) recusou a sugestão de iniciativa popular (SUG 47/2017) de retirar de Paulo Freire o título de Patrono da Educação Brasileira (Lei 12.612), em dezembro de 2017.

Não por acaso, a BNCC é documento obrigatório para as escolas e educadores de todas as regiões do país, e norteia a elaboração de todos os currículos nacionais, devendo, todas as escolas, tanto públicas quanto privadas, modificarem suas propostas curriculares anteriores a ela. Em seu bojo, os livros didáticos chancelados pelo MEC, estão "à disposição da escolha” pelo professor. Liberdade de cátedra é algo bastante difícil nesses tempos nebulosos, em que o currículo é cerceado, a voz do professor não é ouvida, e as denúncias sobre uma suposta "ideologização" do professor sobre seus alunos tem sido estimulada para que seja denunciada ao Ministério da Educação. De um modo infeliz, já não nos causa estranhamento a intervenção de pessoas que surgem como “arautos do rei”, trazendo a censura às escolas, quanto aquilo que o professor ministra ou professa, quanto a sua abordagem filosófica, metodológica, quanto aos conteúdos, e aos materiais que utiliza para exercer o seu ofício docente. O desmonte estrutural da educação parte das políticas públicas e avança, atinge todos os níveis de ensino e se aprofunda na Universidade, onde são formados os profissionais em cujas mãos está o futuro de nosso país.

A resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) sobre a BNCC, publicada no dia 22 de dezembro de 2017, estabeleceu que as instituições de ensino fizessem as adequações no decorrer de 2018 para que, em 2019, elas chegassem às salas de aula. O prazo máximo para a implementação foi o início do ano letivo de 2020. No entanto, com tantas mudanças de ministros no Ministério da Educação deste governo, e o desmonte da educação pública, somado ao advento da pandemia da covid-19, esta meta ainda não foi alcançada.

A BNCC está organizada por áreas do conhecimento, e define apenas competências gerais e habilidades específicas da área. Os cinco Itinerários Formativos perfazem 1.200 horas, são eles: Linguagens e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias; Ciências da Natureza e suas tecnologias; Ciências Humanas e Sociais aplicadas, e Formação Técnica e Profissional. A Base foi publicada em 2018 com o objetivo de nortear os currículos das escolas brasileiras, trazendo consigo 10 competências e várias habilidades, conceitos e processos que os alunos devem desenvolver na sua trajetória escolar. Ela define uma base comum em nível nacional e uma parte diversificada a ser complementada em cada estabelecimento escolar, de acordo com as características regionais e locais dos estudantes.

Segundo o documento, a reforma do Ensino Médio trouxe como objetivos o protagonismo estudantil, a valorização da criatividade pedagógica do professor, a permanência escolar, e o aprendizado com qualidade. As principais mudanças foram a implementação da BNCC, os Itinerários Formativos, a ampliação da carga horária, e o Apoio ao Projeto de Vida do Estudante. De acordo com o seu Art. 24 § 1º: A carga horária mínima anual, “[...] deverá ser ampliada de forma progressiva, no ensino médio, para mil e quatrocentas horas, devendo os sistemas de ensino oferecer, no prazo máximo de cinco anos, pelo menos mil horas anuais de carga horária, a partir de 2 de março de 2017” (BRASIL, 2017, n.p.). Assim, a meta estabelecida até o ano de 2022 é que todas as escolas venham a ter no mínimo 1.000 horas (relógio) ou 1.200h/a anuais. O que se torna um desafio devido às suas implicações, como prováveis mudanças nos horários dos turnos, a falta de recursos humanos e materiais para organizar a escola entre turnos, a problemática do transporte escolar, entre tantas outras. Para o atingimento dessa meta, além das implicações organizacionais e sociais, os professores de qualquer componente devem trabalhar o componente Projeto de Vida e as eletivas, compreendendo escolhas que o estudante deve fazer na trajetória escolar; contudo, implicam, também, capacitações para professores fazerem esse acompanhamento e darem conta da nova estrutura, acarretando mais trabalho ao professor sem que ele seja valorizado.

O ensino da arte sofreu várias mudanças no decorrer da história da educação brasileira. Na atualidade, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a lei nº 9.394 aparece como componente curricular constituído por linguagens: as artes visuais; dança; teatro e música. Nas orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de 1997, a arte tem sua importância equiparada às demais áreas do conhecimento no processo de ensino e aprendizagem. Em 14 de dezembro de 2018, o ministro da Educação, Rossielli Soares, homologou o documento para a etapa do Ensino Médio. Na BNCC de arte, cada uma das quatro linguagens do componente curricular - artes visuais, Dança, Música e Teatro - constitui uma unidade temática que reúne objetos de conhecimento e habilidades articulados às seis dimensões do conhecimento, de forma indissociável e simultânea, são elas: Criação, Crítica, Estesia, Expressão, Fruição e Reflexão. As Linguagens Artísticas (Artes Visuais, Dança, Música e Teatro) são consideradas como subcomponentes do componente arte, o que pode levar à interpretação de uma polivalência do professor e à falta de políticas públicas para garantir a contratação e valorização de professores de arte de áreas específicas. As competências gerais estão representadas na figura 1. Assim, refletimos: De que forma o professor de arte pode alcançá-las, senão por meio do desenvolvimento da criticidade e participação social dos seus alunos?

Fonte: http://portal.educacao.rs.gov.br/novo-ensino-medio

Figura 1 Competências Gerais da BNCC 

Para fins de discussão deste artigo, destacamos alguns pontos de reflexão que interessam ao professor de arte: o chamado Notório Saber (DCNEM, Art. 29), admitido apenas para Formação Técnica e Profissional, com exigência de comprovação de competência técnica, que vem a modificar a forma de emprego de profissionais e a prática da docência, não apenas no que se refere ao professor de artes. Outro destaque é que a BNCC considera que “a educação tem um compromisso com a formação e o desenvolvimento humano global, em suas dimensões intelectual, física, afetiva, social, ética, moral e simbólica” (BRASIL, 2018, n.p.). Trata-se de outro grande desafio do Ensino Médio, uma vez que, para a promoção do aprimoramento do educando como pessoa humana, se entende a promoção do autoconhecimento, do combate aos preconceitos e discriminação de qualquer espécie, e a promoção do respeito à diversidade. Destacamos, também, que a arte na nova BNCC incorpora as artes Integradas como unidade temática, além da Música, Teatro, Dança e Artes Visuais, apresentando-se como possibilidade de que os alunos explorem as relações entre as diferentes linguagens e suas práticas. Isso pode sugerir que profissionais com formação específica em uma das subáreas poderiam deixar de ser necessários, desvalorizando ainda mais a área que vem se tornando cada vez mais invisível diante das políticas públicas educacionais.

Buscando o significado da arte para a educação em Paulo Freire, trazemos algumas categorias levantadas por Leite (2019). Ao analisar a abordagem pedagógica da arte/educação, transcrevemos alguns fragmentos de suas obras, e os trazemos, alguns deles, como contribuição para nossas reflexões, como segue:

Criar-Recriar: Em todo homem existe um ímpeto criador. O ímpeto de criar nasce da inconclusão do homem. A educação é tanto mais autêntica quanto mais desenvolve este ímpeto ontológico de criar (FREIRE, 1979, p. 32).

Experiências e práticas não se transplantam: se reinventam, se recriam. […] Tu terás que reinventar, e não só tu como sujeito da reinvenção, mas o outro com quem tu te encontras. No fundo, viver é recriar. É por isso que a recriação já não é mais nem viver, já é a existência. Nesse sentido é que existir é mais do que viver (FREIRE, 2013, p. 87‑88).

Expressividade: A educação, qualquer que seja o nível em que se dê se fará tão mais verdadeira quanto mais estimule o desenvolvimento desta necessidade radical dos seres humanos, a de sua expressividade (FREIRE, 1981, p. 20).

Corpo consciente: Quanto maior se foi tornando a solidariedade entre mente e mãos tanto mais o suporte foi virando mundo e a vida, existência. O suporte veio fazendo‑se mundo e a vida, existência, na proporção que o corpo humano vira corpo consciente, captador, apreendedor, transformador, criador de beleza e não «espaço» vazio a ser enchido por conteúdo (FREIRE, 1996, p. 58) (LEITE, 2019, p. 2-3).

Paulo Freire criticou o ensino tradicional das escolas brasileiras - em vigência ainda mais nos tempos atuais - assim como a necessidade de reinventar a escola na perspectiva de uma escola pública, libertadora, popular, um lugar onde o educando sentisse prazer em lá estar, em aprender com a “boniteza” de um currículo que lhe falasse sobre a sua vida, o seu cotidiano, que o reconhecesse como sujeito e não como objeto, uma escola capaz de decidir sobre o seu projeto político pedagógico com autonomia. E que possibilitasse aos educandos serem sujeitos de seu aprendizado, de sua formação como cidadãos cônscios e participativos. Torna-se claro que neste ambiente o professor de arte teria um espaço de criação que faria a diferença na vida dos educandos, não apenas nos aspectos cognitivo e sociopolítico, mas também emocional e espiritual, melhorando a autoestima deles, abrindo mentes, trazendo a estética reflexiva, a ética humana, lutando contra as desigualdades sociais, pelos direitos humanos e das minorias. Ao selecionar conteúdos e ter a liberdade de apresentar as obras de arte produzidas historicamente pela humanidade sem receio de ser mal interpretado, sem medo de preconceitos e barreiras impostas pelo obscurantismo, ele tem muito a contribuir na formação humana.

3 A DECOLONIALIDADE DA ARTE

A história da arte, como ciência, tem sido um recorte sobre o que é considerado como arte pela cultura colonial, caracterizada pelo homem branco, heterossexual, capitalista, europeu, com referência ao mundo greco-latino, e vinculado à tradição judaica - cristã. Esse recorte colonial, de raça, gênero, e geográfico, tem gerado polêmicas e censuras quando a liberdade de expressão revela a mistura dos olhares que estão à margem do olhar etnocêntrico. A realidade multicultural traz a necessidade de debatermos esse assunto para buscarmos soluções interculturais.

Os estudos pós-coloniais, em especial as pesquisas de Aníbal Quijano, mostram que a partir do descobrimento da América Latina surgiu um novo padrão de poder global centrado na ideia de raça. A cultura do colonizador foi disseminada como superior, e a cultura dos povos colonizados foi disseminada como inferior e atrasada. Com o enraizamento da colonização, foram desenvolvidas as ciências a partir do olhar dos colonizadores. Nessa perspectiva, o conhecimento relacionado ao homem branco, burguês, e as suas características e culturas (europeu, militar, cristão, heterossexual, capitalista) foram difundidas como cultura superior, conhecimento científico, verdadeiro e universal. Por outro lado, o conhecimento vinculado aos colonizados foi relegado à ideia de mito, místico, folclore, não científico, inferior. Nesse sentido, as Artes Ameríndias e as Africanas, por exemplo, foram marginalizadas da História da arte, e restringidas a conceitos como objetos exóticos, artefatos, artesanatos, com destino aos museus de antropologia e não de arte. Soma-se a esse fato, a tentativa de censurar as produções com olhares multiculturais sobre as artes consideradas clássicas. Nessa perspectiva, o jornalista brasileiro, crítico, historiador, e curador independente, Frederico Morais, lembra que, “A arte não pertence aos museus, às galerias de artes, aos colecionadores, e no limite da interpretação aos artistas. A arte não pertence a ninguém, isto é, ela pertence a todos. A arte é um bem comum do cidadão, da humanidade” (RIBEIRO, 2013, p. 343). Assim, o universo da arte tem sua dimensão de acesso popular, principalmente quando o assunto é Educação.

Para Bhabha (1998), entre o ver e o interpretar existe um espaço, denominado de “terceiro espaço”', caracterizado pela manifestação do hibridismo. Entende-se aqui por hibridismo a soma entre a criação tradicional e a construção cultural que gera uma nova face de um determinado produto, como releituras, por exemplo. Nesse sentido, para o autor, o hibridismo é uma ameaça à autoridade cultural e colonial, uma vez que subverte o conceito de origem ou identidade pura da autoridade dominante. Também sob o conceito do moralismo conservador, essa subversão do que é aceitável como arte, por exemplo, ocorre por meio da ambivalência (porque mostra lados contraditórios como o que é considerado arte e o que não é, a arte aceita pelo colonialismo, e a arte negada por esse mesmo movimento), variação de linguagens (a linguagem aceita e a marginalizada), repetição da rigidez dos costumes coloniais, e o deslocamento dos sentidos. Assim, o hibridismo também é visto como uma ameaça. Esses traços do hibridismo fazem com que este transgrida todo o projeto do discurso dominante e exija o reconhecimento da diferença. Nesse sentido, a arte pode revelar os problemas sociais que devem ser solucionados, com o reconhecimento da diversidade, e movimentos de inclusão.

Entendemos - como o curador brasileiro Frederico Morais - que “a arte, quando levada à rua, acaba ganhando uma moldura política” (RIBEIRO, 2013, p. 342). Esse fenômeno é claro quando lembramos que o entendimento sobre uma obra é feito a partir da soma de experiências, formação, e ideologias que geram impressões, pensamentos e emoções que constroem um significado mental ao ter a experiência estética. Nesse contexto, temos que considerar que há uma lacuna na formação do indivíduo que resultou no comprometimento da habilidade de interpretar as diversas linguagens, de acordo com o contexto, e a dialética da comunicação. Como consequência, as releituras da arte com símbolos que lembram a mistura de religiões, lutas pela inclusão, o nu artístico, têm sido oprimidas sob a premissa de o país ser laico e conservador, quando o que percebemos são comportamentos com traços provincianos.

Nesse sentido, há uma falta de entendimento sobre a diferença entre o nu artístico e o nu pornográfico, expressões que buscam a inclusão e não fomentações ideológicas de orientações sexuais, e identidade de gênero. Há uma diferença entre o marketing e a arte que revela a existência das lutas sociais que são realidades no país, e estão escancaradas na sociedade e em seus vários desdobramentos: família, sistemas de ensino, áreas de atuações profissionais, mercado, comércios, internet. A diversidade grita para ser aceita em uma rede de estrutura global de poder que polariza opiniões, fomenta a desinformação, e nega que a História Universal deixou à margem as culturas exercidas por povos colonizados.

É fácil perceber que existe uma estrutura colonial enraizada na cultura brasileira. Essa estrutura gera a concepção patriarcal de controle e domínio sobre o que não segue o padrão etnocêntrico do que é entendido como arte. A arte etnocêntrica é a arte com características do homem branco, europeu, ligado à cultura greco-romana e judaico-cristã. A manifestação híbrida ameaça o lugar de poder dessa repetição cultural. O indivíduo que não conhece os estudos feitos a partir de regiões colonizadas, muitas vezes não entende que a arte é multifacetada, e tem medo dos julgamentos sociais refletidos nos olhares de pessoas que, também, foram formadas por meio de uma cultura colonizadora que formou a percepção de inúmeras gerações, e agora esse indivíduo que julga como inferior essa arte marginalizada - é fruto dessa engrenagem. Nesse sentido, sobre a colonização da mente: O desafio é descolonizar o Ser.

Podemos entender a tentativa de censura, ou exclusão, por meio dos estudos pós-coloniais. A divisão colonial foi utilizada na sociedade de três formas: Colonialidade do Poder, Colonialidade do Saber, Colonialidade do Ser. A Colonialidade do Poder não só classifica o ser-humano em inferior e superior, de acordo com a raça, como organizar o conhecimento a partir da ideia de raça (raças colonizadas = culturas atrasadas / raça colonizadora = cultura desenvolvida), com autoridade para falar sobre as outras, e missão de salvar os povos que estão à margem da concepção de progresso dessa cultura colonial.

A partir da ideia de raça, e a naturalização das diferenças, foi considerado superior o conquistador, homem branco; e inferior - homem com cor e mulher. Na atualidade, vemos como reflexo a discrepância entre os salários das mulheres em relação aos homens, no exercício de uma mesma função, e a desvalorização das produções nativas, por exemplo. Desse modo, a Colonialidade do Saber foi a reprodução dos registros dos colonizadores em eixos do conhecimento espalhados pelo mundo como: Ciência/ História Oficial/ História Universal, visando a reprodução de conhecimentos coloniais, e por consequência: a manutenção de comportamentos estruturados a partir da colonização das Américas.

O mecanismo colonial gerou a Colonialidade do Ser, enquanto uma estratégia de comunicação que utiliza a linguagem para colonizar a mente, por meio de justificativas que naturalizam as relações de desigualdade. Entende-se que a cultura do homem branco, conquistador, é superior, logo, deve ser reproduzida no mundo inteiro. Resultados: reproduções de pensamentos, discursos, comportamentos, conceitos, buscas, de acordo com o que a globalização das informações injeta como necessidade, verdade, e ideia de felicidade.

Essa construção mental criou, conforme Aníbal Quijano (2005), um novo padrão de poder global. A partir do descobrimento da América que permitiu que essa região se convertesse ao “centro do mundo”, no sentido de buscar estratégias para que sua cultura fosse vista como superior. Consequentemente, surgiu o eurocentrismo, enquanto modelo civilizatório que se impôs ao resto das civilizações nos planos material e filosófico.

Nessa perspectiva, decolonizar o Ser significa contribuir para que haja a libertação do “ter que seguir padrões coloniais para ser aceito”, por meio do conhecimento de culturas que foram alvos da tentativa de silenciamento. É ter liberdade para exercer a própria individualidade que proporciona o que é felicidade para cada Ser. Entende-se que é necessário respeitar limites e regras de cada organismo social e suas hierarquias, mas é emergente saber reconhecer o que é exclusão, e censura, justificadas pela engrenagem da Colonialidade do Poder, e seus eixos: Colonialidade do Saber, e Colonialidade do Ser, sob a base da naturalização das desigualdades sociais, que colocam em risco a democracia.

De acordo com Fanon (1968, p. 38):

O colono faz a história e sabe que a faz. E porque se refere sempre a história de sua metrópole, indica de modo claro que ele é aqui o prolongamento dessa metrópole. A história que escreve não é, portanto, a história da região por ele saqueada, mas a história de sua nação no território explorado, violado e esfaimado. A imobilidade que se está condenado o colonizado só pode ter fim se o colonizado se dispuser pôr termo à História da colonização, à História da pilhagem, para criar a história da nação a história da descolonização.

Nesse sentido, debater a possibilidade de inserir no currículo literaturas pós-coloniais pode ampliar a percepção sobre como a arte é concebida em regiões colonizadas, e desmistificar a ideia de uma Arte Universal. Essa desmistificação tem a competência de estimular a inteligência da comunidade escolar em direção à percepção da riqueza multicultural, o reconhecimento de estudantes artistas, e ainda, a percepção do como a arte auxilia estudantes com dificuldades de aceitação, adaptação, e de comunicação.

Decolonizar a arte, aqui, significa ampliar e valorizar as expressões subjetivas com o objetivo de estimular o desenvolvimento da habilidade humana de expressar sua subjetividade, comunicar, e despertar experiências estéticas, sem passar pelo cerceamento justificado por um “puritanismo” que camufla a engrenagem da colonialidade do poder. Dessa forma, o projeto do professor é decolonial porque valoriza as expressões artísticas autênticas de estudantes que ao se expressarem com liberdade sentem que são compreendidos, aceitos, e por consequência: em equilíbrio com as suas próprias emoções interpessoais.

A relevância da decolonização da arte para o indivíduo está em proporcionar o fortalecimento da identidade, o reconhecimento das diferenças, o sentimento de pertencimento, a autoconfiança, e por consequência a facilitação do processo de ensino e aprendizagem.

4 INTOLERÂNCIA X CURRÍCULO: O PAPEL DO PROFESSOR DE ARTE

4.1 A voz do(s) Oprimido(s): Professor e alunos diante da intolerância

O professor participante da pesquisa, na época dos acontecimentos, tinha 45 anos e uma década de trabalho docente. Formado na Faculdade de Belas Artes de São Paulo, Bacharel em Pintura e Licenciado em Educação Artística, sempre foi amante das artes.

Esse professor teve contato com alguns importantes amigos artistas em São Paulo, e presenciou bienais e galerias, artistas que viveram a terceira geração do Modernismo, fazendo arte nas ruas, expondo aos poucos suas produções em cafés e bares da capital paulista. Vivenciou o contato do mundo da arte, apresentando muitas de suas artes no interior de São Paulo, Mato Grosso, Rondônia, vendas de arte no Brasil e exterior. Sua marca de resistência tem sido assinalar as minorias e os direitos humanos em sua atuação profissional junto, principalmente, a comunidades vulneráveis. Com essa construção de sua identidade, o professor chegou às salas de aula em escolas estaduais de periferia, e depois no ensino médio de um instituto federal que também tinha em comum o ambiente de vulnerabilidade.

De acordo com o seu depoimento, os estudantes apresentavam problemas relacionados à autoestima, aceitação de si na família e na comunidade, problemas relacionados à pobreza, como filhos de militares ou policiais nestes locais de fronteira que sofriam forte autoritarismo e controle. Nesse sentido, outros se sentiam deslocados devido à homoafetividade, sendo negado a eles a sua identidade como forma de manter as aparências em comunidades com lideranças extremistas religiosas. Como professor de uma pequena cidade, constatou que ali havia um alto índice de suicídios e marcas de automutilação. Tais acontecimentos não foram publicados oficialmente devido às orientações superiores para não alarmar a sociedade e estimular mais suicídios. Por informação do Centro de Ação Psicossocial (Caps), o número de casos de suicídios representa 70% de pessoas jovens, entre 11 a 18 anos, com quadros de depressão e automutilação. Nesse cenário, a arte é um método de cura, uma vez que proporciona qualidade de saúde mental.

Com a sensibilidade típica proporcionada por sua formação e experiência, o professor torna-se amigo dos estudantes, utilizando a escuta atenta sobre os seus problemas familiares e pessoais, sendo que essa aproximação também foi favorecida pela confiança adquirida ao compartilhar as obras de arte no ensino, como algo que extrai sentimentos e emoções e o desenvolvimento da livre expressão artística.

Com a cedência de um espaço provisório dentro da instituição para a produção dos trabalhos artísticos e materiais disponíveis, o local tornou-se um ponto de encontro. Dessa forma, expandiu a liberdade que a arte proporciona entre os adolescentes, a começar pela experiência vivida pelo professor, e relatos favoráveis de outros professores em conselhos de classe acerca do aumento de desempenho nas outras disciplinas.

O professor de arte percebeu que o comportamento dos alunos também passou a ser elogiado pela sociabilidade, aplicação aos estudos e devoção às suas produções, como a pintura, modelagem de argila, papel machê advindo do lixo da escola, e barra de sabão. Nesse contexto, tais momentos se multiplicavam devido ao bem-estar que estavam proporcionando aos jovens, tornando-os menos ansiosos e mais conectados com a realidade social. O professor acompanhava os alunos atentamente, sendo comunicado pelos pais sobre a mudança positiva de comportamento dos filhos em casa. Desse modo, alguns, de fato, demonstravam inclinações artísticas, devido à estética espontânea de suas obras iniciantes.

Das salas de aula, as obras dos alunos ganharam as paredes da instituição de ensino. Como não havia a censura sobre o que produziam - uma vez que estavam embasados nos estudos da disciplina, e na experiência com a arte - as obras que eles produziram recriavam também releituras de alguns clássicos. A dinâmica envolveu temas transversais com releituras de obras dos períodos da história da arte. Dentre os diversos temas trabalhados, o nu artístico, a sexualidade, o papel da mulher no espaço, foram temas confundidos pelos gestores, e alguns integrantes da comunidade, como ideologia de gênero. Logo, o trabalho virou alvo de intolerância, interpretações maldosas, o que gerou debates e controvérsias.

As paredes foram, aos poucos, coloridas pelos adolescentes, potencializando a arte da comunidade escolar enquanto atração cultural para a comunidade. O espaço começou a ser referência para apreciação estética, o que atraiu encontros no campus, compartilhamento da arte, em redes sociais por meio de selfies, e como consequência virou atração turística iconográfica. Esse fato é relevante porque expressa não só o local onde os alunos vivem grande parte de sua vida, como também fortalece a marca de uma identidade cultural.

No entanto, alguns professores questionaram o ‘lugar da imagem’ de algumas obras de arte. Esse questionamento levou à decisão unilateral da direção, junto a um colegiado sem representação estudantil, de apagar todas as obras para não questionarem o motivo pela retirada de obras específicas. Nesse contexto, os estudantes questionaram a censura, porque tinham estudado o conflito da arte em períodos da História, passaram a compreender que ali havia abordagens que deveriam ter sido superadas, e presenciaram um comportamento arcaico.

Fonte: Retrato de Jeane, da estudante Laura de Paula com base na obra do artista Modigliani

Figura 2 A Mulher Amarela 

A Dança, de Henri Matisse, por exemplo, realizada em 1909, chegou à gestão como denúncia anônima, sob a alegação de ser um painel representando bruxas. No entanto, essa obra é vinculada a uma alegria de ciranda inocente, produzida na instituição por dois alunos como releitura multicultural. As cores diferenciadas valorizaram a abordagem transversal em relação à original vermelha do artista que também propunha a valorização de mulheres e etnias primitivas do Fauvismo. A riqueza do trabalho foi reduzida à interpretação infundada sob o rótulo de obra demoníaca. Posteriormente, foi observado que a releitura da obra de arte A criação do homem (Michelangelo, 1508-1515), de duas mulheres negras, foi julgada como inadequada, sob o argumento que a escola é laica. Nesse contexto, é interessante notar que esse fato aconteceu, justamente, na mesma época em que houve a divulgação de panfletos institucionais com releitura dessa mesma obra, porém, apresentando o toque entre a mão de um robô com uma mão humana, como símbolo da integração tecnológica com os cursos ofertados à comunidade.

A obra que tinha o nu artístico reverberou no julgamento de outras obras. Foi observado que as poucas pessoas que sentiram as produções como um “ataque ao pudor” tiveram leituras moralistas. O lugar, de expressão artística, agora passou a ser lugar de “opressão”, desabafou o professor de arte. Ele não conseguia compreender totalmente a opressão de que era alvo, a censura inexplicável, e, muito menos, como sendo ele um “incentivador de coisas erradas ou um transgressor”. Nesse cenário, a obra do nu artístico foi rotulada, apenas por essas poucas pessoas, de pornográfica, por isso foi feito uma enquete com formulário de pesquisa para 300 alunos, por meio da aluna que realizou o nu de Modigliani, constatando que apenas uma resposta considerava a obra uma pornografia. O restante dos alunos considerou que era uma pintura, que não havia motivo de apagar as pinturas por interpretação preconceituosa ou de desconhecimento sobre a história da arte.

O sindicato que fez a defesa do professor de arte descobriu que a denúncia inicial havia partido de um professor da mesma instituição. Um aluno, e líder da turma, que ainda tinha influência no grupo e contato no WhatsApp, disse ao professor: “O senhor sabe que eu era o líder da sala, sou mais velho que eles e eles me ouviam muito, mesmo depois que saí da escola, mas eu não aguentava mais a pressão da direção me cobrando no WhatsApp, queriam que eu convencesse meus colegas de que ali não era lugar daquelas pinturas, principalmente do nu artístico”. Em diálogo com o professor, prosseguiu o aluno, “[...] conversando com meus colegas, me falaram que era uma perseguição e era motivo para me usar e até ficar mal com a minha amiga que pintou, porque eu conheço ela e sei que ela não fez de forma pornográfica e nem o senhor faria nesse sentido, pode ver que parei, mas eles da direção ficavam até de noite me ligando para fazer pressão, e que não era coisa de Deus.” Disse a aluna artista da obra que causou a controvérsia, “A minha pintura não tem pornografia. O que eu fiz foi uma pintura artística que tem muito de mim, não um nu pornográfico. Não tem aqui nenhum pecado, como querem me fazer crer”. O professor observou que a direção se pautava nos argumentos usados pelos evangélicos e servidores que não tiveram formação no conhecimento de história da arte, somando-se aos seus, como católica, disse ter outras denúncias de obras em que haviam visto bruxas dançando em roda na releitura de etnias, A Dança de Matisse.

Fonte: Alunos do Ensino Médio do Curso Integrado de Biotecnologia.

Figura 3 Espaço de Arte das Mulheres, coletivo de Artes 

Nesse mesmo movimento de interpretações equivocadas, a releitura da pintura de Frida Kahlo foi feita em um espaço reservado às mulheres, mas como tinha uma placa de inauguração com o nome da única presidente mulher do Brasil, o professor foi atacado como agitador do movimento feminista. “O conservadorismo não tem credo religioso. Tendemos a pensar que isso só acontece nas comunidades evangélicas, mas não é verdade, o culto à ignorância amplia-se para muitas esferas. Onde a ignorância e a falta de conhecimento ficam presentes, as pessoas não querem sair de suas viseiras, existe o extremismo”, ressaltou o professor.

O professor entrou em depressão, ele disse: “Parecia um retorno à Idade Média”. Imaginava ele que estava vivendo em uma Nova Idade Média ou Baixo Renascimento, com conhecimentos importantes para mudanças e transformações por meio da Ciência, porém totalmente dominados pelo obscurantismo. O depoimento do professor continua: “Quantos homens como Giordano Bruno, Sandro Botticelli, Michelangelo Buonarroti, entre outros, não tiveram a chance de terem seus registros preservados, e mulheres como Hipátia, Artemísia que sofreram para proteger o conhecimento e a justiça social. Eu estou aqui sofrendo um centésimo disso”. Continua a narrativa: “Lembrei de meu pai idoso e debilitado no interior de São Paulo que veio me ver para me dar socorro. Eu queria largar o Mestrado, eu não conseguia me concentrar em mais nada, apenas sofria o conflito de alunos, de professores, com a direção”. O que mais lhe doía era a retirada de sua alma do ensino que praticava junto aos alunos, a arte. Ele chegou a comparar, em sala de reunião que solicitou, mesmo depois da decisão do Colegiado sem a participação de alunos, um encontro com alunos e professores, a arte que os alunos produziam e que não estavam sendo aceitas, com as pinturas feitas no quartel local do exército, que também estava nas paredes, mas que, diferentemente, estavam “autorizadas”, pois lá teria um artista que estava “liberado” pelo seu superior para pintar. O professor argumentou que, sendo um quartel, era diferente de uma escola, e que “aqui deveria ser mais democrático”. A diretora argumentou que “lá ele tem a autorização de seu superior, aqui você não tem”. No entanto, apesar da argumentação, e contra ela, um dos professores levantou-se e disse que, “agora o professor já abusou dentro da hierarquia”. E bateu a porta. Relembra o professor: “Era o professor de Filosofia. Eu não consegui entender por que um professor de Filosofia teve aquela atitude. Vários professores reconheceram a gestão opressora, outros ficaram calados por uma questão de manter os cargos, outros ficaram em silencio”. A resolução dessa situação foi a transferência do professor. Ele já se sentia exausto diante da opressão psicológica e social, aquilo o levou aos diagnósticos: transtornos de ansiedade e depressão. Logo, medicamentos psiquiátricos. “Eu estava em período probatório, não tinha segurança no emprego e seria avaliado por aquela que me acusava. Busquei o reitor da instituição e consegui ser compreendido”. O professor seria transferido seis meses depois, com a alegação de que seria melhor para não chamar a atenção, diante da comoção da comunidade.

4.2 O papel do Professor de arte: o que esperam de nós?

Na perspectiva da decolonialidade, é possível perceber que o trabalho realizado pelo artista e docente, também é decolonial porque gera o empoderamento dos estudantes ao estimular a criatividade autêntica que surge a partir das essências humanas que são singulares, e assumem diversas funções no mundo. Dessa forma, o estudante não é só um estudante, é filho, irmão, neto, sobrinho, pai, mãe, trabalhador, profissional, com suas singularidades, e pode encontrar na arte um instrumento para comunicar o que percebe a sua essência humana, diante de todas as suas vivências, e necessidades de respostas. A arte, assim, é, antes de tudo, a forma pela qual a essência se comunica. Por meio dela, podemos não só entender a realidade, como também transformá-la e criá-la. Quando a arte desperta a empatia, desperta questionamentos da essência humana, ou revela os problemas que eclodem na sociedade, essa arte é decolonial. Nesse sentido, o projeto do professor decolonizou ao valorizar suas individualidades e possibilitar o empoderamento das diversas identidades que foram fortalecidas por meio da arte.

As obras criadas pelos jovens estudantes representavam também as etnias, a supremacia e o combate a preconceitos sociais. De acordo com Aníbal Quijano (2005), esse novo padrão de poder global, que surgiu com o descobrimento das Américas, em especial da América Latina, gerou dois eixos de poder: Ideia de Raça e a Ideia do controle do trabalho a partir da ideia de raça. Objetivamente, a ideia de raça sistematizou diferenças entre conquistadores e conquistados e naturalizou essas diferenças sob a premissa de que se um povo é colonizado, naturalmente ele é inferior. Nesse sentido, todos os elementos vinculados ao colonizado foram naturalmente difundidos como cultura inferior, e todos os elementos vinculados ao colonizador foram difundidos como, naturalmente, cultura superior. Por consequência, na atualidade, da materialidade, como produções, à subjetividade humana, como comportamento e expressões de sentimentos e pensamentos, que revelam elementos semelhantes às culturas que colonizaram povos são aceitas, e as manifestações humanas que têm traços diferentes são negadas, ignoradas, oprimidas, e no atual governo: alvos de políticas de exclusão e negação dos direitos já garantidos na Constituição desta República.

Aprender é um grande desafio da vida. Não só o aprendizado teórico, mas transformar as informações em um entendimento que aperfeiçoa as relações interpessoais a partir de uma decisão pessoal de buscar o autoaprimoramento que possibilita buscar pensar, sentir, e agir com mais humildade e empatia, é um desafio que possibilita a própria superação. Nesse sentido, a arte pode sensibilizar a percepção e mostrar, por meio da liberdade de expressão e da experiência estética, quais são as injustiças sociais e quais são os caminhos possíveis para contribuirmos para que as relações sociais sejam mais justas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo objetivou discutir o papel do professor de arte diante do que preconiza a nova BNCC, em contraponto com a prática pedagógica de um professor com formação acadêmica de referência, lecionando no Ensino Médio em um instituto federal em uma cidade fronteiriça. A cultura local tem predominância religiosa sujeita a extremismos, mas o ponto focal da nossa análise diz respeito à falta de políticas que protejam a profissão do professor de arte, que o recoloque na frente da docência na área, como profissional que exige e merece o respeito das instituições, assim como outros no campo educacional. Os extremismos, sejam religiosos ou a intolerância e o preconceito, seriam barrados ao longo da trajetória de formação do indivíduo, se este tivesse sempre professores profissionais estudiosos de sua área de atuação, sem que o governo estimulasse a contratação de outros sem essa formação, ou que leiloasse nas escolas as cargas horárias das disciplinas ainda vistas como "periféricas" por muitos gestores. Como outros componentes curriculares com menor carga horária, essas disciplinas estão sendo invisibilizadas no Currículo, e inviabilizadas pelo poder público ao não reconhecer a importância do profissional, a relevância dos conteúdos historicamente acumulados, e a necessidade de currículos com abertura para a criticidade.

Com ênfase na questão do papel do professor de arte como formador de pessoas para sociedades democráticas, também resgatamos essa narrativa por meio de pesquisa, no entendimento de que, o seu registro tornará imemorial essa história gerada pelo preconceito, xenofobia, intolerância, para falar de algumas mazelas de uma época em que tais questões, a serem tratadas pela Educação para serem definitivamente sepultadas, pelo contrário, estão vivas e giram em torno das escolas e dos currículos como inacreditáveis zumbis, estimulados em sua insana saga, pelo poder central de nosso país.

Queremos registrar esses tempos; no entanto, com a utopia freiriana, do inédito viável, acreditamos em novos e melhores tempos, por meio da luta pela conscientização, por escolas democráticas, por professores livres pensadores que fazem de seu instrumento de trabalho - livros e obras - instrumentos de desalienação. Dessa forma, damos vazão à esperança e à amorosidade, na tentativa de compreender esses movimentos retrógrados em nossa sociedade, e não abandonar as nossas utopias.

Rubem Alves em uma de suas entrevistas em 2001, nos deixou este legado de exemplo:

Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas.

Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do voo.

Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o voo.

Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.

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Recebido: 20 de Junho de 2021; Aceito: 27 de Outubro de 2021

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