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Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.20 no.3 São Paulo July/Sept 2022  Epub Jan 02, 2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2022v20i3p1022-1042 

Artigos

Capoeira, Patrimônio Cultural e Educação Física: 1 reflexões curriculares sobre a diversidade de conteúdos na escola

Capoeira, Cultural Heritage and Physical Education:curriculum reflections on the diversity of content at school

Capoeira, Patrimonio Cultural y Educación Física:reflexiones curriculares sobre la diversidad de contenidos en la escuela

Bruno Otávio de Lacerda ABRAHÃOi 
http://orcid.org/0000-0002-8274-2539

Maria Larissy da Cruz PARENTEii 
http://orcid.org/0000-0002-0031-9586

Alexsandro Gonzaga RODRIGUESiii 
http://orcid.org/0000-0003-2024-1445

i Doutor em Educação Física pela Universidade Gama Filho. Professor adjunto do Departamento de Educação Física, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: bolabra@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-8274-2539.

ii Mestra em Educação Física pela Universidade Federal do Vale do São Francisco. Professora e Coordenadora de Educação Física no Colégio Motivo. E-mail: larissycp@hotmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-0031-9586.

iii Graduando em Educação Física pela Faculdade Pitágoras. Professor da Escola Dom Orione. E-mail: bocaobimba@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-2024-1445.


Resumo

O presente estudo realiza uma problematização sobre o ensino da capoeira na escola, cuja manifestação cultural e os elementos de roda e ofício dos mestres são reconhecidos como patrimônio cultural imaterial da cultura brasileira desde 2008. Foi possível observar uma desarticulação entre o reconhecimento de um patrimônio cultural com as políticas educacionais em nosso país, mesmo com a sanção de leis que amparam o ensino da capoeira na escola, como a Lei 10.639/2003 e a Base Nacional Comum Curricular. O ensino da capoeira e o conhecimento sobre sua relação histórica com o Brasil deveriam ser amplamente abordados nas escolas brasileiras, principalmente dentro da Educação Física escolar.

Palavras-chave: capoeira; educação física; patrimônio cultural

Abstract

This study discusses the teaching of capoeira at school, whose cultural manifestation and the elements of circle and craft of the masters are recognized as Intangible Cultural Heritage of Brazilian culture since 2008. It was possible to observe a disarticulation between the recognition of a cultural heritage with the educational policies in our country, even with the sanction of loyalists who support the teaching of capoeira at school, such as Law 10.639/2003 and the Common National Curriculum Base. The teaching of capoeira and knowledge about its historical relationship with Brazil should be broadly addressed in Brazilian schools, especially within school Physical Education.

Keywords: capoeira; physical education; cultural heritage

Resumen

Este estudio analiza la enseñanza de la capoeira en la escuela, cuya manifestación cultural y los elementos de círculo y oficio de los maestros son reconocidos como Patrimonio Cultural Inmaterial de la cultura brasileña desde 2008. Se pudo observar una desarticulación entre el reconocimiento de un patrimonio cultural con las políticas educativas en nuestro país, incluso con la sanción de leales que apoyan la enseñanza de la capoeira en la escuela, como la Ley 10.639 / 2003 y la Base Curricular Nacional Común. La enseñanza de la capoeira y el conocimiento sobre su relación histórica con Brasil deben ser abordados ampliamente en las escuelas brasileñas, especialmente dentro de la Educación Física escolar.

Palabras clave: capoeira; educación física; patrimonio cultural

1 INTRODUÇÃO

A diversidade dos temas e conteúdos que a escola aborda e a consideração das diferenças culturais em seu cotidiano passam pelo embate dos saberes preferidos ou preteridos do currículo escolar. Silva (2016) nos apresenta o currículo como um território de disputa, povoado por forças hegemônicas que buscam manter um projeto de sociedade. Entretanto, esse lugar de disputa tem sido marcado por novas forças que procuram inserir pautas até então esquecidas ou silenciadas no cotidiano escolar.

Se “preferir” nos aproxima da lembrança, daquilo que gostaríamos que fosse rememorado após a aula, mas multiplicado nos corpos daqueles que participaram dela e que, em tese, dela devem não esquecer, “preterir”, em contrapartida, é outra forma de rejeitar aquilo que não deve ser lembrado, tem a ver com o esquecimento, a extinção, a morte. É nesse sentido que buscamos entender o silenciamento e/ou esquecimento de determinados temas no ambiente escolar.

Assim, tomando as escolas como lugares da passagem, da lembrança daquilo que a sociedade perpetua de seu patrimônio, como seus saberes podem relacionar-se à discussão sobre o patrimônio cultural? Entendido como um espaço de poder onde ocorre o embate entre projetos diferenciados e relacionados à construção e à transmissão da memória social, a seleção de bens materiais e imateriais a serem tombados ou registrados como patrimônio corresponde às escolhas de uma sociedade acerca do que é relevante lembrar e acentuar em sua experiência (VIEIRA, 2013). Ainda para o autor, as políticas de salvaguarda relacionadas ao patrimônio cultural imaterial não são ações de preservação em um sentido tradicional, “mas um conjunto de iniciativas que deve compreender os diversos aspectos de formação da identidade do grupo considerado” (VIEIRA, 2013, p. 141). Por essa razão, Neira (2011) aponta que o currículo não pode se constituir desvinculado das mudanças culturais, deve ser mutável e agregar espaço para a cultura e seu caráter temporal.

Se entendemos essa memória, como ensina Halbwachs (1990), como fenômeno coletivo e social, construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes, passamos a tê-las como mecanismo agenciado pelo Estado para expressão de sua identidade e da forma como ele quer ser visto. O patrimônio cultural imaterial emerge nesse contexto como uma construção social e histórica e deriva das referências culturais fundamentais de um grupo: “ao selecionar temas, lugares, práticas, saberes e fazeres para registro como patrimônio cultural imaterial, a sociedade, por meio de suas instituições governamentais, constrói e fortalece sua memória e identidade” (VIEIRA, 2013, p. 141).

Tais bens considerados como patrimônio cultural imaterial da humanidade podem ser subdivididos em: 1) rituais e festas que balizam as vivências coletivas e outras práticas de vida social como religiosidade e entretenimento; 2) manifestações artísticas, rítmicas e linguagem corporal; 3) lugares onde acontecem práticas culturais coletivas; e 4) modos de fazer e conhecimentos radicados no cotidiano das comunidades. O Brasil conta com diversos bens registrados no Livro de Tombo do Patrimônio Cultural, entre eles, o reconhecimento do Ofício dos Mestres de Capoeira e a Roda de Capoeira pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2008 como patrimônio cultural imaterial da humanidade.

Com efeito, até 2021, em uma visita ao site do IPHAN, identificamos2 18 bens registrados no Livro de Tombo do Patrimônio Cultural brasileiro. São eles: Ofício das Paneleiras de Goiabeiras, Arte Kusiwa Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi, Círio de Nossa Senhora de Nazaré, Samba de Roda do Recôncavo Baiano, Modo de Fazer Viola-de-Cocho, Ofício das Baianas de Acarajé, Jongo no Sudeste, Cachoeira de Iauaretê Lugar Sagrado dos Povos Indígenas dos Rios Uaupés e Papuri, Feira de Caruaru, Frevo, Tambor de Crioula, Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo, Modo de Fazer Queijo de Minas, nas regiões do Serro e das Serras.

Não restam dúvidas de que o reconhecimento desse patrimônio material e imaterial deve ser considerado pelo currículo escolar e agregaria muito para a diversificação dos conteúdos ensinados. Por essa razão, devemos refletir como as diferenças culturais são tratadas no currículo escolar. Se patrimônio está relacionado com o que é legado intergeracionalmente pela cultura e a escola é o lugar não apenas da transmissão de um conhecimento produzido pela humanidade, mas também um espaço que todos e todas devem frequentar, uma vez que a educação é um direito, quais relações podemos estabelecer entre ambos? Há alguma orientação que alinhe projetos de políticas culturais voltadas para o País e o conteúdo daquilo que a escola ensina? Ou, caso contrário, não há nenhuma proposição, é um processo desarticulado, cabendo ou não ao docente trazer essa discussão para o componente que leciona?

Vieira (2013) entende que o processo de patrimonialização consiste no tombamento de bens materiais e no registro do patrimônio imaterial pelos quais serão pensadas políticas de salvaguarda desses bens e chama atenção para a Convenção da UNESCO, a qual conceitua salvaguarda no artigo 2.3 como:

Medidas que visam garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, proteção, a promoção, a valorização, a transmissão - essencialmente por meio da educação formal e não formal - e revitalização deste patrimônio em seus diversos aspectos (VIEIRA, 2013, p. 141).

Nesse sentido, entendemos a educação formal como aquela que opera nas escolas, como os lugares onde, em tese, deveria ocorrer a transmissão da diversidade desse patrimônio. Desse universo chamamos atenção para uma prática corporal, a capoeira, cuja roda e o ofício dos mestres são reconhecidos desde 2008 como patrimônio imaterial. Sendo as escolas os locais institucionalizados para a educação, elas têm participado do ensino da capoeira como patrimônio nacional?

Para relacionar-se com outros seres humanos, inserindo-se em determinado contexto histórico da humanidade, cada indivíduo singular precisa apropriar-se da riqueza da experiência humana acumulada culturalmente. As aptidões e as funções humanas historicamente formadas não se reproduzem pela hereditariedade. Precisam ser formadas, transmitidas de geração em geração. A esse processo de transmissão da cultura produzida histórica e coletivamente pela sociedade - que permite a formação da humanidade em cada indivíduo singular - denomina-se educação (SAVIANI, 2005).

Em seu processo histórico, a humanidade criou e produziu saberes. Por conseguinte, foi necessário um lugar institucionalizado para congregar esse saber e transmiti-lo às novas gerações, dado o caráter transitório do humano. Parte desses saberes se expressa e é vivenciada por meio do corpo. Falamos do acervo dos jogos populares, os quais foram transformados nos esportes modernos, lutas, danças, ginástica, patrimônio lúdico dos jogos, brinquedos e brincadeiras e nossa capoeira, chamada pela Educação Física de Cultura Corporal de Movimentos (SOARES et al., 1992). Se à escola cabe fazer com que alunos(as) se apropriem criticamente da realidade em que vivem, à Educação Física cumpre o papel da alfabetização da riqueza do acervo do movimento humano.

Diante do exposto, nosso objetivo neste artigo é problematizar sobre o ensino da capoeira na escola, cuja roda e ofício dos mestres são reconhecidos como patrimônio cultural imaterial.

Para tanto, organizamos o texto em dois momentos: no primeiro, concentramo-nos nos significados do registro da roda e do ofício dos mestres a partir de suas certidões; no segundo, as relações da capoeira com a legislação da área e os documentos de orientação curricular para a Educação Física.

2 A RODA E O OFÍCIO DOS MESTRES DE CAPOEIRA

Presente desde a Antiguidade, a escravidão foi recriada com o capitalismo comercial e o movimento de expansão colonial teve no Brasil um local privilegiado. A proximidade geográfica com a África que facilitava as navegações no Atlântico fez com que os colonizadores portugueses, em meados do século XVI, instituíssem um sistema de escravidão que utilizava os africanos como mão de obra. Assim, o Brasil foi regido como uma feitoria escravista, exoticamente tropical, habitada pelos índios nativos e escravos importados da África (RIBEIRO, 1995).

Com efeito, entre a segunda metade do século XVI e o ano de 1850, data oficial da abolição do tráfico negreiro, o número estimado de africanos importados para o Brasil foi de 3,6 milhões de pessoas. Quase um terço da população africana deixava seu continente de origem rumo às Américas (SCHWARCZ, 2001). Um contingente desse vulto alterou os costumes locais, a partir da aculturação daquilo que era trazido pelo corpo do africano escravizado e passava a ser ressignificado na nova terra. O africano somava-se ao índio e ao português possibilitando a formação de uma nova cultura, sincrética em seus hábitos, valores e costumes. A capoeira é um fenômeno dado nesse universo.

As diferentes lutas surgiram a partir do sincretismo de elementos culturais como resposta a contextos histórico-sociais específicos, geralmente associados ao desenvolvimento de técnicas usadas com a finalidade de defesa pessoal. No caso da capoeira - a luta brasileira -, ela surgiu atendendo a uma demanda: uma resposta dos escravos radicados no Brasil contra a escravidão. Era um instrumento útil e eficaz contra os capitães do mato, responsáveis pela captura dos escravos insubordinados que fugiam da servidão e da privação da liberdade. Sobre a origem da capoeira no Brasil, Manoel dos Reis Machado (1899-1974) - o Mestre Bimba3 disse em depoimento na faixa de um disco: “quando os capitães do mato iam pegar os nêgo, entonces, eles atacavam e defendiam-se com pontapé, joelhada, murrada e cabeçada e o golpe com o nome mais conhecido de rabo de arraia”.

Muitas vezes, as lutas ocorriam em campos chamados, na época, de capoeira ou capoeirão. O nome dessa luta teria surgido no Recôncavo Baiano e, acerca do lugar do aparecimento dela, Mestre Bimba - um dos principais protagonistas da capoeira na cidade de Salvador no século XX4 - disse em um debate ocorrido no Brasil a respeito desse assunto: “os negros, sim, eram de Angola, mas a capoeira é de Cachoeira, Santo Amaro e Ilha da Maré, Camarado!” (SODRÉ, 2002, p. 31). Grande parte dos escravizados radicados no Brasil instalou-se nas fazendas do Recôncavo Baiano e presume-se que teria sido nas matas daquela região da Baía de Todos os Santos o lugar onde despontaram os primeiros movimentos da capoeira no Brasil. E em qual espaço? Mestre Bimba relata em um depoimento: “dentro do meu conhecimento, a capoeira nasceu nas senzalas, nos engenhos, onde os negros trabalhavam” (SODRÉ, 2002, p. 31).

Para ele, a capoeira teria surgido nas senzalas, engenhos e quilombos do Brasil escravista no tempo em que os escravizados não realizavam as funções do eito, um período que poderíamos chamar do não trabalho. A capoeira era uma manifestação que proporcionava momentos de socialização, divertimento e ressignificação dos valores da cultura africana na nova terra. A vivência das “técnicas corporais”5, no sentido de Mauss (1950), da técnica como uma aprendizagem cultural, um ato tradicionalmente eficaz transmitido historicamente pela vivência corporal, ao longo dos tempos, mostrava-se útil contra a insubordinação diante do sistema que oprimia os praticantes da capoeira.

Dos movimentos aprendidos a cada geração para se defender da opressão e conquistar a liberdade, o escravo brasileiro inventou a capoeira no chão do Brasil, uma arma corporal criada para o sucesso do escravo brasileiro nas contendas em busca da liberdade. Essa cultura vivenciada e transmitida por meio do corpo atravessou as décadas, dialogando com contextos históricos específicos em cada etapa do Brasil Colônia, Império e a Velha e Nova República, a qual escreveu, amparada nos princípios do direito à cultura trazido pelo Constituição Federal de 1988, um dos capítulos importantes das Políticas Culturais6 no Brasil: o reconhecimento e registro, em 15 de julho de 2008, da roda e do ofício dos mestres de capoeira como patrimônio cultural imaterial brasileiro com o objetivo de salvaguardar esses dois elementos fundamentais, presentes nas diferentes vertentes da capoeira.

Moura (2012) traduz parte dos significados desses patrimônios. A roda é o lugar onde a aprendizagem do jogo da capoeira se realiza, momento sacralizado pelos capoeiristas como um ritual simbólico, histórico e social. Por sua vez, os mestres são reconhecidos como os responsáveis por transmitir o saber dessa prática corporal, que se manifesta por meio do corpo, da música e da oralidade. Nesse sentido, podemos ter a capoeira como um desses traços distintivos criados pelos humanos e que se enreda com o sistema de significados da cultura brasileira, em um primeiro momento; que se internacionaliza, alcançando os cinco continentes, ressignificada pelo seu caráter antropofágico, absorvendo “as sutilezas das culturas locais por onde passa transita entre a tradição e modernidade, se utiliza da memória corporal e da oralidade como forma de sobrevivência” (ABREU; CASTRO, 2009, p. 8).

A roda e o ofício dos mestres de capoeira são dois desses bens produzidos pela cultura nacional escolhidos como objeto de tutela do Estado e demandante de Políticas Públicas, cuja função é preservar e legar às gerações futuras os saberes e os conhecimentos egressos da cultura popular. Passados 109 anos, a capoeira teve ressignificada sua condição: de prática marginal e subversiva da ordem, formalizada como contravenção penal no primeiro Código Penal republicano, para a condição de patrimônio, legado da cultura afro-brasileira herdado da escravidão, convertido em um bem imaterial, na esteira desse projeto de nação que determinado período histórico elegeu ser representativo da brasilidade no cenário internacional.

Nessa direção, podemos acompanhar a observação de Oliveira e Leal (2009) que entendem a capoeira como um fenômeno cultural que se tornou um fenômeno inusitado de representação da identidade nacional às avessas. Carrega o paradoxo de ser uma arte marginalizada pelos diversos projetos sociais e ao mesmo tempo um instrumento incomparável de divulgação da história e cultura brasileira no mundo.

No senso comum, difundiu-se a ideia que foi “a” capoeira reconhecida como patrimônio, mas há aspectos importantes a serem considerados para que possamos inclusive saber os direitos advindos da política cultural de sua salvaguarda. O que o IPHAN reconheceu e registrou em 2008 foi a Roda de Capoeira no Livro das Formas de Expressão (em que serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas) e o Ofício dos Mestres, no Livro dos Saberes, em que serão registrados conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades, ambos como patrimônios imateriais da cultura brasileira.

Em 30 de novembro de 2008, foi assinada a certidão que certifica no Livro de Registro de Formas de Expressão, volume primeiro, do IPHAN o reconhecimento da roda de capoeira como patrimônio cultural imaterial brasileiro. Na folha 9, lê-se:

Registro n. 7. Bem cultural: roda de capoeira. Descrição: A capoeira é uma manifestação cultural presente hoje em todo território brasileiro e em mais de 150 países, com variações regionais e locais a partir de suas modalidades mais conhecidas: as chamadas capoeira angola e capoeira regional. O conhecimento produzido para a instrução do processo permitiu identificar os principais aspectos que constituem a capoeira como prática cultural desenvolvida no Brasil: o saber transmitido pelos mestres formados na tradição da capoeira e como tal reconhecidos pelos seus pares; e a roda onde a capoeira reúne todos os seus elementos e se realiza de modo pleno. A roda de capoeira é um elemento estruturante desta manifestação, espaço e tempo onde se expressam simultaneamente o canto, o toque dos instrumentos, a dança, os golpes, o jogo, a brincadeira, os símbolos e rituais de herança africana - notadamente banto - recriado no Brasil. Profundamente ritualizada, a roda de capoeira congrega cantigas e movimentos que expressam uma visão de mundo, uma hierarquia e um código de ética que são compartilhados pelo grupo. Na roda de capoeira se batizam os iniciantes, se formam e se consagram os grandes mestres, se reiteram práticas e valores afro-brasileiros.

A certidão chama atenção para alguns pontos como a presença da capoeira em todo o território nacional, a capoeira baiana como a hegemônica para pensar a organização do campo mediante a distinção entre as diferentes “modalidades”: a Capoeira Regional, criada pelo Mestre Bimba, em 1918, e o contraponto a esse movimento, com a articulação dos capoeiristas que não se inclinaram às modificações propostas por aquele jovem adulto com seus 19 anos e se identificaram como Capoeira Angola.

Barão (1999) elucida que a “roda de capoeira” é um evento condensador do simbolismo dessa prática. Nela, há vários elementos que dialogam simultaneamente: as vozes dos instrumentos, a voz do coro, as mensagens contidas nos cantos, enfim, elementos que compõem o universo da capoeira. Representa o lugar e o momento da criação do “mundo da capoeira”, em que o tempo cotidiano fica suspenso, a relação espacial é recriada, novas hierarquias são estabelecidas, forma-se, assim, uma nova cosmogonia.

Dourado Silva (2012) enfatiza que a roda, independentemente do segmento de capoeira, é compreendida como um ritual; o jogo como a forma de expressão dos capoeiristas por meio do corpo e da música, que reflete determinado momento da história, com seus sentidos e significados, relacionando tradição e contemporaneidade. Portanto, “este patrimônio cultural imaterial brasileiro se materializa por meio do corpo das pessoas e suas ações com seus objetos” (DOURADO SILVA, 2012, p. 51). A roda de capoeira é um ritual. Se tomarmos os rituais como caminhos importantes para a interpretação da cultura das quais eles são oriundos, poderemos considerá-los como:

[...] manifestações para verificar seu significado social e sua posição ao longo de uma ideologia que tende a negar o tempo. Em outros termos, o domínio dos ritos e das fórmulas paradigmáticas que inventam e sustentam personagens culturais é a esfera daquilo que gostaríamos que estivesse situado ao longo ou mesmo fora do tempo. Daí por que os rituais servem, sobretudo na sociedade complexa, para promover identidade e construir seu caráter. É como se o domínio do ritual fosse uma região privilegiada para se penetrar no coração cultural de uma sociedade, na sua ideologia dominante e no seu sistema de valores. Porque é o ritual que permite tomar consciências de certas cristalizações mais profundas que a própria sociedade deseja situar como seus “eternos” (DAMATTA, 1990, p. 24).

O ritual, aduz o referido autor, é, entre outras coisas, um instrumento privilegiado para expressar coisas e relações já sabidas. Damatta (1990) ainda nos diz que o rito é um elemento privilegiado de tomar consciência do mundo e um veículo básico na transformação de algo natural em algo social, pois, para que essa transformação do natural em algo social ocorra, uma forma qualquer de dramatização é necessária. É pela dramatização que compreendemos as coisas e passamos a enxergar nelas um sentido, vale dizer, como sociais: “[...] é pela dramatização que o grupo individualiza algum fenômeno, podendo, assim, transformá-lo em instrumento capaz de individualizar a coletividade como um todo, dando-lhe identidade e singularidade” (DAMATTA, 1990, p. 31).

O modo básico de realizar tal coisa, essa elevação de um dado infraestrutural à coisa social, é o que chamamos de ritual, cerimonial, festividade etc. O momento extraordinário que permite pôr em foco um aspecto da realidade e por meio disso mudar seu significado quotidiano ou mesmo dar-lhe um novo significado. Tudo o que é “elevado” e colocado em foco pela dramatização é deslocado, e assim pode adquirir um significado surpreendente, capaz de alimentar a reflexão e a criatividade.

O ritual tem, então, como traço distintivo a dramatização, isto é, “a condensação de algum aspecto, elemento ou relação, colocando-o em foco, em destaque” (DAMATTA, 1990, p. 31). Como criações sociais, os rituais são e refletem os problemas e dilemas básicos da formação social que os engendra. Os rituais, desse modo, seriam “maneiras cruciais de chamar atenção para certos aspectos da realidade social, facetas que, normalmente, estão submersas pelas rotinas, interesse e complicações do quotidiano” (DAMATTA, 1990, p. 35).

Sobre a roda de capoeira, é importante notar seu poder de disseminar a Língua Portuguesa pelo mundo, por meio de suas cantigas que não são traduzidas. A música é um dos elementos que diferenciam a capoeira das outras lutas. Pelas suas composições, as histórias são recontadas e memorizadas, transmitindo conhecimento por meio da oralidade. Assim, a capoeira se corporifica e toma forma em um de seus elementos fundantes para essa prática corporal de resistência de um povo, a roda de capoeira; nela, a música, o canto, o jeito de jogar/dançar/lutar fecundam-se, avolumam-se e transcendem para seus praticantes. Em razão dessa prática, os velhos mestres são lembrados e imortalizados. O canto, o toque e a palma são fundamentais na composição da roda e da cultura dessa prática corporal.

O que significa a roda de capoeira? Para Tavares (2012), existiria um ethos místico. No espaço circular denominado roda, há uma redução do mundo cósmico e dentro dela seria possível implementar todo o nosso potencial, de maneira que pudéssemos reconstruir nossas “baterias energéticas” em um entrelaçamento com a ancestralidade geradora da prática e da cultura. A roda, de acordo com Tavares (2012), é um espaço da vida cotidiano que materializa uma energia canalizada pela rítmica do berimbau e pelos corpos em movimento. A roda, para o autor, seria esse espaço-lugar para a vivência pela diversidade dos códigos dos escravos Bantus transubstanciados no Brasil, mantendo a motricidade centrada nos quadris. Outro aspecto é o axé: energia, em Yorubá, desencadeada por intermédio “do berimbau na sua ritmada batida e que, por ele, fazem navegar, pela via do rito, os incorporáveis, agenciadores do transe corpóreo, da energização e da eletrização do corpo” (TAVARES, 2012, p. 95).

Nessa linha de pensamento, a roda de capoeira é um ritual para celebrar a diversidade humana. Enquanto fora dela os humanos são hierarquizados a partir de critérios assentados em raça, gênero, padrões de normalidade ou valores econômicos, a roda de capoeira é uma forma de vivenciar um mundo destituído desses padrões hierarquizantes e critérios de superioridade humana. A capoeira que surgiu da experiência do negro escravizado pelo discurso da superioridade racial construído pelo branco oferece como resposta ao mundo esse ritual em que todos(as) têm importância e dirime as diferenças por meio da confraternização entre os humanos irmanados pelo jogo da capoeira.

Presentes no Brasil inteiro, as rodas em suas cidades dialogam com os significados que as sociedades atribuem a essa prática. Conhecê-las é uma forma de enveredar pela interpretação do universo simbólico, avançar com relação ao senso comum, saber o que representam, como se organizam, o que cantam, o que expressam, são possibilidades que enriquecem e diversificam os conteúdos que a escola ensina. Por possibilitarem uma leitura da vida social e da história do País, as escolas não podem prescindir de ensinar sobre as rodas de capoeira.

Também em 2008, foi registrado no Livro dos Saberes, volume 1, do IPHAN o ofício dos mestres de capoeira como bem cultural, como se lê na descrição da certidão:

A capoeira é uma manifestação cultural presente hoje em todo o território brasileiro e em mais de 150 países, com variações regionais e locais criadas a partir das suas modalidades mais conhecidas: as chamadas “capoeira angola” e “capoeira regional”. O conhecimento produzido para a instrução do processo permitiu identificar os principais aspectos que constituem a capoeira como prática cultural desenvolvida no Brasil: o saber transmitido pelos mestres formados na tradição da capoeira e como tal reconhecido pelos seus pares; e a roda onde a capoeira reúne todos estes elementos e se realiza de modo pleno. O ofício dos mestres de capoeira é exercido por aqueles detentores dos conhecimentos tradicionais desta manifestação e responsáveis pela transmissão oral de sua prática, rituais e herança cultural. O saber da capoeira é transmitido de forma oral e gestual, de forma participativa e interativa, nas rodas, ruas e academias, assim como nas relações de sociabilidade e familiaridade entre mestres e capoeiristas.

Pode-se extrair do texto que mestre é quem transmite o saber da capoeira tanto em âmbitos formais, idealizados para tal, quanto em relações de proximidade estabelecidas entres mestres e discípulos, aqueles(as) que darão continuidade ao legado do mestre que cada qual acompanha. Talvez por isso as discussões de capoeira tornam-se, às vezes, acaloradas: elas tocam sentimentos de pertencimento e identidade.

Abib (2017) entende que a figura do mestre é fundamental no seio de uma cultura na qual a transmissão do saber passa pela via da oralidade, e, por essa razão, depende desses guardiões da memória coletiva para que ela seja preservada e oferecida às novas gerações. O mestre é aquele reconhecido por sua comunidade como o detentor de um saber que encarna as lutas e os sofrimentos, as alegrias e as celebrações, as derrotas e as vitórias, o orgulho e o heroísmo das gerações passadas, e deveria - o que nem sempre ocorre - ter a missão quase religiosa de disponibilizar esse saber àqueles que a ele recorrem: “o mestre corporifica, assim, a ancestralidade e a história de seu povo” (ABIB, 2017, p. 96).

Fonseca (2013) destacou a importância do mestre de capoeira como figura norteadora das relações desse universo. Ao serem identificados como os detentores da verdadeira tradição, são reconhecidos como líderes do grupo do qual que fazem parte e que organizam. Segundo a autora, esse movimento foi possibilitado pela maior valorização da ideia presente, ao que tudo indica, a partir da institucionalização das escolas baianas de capoeira nos anos 30 do século passado, quando a capoeira passa a ser ensinada em locais fechados, por meio de métodos de ensino. Esse processo gerou uma institucionalização e hierarquização no interior da capoeira, na qual a figura do mestre configura-se como a representação maior em virtude de toda a sua experiência e vivência na capoeira. Esse momento ressignificou a ideia de mestre: com a criação de uma escola, com professor e alunos, o mestre passa a ser a figura norteadora das relações na capoeira: “Mais do que um líder, ele aparece não só como pessoa que adquiriu determinadas habilidades e experiências, e sim como o principal responsável pela formação moral dos outros capoeiristas, e pelos atos dos seus discípulos” (FONSECA, 2013, p. 159).

Uma das ações previstas em decorrência da salvaguarda do ofício dos mestres é pensar a recomendação das seguintes medidas de salvaguarda (são seis, mas três relacionam-se diretamente à figura do mestre): 1) o reconhecimento do notório saber do mestre de capoeira pelo Ministério da Educação (MEC), como patrimônio cultural do Brasil, a partir do qual se espera favorecer sua desvinculação obrigatória do Conselho Federal de Educação Física, ao qual a capoeira está subordinada. Entende-se que o saber do mestre não possui equivalente no aprendizado formal do profissional de Educação Física, e sim se estabelece como acervo da cultura popular brasileira. Dessa forma, espera-se contribuir para que mestres de capoeira sem escolaridade, mas detentores do saber, possam ensinar capoeira em colégios, escolas e universidades. É recomendado que essa proposta seja de implantação imediata; 2) plano de previdência especial para os velhos mestres de capoeira, um dos pontos mais abordados durante os encontros de capoeira como patrimônio imaterial do Brasil. Diante de um histórico de mestres importantes, como Bimba e Pastinha, entre outros, que morreram em sérias dificuldades financeiras, sugere-se elaborar, com a Previdência Social, um plano especial para mestres acima de 60 anos que tenham encontrado dificuldades de contribuir com a entidade ao longo dos anos. Como justificativa, reconhece-se a contribuição do velho mestre de capoeira para difusão da cultura brasileira. Como se trata de uma ação de emergência, que busca acolher os mestres atuais que vivem em absoluto estado de carência, recomenda-se que essa proposta tenha implantação imediata e perdure até que os mestres vindouros possam dispensar essa ação de salvaguarda e; 3) Banco de Histórias de Mestres de Capoeira, que pretende oferecer oficinas de história oral para capoeiristas interessados em registrar as trajetórias de vida de mestres antigos de capoeira. O objetivo é que esse Banco de Histórias possa alimentar e fazer parte do Centro Nacional de Referências da Capoeira (IPHAN, 2007, p. 94-95).

Essas medidas visam favorecer os “velhos mestres”. Portadores dos saberes acumulados e de suas condições existenciais, eles e elas merecem toda a nossa reverência e respeito, não apenas por questões éticas e humanas, mas com o intuito de preservar as tradições e a transmissão da cultura; são eles, portanto, os recordadores desses saberes (ARRUDA, 2015). Na mesma linha da roda, as escolas não devem prescindir dos ensinamentos dos velhos mestres de capoeira à custa de estarem perdendo rico acesso à história e cultura do seu povo.

3 A CAPOEIRA NA ESCOLA: LEGISLAÇÃO E ORIENTAÇÃO CURRICULAR

Na escola, a capoeira é, de alguma forma, subordinada aos valores que orientam as instituições de ensino. No ano de 2003, foi sancionada a Lei 10.639/2003, a qual altera os artigos 26 e 79 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e torna obrigatória a inclusão do ensino da História da África e Cultura Afro-Brasileira nos currículos das escolas públicas e particulares dos ensinos fundamental e médio de todo o território nacional. Compreendida como fruto das lutas históricas, tal legislação constitui uma política pública de suma importância para a promoção da equidade em âmbito educacional, sendo, portanto, fundamental que esteja no currículo do ensino básico (BENEDITO, 2018).

A lei prescreve que as ações pedagógicas devem dar conta do estudo da História da África e dos africanos, da luta dos negros no Brasil, da cultura negra brasileira e do negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. A Lei 10.639/2003 é um marco do ponto de vista jurídico. Pela primeira vez, o Estado brasileiro assume, por intermédio de uma lei, que a educação necessita de uma regulamentação para reconhecer e valorizar os antepassados de metade de sua população. Trata-se de uma política de ação afirmativa que trouxe para os sistemas de ensino novas demandas para serem inseridas no currículo. Ainda sobre sua implementação:

Passados mais de 10 anos desta Lei, o que constatamos é que muitas redes de ensino ainda não implementaram o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nos planos municipais de educação, na formação continuada dos docentes e no trabalho cotidiano do currículo praticado nas escolas. Isso significa dizer que, apesar da conquista de marcos legais, a escola que a população negra conhece ainda é uma escola que tem negado a sua existência, orientada pelo esquecimento e pela invisibilidade dessa população (DE SOUZA; REIS DOS SANTOS; EUGÊNIO, 2014, p. 179).

As escolas, espaços institucionalizados para a transmissão dos conhecimentos produzidos e acumulados pela humanidade, nem sempre reconheceram aquilo que advém da cultura afro-brasileira como um saber legítimo. Com efeito, aqueles(as) professores(as) que, em seu processo formativo, prescindiram da riqueza desses saberes tornaram-se menos familiarizados(as) e menos à vontade para abordá-los no cotidiano da escola. Responsáveis por transmitir aquilo é produzido e legado pela cultura humana, as escolas que, em tese, seriam os espaços adequados para perpetuação desses saberes, uma vez que todo(a) cidadão(ã) deve frequentá-la, não necessariamente têm suas ações articuladas com aquilo que a sociedade, na qual ela está radicada, tem guardado como parte de seu patrimônio.

Melo (2011) cita a Educação Física como uma importante aliada para a entrada da capoeira no ambiente escolar, tendo em vista sua relação com a cultura corporal. Logo, a escola não pode deixar de contemplar a prescrição curricular de tematizar a cultura afro-brasileira amparada na Lei 10.639/2003. No entanto, entre a proposição dos conteúdos dessa natureza e sua efetivação no “chão da escola”, há um hiato que instiga a desvendar por que essa lei tem dificuldade de ser implementada no Brasil. Reportamo-nos a Gomes (2008) que chama atenção para as dificuldades relatadas nesse processo. Primeiro, esbarra-se nas resistências da gestão escolar que, pela ação ou omissão, cria barreiras no cotidiano escolar. O segundo empecilho identificado é a formação docente no que tange às temáticas propostas pela lei; por isso os cursos de Licenciaturas devem fomentar uma formação que introduza as temáticas relacionadas à história da África e dos africanos nos diversos componentes curriculares. O terceiro ponto surge da escassez de materiais didáticos que tratem do tema. Embora desproporcionais entre as áreas do conhecimento, têm obtido poucos êxitos nas áreas das humanidades e linguagens. A autora assinala o fato de que ainda há muitas resistências de secretarias estaduais, municipais, escolas e educadores(as) à introdução das discussões embasadas na Lei 10.639/2003.

Contrariando a obrigatoriedade da Lei 10.693/2003, diversas escolas não incluíram em seus currículos diretrizes específicas que envolvam práticas pedagógicas com viés de linguagens de matriz africana. As ações pedagógicas voltadas para a tematização da cultura afro-brasileira geralmente se restringem ao mês de novembro, mais especificamente ao dia 20, data que faz menção ao Dia da Consciência Negra. Posturas dessa natureza fazem com que a comunidade escolar veja sua própria cultura como folclorizada, mesmo quando nos referimos à capoeira, cultura viva no Brasil e fora dele. Lima (2015) denomina essa atitude como ativação do “Currículo de Turista”, pois somente é utilizado em um momento, depois volta-se tudo ao que era, ou seja, na maior parte do ano letivo a temática é silenciada. Vale ressaltar que essas manifestações citadas devem ser apresentadas sempre com uma contextualização, e não somente em apresentação artística e performática, pois isso, de certa forma, tende a empobrecer essas artes corporais na qualidade de cultura.

Diante desse debate da legitimação da capoeira nas escolas brasileiras e de todos os sentidos e significados de sua abordagem como contribuinte para uma formação integral dos alunos, podemos citar a contribuição da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (MEC, 2017) para esse cenário. Analisando as Competências Específicas de Educação Física, observamos outros contextos em que o conteúdo capoeira pode ser utilizado no processo de aprendizagem. Algumas dessas competências a serem desenvolvidas são:

Identificar as formas de produção dos preconceitos, compreender seus efeitos e combater posicionamentos discriminatórios em relação às práticas corporais e aos seus participantes.

Interpretar e recriar os valores, os sentidos e os significados atribuídos às diferentes práticas corporais, bem como aos sujeitos que delas participam.

Reconhecer as práticas corporais como elementos constitutivos da identidade cultural dos povos e grupos.

Tais passagens do documento sugerem-nos o amplo espaço que a capoeira pode e deve ocupar no ambiente escolar dentro das aulas de Educação Física, pois reiteramos que os debates acerca desse conteúdo vão além de uma prática corporal dentro da unidade de Lutas. Podemos confirmar isso quando analisamos outros campos desse documento que abrem espaço para a tematização da capoeira no ambiente escolar, inclusive extrapolando abordagem dentro da disciplina da Educação Física.

Analisando as Competências Gerais da Educação Básica, podemos citar diversas passagens que justificam a utilização do conteúdo capoeira como produtor de conhecimento para nossos alunos:

Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.

Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural (MEC, 2017, p. 9).

São diretrizes como as supracitadas que fortalecem a necessidade de uma ampliação de uso da capoeira no ambiente escolar para atingir diversos objetivos relacionados a questões históricas e sociais. A BNCC, que faz um papel de currículo mínimo para as escolas públicas e privadas no território nacional, menciona a capoeira como conteúdo a ser contemplado dentro da unidade temática Lutas, que está organizada em lutas brasileiras e lutas de outros países do mundo.

Nesse primeiro aspecto podemos evidenciar a importância dada à capoeira ao ser citada, ganhando assim mais visibilidade, quando comparada a outras manifestações que podem ser contempladas pelos professores de Educação, mas não aparecem no documento: “Dessa forma, além das lutas presentes no contexto comunitário e regional, podem ser tratadas lutas brasileiras (capoeira, huka-huka, luta marajoara etc.)” (MEC, 2017, p. 216).

Apesar de essa ser a única menção direta à abordagem da capoeira dentro dos documentos da BNCC do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, não significa que o conteúdo pode ser utilizado apenas dentro dessa unidade temática das lutas, pois, dessa maneira, a capoeira apareceria somente nas aulas de Educação Física do 3.º ao 5.º ano do Ensino Fundamental I e nos 6.º e 7.º anos do Ensino Fundamental II.

A partir da orientação curricular, o que os alunos aprenderão sobre capoeira? Nada muito preciso. Apenas que se deve tratar a capoeira como parte das lutas brasileiras. O quê? Como? Por quê? São questões que ficam sem resposta. Ainda que esse documento tenha sido materializado quase uma década após o reconhecimento da roda e do ofício dos mestres como patrimônio, há um total silêncio, o que denota uma total desarticulação desse processo. Neira (2011) faz um exercício de proposição para que a Educação Física escolar busque trabalhar a partir de uma perspectiva multicultural, valorizando e reconhecendo a diversidade. Nesse sentido, a capoeira tem grande potencial nos debates de combate à opressão, ao preconceito, ao status social e à valorização das diferenças.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste ensaio, pudemos discutir como a capoeira se constituiu como manifestação cultural construída historicamente pelo povo africano em terras brasileiras, destacando a valorização de seus elementos Roda de Capoeira e Ofício dos Mestres reconhecidos como patrimônio cultural imaterial da humanidade. A partir desse reconhecimento em âmbito nacional e até mesmo de sua internacionalização difundindo a cultura afro-brasileira pelo mundo, lançamos um olhar para a apropriação da capoeira dentro do ambiente escolar.

Diante do exposto neste trabalho, pudemos constatar que há um distanciamento entre o que é valorizado culturalmente e reconhecido como patrimônio cultural nacional e o que é difundido no cotidiano escolar brasileiro, o que consideramos um equívoco. Apoiados em Saviani (2005), entendemos que a escola deveria ser um espaço de difusão e transmissão desse patrimônio cultural nesse percurso de formação do indivíduo.

Apesar de reconhecermos os avanços legais cujo objetivo é potencializar a presença desses conhecimentos culturais, como é o caso da capoeira, isso não tem se materializado no chão da escola de maneira ampla e satisfatória. Citamos a Lei 10.639/2003 e a BNCC como políticas educacionais que buscam expandir a abordagem de temáticas como a capoeira e o reconhecimento da cultura afro-brasileira dentro de nosso currículo. Entretanto, ainda não tem sido suficiente para que os alunos de escolas públicas e privadas se aproximem da capoeira e do debate de reconhecimento cultural, principalmente relacionados a manifestações culturais advindas dos povos de países africanos.

Esse panorama nos revela um longo caminho ainda a seguir no que tange ao reconhecimento cultural da capoeira como tema relevante na Educação Física e na escola. Entendemos que as políticas educacionais precisam construir um percurso linear de aplicação da Lei 10.639/2003 e da BNCC, oferecendo formação aos professores, coordenadores, diretores, entre outros agentes educacionais, bem como garantir a contemplação desses debates nos livros didáticos que chegam aos nossos alunos. Ademais, elas devem acompanhar e fiscalizar o cumprimento da abordagem desses temas nas escolas brasileiras.

Sugerimos ainda que estudos sejam realizados para entender e discutir como a capoeira vem sendo abordada no ambiente escolar e que experiências exitosas de escolas e professores possam ser compartilhadas a fim de motivar e elucidar a potencialidade desse conteúdo, alinhado aos valores que orientam a instituição educacional: a transmissão do patrimônio humano chamado cultura. Esses são desafios que devem ser enfrentados para que a capoeira faça parte dos saberes ensinados pela escola, favorecendo a diversificação de seus conteúdos.

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NOTAS:

1 São eles: Oficio das Paneleiras de Goiabeiras, Arte Kusiwa Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi, Círio de Nossa Senhora de Nazaré, Samba de Roda do Recôncavo Baiano, Modo de Fazer Viola-de-Cocho, Oficio das Baianas de Acarajé, Jongo no Sudeste, Cachoeira de Iauaretê Lugar Sagrado dos Povos Indígenas dos Rios Uaupés e Papuri, Feira de Caruaru, Frevo, Tambor de Crioula, Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo, Modo de Fazer Queijo de Minas, nas regiões do Serro e das Serras da Canastra e do Salitre, Roda de Capoeira, Ofício dos Mestres de Capoeira, Modo de Fazer Renda Irlandesa produzida em Divina Pastora (SE), Toque dos Sinos de Minas Gerais e Ofício de Sineiros.

3 O protagonismo do Mestre Bimba se deve ao fato de ele ter inovado o ensino da capoeira naquele contexto ao criar uma metodologia para o ensino da capoeira, denominada “Luta Regional Baiana”. Foi assim chamada por ter surgido em certa região da Bahia: sua capital, Salvador.

4 Mestre Bimba (Manoel dos Reis Machado, 1899-1974), um dos principais protagonistas da capoeira na cidade de Salvador nas décadas iniciais do século XX.

5 “Chamamos de técnica um ato tradicional eficaz (e vejam que, nesse sentido, não difere do ato mágico, religioso, simbólico). É preciso que seja tradicional e eficaz. Não há técnica, tampouco transmissão, se não há tradição. É nisso que o homem se distingue sobretudo dos animais” (MAUSS, 1950, p. 407).

6 Entendemos Política Cultural no sentido de Calabre (2009), como um conjunto de ações elaboradas e implementadas de maneira articulada pelos poderes públicos, pelas instituições civis, pelas entidades privadas, pelos grupos comunitários dentro do campo do desenvolvimento do simbólico, visando satisfazer as necessidades culturais do conjunto da população mediante a proposição, por parte do Estado, de políticas públicas que valorizem a dimensão cultural garantindo, apoiando e incentivando diferentes manifestações.

Recebido: 30 de Junho de 2021; Aceito: 19 de Setembro de 2021

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