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Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.20 no.3 São Paulo July/Sept 2022  Epub Jan 02, 2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2022v20i3p1392-1414 

Artigos

E agora, como fica?Reflexões sobre a Geografia do Ensino Médio na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

And now, how is it?Reflections on the Geography of High School in the Common National Curriculum Base (BNCC)

Y ahora, ¿cómo es?Reflexiones sobre la Geografía de la Escuela Secundaria en la Base Curricular Común Nacional (BNCC)

Luiz MARTINS JUNIORi 
http://orcid.org/0000-0002-6026-8338

Rosa Elisabete Militz Wypyczynski MARTINSii 
http://orcid.org/0000-0002-2875-2883

Julice DIASiii 
http://orcid.org/0000-0003-1896-5065

1 Doutor em Educação (FAED/UDESC); Mestre em Geografia pela PPGEO/UFSC; Graduado em Geografia pela Universidade da Região de Joinville e em Pedagogia pela UNINTER; E-mail: luizmartins.jr@hotmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-6026-8338.

2 Doutora em Geografia; Mestra em Educação; Licenciada em Geografia; Professora do Departamento de Geografia do Centro de Ciências Humanas e da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (FAED/UDESC). Professora do PPGE (FAED/UDESC). Coordenadora do LEPEGEO - Laboratório de Estudos e Pesquisas de Educação em Geografia. E-mail: rosamilitzgeo@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-2875-2883.

3 Doutora em Educação: História, Política, Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Mestre em Educação pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI); Professora do Departamento de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). E-mail: julice.dias@hotmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-1896-5065.


Resumo

O presente texto trata de uma pesquisa bibliográfica-documental com enfoque na análise da BNCC do Ensino Médio. Objetiva apontar algumas reflexões e problematizar a disciplina de Geografia no Ensino Médio a partir da proposta da BNCC de 2018. Traz como questão emblemática a forma reducionista como a BNCC trata o campo da Geografia, tornando essa área de conhecimento difusa entre outras, no grande espectro das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e suas Tecnologias. Problematiza o conjunto de conceitos, conteúdos, habilidades e competências proposto no texto da BNCC que visa a preparação do estudante para o mercado de trabalho, empobrecendo, desse modo, sua formação e seu desenvolvimento integral. Nesse sentido, a Geografia, como ciência que tem o papel de desenvolver o pensamento e o raciocínio espacial, foi um dos componentes curriculares que perdeu seu protagonismo e o caráter científico, com o esvaziamento dos conteúdos e conceitos fundantes do conhecimento geográfico.

Palavras-chave: currículo; formação integral e humana; ensino médio; Base Nacional Comum Curricular.

Abstract

This text deals with a bibliographic-documentary research focusing on the analysis of the BNCC of High School. It aims to point out some reflections and problematize the discipline of Geography in High School from the 2018 BNCC proposal. Its emblematic issue is the reductionist way in which BNCC treats the field of Geography, making this area of knowledge diffuse among others, in the broad spectrum of Applied Human and Social Sciences and their Technologies. It problematizes the set of concepts, contents, skills and competences proposed in the BNCC text, which aims to prepare students for the job market, thus impoverishing their training and integral development. In this sense, Geography as a science that has the role of developing thinking and spatial reasoning was one of the curricular components that lost its protagonism and scientific character, with the emptying of the contents and concepts founding in geographic knowledge.

Keywords: curriculum; integral and human formation; high school; Common National Curriculum Base.

Resumen

Este texto trata de una investigación bibliográfico-documental centrada en el análisis del BNCC de Bachillerato. Tiene como objetivo señalar algunas reflexiones y problematizar la disciplina de Geografía en el Bachillerato a partir de la propuesta del BNCC de 2018. Su tema emblemático es la forma reduccionista en que BNCC trata el campo de la Geografía, difundiendo esta área del conocimiento, entre otras, en el amplio espectro de las Ciencias Humanas y Sociales Aplicadas y sus Tecnologías. Problematiza el conjunto de conceptos, contenidos, habilidades y competencias propuestos en el texto del BNCC, que tiene como objetivo preparar a los estudiantes para el mercado laboral, empobreciendo así su formación y desarrollo integral. En este sentido, la Geografía como ciencia que tiene el rol de desarrollar el pensamiento y el razonamiento espacial fue uno de los componentes curriculares que perdió su protagonismo y carácter científico, con el vaciamiento de los contenidos y conceptos fundamentados en el conocimiento geográfico.

Palabras clave: currículo; formación integral y humana; escuela secundaria; Base Curricular Nacional Común.

1 REFLEXÕES INICIAIS

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da Educação Básica (BRASIL, 2018) é um documento de caráter normativo e regulatório cujo objetivo é direcionar quais os conhecimentos, habilidades e competências devem estar presentes nos currículos da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do Ensino Médio de todo o País. A BNCC é um texto regulatório que circunscreve a política curricular nacional, reverberando nas diferentes instâncias formativas (municipal, estadual e federal), de caráter mandatório para os respectivos sistemas de ensino. Isso posto, nosso texto visa propor uma reflexão acerca dos aspectos que emergem a partir da publicação da BNCC Ensino Médio (BRASIL, 2018), no que toca ao ensino da Geografia, que teve sua estrutura curricular agregada e vinculada à área da Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e suas Tecnologias.

Esses novos arranjos curriculares retiram o protagonismo da Geografia no currículo do Ensino Médio, visto que os conteúdos e conceitos dessa ciência foram agregados à área das Ciências Humanas Sociais e Aplicada e suas Tecnologias e o currículo foi organizado e proposto a partir de itinerários formativos, apontado pela BNCC como espaço de flexibilização do currículo do Ensino Médio (BRASIL, 2018).

Os gregos já diziam que ensinar consiste em ato que envolve saberes, organizados em sistemas ancorados no logos. Falavam que o discurso necessitava de coerência interna e que gravitava em torno de conceitos. Desde então, temos visto, pelo menos desde a metade do século XII no Ocidente, a escola organizar-se considerando as redes conceituais, derivadas das áreas de conhecimento e didatizadas em saber escolar e conteúdos programáticos.

Desse modo, o sistema escolar tomou como referência para sua estruturação dois pilares fundamentais que se relacionam e se entrecruzam, como: a causa primeira da escola - o objetivo a que se dirige: formar o sujeito para que possa atuar na sociedade; e segundo: a prática, tanto no que se refere às competências que cada indivíduo precisa adquirir em seu percurso de escolarização quanto as especificidades de cada contexto em que esse indivíduo vai atuar. Com relação às competências gerais, exemplificamos com as competências linguísticas que todos/as precisam adquirir para viver na cultura letrada. No que toca às competências específicas, citamos os saberes e os conhecimentos próprios do Ensino Médio, tanto acerca de uma formação propedêutica como de uma formação técnico-profissional.

Segundo Charlot (2005), é preciso diferenciar o formador do/a professor/a. O formador para o autor é aquele que assume a mediação entre o indivíduo e o saber ou conjunto de saberes. Por sua vez, o/a professor/a é o profissional legitimamente constituído pelo sistema de ensino, cuja função precípua é a sistematização de conceitos científicos, sua organicidade no fluxo formativo do estudante, a avaliação sistemática desse processo e o replanejamento necessário para alcançar os objetivos estruturantes do currículo. Daí consiste, na perspectiva de Charlot, a necessidade de o/a professor/a, em seu exercício docente, mobilizar diferentes e variados saberes para que a apropriação conceitual, por parte do estudante, efetive-se.

Entretanto, embora o ensino demande organicidade, estrutura, funcionamento, rigorosidade metódica, planejamento e avaliação sistemáticos e coerência interna entre o discurso e a prática, não lhe cabe asseverar caráter instrumental. Em nosso entendimento, é este o problema que se coloca no teor apresentado pela BNCC do Ensino Médio, qual seja, seu caráter instrumental e técnico instalado na prática de ensino de Geografia. Para tanto, utilizamos como metodologia a pesquisa bibliográfica-documental, considerando os autores Silva (2000; 2015; 2017), Lopes e Macedo (2011), Macedo e Macedo (2012) e também os documentos BNCC (2018) e LDBEN (1996).

Sendo assim, este artigo está estruturado da seguinte forma: na primeira parte, apresentamos a definição de currículo, destacando as concepções e suas implicações contextuais e políticas. Na segunda parte, abordamos a formulação do currículo do Ensino Médio a partir da BNCC (2018) e como a Geografia é incluída nesse nível da Educação Básica, considerando os desafios, as mudanças e as implicações postas.

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO DO CURRÍCULO E O ENSINO MÉDIO

Nesta parte do texto, exploramos o entendimento acerca de currículo e sua relação com o Ensino Médio. Como ponto de partida da reflexão, o conceito de currículo em sua forma literal significa “[...] pista de corrida, caminhada, percurso a seguir e encerra” (MACEDO; MACEDO, 2012, p. 7). Para Lopes e Macedo (2011, p. 16), o currículo é definido “[...] como um processo das coisas, como uma ação, como um sentido particular e uma esperança pública”. As pontuações dos autores nos trazem indicativos e elementos que se entrecruzam e inter-relacionam quando se trata de pensar o currículo como um processo a ser percorrido e/ou realizado a partir de um objetivo a ser alcançado.

Um dos sentidos mais usados para compreender o currículo na escola é o próprio significado da palavra que define como algo dado, um caminho determinado por uma sequência de ações didático-pedagógicas, em uma perspectiva de linearidade. Ao tratar o currículo por esse viés, a escola desconsidera as dimensões individuais e subjetivas dos/das estudantes.

Para compreendermos melhor as tensões postas quando se discute currículo, é imprescindível um recuo às teorias funcionalistas e às teorias críticas do currículo que assumiram diferentes concepções e orientaram de formas distintas formulações teóricas e práticas, sob diferentes matizes decorrentes das crenças sociais, culturais, políticas e pedagógicas em cada contexto social e temporal, bem como do próprio desenvolvimento societário e do processo de escolarização (LOPES; MACEDO, 2011).

A concepção desenvolvida por John Dewey defendia que o papel do currículo era formar sujeitos não só para a lógica mercantil, mas também para resolver os problemas reais da vida. Nessa perspectiva, as práticas escolares deveriam ser planejadas, organizadas e trabalhadas a partir de situações e desafios ligados ao exercício da cidadania, da democracia e de questões reais vivenciadas pelas crianças, jovens e adultos.

Ao criar e dirigir a escola-laboratório na Universidade de Chicago (1894-1904), Dewey defendeu um planejamento curricular que consubstanciava todo o seu trabalho, fundamentado em que toda a ideia, valor e instituição social originavam-se das circunstâncias práticas da vida humana. Por essa razão, condenou a escola que permanecia isolada da vida social. Para Dewey, a sala de aula deveria congregar a vida comunitária democrática, preocupada com a dignidade humana e com a inteligência científica, mediante práticas que tivessem significados, favorecessem o envolvimento ativo nas atividades sociais básicas e respondessem aos interesses dos/as estudantes. Nesse sentido, entendemos que John Dewey antecede o que se denominou mais tarde de “currículo por experiências”. No Brasil, essa concepção também foi defendida por Teixeira (1953) e serviu de base para a elaboração dos princípios da Escola Nova em 1930.

Silva (2015) pontua que a organização curricular deveria levar a cabo os interesses e as experiências culturais, familiares e sociais dos/as estudantes para que a escola pudesse dar conta de seu papel pedagógico e educacional diante dos acontecimentos sociais, políticos e econômicos.

Nos Estados Unidos, atribuiu-se o mérito de ter iniciado a teorização do currículo a Franklin John Bobbitt, a partir da publicação, em 1918, da obra The Curriculum. Nessa produção, o autor se refere ao conceito de currículo como um conjunto de coisas que as crianças e jovens precisam saber, fazer e experimentar para desenvolver habilidades que lhes permitam tomar decisões concernentes às questões da vida adulta. Conforme Macedo e Macedo (2012), Bobbitt propunha que a gestão da escola desenvolvesse projetos pedagógicos semelhantes ao trabalho industrial, em prol de uma formação de sujeitos ativos, eficazes e eficientes para a racionalidade instrumental da lógica fabril.

Silva (2015, p. 18) comenta que “[...] a escola deveria, por intermédio do currículo, especificar rigorosamente os objetivos que pretendia alcançar, assim como explicitar com exatidão” os métodos, as técnicas, os procedimentos e mecanismos de aprendizagem para a obtenção de uma formação eficiente e de qualidade, sob pena de não estar em acordo com os fundamentos do capitalismo. Esse critério, para organizar o currículo escolar, fazendo a junção de ciência e de técnica, coincide com o início do processo de industrialização nos Estados Unidos. Nesse caso, a educação escolar deveria atender às necessidades da economia nascente.

Outra concepção curricular foi a de Ralph W. Tyler que, em 1949, na obra Princípios básicos de currículo e ensino, definiu que o currículo deveria priorizar em sua discussão teórica os objetivos da educação, as experiências educacionais, a organização eficiente dessas experiências e a avaliação de que os objetivos foram de fato atingidos. O interesse era propor à escola a formação de estudantes capazes de analisar e interpretar o desenvolvimento e a organização da economia dominante e determinista nos EUA (LOPES; MACEDO, 2011).

O tratamento do currículo defendido pelo autor se deu com base em uma visão técnica e pretensamente neutra, cuja concepção teórica e prática estava articulada a uma Pedagogia voltada para a instrumentalização, a avaliação e as competências1. No entanto, Silva (2015, p. 25) explica que a escola deveria buscar os objetivos da educação alicerçados em três proposições, “[...] estudos sobre os próprios aprendizes; estudos sobre a vida contemporânea fora da educação; e sugestões de especialistas das diferentes disciplinas”, para dar conta de sua função social.

Cabe ressaltar que os exemplos apresentados mostram que o currículo, a escola e o processo formativo sempre estiveram e continuam a refletir os interesses econômicos, sociais e culturais. Nesse entendimento, para Straforini (2011, p. 47), o “estado capitalista está a serviço do poder hegemônico, ao produzir documentos oficiais curriculares ele está reproduzindo, por intermediação do currículo, um discurso de manutenção de hegemonia capitalista”.

Com o devido cuidado para evitar generalizações, entendemos que as concepções tradicionais acerca do currículo revelam a escola como espaço do disciplinamento e da pretensa neutralidade. Entretanto, percebemos que essas concepções também estão eivadas de interesses culturais, econômicos e políticos. Em diferentes épocas, foram reterritorializadas para a uniformização do currículo2 oferecido pelas escolas atualmente, “[...] como um banquete a ser consumido, alguns com sabores e adornos extremamente sofisticados, mas também difíceis de serem digeridos” por professores/as, estudantes, enfim, pela comunidade escolar (MACEDO; MACEDO, 2012, p. 4).

Giroux (1997) se destaca nesse contexto, trazendo à tona o entendimento dos mecanismos de controle ideológico que transitam na escola, via currículo, apontando a identificação de processos de opressão e exclusão na sociedade e, consequentemente, no espaço escolar. Ele teorizou uma concepção crítica e de resistência, tendo como pressuposto a organização de um currículo cujo conhecimento estivesse voltado para uma educação crítica e emancipatória.

Para Saviani (2008), a operacionalização do currículo, os processos de opressão e a exclusão social estão implícitos nos conhecimentos historicamente produzidos. O autor destaca a necessidade de uma formação de docentes que desenvolva as devidas competências para que compreendam os processos históricos de dominação e pensem em práticas pedagógicas que concretizem a referida concepção. Essa ideia tomou corpo e visibilidade no currículo dos cursos de formação docente nas universidades e influenciou as proposições curriculares para a educação brasileira, nomeadamente a partir da redemocratização do País, na segunda metade da década de 1980.

É justamente nesse cenário que procuramos desconstruir ou até mesmo colocar em xeque os desdobramentos que brotam da racionalidade dos curriculistas tecnocratas,3 no sentido de pensar um currículo que se preocupa em superar as formulações com enfoque técnico, homogêneo, que, em algumas circunstâncias, impede de dar vez e voz à diversidade e às questões de contexto. Silva (2015, p. 30) adverte que a perspectiva crítica tem como característica não tanto a de

[...] desenvolver técnicas de como fazer o currículo, mas de desenvolver conceitos que nos permitam compreender o que o currículo faz; colocam em questão precisamente os pressupostos dos presentes arranjos sociais e educacionais; desconfiam do status quo, responsabilizando-o pelas desigualdades sociais e injustiças sociais; desconfiam, questionam e transformam radicalmente.

O currículo, em sua relação mais acentuada com a educação na perspectiva da teoria crítica, é compreendido, segundo Silva (2000, p. 83), como um terreno “social e cultural” decorrente das relações de poder. E, em seu objetivo, está explícita a compreensão de que “[...] o currículo não forma apenas os/as estudantes, mas o próprio conhecimento, a partir do momento em que seleciona de forma interessada o que é o objeto da escolarização”. Essa afirmação nos remete à discussão sobre o papel do conhecimento histórico e socialmente produzido por professores e estudantes que pode ser a chave para desconstruir os mecanismos opressores e de dominação.

Apple (2006) trouxe para o debate a crítica do papel da ideologia ocultada no currículo, que dá total atenção aos fundamentos da economia e sua dominação sobre a cultura, isto é, implica entender as determinações e as contradições sociais, econômicas e políticas que afetam a prática pedagógica. Na perspectiva do autor, ao longo do tempo, os interesses econômicos e sociais são determinantes e transformados em ideias e normas hegemônicas que são incorporadas aos currículos, como forma de internalizar os valores dominantes da sociedade.

Ainda nessa perspectiva, o currículo foi objeto de estudo de Willis (1991). Para o autor, o currículo é um campo de movimentos e resistências. Ele esclarece que o currículo deve privilegiar conteúdos e práticas que orientam uma ação oposta à lógica das relações de poder e de controle, com o objetivo de formar sujeitos resistentes e emancipatórios. Sendo assim, esse teórico defende o conceito de currículo como um campo heterogêneo e de diálogo, que reconhece o gênero, a diversidade, a sexualidade, a religião, a etnia e a raça.

De acordo com Silva (2015), o currículo constitui uma política de produção de significados, sentidos, identidades, racionalidades e subjetividades sociais, diferenças e conhecimentos elaborados na unidade educativa. Dessarte, embora haja diferentes concepções e definições conceituais sobre currículo, ele aqui é entendido como síntese de elementos sociais e culturais e é um conjunto povoado por projetos educacionais, materialidades, sujeitos, subjetividades, conceitos, conteúdos, tempo e espaço. O currículo, nessa abordagem, oportuniza dar vez e voz ao sujeito, possibilita conferir protagonismo aos excluídos e faz aflorar a participação juvenil. Indo além, enfatizamos que o currículo está conectado à flexibilização, contextualização, problematização e adequação às exigências contemporâneas, às reconfigurações constantes e, acima de tudo, voltado para as necessidades, especificidades e particularidades dos adolescentes e jovens que frequentam essa etapa da Educação Básica.

Nestes últimos anos, a proposta curricular do Ensino Médio passou por algumas reformulações, capitaneada muitas vezes por agentes conservadores, sob a batuta do Estado, porém amalgamados com os interesses mercantis, logo, com pouca participação da sociedade civil (professores, gestores, estudantes e pesquisadores). Com a publicação da Medida Provisória n.º 746, de 22 de setembro de 2016 (BRASIL, 2016), e, principalmente, com a aprovação da Lei n.º 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 - Lei de Reforma do Ensino Médio (BRASIL, 2017), o Ensino Médio assumiu outra roupagem; vide as alterações:

Art. 1.º a art. 24 da Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com as seguintes alterações: § 1.º A carga horária mínima anual de que trata o inciso I do caput deverá ser ampliada de forma progressiva, no ensino médio, para mil e quatrocentas horas, devendo os sistemas de ensino oferecer, no prazo máximo de cinco anos, pelo menos mil horas anuais de carga horária, a partir de 2 de março de 2017 (BRASIL, 2017).

A proclamação da referida lei trouxe consigo alterações significativas que serviram como pontos de ancoragem para reformular as diretrizes delineadas na Lei n.º 9.394/1996. As mudanças contidas na Lei de Reforma do Ensino Médio - Lei n.º 13.415/2017 apresentaram um conjunto de novas orientações para a Educação Básica e, assim, deram origem e definiram um currículo nacional e unitário para todos os sistemas de ensino (municipal, estadual e federal).

No estabelecimento de um novo ordenamento curricular nacional, não podemos deixar de ressaltar que a Lei de Reforma do Ensino Médio - Lei n.º 13.415/2017 cita outros artigos que definem e determinam as mudanças no currículo do Ensino Médio:

Art. 3.º, § 2.º A Base Nacional Comum Curricular referente ao ensino médio incluirá obrigatoriamente estudos e práticas de educação física, arte, sociologia e filosofia. § 3.º O ensino da língua portuguesa e da matemática será obrigatório nos três anos do ensino médio [...] § 4.º Os currículos do ensino médio incluirão, obrigatoriamente, o estudo da língua inglesa e poderão ofertar outras línguas estrangeiras, em caráter optativo, preferencialmente o espanhol, de acordo com a disponibilidade de oferta, locais e horários definidos pelos sistemas de ensino.

Art. 4.º O art. 36 da Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com as seguintes alterações: “Art. 36. O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino, a saber: I - linguagens e suas tecnologias; II - matemática e suas tecnologias; III - ciências da natureza e suas tecnologias; IV - ciências humanas e sociais aplicadas; V - formação técnica e profissional. § 1.º A organização das áreas de que trata o caput e das respectivas competências e habilidades será feita de acordo com critérios estabelecidos em cada sistema de ensino (BRASIL, 2017).

De acordo com as novas medidas e proposições estabelecidas pela referida lei, somadas aos princípios estéticos, éticos e políticos delineados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB n.º 9.394/1996), o currículo do Ensino Médio prevê, assim como os demais níveis da Educação Básica, uma base curricular nacional comum, que se volta para um conjunto de competências e habilidades básicas, cujo objetivo são fluxos formativos em que a aprendizagem contínua é o mote, visando autonomia e independência intelectual.

Em nosso entendimento, o problema-chave reside na definição de uma base curricular comum, para todo o território nacional, de competências e habilidades predefinidas, o que, a nosso ver, está na contramão de toda a luta dos profissionais da educação e das associações que os representam, desde o período de redemocratização do País. Não somos contrários a uma base comum, porém o que nos preocupa, e isso é nesse sentido que lançamos o debate, é essa definição equivocada de homogeneizar o que é heterogêneo.

Definir rol de competências e habilidades a priori significa desconsiderar o contexto em que a própria formação e o ensino se assentam, qual seja, a cultura como modo de vida global e também as especificidades de cada grupo etário, de cada segmento social e de cada contexto geográfico do País. Neste texto, não aprofundaremos na discussão acerca da proposição da BNCC do Ensino Médio, e sim voltaremos às questões que envolvem a área das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e suas Tecnologias e a Geografia e seu ensino.

3 SOBRE O ENSINO DE GEOGRAFIA NA BNCC PARA O ENSINO MÉDIO: REFLEXÕES PERTINENTES

A Geografia é uma das ciências que está presente no currículo escolar da Educação Básica e se preocupa com a construção de conhecimentos que possibilitem aos/às estudantes, além de mapear, localizar e se orientar no espaço geográfico, compreender a dinâmica do lugar e sua relação com o mundo globalizado em uma perspectiva crítica que envolve a dimensão espacial.

Nesta seção, atemo-nos à análise das proposições da Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Médio (BNCC/EM), publicada em 2018, no que toca à área das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e suas Tecnologias, mais especificamente no que se refere ao ensino do componente de Geografia. Buscamos, portanto, examinar e problematizar como a Geografia, na qualidade de campo de conhecimento, está estruturada do ponto de vista das relações pedagógicas, dos conceitos e conteúdos, das habilidades e competências e, principalmente, da contribuição desse componente curricular para a formação dos/as jovens na última etapa da Educação Básica.

Tomando como ponto de partida as proposições da BNCC/EM (BRASIL, 2018), a Geografia é definida como componente curricular que aparece integrado à área das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (Geografia, História, Filosofia e Sociologia) e suas Tecnologias. Essa reformulação curricular assim concebida supõe, na prática, a preocupação de formar sujeitos em uma perspectiva interdisciplinar, mas, ao mesmo tempo, a forma como é operacionalizada na organização de cada área desvia o direito de aprender a pensar sobre o espaço geográfico.

A rigor, no Brasil, temos escolhido percursos formativos para as Licenciaturas organizados em áreas restritas, visando os percursos curriculares de cada etapa da Educação Básica. Nesse sentido, os desenhos curriculares dos cursos de formação inicial para atuar na Educação Básica são estruturados por diferentes componentes que dão a ordenação e o direcionamento do trabalho docente.

É lamentável que, no Brasil, os documentos curriculares oficiais sejam produzidos por pessoas externas ao ofício docente, sem nenhuma vinculação com o contexto escolar, quando deveriam efetivamente ser construídos pelos agentes do ensino e da aprendizagem, ou seja, profissionais da educação e estudantes. Tal postura conservadora resulta em contradições no discurso pedagógico e falácias na materialização das políticas educacionais. Com as contribuições de Silva (2017), podemos compreender que os componentes curriculares não têm tido sólida formação teórico-prática, na medida em que as legislações pertinentes têm feito propostas aligeiradas para a formação de professores/as e, ainda, matrizes curriculares disciplinares estanques entre si, sem ter a escola como lócus do percurso formativo e o trabalho docente como unidade estruturante para a articulação do ensino-aprendizagem.

Todavia, é preciso reconhecer que não só a BNCC, mas também outros documentos curriculares brasileiros de caráter imperativo são eivados de disputas entre campos do conhecimento. Temos visto, cada vez com mais força política, setores externos à área educacional mobilizados na implantação da Base. Parece-nos que algumas entidades e órgãos governamentais têm escolhido ouvir mais esses setores do que efetivamente as associações e as entidades que congregam pesquisadores e estudiosos da área. Embora tenhamos identificado no cenário acadêmico-científico amplos debates e posicionamentos convergentes e divergentes em torno do que poderia constituir uma Base Nacional (a título de exemplo, os posicionamentos da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação - ANPED, da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação - ANFOPE, da Associação Nacional de Política e Administração da Educação - ANPAE, do Fórum Nacional de Diretores de Faculdades, Centros de Educação ou Equivalentes das Universidades Públicas Brasileiras - FORUMDIR), essas vozes foram praticamente desconsideradas nas versões definitivas do documento.

Entretanto, articulações feitas entre agentes federativos e organizações privadas4 parecem ter tomado lugar mais contundente, senão expressões mais acolhidas pelos autores do texto final, que, reiteramos, assumiu um viés técnico-instrumental da educação escolar.

A expressão dessas organizações e fundações ficou manifesta no Movimento pela Base (MpB). Embora o discurso legitimado pelo governo afirmasse que a Base seria construída por um corpo de especialistas e pela sociedade civil organizada, percebe-se que o saber especializado (acadêmico-científico) foi menos valorizado que o capital econômico. Logo, o poder das citadas organizações ficou maior que o das universidades e, ainda, a participação da sociedade civil organizada foi apenas um engodo para gerar midiaticamente um sentido de participação na construção do documento.

Nessa seara, a BNCC/EM (BRASIL, 2018) apenas preocupou-se em alterar algumas nomenclaturas, em estabelecer rol de competências e habilidades, sem, no entanto, propor questões macro para que se avance em matéria de aprendizagens significativas e em contexto. Assim sendo, a organização da BNCC do Ensino Médio baseia-se em áreas de conhecimento (Linguagens e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e suas Tecnologias).

Cabe destacar que, desde 2013, quando deu-se o start para a instauração da BNCC da Educação Básica, alguns eventos, capitaneados por fundações com interesse político e econômico na educação brasileira, ocorreram. Forte inspiração do pragmatismo norte-americano impregnou não só esses eventos, como também o teor discursivo da BNCC. Certamente, tal intuito está atrelado a uma defesa de ofertar à educação pública brasileira um conhecimento científico menos robusto, o que se pode observar no grau de importância/relevância dado pela Base ao domínio de Língua Portuguesa e Matemática, com perspectiva utilitarista e reducionista, deixando em lugar secundarizado outras áreas de conhecimento e outros saberes disciplinares tão importantes quanto. Nossa crítica incide sobre o fato de a construção de um documento dessa envergadura não ter considerado todos os constructos curriculares feitos ao longo das últimas décadas no Brasil, assim como ter se furtado ao diálogo estreito, orgânico e sistemático com os agentes do contexto diverso que constitui o cenário educacional brasileiro.

A área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e suas Tecnologias, que compreende os componentes curriculares da História, Geografia, Sociologia e Filosofia, fazem parte dos componentes da chamada parte diversificada da base. Essas disciplinas serão trabalhadas, no Ensino Médio, a partir de competências e habilidades de forma interdisciplinar, ofertadas por itinerários formativos dispostos em diferentes arranjos curriculares, dependendo da realidade de cada unidade escolar, sujeitos e comunidade (BRASIL, 2018). De acordo com o texto da BNCC:

A área de Ciências Humanas, no Ensino Fundamental, define aprendizagens centradas na análise, comparação, interpretação e construção de argumentos, por meio da utilização de conceitos e recursos fundantes da área. No Ensino Médio, a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas amplia essa base conceitual e, mantendo referência às principais categorias da área, concentra-se na análise e na avaliação das relações sociais, dos modelos econômicos, dos processos políticos e das diversas culturas (BRASIL, 2018, p. 470-471).

No âmbito da Geografia escolar, a forma pela qual são apresentadas as proposições dos objetos de conhecimento, competências e habilidades na BNCC, o campo complexo e multidimensional, que é a Geografia, é tratado com superficialidade, deixando de abordar saberes e conceitos nucleares desse componente curricular. Entendemos que essa ausência não possibilita o desenvolvimento do pensamento espacial e crítico sobre a realidade que circunda o cotidiano do/a estudante.

Curioso, senão contraditório, é que um dos argumentos defendidos pelos diferentes agentes envolvidos na construção da BNCC gira em torno da “qualidade” da educação e também da possibilidade de que tenhamos, a partir dela, melhores condições e oportunidades de “medir” essa qualidade. Outra justificativa é a de que a educação brasileira precisa ser avaliada por indicadores internacionais. Nesse aspecto, ficam latentes os reais interesses em torno dessas verificações acerca do que se ensina e do que se aprende. Em verdade, são intenções de classificar, ranquear, comparar o ensino público e privado. O discurso neoliberal de “oportunidades” é falacioso. Os contextos em que vivemos são desiguais. A infraestrutura da escola pública é precária. A base conceitual entre estudantes é muito distinta. Os interessados na BNCC e em seu formato homogeneizador, reducionista, instrumental e excludente não se importam com aspectos fundamentais, tais como os destacados por Fraser e Honneth (2003) a respeito de políticas de “reconhecimento” e “redistribuição”. Antes de avaliar o desempenho de professores e estudantes, é preciso investir nas condições estruturais para o ensino e a aprendizagem na escola pública. Quanto mais superficial a base conceitual proposta nos documentos oficiais, mais defasagem e menor os resultados obtidos pelos estudantes.

Isso significa que essa superficialidade conceitual tem a ver com o retorno à prescrição dos conteúdos geográficos sem que sejam problematizados e aprofundados no que tange à espacialidade, historicidade e respectiva constituição epistêmica (SILVA, 2017). Em outras palavras, a pouca e/ou a menor atenção e relevância dadas ao componente curricular de Geografia no novo currículo do Ensino Médio/BNCC levam, certamente, à desconstrução científica e pedagógica dessa ciência e à secundarização dos conceitos geográficos, contribuindo para minimizar a importância destes na formação dos estudantes do Ensino Médio.

Nesse sentido, compreendemos que a BNCC/EM se reporta à Geografia Escolar como um componente de natureza interdisciplinar, portanto como um recorte da área das Ciências Humanas, mas que se diluiu em uma grande área de conhecimento. A escolha feita pela BNCC/EM, qual seja, de tornar difusa uma formação que oscila entre o caráter propedêutico e o técnico, contribui para fragilizar o percurso formativo dos jovens que cursam o Ensino Médio.

Os argumentos em defesa da BNCC apresentados pelo MpB, além de girarem em torno da igualdade de oportunidades, proclamam um “currículo nacional”. Ora, essa é outra contradição! Como pensar uma unidade nacional em um país multifacetado, heterogêneo, com desigualdades estruturais? É preciso insistir em uma questão importante, que não pode ser esquecida: uma Base Nacional, tal qual preconizada pela Constituição Federal de 1988 e pela LDB/1996, trazia como perspectiva uma base filosófica, assentada na função social precípua da escola e da Educação Básica e nos princípios orientadores que a sustentam, tal como se vê naqueles apresentados nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica. Isso não constitui sinônimo de uma definição estratificada de conteúdos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento para cada etapa educativa, tanto que a legislação maior (LDB) apregoa o respeito aos sistemas próprios de ensino, ou seja, uma parte comum (princípios e diretrizes gerais) e a parte diversificada (os constructos próprios de cada sistema de ensino).

Ainda não podemos deixar de afirmar que, de acordo com a LDB (1996), essa construção da parte comum e da parte diversificada deveria ser produzida tendo como lócus central a escola, seus profissionais, os/as estudantes, a comunidade escolar. É imperioso asseverar que não compete a nenhuma outra instância, a não ser a dos profissionais da educação, definir dimensões e estruturas curriculares, tampouco objetivos de aprendizagem, muito menos indicadores de avaliação. Não há legitimidade e é uma invasão epistemológica permitir que organizações com interesses econômicos e políticos tomem e conduzam definições acerca do que ensinar e do que aprender.

Do nosso ponto de vista, tantas críticas feitas por profissionais da educação e suas entidades representativas à Base não incidem tão somente no modus operandi do grupo que construiu e conduziu o documento. Trata-se de destacar que tais críticas somam à defesa de que é nas escolas e nas faculdades de educação das universidades públicas que se constroem os saberes e os conhecimentos curriculares. Outro aspecto importante é que tais entidades educacionais também compreendem que os sistemas de ensino já têm um corpus robusto e consolidado de documentos curriculares e propostas pedagógicas, bem como legislação e muitos saberes da experiência que os ancoram.

Entendemos que as redes de ensino necessitarão, para buscar coerência interna, dar conta da organização de um percurso curricular e propostas pedagógicas que sustentem a formação integral do jovens, com a inserção de saberes condizentes com os perfis dos estudantes e as culturas da juventude, apontando metodologias de ensino pautadas pela aprendizagem ativa e colaborativa, restituindo o caráter de integralidade dos conhecimentos e conceitos geográficos, históricos, sociológicos e filosófico que são essenciais para a vivência em sociedade.

Defendemos que a Geografia e os demais componentes dessa área de formação tenham como preocupação central formar sujeitos críticos, participativos e reflexivos visando ao equilíbrio entre uma formação científica e humana. Na BNCC, essa área de conhecimento tem como fundamento preparar os/as estudantes para “[...] analisar, relacionar, comparar e compreender contextos e identidades que são condições para conhecer, problematizar, criticar e tomar decisões” (BRASIL, 2018, p. 549).

O Ensino Médio se caracteriza como fase final da Educação Básica, pressupondo que o sujeito saiba atuar de forma cidadã, crítica e propositiva em face dos aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos gerenciados pelo mundo das transformações globais e pelo homem sobre o espaço em que vive e atua. No entanto, como está proposta a organização da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e suas Tecnologias na BNCC do Ensino Médio, sem as especificidades de cada componente curricular, com o devido aprofundamento teórico e conceitual, não será possível garantir aos estudantes os saberes fundamentais para a formação global dos/das estudantes.

No âmbito dos contributos da Geografia para a formação dos/as jovens estudantes, Portela (2018) avalia que a maneira como a base se apresenta e dá importância ao caráter prescritivo dos conteúdos do que a outros aspectos humanos, culturais e sociais, julgados como essenciais para a formação do sujeito, tende a formar jovens trabalhadores/as para o mercado de trabalho, e não para a vida. A mesma autora cita que essa mudança é resultado de um jogo de interesses ideológico, político e mercantil, em que foi dada prioridade aos aspectos conteudistas com relação às questões formativas, em prejuízo de uma formação que pode desenvolver o senso crítico autônomo, criativo e participativo dos/das estudantes.

Em seus fundamentos, o documento orienta que a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e suas Tecnologias têm como objetivo garantir as aprendizagens essenciais para os/as estudantes. Para tanto, são definidas algumas categorias fundantes como “tempo e espaço”, “territórios e fronteiras”, “indivíduo, natureza, sociedade, cultura” e “ética, política e trabalho”, que servirão de base para a organização dessa área (BRASIL, 2018). De acordo com o texto, essas categorias estão presentes na operacionalização das competências, habilidades da área.

As categorias de tempo e espaço são problematizadas na análise de contextos mais amplos. Território e fronteira são categorias que estruturam o conceito de espaço em suas diferentes dimensões, para além da noção de superfície terrestre, de país ou de nação. As relações entre sociedade e natureza em diferentes culturas, sua organização social, política e cultural, suas formas de trabalho, suas relações com outras populações e seus conflitos e negociações permitem compreender seus significados, ultrapassando o campo das evidências e caminhando para o campo das representações abstratas (BRASIL, 2018, p. 126).

Acreditamos que a proposição dessas categorias não compreende as especificidades de cada componente que constitui a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e suas Tecnologias. Não possibilita o trabalho com os saberes e conhecimentos centrais, que são fundamentais na formação dos/das estudantes. No que toca à Geografia, Callai (2017) avaliou, durante o processo de construção da BNCC, que os conceitos operantes da Geografia estavam, em algumas situações, ampliados e, em outras, eliminados. A autora também ressalta que a forma como os conceitos foram apresentados e explicitados na estrutura da BNCC revela forte empobrecimento tanto na explicação quanto em sua definição, implicando o desenvolvimento e a apropriação dos conhecimentos geográficos.

Silva (2017) faz uma crítica à generalização, à eliminação ou até mesmo às incoerências nas definições de alguns conceitos da Geografia, quando incorporada na área das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e suas Tecnologias. Ele destaca que, no que tange à formação do pensamento espacial, isso é preocupante, pois a inexistência da apropriação dos conceitos básicos e fundamentais da Geografia implica a não apreensão sobre como o espaço geográfico se configura, impossibilitando, desse modo, que o sujeito tenha condições de fazer uma análise crítica acerca do espaço geográfico. Isso porque a ausência dos conceitos geográficos fundamentais, mesmo enquadrados em uma área de formação, em certa medida dificulta a essa área do conhecimento cumprir seu papel, que é o de ampliar o repertório científico e cultural dos sujeitos, de modo investigativo, crítico e participativo.

Considerando esse grande desafio de operar as categorias indicadas para essa área do conhecimento, o referido documento regulatório propõe competências gerais, humanas e específicas, como pontos de ancoragem para garantir o desenvolvimento dos principais saberes que envolvem todos os componentes curriculares integrantes da área das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e suas Tecnologias. As competências são rearranjadas numa escala progressiva que prevê os conceitos fundantes supracitados, para a compreensão dos conhecimentos dessa área. Para dar conta do desenvolvimento das competências, o documento propõe habilidades específicas, como forças motrizes para processar e mobilizar as competências propostas no âmbito da Geografia.

Andrade e Costella (2016, p. 111) mencionam que as habilidades dizem respeito “[...] a uma capacidade adquirida, ou seja, saber fazer alguma coisa”. Quanto à competência, significa “[...] ter consciência de como e por que os fatos assim são aplicados”. As autoras explicitam que as habilidades servem como elementos guarda-chuva para o desenvolvimento das competências. Portanto, é a partir do desenvolvimento das habilidades que o/a estudante consegue resolver determinado problema e é também na resolução e/ou superação desse problema que a competência se revela.

Straforini (2011) afirma que a institucionalização do conceito “competência” no currículo tem sua origem fundamentada nos interesses do poder hegemônico. Por essa razão, ensinar e aprender pautados pelas competências condizem com o retorno do tecnicismo pedagógico, cujo objetivo é a definição de um elenco de metas para que o sujeito consiga adquirir e resolver determinada situação que lhe seja apresentada. As considerações feitas pelo autor chamam-nos a atenção no sentido do desafio posto à educação, ao/à professor/a e, também, ao ensino de Geografia, que é o de superar essa perspectiva de aprendizagem que ensina o conteúdo pelo conteúdo, sem qualquer tipo de reflexão na ação, e que recorre aos componentes curriculares apenas na medida das necessidades exigidas pelo desenvolvimento das competências.

Na preocupação de que as práticas pedagógicas potencializem o protagonismo juvenil em ambientes desafiadores, promotores de experiências e vivências, para que os/as estudantes se sintam apoiados/as a resolver problemas, construir significados sobre si, os/as outros/as e o mundo social e natural, o texto da BNCC (2018, p. 549) salienta que é imprescindível que as práticas pedagógicas tenham como centralidade as “[...] diferentes linguagens (textuais, imagéticas, artísticas, gestuais, digitais, tecnológicas, gráficas, cartográficas etc.)”, atividades que incluam os “trabalhos de campo (entrevistas, observações, consultas a acervo histórico etc.)” e trabalhos colaborativos.

Para tanto, a questão central que se instala na proposição da BNCC/EM é que a Geografia, como componente curricular, foi diluída em uma área de conhecimento. Consequentemente, acabou perdendo sua identidade geográfica e tendo que atender questões mais complexas, pois seu objeto de estudo, que é o espaço geográfico, tornou-se agregado a outros saberes que compõem a área das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e suas Tecnologias. Isso quer dizer que, se analisarmos os documentos curriculares que antecedem a BNCC, perceberemos um retrocesso para o campo da Geografia, com relação aos conceitos e conteúdos. Em certa medida, a inexistência dos conceitos e conteúdos no desenvolvimento e construção do pensamento espacial implicará fortemente a compreensão do espaço geográfico e, essencialmente, o trabalho que tem como fundamento uma formação voltada para a cidadania plena, participativa e crítica.

As questões sociais e políticas que perpassam o ensino da Geografia, por meio das propostas curriculares, têm sido um terreno fértil de tensões e luta, permeadas por relações de poder que, em certa medida, direcionam o que deve ser ensinado em determinada área de conhecimento. Contudo, a despeito do teor secundário dado ao componente curricular de Geografia, essa proposição curricular traz como elemento desafiador as fragilidades do ponto de vista teórico conceitual a que a ciência geográfica foi relegada.

Diante disso, os/as professores/as de Geografia precisaram buscar caminhos para dar centralidade à Geografia no percurso formativo do Ensino Médio. Terão que operar com dispositivos que possibilitem subverter o que está posto e buscar alternativas para trabalharem com um ensino de Geografia que tenha como base uma formação integral, humana, crítica, reflexiva e, acima de tudo, lutar para que os saberes geográficos assumam protagonismo e relevância na vida dos/as jovens estudantes.

4 REFLEXÕES FINAIS

Com o propósito de levantar algumas reflexões e problematizar a disciplina de Geografia no Ensino Médio a partir da proposta da BNCC de 2018, destacamos algumas questões centrais sobre a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e suas Tecnologias e sua organização na estrutura curricular dessa etapa da Educação Básica.

A questão central que se instala na proposição da BNCC/EM é que a Geografia, como componente curricular, foi diluída em uma área de conhecimento. Consequentemente, acabou perdendo sua identidade geográfica e tendo que atender questões mais complexas, pois seu objeto de estudo, que é o espaço geográfico, tornou-se agregado a outros saberes que compõem a área das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e suas Tecnologias.

As questões sociais e políticas que perpassam o ensino da Geografia por meio das propostas curriculares têm sido um terreno fértil de tensões e luta, permeadas por relações de poder que, em certa medida, direcionam o que deve ser ensinado em determinada área de conhecimento. Por essa razão, é fundamental que, diante de uma realidade em que as políticas curriculares de cunho neoliberal têm definido o que os/as professores/as devem trabalhar na escola, é importante, mais do que nunca, dar visibilidade ao papel da Geografia como ciência que possibilita a leitura e a análise espacial do mundo.

A despeito do teor secundário dado ao componente curricular de Geografia, essa nova formulação curricular traz como elemento desafiador aos/às professores/as problematizar os dilemas instalados dos pontos de vista conceitual, metodológico e formativo, isto é, de uma maneira ou outra, é importante encontrar caminhos para subverter e propor um ensino de Geografia que tenha como base uma formação integral, humana, crítica, reflexiva e, acima de tudo, onde os conhecimentos geográficos assumam protagonismo e relevância na escola e na construção da vida dos/as estudantes.

O estudo mostrou que a reforma do Ensino Médio e a proposição da BNCC/EM trouxeram novas implicações formativas e definições de aprendizagens essenciais, pautadas por competências e habilidades. Ao analisarmos seus pressupostos e fundamentos, observamos que a proposição de itinerários formativos parece insistir em uma falsa promessa de que, tendo oportunidades na escola de fazer escolhas em seu percurso formativo, automaticamente, os/as estudantes terão melhores condições de vida. Isso soa, além de ambíguo e contraditório, uma falácia nos cenários econômico, cultural e social brasileiro. Enquanto este país não se responsabilizar por criar políticas efetivas de reconhecimento e justiça social, a escola continuará sendo tratada como penduricalho do Estado, os/as professores/as como serviçais do mercado e os/as estudantes como alvo para a produção de mão de obra barata.

Acreditamos serem importantes outras reflexões pontuais acerca da BNCC/EM que possam problematizar algumas questões centrais: a imposição de currículos prontos e prescritivos que desconhecem a realidade e as especificidades dos/das estudantes e das escolas da Educação Básica deste país e a reprodução de práticas escolares excludentes e tradicionais, nas quais as culturas e a diversidade da juventude não têm lugar.

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NOTAS:

1 As autoras Lopes e Macedo (2011, p. 57) argumentam que essas competências se inserem no campo da educação como “saber/aprender, saber/fazer e saber/ser”.

2 Os deslocamentos das ideias formuladas pelos pesquisadores do currículo tradicional para as políticas curriculares do Brasil se deram tanto para a organização dos conteúdos e objetivos quanto para a formulação de avaliação e resultados.

3 Segundo Lopes e Macedo (2011), os tecnocratas eram os tradicionais pesquisadores da época que desenhavam o currículo conforme os interesses do mercado de trabalho de forma técnica, instrumental e competitiva. Sobretudo, Macedo e Macedo (2012, p. 6) comentam que “a concepção de currículo expressa pelo desejo dos tecnocratas era de uniformidade, de unicidade, como comenta o professor português João Formosinho, currículo uniforme - pronto-a-vestir de tamanho único”.

4 A título de exemplo, citamos a Fundação Lemann, a Fundação Abrinq, a Fundação Itaú Social, entre outras.

Recebido: 17 de Abril de 2021; Aceito: 31 de Janeiro de 2022

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