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Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.20 no.3 São Paulo July/Sept 2022  Epub Jan 02, 2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2022v20i3p1215-1242 

Artigos

Questões de gênero em uma experiência de educação integral:o currículo da cidade e o dispositivo da infantilidade

Gender questions in an experience of integral education:the curriculum of the city and the device of childhood

Cuestiones de género en una experiencia educativa integral:el currículo de la ciudad y el depositivo infantil

Pollyanna Regina Batista de SOUZAi 
http://orcid.org/0000-0003-4628-7214

Maria Carolina da Silva CALDEIRAii 
http://orcid.org/0000-0003-0668-1989

i Mestra em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: pollyrbs@yahoo.com.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-4628-7214.

ii Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: mariacarolinasilva@hotmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-0668-1989.


Resumo

Considerando que as cidades têm um currículo, este artigo objetiva analisar questões de gênero identificadas em uma pesquisa que investigou um grupo de crianças em uma experiência de educação integral que tem como característica que seus/suas participantes saiam do espaço escolar: o Programa Escola Integrada. Com base na perspectiva pós-crítica de currículo, o artigo mostra como o dispositivo da infantilidade (que, desde o início da Modernidade, tem produzido sujeitos infantis) entra em conflito com questões relativas ao gênero, demandando posições de sujeito diversas para os/as participantes do Programa. Utilizando elementos da etnografia educacional e da análise de discurso foucaultiana, o artigo mostra como normas e ditos de gênero atuam nesse currículo, de maneira a definir e nomear performances como femininas e masculinas e como adequadas ou não à vivência na infância.

Palavras-chave: gênero; currículo da cidade; dispositivo da infantilidade; educação integral.

Abstract

Considering that cities have a curriculum, this article aims to analyze gender issues identified in a survey that investigated a group of children in a integral education experience that has the characteristic that its participants leave the school space: the Programa Escola Integrada (Belo Horizonte/MG). Based on the post-critical perspective of curriculum, the article shows how the device of childishness (which, since the beginning of Modernity, has produced childish Subjects) conflicts with issues related to gender, demanding different subject positions for Program participants. Using elements of educational ethnography and Foucault's discourse analysis, the article shows how gender norms and sayings act in this curriculum, in order to define and name performances as feminine and masculine and as adequate or not to the experience in childhood.

Keywords: gender; city curriculum; device of childhood; integral education.

Resumen

Considerando que las ciudades tienen un currículo, este artículo tiene como objetivo analizar las cuestiones de género identificadas en una encuesta que investigó a un grupo de niños en una experiencia de educación integral que tiene la característica de que sus participantes abandonan el espacio escolar: el Programa Escola Integrada (Belo Horizonte/MG). Partiendo de la perspectiva poscrítica del currículo, el artículo muestra cómo el dispositivo de la puerilidad (que, desde los inicios de la Modernidad, ha producido sujetos infantiles) entra en conflicto con cuestiones relacionadas con el género, exigiendo diferentes posiciones temáticas para los participantes del Programa. Utilizando elementos de la etnografía educativa y el análisis del discurso de Foucault, el artículo muestra cómo las normas y dichos de género actúan en este currículum, para definir y nombrar las representaciones como femeninas y masculinas y adecuadas o no a la experiencia en la infancia.

Palabras clave: género; currículo de la ciudad; dispositivo infantil; educación integral.

1 INTRODUÇÃO

As cidades são espaços onde vivemos experiências importantes de nossas vidas. Nelas, podemos aprender e ensinar modos de ser e de viver. Esses aprendizados são demandados a partir da forma como nos relacionamos com os objetos, as pessoas e os locais que frequentamos. Apesar desses aprendizados nas cidades não obedecerem a uma lógica curricular de organização de tempos e de espaços, como acontece nas instituições de ensino-aprendizagem, adotamos para a escrita deste texto a perspectiva teórica dos estudos culturais de que um currículo se caracteriza, também, pela possibilidade de nos fazer criar sentidos para os diferentes objetos do mundo (PARAÍSO, 2004). Assim, entendemos que as cidades possuem currículos, já que são espaços construídos em meio a disputas e alianças, pensados a partir de políticas públicas e [impensados] no desenrolar de práticas do cotidiano e em meio às mais variadas relações de poder-saber.

Se aprendemos nas e pelas cidades, podemos dizer que o currículo da cidade é um artefato cultural. De acordo com Silva (2015, p. 140), do ponto de vista pedagógico e cultural, um artefato cultural, “não se trata simplesmente de informação ou entretenimento: trata-se, em ambos os casos, de formas de conhecimento que influenciarão o comportamento das pessoas de maneiras cruciais e até vitais”. Como artefato cultural, a cidade é lugar de encontros, de observação, de contato humano. É local propício a experiências de todos os tipos. É um espaço em que se definem formas de viver como mais ou menos adequadas. As dinâmicas que acontecem em uma cidade podem acionar sentimentos e modos de agir consigo mesmo e com os/as outros/as; nos permitem aprender e nos colocam a pensar acerca de nós mesmos/as para nos constituirmos no mundo, ao passo que o mundo também é constituído por nós.

Esses modos de ser aprendidos pelas pessoas diante de suas vivências nas cidades podem ser compreendidos a partir do conceito de modos de subjetivação, com base em uma perspectiva foucaultiana. Partindo dessa lente teórica, modos de subjetivação podem ser entendidos como os diferentes processos que produzem o sujeito “de acordo com determinadas categorias históricas e culturais. Algo que varia, portanto, no tempo e no espaço” (GALLO, 2012, p. 204). De acordo com Foucault (2004, p. 275), o sujeito é uma forma que não é igual a nenhuma outra, pois, “há, indubitavelmente, relações e interferências entre essas diferentes formas de sujeito”.

Espera-se, assim, que as pessoas tenham determinados comportamentos quando estão na(s) cidade(s), uma vez que os lugares exigem certas maneiras de vestir, de falar e de se comportar e quem não se adequa a essas disposições está sujeito/a a uma norma que suscita barreiras invisíveis e nomeia os diferentes. Segundo Foucault (2014), a norma é o modo pelo qual se exerce a disciplina e sempre tem um objetivo. Ela também define estratégias disciplinares que, por sua vez, velam “sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos” (FOUCAULT, 2014, p. 35). A norma é “uma determinada maneira de administrar a multiplicidade, de organizá-la” além de “estabelecer seus pontos de implantação, as coordenações, as trajetórias laterais ou horizontais, as trajetórias verticais e piramidais, a hierarquia, etc” (FOUCAULT, 2008a, p. 16). A norma impõe certas condutas que, em diferentes contextos, produzem indivíduos para responder a uma sociedade de determinado tipo.

No entanto, por serem muitas as normas a que estamos submetidos/as, elas podem ser conflitantes. Por esse motivo podemos dizer que não existe um único modo de ser peculiar para uma cidade, que é diversa tanto no que se refere aos elementos materiais que a compõem, quanto aos seus elementos imateriais. A maneira com que se age de acordo com as funções dos espaços da cidade pode ser entendida como uma “intersecção entre uma multiplicidade de indivíduos que vivem, trabalham e coexistem uns com os outros num conjunto de elementos materiais que agem sobre eles e sobre os quais eles agem de volta” (FOUCAULT, 2008a, p. 29). Neste artigo, interessa-nos, particularmente, analisar como as questões de gênero se articulam ao dispositivo de infantilidade na interação de um grupo de crianças com a cidade. Gênero é entendido como a “teoria explicativa dos processos históricos e culturais de construção do masculino e feminino que, se pode dividir, normalizar e hierarquizar, também pode abrir brechas, acolher as diferenças e multiplicar as possibilidades” (PARAÍSO; CALDEIRA, 2018, p. 14).

O objetivo deste artigo é, então, analisar modos de subjetivação generificados que foram acionados em um currículo da cidade vivenciado por um grupo de 37 crianças organizadas em uma experiência de educação integral. Os modos de subjetivação generificados eram produzidos por meio das normas de gênero presentes na sociedade e que organizavam o programa investigado, como a escolha das atividades e as regras para os deslocamentos na cidade; pelas narrativas que compõem as ações de combate à violência contra a mulher e por questões de performatividades corporais contemporâneas de meninas-mulheres e meninos-homens. As informações que subsidiam este artigo foram produzidas em uma pesquisa de mestrado realizada entre os anos de 2018 e 20201.

É preciso entender que, devido à sua complexidade, uma cidade, qualquer uma, é composta de variados fragmentos. A partir dessa compreensão, delimitamos como fragmento do currículo da cidade investigado, aquele vivido por um grupo de crianças entre 6 e 10 anos de idade, organizadas pelo Programa Escola Integrada (PEI), na dinâmica de trajeto que faziam da escola até um espaço alugado para o desenvolvimento de algumas oficinas do programa. Sendo assim, o argumento que norteia a escrita deste texto é o de que o currículo da cidade é um campo em que ocorrem práticas culturais diversas que colaboram na produção de sujeitos generificados e na forma como esses sujeitos significam essas práticas.

No item a seguir, discutimos o conceito de dispositivo da infantilidade como a principal ferramenta teórica utilizada para analisar os eventos observados em campo. Este conceito se vincula aos estudos foucaultianos que tratam sobre a produção dos sujeitos nos mais variados contextos e, no caso da pesquisa que subsidia este artigo, o utilizamos para compreender a produção dos sujeitos infantis em uma experiência de educação integral que tem como característica interagir com a cidade. Após esse tópico, apresentamos algumas características gerais de como se organiza a modalidade de Educação Integral no Brasil e contextualizamos a Escola Integrada. Para analisar as informações produzidas em campo, consideramos importante compreender a estrutura desse programa educacional, uma vez que foi por meio dele que pudemos acompanhar e investigar esse grupo de crianças. Nesse tópico também apresentamos a metodologia empregada para produzir as informações da pesquisa e contextualizamos os sujeitos e os espaços onde ocorreu a investigação. No tópico seguinte, apresentamos as questões de gênero que percebemos no grupo investigado em suas aproximações e distanciamentos com o dispositivo da infantilidade. Finalizamos o texto apresentando algumas considerações sobre o currículo da cidade como um dos elementos que produzem os sujeitos infantis na contemporaneidade e, também, sobre a importância de se investigar aspectos de construção de subjetividades nos programas de educação integral no Brasil.

2 DISPOSITIVO DA INFANTILIDADE E GÊNERO COMO LENTES TEÓRICAS PARA COMPREENDER UM CURRÍCULO DA CIDADE

O referencial teórico escolhido para o desenvolvimento da pesquisa se ampara, substancialmente, nos conceitos de Michel Foucault que nos ajudam a compreender a produção dos sujeitos nos mais variados contextos (FOUCAULT, 1995). Esse autor defende que discursos diversos atravessam os seres humanos e os posicionam de diferentes maneiras nas relações de poder nas quais eles se inserem. Cabe lembrar que um discurso se apresenta como “as práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 2008b, p. 55). Essas práticas acontecem em instâncias variadas e têm relação com os mais diversos saberes e instituições presentes na sociedade, compondo os mais variados dispositivos.

Foucault (2015, p. 364) explica que um dispositivo diz respeito a “um conjunto decididamente heterogêneo” e reúne “discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas”. Para esse autor, um dispositivo tem como função principal, em determinado contexto histórico, “responder a uma urgência” (FOUCAULT, 2015, p. 365). No caso do dispositivo da infantilidade, conforme explica Corazza (2004), o infantil é uma invenção que visou responder à urgência de inserir na sociedade alguém que um dia vai participar de suas relações de produção. Foi necessário, então, criar nas instituições, nas ciências, nos espaços sociais e em artefatos culturais diversos, lugares para produzir o sujeito infantil. Caldeira (2016, p. 31) defende que o dispositivo da infantilidade, em articulação com outros elementos, “tem produzido sujeitos infantis ao longo da Modernidade e continua demarcando, qualificando, definindo e diferenciando o infantil”.

Ainda de acordo com Caldeira (2016, p. 33), “o dispositivo da infantilidade opera [...] não apenas para produzir infantis, mas também para inseri-los/as em relações de poder nas quais a vida adulta é apresentada como norma”. O poder que age sobre os/as infantis “produz saberes e também posições de sujeito a serem ocupadas tanto pelos/as infantis como pelos/as adultos/as que devem, a partir de então, cuidar deles/as” (CALDEIRA, 2016, p. 33). Entendemos que a infância, conforme a conhecemos na atualidade, se produz mediante diversos elementos, ou seja, é efeito de um “conjunto decididamente heterogêneo” (FOUCAULT, 2015, p. 365) que abarca saberes, instituições e discursos, incluindo o currículo da cidade, o que oportuniza as mais variadas relações de poder.

Para Foucault (1995, p. 242), as relações de poder são “um conjunto de ações que se induzem e se respondem umas às outras” e que influenciam nos comportamentos das pessoas. A atuação do poder produz sujeitos de diferentes tipos, ao dividi-lo “no seu interior e em relação aos outros” (FOUCAULT, 1995, p. 231). É o poder que enquadra o sujeito em determinada subjetividade e que, a depender do contexto em que vive, inclui ou exclui nas mais variadas instâncias que ele participa. É dessa maneira que se separa o normal do anormal, o são do louco, o homem da mulher, o/a adulto/a da criança, dentre outros exemplos. Com relação ao currículo da cidade, partimos do pressuposto que as diferentes relações de poder que ocorrem nas dinâmicas na/com a cidade produzem e demandam modos de ser sujeito porque, como afirma Foucault (2015, p. 284), “aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursos e desejos sejam identificados e constituídos como indivíduos é um dos primeiros efeitos de poder”.

No que se refere à produção dos sujeitos a partir das normas de gênero que integram as relações de poder da sociedade, entendemos que o “gênero é uma identidade instituída por meio de uma identidade estilizada de atos” (BUTLER, 2018, p. 3). Esses atos acabam por ser representados socialmente como artefatos tidos como para homens e mulheres, se considerar “tanto aquilo que constitui o significado quanto o modo como o significado é performado e atua” (BUTLER, 2018, p. 4). Esses significados não estão relacionados apenas às formas pelas quais os corpos podem se apresentar culturalmente, mas também aos locais que esses corpos frequentam ou as atividades que desempenham. Algumas relações de poder na sociedade, por exemplo, atuam generificadamente de modo a fazer com que as pessoas identifiquem profissões e hobbies como adequadas para o gênero feminino ou para o gênero masculino, o que oportuniza situações de repulsa às diferenças e limitações de possibilidades, incluindo as possibilidades de viver.

Ao pensarmos nos mecanismos do dispositivo da infantilidade que ensejam relações de poder que conformam as crianças como o Outro dos/as adultos/as, a questão do gênero torna-se de grande relevância. Louro (2008) explica que, durante muito tempo, o sexo biológico foi utilizado para definir corpos nomeados como femininos ou masculinos. Essa concepção de gênero baseada no sexo biológico das pessoas tende a circunscrever as questões de gênero apenas a situações que envolvem a relação entre corpos. Contudo, se operarmos com a lógica binária de que o gênero se refere a certos atos ou situações que são adequados para corpos femininos ou masculinos, com base no sexo biológico dos indivíduos, as crianças podem ser privadas de muitas experiências formativas.

Apesar de gênero e sexualidade serem conceitos distintos, eles estão imbrincados e, muitas vezes, podem ser vistos operando juntos em determinadas práticas. O conceito de sexualidade ganhou grande repercussão a partir dos estudos de Freud, que defendia que os instintos sexuais são presentes ainda na infância. Freud “quis mostrar que as sensações corporais experimentadas pelo bebê poderiam ser muito prazerosas, mas este prazer era [...] atravessado pela dor, uma presença marcada pela ausência de quem lhe dispensava cuidados, usualmente a mãe” (WALKERDINE, 1999, p. 83). Corporalmente, “as primeiras sensações de prazer da criança estão já marcadas pelas fantasias inerentes à presença ou ausência do Outro” (WALKERDINE, 1999, p. 83).

Em um sentido comum e popular, a “sexualidade é considerada sinônimo de genitalidade assim como a vida sexual é tida como equivalente à relação sexual” (BEARZOTI, 1994, p. 3). Na perspectiva da psicanálise, todavia, pode-se conceituar a sexualidade como “a energia vital instintiva passível de variações” e que está “vinculada à homeostase, à afetividade, às relações sociais, às fases do desenvolvimento da libido infantil, ao erotismo, à genitalidade, à relação sexual, à procriação e à sublimação” (BEARZOTI, 1994, p. 5). Na perspectiva adotada neste artigo, entendemos sexualidade como “vivências de sensações, desejos e prazeres que, se podem imprimir sofrimentos e exclusões, do mesmo modo podem desencaixotar emoções e fazer tremer os controles” (PARAÍSO; CALDEIRA, 2018, p. 13). Assim, como gênero, trata-se de um processo construído em diferentes artefatos culturais e imerso em relações de poder.

Apesar de diferentes perspectivas teóricas mostrarem que essa vivência não se restringe a um determinado período da vida, muitas vezes as questões relativas ao gênero e à sexualidade são entendidas como algo direcionado apenas aos/às adultos/as - o que pode fazer com que pareça natural e recomendável excluir as crianças dessas discussões. Esse é um dos efeitos do dispositivo de infantilidade em sua articulação com as questões de gênero e sexualidade. Precisamos ter em mente, contudo, que a construção do feminino e/ou do masculino, bem como questões relativas à sexualidade, acontecem por meio de variadas práticas culturais. Nesse sentido, é possível notar como essas dimensões emergiram no currículo aqui analisado.

Importante registrar também que, independentemente dos esforços que o dispositivo de infantilidade emprega para marcar a infância, mesmo tentando excluir as crianças de práticas relacionadas ao gênero, sempre haverá possibilidades de escapes que indagarão as técnicas de poder que definem quem é o sujeito infantil. Para este texto, compreendemos que as crianças também estão imersas em relações de poder que confrontam o dispositivo da infantilidade, o que faz com que elas se posicionem como sujeitos de outros tipos a partir de marcações que problematizam características como “pureza”, “inocência” e “irracionalidade”. Antes de apresentarmos as questões de gênero observadas na pesquisa, contextualizamos a educação integral no Brasil e o Programa Escola Integrada, que nos permitiu investigar as crianças nas vivências no fragmento do currículo da cidade.

3 A EDUCAÇÃO INTEGRAL NO BRASIL: O PROGRAMA ESCOLA INTEGRADA E O CURRÍCULO DA CIDADE

A escola nas cidades brasileiras é um espaço onde ocorrem projetos e práticas institucionais diversas. Ações culturais de cidadania, de promoção da saúde, dentre outras, utilizam o espaço escolar para consolidar políticas públicas diversas2, preconizando uma educação integral, o que nos mostra o quão importante é a instituição escolar para a sociedade brasileira. Gadotti (2009, p. 29-30) alerta que “a educação integral é uma concepção da educação que não se confunde com o horário integral, o tempo integral ou a jornada integral”. Ou seja, uma educação que se pretende integral não simplesmente amplia o tempo de permanência dos/as alunos/as nas escolas, mas educa para contemplar “relações humanas diferenciadas” (ANTUNES; PADILHA, 2010, p. 44), nas quais se aprende e se ensina “com a razão, com a emoção, com a afetividade, com o querer bem, com a estética, com a boniteza” (ANTUNES; PADILHA, 2010, p. 45). Segundo Antunes e Padilha (2010), uma educação integral também apresenta uma gestão democrática com a participação da comunidade; uma gestão sociocultural das aprendizagens e uma avaliação dialógica continuada para a formação humana.

A concepção de Educação Integral se ampara no artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/1996 - LDBEN), que define que os processos educativos podem se desenvolver “na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais” (BRASIL, 1996, s/p), isto é, amplia os processos educativos para além da educação regular nas instituições escolares. Além disso, o artigo 34 da LDBEN prevê o “aumento progressivo da jornada escolar para o regime de tempo integral” (BRASIL, 1996, s/p). Há, ainda, a meta de número 6 do Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/2014 - PNE) que é a de “oferecer educação em tempo integral em, no mínimo, 50% das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% dos alunos da educação básica” (BRASIL, 2014, s/p) até o ano de 2024.

Apesar de atualmente haver incontáveis programas de educação integral em todo o Brasil, não há um “consenso sobre o que se convenciona chamar de ‘formação completa’ e, muito menos, sobre quais pressupostos e metodologias a constituiriam” (LEITE; CARVALHO; VALADARES, 2010, p. 51, grifos dos autores). Leite e Ramalho (2015) fizeram um levantamento sobre a natureza de atividades em programas de educação integral em todo o Brasil. Ao investigar os diferentes programas, as autoras os classificaram em dois grupos: um grupo subsidiado pelo Estado e cujas atividades centralizam-se nos espaços internos das escolas; e o outro, de cunho multissetorial, cujas características predominantes são a “articulação entre saberes de naturezas diversas [...], emergência de novos perfis de profissionais da educação e uso de outros espaços que não apenas os escolares” (LEITE; RAMALHO, 2015, p. 65-66).

O programa de educação integral que acontece nas escolas municipais de Belo Horizonte é o Programa Escola Integrada (PEI). Esse programa, que apresenta as características do grupo multissetorial, tem como proposta uma das premissas da educação integral (GADOTTI, 2009) que pretende uma formação humana para além dos conteúdos escolares da educação regular. O PEI faz parte da política educacional do município de Belo Horizonte desde o ano de 2006 e consiste em atender as crianças do Ensino Fundamental em contraturno escolar. Tem como objetivo principal garantir uma educação integral na qual o/a aluno/a possa “desenvolver seu potencial, ampliando as possibilidades de desenvolvimento de competências individuais, sociais, produtivas e cognitivas” (BELO HORIZONTE, 2008, p. 5) e “contribuir para a melhoria da qualidade da educação, por meio da ampliação da jornada educativa dos estudantes, com ações de formação nas diferentes áreas do conhecimento” (BELO HORIZONTE, 2012, p. 1). Tem por princípio, ainda, utilizar “de modo integrado todos os equipamentos públicos e privados existentes no entorno das escolas (conceito de cidade educadora)” (GADOTTI, 2009, p. 81).

Toda escola que oferece o PEI se organiza a partir das diretrizes de funcionamento do programa como um todo, em um documento intitulado “Orientações Gerais para as escolas” (BELO HORIZONTE, 2012, s/p). Esse documento orienta no que diz respeito aos horários de funcionamento, à alimentação, às escolhas de oficinas e ao perfil dos/as colaboradores/as e garante que as oficinas possam ser “organizadas pelas escolas a partir do projeto político-pedagógico, do mapeamento dos interesses dos estudantes e da valorização dos talentos locais” (BELO HORIZONTE, 2012, s/p).

Conforme apontado no documento orientador, para compor as ações da Escola Integrada, a administração municipal disponibiliza ônibus escolares para transportar as crianças para os diferentes locais da cidade, organizados no calendário cultural de Belo Horizonte e de acordo com o planejamento de cada escola que compõe o programa. Assim, “os estudantes percorrem o bairro, a cidade [...] visitam museus, salas de cinemas, teatros e têm acesso a diferentes manifestações esportivas e de lazer oferecidas pela cidade”. O programa tem por objetivo, também, incorporar “boas práticas educacionais e sociais existentes em Belo Horizonte” (BELO HORIZONTE, 2018, s/p), como regras de convivência social e cuidado com os espaços da cidade.

É desta integração com a cidade que surgiu o nome Programa Escola Integrada e o seu slogan Belo Horizonte é uma sala de aula!. Na proposta da Escola Integrada, a apropriação dos diferentes espaços culturais da cidade pretende dar a eles um caráter educativo, reconhecendo a potencialidade da cidade como um espaço para aprender. Isso corrobora a premissa adotada neste texto, segundo a qual a cidade, como um artefato cultural, é um currículo (BONAFÉ, 2010). Um currículo que, além de ensinar, também é produzido pelas crianças e demais participantes da Escola Integrada que se organizam mais ou menos sob as normas de uma forma escolar, ou seja, incorporam elementos de um discurso escolar.

É da premissa de seu slogan que as crianças da Escola Integrada possam perceber a cidade como oportunidades de aprendizagens. Nesse sentido, elas podem viver e transformar esse currículo, já que ao contato com diferentes espaços de aprendizagens essas crianças estão submetidas às regras de conduta e convivência de cada um deles: regras que também atuam nos corpos e que podem demandar um comportamento curioso, crítico, colaborativo e que valoriza a diversidade e o bom relacionamento com a comunidade. Em vista disso, por exemplo, o PEI possui uma diretriz que nomeia a pessoa que coordena o programa de cada escola como professor/a comunitário/a; e outra que emprega agentes culturais da própria comunidade para atuar como professores/as. Essas diretrizes colaboram na produção de sentidos de pertencimento com a comunidade e de solidariedade entre seus/as participantes.

O Programa Escola Integrada, na perspectiva foucaultiana, é uma ação do Estado para governar a infância e, nessa linha, partimos do entendimento que a infância é uma população, pois, para ela, são direcionados diversos documentos e práticas específicas que gerenciam as vidas das crianças. Como população, a infância é “percebida não a partir da noção jurídico-política de sujeito, mas como uma espécie de objeto técnico-político de uma gestão de governo” (FOUCAULT, 2008a, p. 92). Contudo, o autor nos lembra que uma população “está na dependência de toda uma série de variáveis” (FOUCAULT, 2008a, p. 92), e que “na verdade, as variáveis de que depende a população fazem que ela escape consideravelmente da ação voluntarista e direta do soberano na forma da lei” (FOUCAULT, 2008a, p. 93). Ainda que a população investigada neste estudo - a infância - esteja governada pela organização do Programa Escola Integrada, é possível haver escapes para o que se espera da infância já que esses/as infantis estão em contato com artefatos culturais diversos, sendo o currículo da cidade um dos locais onde esses aprendizados podem se manifestar.

4 METODOLOGIA DE PESQUISA E CARACTERIZAÇÃO DO CURRÍCULO INVESTIGADO: A ESCOLA DO CAMINHO

As metodologias utilizadas nas pesquisas pós-críticas em educação se baseiam em “um certo modo de perguntar, de interrogar, de formular questões e de construir problemas de pesquisa que é articulado a um conjunto de procedimentos de coleta de informações [...] e de estratégias de descrição e análise” (MEYER; PARAÍSO, 2014, p. 18). A justificativa para esta articulação se dá porque, do ponto de vista metodológico, os estudos pós-críticos não procuram prescrever uma metodologia capaz de contemplar todos os problemas de todas as pesquisas. Para a variedade de práticas possíveis de serem investigadas a partir dos estudos curriculares, esta vertente se serve das mais diferentes metodologias e procedimentos para abarcar seus problemas de pesquisas. Nesse sentido, articulações entre campos diversos podem ser utilizadas a fim de entender objetos específicos de estudo.

A metodologia adotada para a produção das informações da pesquisa reuniu elementos da etnografia (GEERTZ, 2008), como a observação direta de uma prática curricular. O registro dessas informações foi descrito densamente em diário de campo. A observação direta permite “buscar um entendimento da comunidade através do ponto de vista de seus membros e buscar descrever as interpretações que eles dão aos acontecimentos que os cercam” (NEVES, 2015, p. 176). Os registros da observação foram organizados em arquivo digital, identificados por datas e classificados como eventos. Utilizamos o conceito de evento a partir de Castanheira (2004, p. 79), que o define como “o conjunto de atividades delimitado interacionalmente em torno de um tema comum num dia específico” e “não é definido a priori, mas é o produto da interação dos participantes”.

Também definimos a análise de discurso foucaultiana como integrante da metodologia empregada na investigação porque ela permite relacionar os eventos observados aos mais diferentes discursos presentes na sociedade (FISCHER, 2001), incluindo aqueles que envolvem o conceito de gênero, como se mostra na análise aqui apresentada. Para Foucault, no que se refere às investigações que analisam discursos, “é preciso tratá-lo [o discurso] no jogo de sua instância” (FOUCAULT, 2008b, p. 28), identificando como ele aparece no contexto investigado. A análise de discurso, nessa perspectiva, implica entender que os discursos “são sempre efeito de uma construção cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas” (FOUCAULT, 2008b, p. 28). Assim, o trabalho do/a pesquisador/a está em “definir em que condições e em vista de que análises algumas são legítimas, indicar as que, de qualquer forma, não podem ser admitidas” (FOUCAULT, 2008b, p. 28).

Como o objetivo geral da pesquisa era analisar um fragmento do currículo da cidade vivido por crianças de uma escola que oferta a Escola Integrada, mostrando como esse currículo as provocou e possibilitou diferentes situações em que essas crianças se posicionaram como sujeitos de variados tipos; e sabendo como o currículo de uma cidade é complexo, foi necessário delimitar o fragmento desse currículo, a saber: um grupo composto por 37 crianças, com idades entre 6 e 10 anos, de uma escola que oferece o Programa Escola Integrada (PEI) nos trajetos de ida e de volta da escola onde se organiza o programa até um espaço alugado na comunidade, nomeado pelas pessoas da escola como loja (porque apresenta a estrutura física comum à de uma loja comercial), onde ocorrem as oficinas de balé, hip hop e videogame do programa. O período de observação aconteceu no primeiro semestre letivo de 2019.

As crianças investigadas eram, em sua maioria, pretas e pardas. Identificamos que o grupo não passava do 3º ano do ensino fundamental I, ou seja, nenhuma delas tinha mais que 10 anos de idade. Durante o período de observação, não houve ocorrência de não uso do uniforme pelas crianças do programa, embora algumas utilizassem sandálias e chinelos - o que não era permitido e lembrado quase todos os dias pela coordenadora no momento do agrupamento pós-café da manhã. De acordo com a coordenadora, o programa atendia as crianças que moravam no bairro onde estava a escola e de uma vila próxima. O monitor e a monitora que acompanharam esse grupo moravam no bairro onde é situada a escola, sendo contratado/a por meio de convênio da caixa escolar com a Associação Municipal de Assistência Social (AMAS).

Para preservar a identidade das pessoas participantes da pesquisa, nomeamos o fragmento do currículo investigado como Escola do Caminho. Escolhemos este nome, pois, em nosso entendimento, um caminho, qualquer que seja, é repleto de possibilidades. Tal qual em uma pesquisa em que o/a pesquisador/a especula sobre o que pode encontrar em seu campo, um caminho pode até ser planejado, mas os encontros, as descobertas, as escolhas sobre como percorrê-lo acontecem durante o seu desenvolvimento. Acompanhar a Escola do Caminho nos possibilitou selecionar, cruzar e analisar com mais rigor as informações que seriam descritas no diário de campo: se a investigação ocorreu nos trajetos de ida e de volta das crianças, foi esse fragmento do currículo da cidade que as provocou.

5 OS ATRAVESSAMENTOS DOS DISCURSOS DE GÊNERO NA PRODUÇÃO DO INFANTIL PELO CURRÍCULO DA CIDADE

A primeira questão de gênero observada na Escola do Caminho tem relação com a especificidade de organização das oficinas do PEI que obedecem a uma norma de gênero: a oficina de balé é somente para as meninas e o hip hop, preferencialmente, para os meninos. As oficinas que aconteciam na loja se respaldam em uma norma de gênero que associa o balé e suas movimentações corporais suaves como do universo feminino; e o hip hop, com suas características corporais mais marcadas e por essa dança ter surgido em ambiente de batalhas/competições, como do universo masculino. É importante registrar que a valorização que as pessoas fazem daquilo “que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico” (LOURO, 2008, p. 21).

Uma outra questão de gênero que atravessa a Escola do Caminho é a de haver uma regra para os deslocamentos que acontecem na cidade: uma fila composta por meninas e outra por meninos. Apesar da regra, as crianças se dispersavam rapidamente nas ruas e formavam grupos de afinidades que também pareciam generificados: enquanto as meninas falavam sobre maquiagens, moda e assuntos que passavam pelo âmbito doméstico de cada uma delas, os meninos conversavam sobre futebol, jogos eletrônicos e desenhos animados. Além disso, uma fala recorrente e espontânea entre os meninos e o monitor e a monitora na Escola do Caminho era a da importância de os meninos deixarem as meninas passarem primeiro, um gesto de “cavalheirismo” durante os percursos feitos na rua. Esse arranjo se repetiu em diversos eventos, como se pode ver abaixo:

À espera da abertura da loja alguns meninos organizaram o espaço de maneira a permitir, primeiramente, a entrada das “damas”. Um garoto insinuou que era para um dos meninos acompanhar as meninas, no que este respondeu: “eu não, viado! Eu sou homem!” E acrescentou em seguida, ao perceber que estava sendo observado pela monitora: “eu sou criança”. A situação se encerrou neste momento. Mesmo com a afirmação de que era criança e, portanto, igual a todas as outras, o garoto esperou que todas as meninas entrassem na loja, como se não quisesse ser confundido como uma delas (Trecho do diário de campo, ida, 18/03/2019).

Um primeiro aspecto a se considerar no evento acima refere-se à repetição do comando de arranjo da marcha do percurso para entrar na loja, ainda que o tenham feito em tom de brincadeira. Permitir a entrada das “damas” primeiro é uma ação que remete aos ditos do que se conhece como cavalheirismo, que o dicionário online Dicio define como “homem gentil, cortês, nobre, digno”. Em termos de linguística, o substantivo cavalheiro, e sua consequente definição, é utilizado para se referir a um corpo masculino. Considerando-se que gênero é construído de forma relacional, ao definir-se que um corpo masculino deve agir de maneira gentil, cortês, nobre e digna - como um cavalheiro - estabelece-se também de que forma corpos nomeados como femininos devem se comportar. Nesse sentido, marcou-se a posição da menina/mulher como subordinada à posição do menino/homem nesse grupo, uma vez que o deslocamento dos sujeitos-menina/mulher só se dava a partir da autorização dos sujeitos-menino/homem.

Na atualidade, comumente o que se entende por gênero tem se definido com ou sobre os corpos sexuados, mas o que se acredita ser apropriado para esses corpos são assertivas generalizadas sobre mulheres e homens feitas a partir de diferentes áreas do conhecimento e de diferentes períodos da História, sob as mais diversas perspectivas. Ao pensar nessas afirmações, utilizamos dos estudos desenvolvidos por Louro (2008) em que a autora afirma que, por muito tempo, aquilo considerado adequado ou inadequado para uma mulher ou para um homem, partiu de uma “distinção biológica” (LOURO, 2008, p. 21). Ainda ocorre de as pessoas definirem determinados comportamentos de acordo com a apresentação corporal - menina/mulher e/ou de menino/homem - o que mantém o sistema de oposição binária de gêneros e nomeia como anormal tudo aquilo que não corresponde ao que se entende como apropriado para mulheres e homens.

Ampliando essa discussão, convém lembrar dos apontamentos de Butler sobre atos performativos. Segundo essa autora, considerar o gênero como performativo implica entender o gênero como “a maneira cotidiana pela qual gestos corporais, movimentos e encenações de todos os tipos constituem a ilusão de um ‘eu’ generificado permanente” (BUTLER, 2018, p. 3, grifo da autora). Essa concepção acentua a ideia de que o gênero não se define com base em uma distinção biológica, mas que ele se caracteriza pelo modo como esses corpos são significados. Ações que se pautam em valores como respeito e gentilezas sempre serão bem-vindas em quaisquer espaços; o que chamamos a atenção para o evento é o fato de que definir ações tidas como adequadas para corpos femininos (ser damas) ou corpos masculinos (ser cavalheiros) colabora com a desigualdade vigente entre mulheres e homens nas mais variadas instâncias da vida.

O segundo aspecto a se considerar sobre o evento é o fato de as crianças utilizarem assertivas para definir o que é ser menina/mulher e menino/homem para incomodar os/as colegas. Reis (2011) argumenta que as normas de gênero no espaço escolar atuam de modo a produzir a classificação e a hierarquização de corpos-meninos, abjetando aqueles que não conseguem atingir as características culturalmente valorizadas como masculinas, como a prática de esportes e a predisposição à competição. É possível usar a lente de análise dessa autora para pensar a produção de subjetividades generificadas na Escola do Caminho. Primeiro porque o grupo se utilizou da norma de gênero do cavalheirismo para posicionar quem são os sujeitos-meninos/homens e quem são os sujeitos-meninas/mulheres entre as crianças. Além disso, ao insinuar que um garoto deveria entrar na loja no mesmo momento que as meninas, o menino que deu a ordem quis, deliberadamente, provocar o colega para tirá-lo de sua posição de menino/homem.

O conceito de abjeção desenvolvido por Butler (2017) pode ser aplicado a um fragmento do currículo da cidade em que atuam as normas de gênero diante da situação de um garoto querer desestabilizar o outro para tirá-lo de sua posição de menino/homem. A autora desenvolveu o conceito ao pensar na semiótica, ou seja, na construção de significados a partir da linguagem. Se pensarmos que os significados se produzem porque há uma repetição de ações que são consideradas “normais”, a abjeção ocorre em todos os corpos considerados “anormais”, como aqueles com deficiências ou os que fogem do padrão heteronormativo - se operarmos com o conceito de gênero. Como afirma Butler (2017, p. 162), “o corpo só ganha significado no discurso no contexto das relações de poder”. Um garoto tentou abjetar o corpo do outro ao insinuar que ele, menino/homem/cavalheiro, agisse como uma menina/mulher/dama ao se estabelecer em determinada posição de uma fila. O outro negou a abjeção tentada pelo garoto, ainda que argumentasse que ele era como todos/as que estavam ali: crianças.

Um terceiro aspecto do evento é o de que, ao perceber que estava sendo observado por pessoas adultas, o garoto modificou o comportamento de maneira a adequar-se ao que se espera para aquele grupo: que ali todos/as são crianças e, portanto, iguais. Em muitos momentos, observamos que o monitor e a monitora utilizavam dessa afirmação para posicionar os/as alunos/as como crianças e mediar conflitos, inclusive quando um dos meninos disse em tom de ironia para um colega, ao observar algumas meninas que iam aglutinadas à frente balançando os braços sincronizadas ao ouvir uma música que tocava no terraço de uma casa pela qual passávamos em frente, que a oficina de “balé é só para meninas”. Nesse momento, a monitora respondeu dizendo que “balé é uma dança e dança é pra todo mundo” (Trecho do diário de campo, ida, 26/04/2019). A homogeneização que a monitora fez parece ter tido o objetivo de igualar as crianças da Escola do Caminho, o que as impossibilitaria de performarem generificadamente da maneira que quisessem. Além disso, por haver várias narrativas que ora concordam, ora discordam sobre a existência de problematizações acerca de questões de gênero na infância, uma das estratégias que compõem o dispositivo da infantilidade é a de interditar alguns temas entre as crianças. O argumento dito em tom de ironia que o menino utilizou para marcar uma performance entendida como feminina se fragilizou perante o dispositivo da infantilidade, ainda que as crianças soubessem que a oficina de balé era ofertada apenas para as meninas.

Do mesmo modo que é possível para o sujeito-adulto/a gerir conflitos se utilizando do dispositivo da infantilidade para posicionar os sujeitos como crianças e “apagar” marcas de gênero, é possível que as crianças joguem com esse dispositivo quando lhes convém. Em muitas ocasiões foi possível observar que o respeito para com todos/as é um valor apreciado pelos/as sujeitos-adultos/as do PEI. Em todos os momentos que o/a monitor/a perceberam situações em que as crianças podiam se ofender ou brigar, houve intervenções: seja com conversas sobre determinado fato que suscitou um desentendimento entre as crianças, seja com interjeições que mostravam que o monitor e a monitora estavam atento/a ao que ocorria no grupo. No evento em que o garoto se posicionou e disse “eu sou homem!”, ao saber que podia ser repreendido pelas falas julgadas como ofensivas/inadequadas, o garoto tratou logo de se igualar aos outros, afirmando-se como sujeito-criança.

Conforme argumentam Caldeira e Paraíso (2019) em um estudo que investigou um currículo escolar em que coexistiam os dispositivos de infantilidade e o de antecipação da alfabetização, o dispositivo da infantilidade marca as crianças como pequenas para umas situações e grandes para outras. No caso de vivências relacionadas ao gênero e à sexualidade, as crianças eram tidas como pequenas, ou seja, inaptas para tal. Daí que as expressões acerca desses assuntos tornam-se impróprias para os sujeitos infantis, já que “a localização da vida sexual na idade adulta foi uma das táticas da técnica de adultização da sexualidade que continua operando na contemporaneidade” (CALDEIRA, PARAÍSO, 2019, p. 124).

Uma outra forma que mostra como questões de gênero atravessaram esse currículo se relaciona às discussões referentes ao combate à violência contra a mulher, como pode ser visto no evento a seguir:

No percurso de ida para a loja houve um conflito entre duas crianças. Um garoto deu um chutinho no pé de uma colega que ia à sua frente. A menina tropeçou e quase caiu, o que causou certo alvoroço nas crianças que presenciaram a cena. A menina apressou a marcha para se distanciar do garoto, enquanto Maria Clara chamava a atenção dele: “homem não bate em mulher, Caio! Homem tem que proteger mulher!”. O garoto não deu muita atenção ao que a colega lhe falara. Ela, então, o lembrou que estavam na rua e se a colega caísse “ela ia se machucar muito!” e ainda o avisou que “qualquer pessoa vai ver o que você faz!”. O garoto se justificou e disse: “eu só estou brincando!” (Trecho do diário de campo, ida, 20/02/2019).

O evento descrito acima mostra como as crianças pontuaram uma ação usando como critério as narrativas circulantes na sociedade de que “homem não bate em mulher” e que “homem tem que proteger mulher”. Ao se ver repreendido por seus pares, o garoto se utilizou de um dito do dispositivo da infantilidade, que é o brincar, posicionando-se como criança. O evento também mostra como a infância é atravessada por saberes diferentes daqueles que são direcionados a ela nos currículos escolares. Na situação de estarem organizadas segundo relações de poder que as organizam como um grupo de crianças de idades semelhantes em um programa de educação integral de um município, sem que haja um conteúdo que se relacione explicitamente ao tema do combate à violência contra a mulher, as crianças se utilizaram desse saber em suas relações. Não se pode afirmar que o menino não estava brincando de fato, mas ali ele se justificou como não sendo um homem que bate em uma mulher. Em certa medida, ele se opôs à posição de sujeito “homem que bate em mulher”, ao assumir a posição de sujeito-infantil ao dizer que estava apenas “brincando”, que é o que as pessoas geralmente entendem que as crianças fazem.

Além disso, as crianças também demonstraram estar cientes das atuais discussões sobre assédio que o movimento feminista tem suscitado:

Uma das características dos trajetos é a de as crianças andarem a uma velocidade confortável e pararem de tempos em tempos a fim de evitar dispersões. Acontece que, particularmente hoje, paramos em frente à oficina mecânica cujo proprietário é padrasto de uma das crianças. A oficina já faz parte do território da Escola do Caminho e, cotidianamente, os funcionários da oficina cumprimentam as crianças e elas, por sua vez, os cumprimentam de volta. Uma das paradas que objetivava reunir o grupo aconteceu em frente à oficina. Havia um homem parado na calçada do estabelecimento. Parecia ser um cliente, já que ele estava vestido com uma roupa formal e em nada se parecia com os funcionários do estabelecimento, que já não nos eram estranhos. Esse homem começou a olhar a pesquisadora de forma indiscreta e falou algo que ela não compreendeu, mas um trio de garotos, sim. Neste momento os meninos confrontaram o homem, gritando coisas como “não fala assim com a nossa professora”; “você é um folgado”; “não fala assim com mulher”. Percebido o alvoroço pela situação, a pesquisadora sinalizou para a monitora puxar o grupo para encerrar o conflito (Trecho do diário de campo, volta, 05/04/2019).

O evento acima demonstra como o assédio ainda se faz presente no cotidiano das mulheres e como as crianças reconhecem e participam ativamente dessa relação de poder. Há algumas hipóteses para pensar sobre a tática de resistência que as crianças utilizaram na situação de afrontar o homem assediador. A primeira delas diz respeito à relação de carinho que a pesquisadora desenvolveu com as crianças e que fez com que elas a defendessem como se fosse a sua professora. É importante recordar que o discurso escolar tem posicionado as pessoas adultas presentes na escola - aquelas que não se enquadram como mães, pai ou responsáveis pelas crianças - como sujeitos-educadores e dotados de certa autoridade. A primeira menção que as crianças lembraram para se referirem à pesquisadora foi a que ocupa como sujeito-professora. Uma outra hipótese é a de que as crianças já compreendem e concordam com as narrativas que circulam na sociedade de que o homem, de maneira geral, ocupa um lugar de provável assediador. A evidência disso é a de quando o chamaram de “folgado”. Também se pode pensar que, diante do imperativo “não fala assim com mulher”, as crianças estão conscientes sobre os esforços para a mudança de comportamentos tidos como masculinos que objetificam os corpos das mulheres. Além disso, na norma de gênero que produz sujeitos-meninos/homens, o cavalheirismo compreende defender uma dama de perigo iminente. Outrossim, é importante pensar que o currículo da cidade demanda esse posicionamento dos meninos, pois, dificilmente no contexto escolar eles teriam que defender uma professora de um assédio.

Questões de gênero também emergiram nesse currículo no que se refere às performatividades corporais femininas e masculinas no grupo. O evento descrito a seguir mostra como esses sujeitos foram tensionados porque, mais uma vez, foram posicionados como crianças pelos sujeitos-adultos em função do dispositivo de infantilidade, em contraposição às características que podem ser vinculadas ao gênero e à sexualidade:

À passagem de um carro com uma música de Funk em volume bem elevado, as crianças começaram a cantar: “senta, senta, senta, senta, senta”. Algumas arriscaram uma coreografia em uma parada que a turma costumava fazer. Ao escutar uma conversa entre duas alunas, a qual uma perguntava à outra qual dos colegas do turno regular se ela havia beijado, o monitor pediu para que as meninas parassem de “falar de homem”. Uma delas respondeu: “não é de homem, professor. É tudo menino!”. O monitor respondeu: “Então... menino! Quantos anos vocês têm? Vocês têm idade pra namorar?”. Uma das meninas argumentou: “Não é namorar, professor! É só beijar!”. E continuaram a cantar, a dançar enquanto caminhavam de volta para a escola (Trecho do diário de campo, volta, 25/02/2019).

Localizar ações típicas de uma criança ao referir-se à sua idade é, talvez, uma das maiores evidências dos investimentos do dispositivo de infantilidade. A idade da infância é, no Brasil, documentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990 - ECA) que, para os efeitos de seu 1º artigo, considera como criança “a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade” (BRASIL, 1990, s/p). Ao usar o argumento da idade das crianças, o monitor tentou demarcar a posição de sujeito-criança das meninas que, por serem crianças, devem fazer coisas de crianças. Ao questionar as idades das meninas para lembrá-las que não é adequado que elas namorem, o monitor operou com uma norma de gênero e sexualidade que tenta estabelecer que “a sexualidade na infância não existe, ou pelo menos que ela não deve se expressar em forma de namoro” (CALDEIRA; PARAÍSO, 2019, p. 124). Mas essas normas de gênero não se estabelecem sem resistência.

No evento, as meninas tentaram jogar com o dispositivo de infantilidade ao dizer que os supostos meninos que elas haviam beijado são crianças - menino equivale ao substantivo masculino criança - não é um homem - substantivo masculino que equivale a um adulto. O que as meninas queriam era que sua conversa sobre relacionamentos fosse autorizada pelo monitor, que a interditou. Sendo assim, elas concordaram que eram crianças e, portanto, não namoravam: “Não é namorar, professor! É só beijar!” - portanto, quase uma brincadeira.

Além disso, “falar de homem” ou “namorar” são ações do mundo dos/as adultos/as e consideradas inadequadas para o sujeito-infantil, sobretudo às meninas. Walkerdine (1999, p. 78) argumenta que as meninas estão inscritas em discursos que as tentam produzir como “a menina boa e esforçada que segue as regras [e] prefigura a imagem da mãe atenciosa, que usa sua irracionalidade para salvaguardar a racionalidade”, ao mesmo tempo que esbarram em prescrições discursivas que reafirmam essa performance, ao considerar que “uma menina ativa e afirmativa pode ser considerada como presunçosa, arrogante, exageradamente madura e demasiadamente precoce” (WALKERDINE, 1999, p. 78). Trazer essa discussão para esta análise tem como objetivo demonstrar que as construções sobre o infantil do mundo contemporâneo tentam conformar a criança “como uma idade serena e inocente, que possui um valor em si mesma e que deve ser protegida e gratificada” (CORAZZA, 2004, p. 197). Entretanto, por serem atravessadas por diversos discursos, as crianças possuem conhecimentos sobre o mundo adulto e expressem alguns desejos, como o de “só beijar!”. Percebe-se, assim, como no contato com o currículo da cidade e com normas de gênero e sexualidade, as noções divulgadas pelo dispositivo de infantilidade são confrontadas, dando lugar a possíveis resistências por parte daqueles/as que são interpelados por ele.

Outro evento que se relaciona à questão das performances corporais tem a ver com um vídeo anterior à posse da atual ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que foi divulgado nas redes sociais e, nele, a ministra afirmava que a princesa Elsa termina sozinha em um castelo de gelo porque é lésbica. Sobre este fato, um dia na ida da escola para a loja, algumas meninas comentavam sobre as roupas que usariam em uma apresentação que estava próxima. Uma delas disse que usaria um tutu azul para combinar com a blusa da Elsa, ao que a colega a respondeu “você viu que mulher ridícula? De falar que a Elsa é lésbica?” (trecho do diário de campo, ida, 13/05/2019). A ministra foi alvo de críticas nas redes sociais e diversos veículos de mídia por defender o uso de cores para demarcar posições de gênero - rosa para meninas e azul para meninos - e cravar comportamentos generificados para crianças e adolescentes, como os de as meninas serem delicadas como princesas e que os meninos devem ser fortes para defender essas princesas. Essas falas reverberam nos posicionamentos das crianças no contato com o currículo da cidade, em que problematizam as normas de gênero definidas para elas.

Há conflitos entre os tons prescritivos que se vinculam ao dispositivo da infantilidade que tentam interditar a sexualidade na infância. Ao analisar o tema da sexualidade feminina sob a perspectiva de que ela seja uma produção cultural, Walkerdine (1999, p. 81) nos lembra que “o tema das meninas pequenas e sexualidade pode ser visto como um campo minado de afirmações e contra-afirmações, focalizando questões de fantasia, memória e realidade”. O aspecto a se considerar no evento acima é o de que, mesmo sendo a escola - ou espaços educativos frequentados por crianças, como é o Programa Escola Integrada - um espaço considerado como não apropriado para manifestações de sexualidade infantil, as crianças são atravessadas por discursos de outros artefatos culturais, como as mídias. Nesse sentido, por acessarem esses artefatos culturais em outras instâncias, as meninas se produzem como sujeitos-mulheres no atual contexto sócio-histórico.

As reiteradas vinculações do tema da sexualidade às normas de gênero presentes na sociedade colaboram para um discurso que atua sobre o infantil e que podem acabar suprimindo experiências de alegrias e descobertas, as quais não se pode dizer que estão relacionadas a atos sexuais. A ministra, que ocupa um lugar de autoridade e que faz repercutir suas falas em diversos veículos de comunicação, divide opiniões e acirra discussões na sociedade sobre o tema do gênero e da sexualidade na infância. Um dos diferentes significados que essas discussões oportunizam é que estes são temas inerentes à vida e, portanto, à infância. Um outro significado é o que se liga à vertente conservadora e religiosa e que tenta descolar a infância desses temas ao operar com o raciocínio que criança não namora e, mais, que criança não namora pessoas do mesmo gênero.

Foucault nos mostra na obra História da Sexualidade - o cuidado de si (2007), uma série de regimes médicos, filosóficos e de cuidados da alma que tiveram como objetivo moralizar a atividade sexual e seus prazeres. O dispositivo da sexualidade nomeou e continua nomeando sujeitos mulheres e homens e as/os posicionando a partir das práticas divisoras que as/os separam entre saudáveis e doentes e aqueles/as com condutas adequadas, ou não. A respeito da sexualidade, “a atenção exigida é aquela que faz com que lhe estejam sempre presentes no espírito as regras às quais ele [o sujeito] deve submeter sua atividade sexual” (FOUCAULT, 2007, p. 145). A despeito das interdições que fazem às crianças sobre gênero e sexualidade, como os citados acima, o tema recaiu nas crianças da Escola do Caminho. Para as crianças, não interessava se a princesa era lésbica, ou não. O importante era estar bonita e na moda para a apresentação. Sobre isso, Giroux (1995) argumenta que as produções de entretenimento voltadas para as crianças, como artefatos culturais, reduzem “as crianças ou a consumidores para novos mercados ou a soldados cristãos para a nova ordem mundial conservadora” (GIROUX, 1995, p. 50). Parece que esses conflitos também estavam presentes no currículo da cidade investigado nesta pesquisa

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os eventos analisados neste artigo demonstram que os esforços do dispositivo da infantilidade para produzir o infantil sofrem tensões ao entrar em contato com situações que envolvem questões de gênero, inclusive pelo currículo da cidade. O infantil é efeito de “um conjunto de regras pedagógicas, que prescrevem os mesmos atos nas mesmas circunstâncias” (CORAZZA, 2004, p. 341). Assim, mesmo que se aja na infância para produzir sujeitos adultos/as que prezam pelo ser respeitoso/a, ser trabalhador/a, ser honesto/a, ser solidário/a, ser um/a adulto/a bem educado/a, a infância é incapturável nas relações que estabelece com as produções culturais presentes na sociedade a qual está inserida. O currículo da cidade, como um artefato cultural, é um exemplo de como é possível que as infâncias confirmem, refutem ou interpretem de outras maneiras os significados instituídos pelo dispositivo da infantilidade.

Ademais, é importante considerar que o currículo de uma cidade é composto de diversos fragmentos que demandam dos sujeitos certos posicionamentos que materializam as mais variadas relações de poder presentes na sociedade. As questões de gênero apresentadas ao longo deste texto mostram como a cidade provoca e enseja arranjos, conflitos e disputas que nos produzem como sujeitos na contemporaneidade.

É importante considerar, também, que os eventos aqui citados foram observados em uma experiência de educação integral, uma modalidade de educação que vem ganhando espaço nas mais variadas instâncias, incluindo a legislação em que se respalda. Nesse sentido, este artigo nos possibilita novas formas de pensar a infância articulada aos programas de educação integral do País que consideram os espaços das cidades como educativos. Nos oportuniza, ainda, refletir sobre a qualidade das práticas que ocorrem nessas experiências, ainda que elas pareçam ser corriqueiras, como caminhar de um espaço a outro na cidade.

De acordo com Carvalho (2013, p. 38), investigar a infância “envolve a ampliação do olhar para múltiplos aspectos que conformam a experiência da infância”. Assim, é imperioso articular informações “que vão desde a regulação institucional (familiar ou escolar) garantia de direitos, às influências da cultura de massa na vida das crianças, até as formas de sociabilidade e produção cultural infantis” (CARVALHO, 2013, p. 38), de acordo com o contexto em que vivem. É importante pensar a(s) infância(s) como categoria(s) que emerge(m) em contextos diversos, não sendo possível considerá-la(s) como um fato social isolado e invariável. Para cada área de conhecimento ou grupo social, o conceito de infância pode ser descrito de maneira singular, além de ensejar uma “lenta transformação de atitudes, sentimentos e relações perante a infância” (NARODOWSKI, 2001, p. 27). No caso da Escola do Caminho, foi possível observar como a categoria de gênero relacionada ao currículo da cidade se configura como um importante marcador nessas crianças.

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NOTAS:

1 A dissertação é resultado de pesquisa de mestrado desenvolvida entre os anos de 2018 e 2020 e é intitulada “O currículo da cidade e os modos de subjetivação de crianças em uma experiência de educação integral”. Para além da categoria de gênero, analisamos eventos relacionados à intra e intergeração, à raça, à moralidade e à classe social. Também identificamos elementos do discurso escolar operando no grupo investigado e analisamos como se constituiu como educativo o fragmento do currículo investigado. A pesquisa aqui divulgada foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (COEP). Seguindo as diretrizes de segurança da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), os nomes das crianças participantes da investigação são fictícios e escolhidos por elas mesmas. No momento de apresentação da pesquisa para as pessoas participantes do programa, a possibilidade de escolher os nomes com que seriam tratadas na pesquisa foi posta e as crianças aceitaram de bom grado.

2 De acordo com o site do Ministério da Educação, “O Programa Escola Aberta incentiva e apoia a abertura, nos finais de semana, de unidades escolares públicas localizadas em territórios de vulnerabilidade social. A estratégia visa potencializar a parceria entre escola e comunidade ao ocupar criativamente o espaço escolar aos sábados e/ou domingos com atividades educativas, culturais, esportivas, de formação inicial para o trabalho e geração de renda oferecidas aos estudantes e à população do entorno”. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/secretaria-de-regulacao-e-supervisao-da-educacao-superior-seres/195-secretarias-112877938/seb-educacao-basica-2007048997/16739-programa-escola-aberta. Acesso em: 12 maio 2021.

Recebido: 20 de Junho de 2021; Aceito: 05 de Outubro de 2021

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