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Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.20 no.4 São Paulo Oct./Dec 2022  Epub Jan 30, 2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2022v20i4p1464-1483 

Artigos

Nossa Raiva como Dispositivo de Contracolonização dos Currículos:um Diálogo com Pesquisadoras Negras

Our Anger as Curricula’s Contra-Colonisation Device:a Talk with Black Women Researchers

Nuestra Ira como Dispositivo de Contracolonización Curricular:un Dialogo con Investigadoras Negras

Flávia Paola Félix MEIRAi 
http://orcid.org/0000-0002-5851-3090

Julvan Moreira de OLIVEIRAii 
http://orcid.org/0000-0003-1815-6268

i Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: flaviapaolafmeira@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-5851-3090.

ii Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: julvan.moreira@ufjf.edu.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-1815-6268.


Resumo

Este trabalho tem como objetivo dialogar com as histórias, os traumas e as alegrias que impulsionam o processo de pesquisa de mulheres negras e que figuram em seus trabalhos acadêmicos, cujo propósito era o de investigar como ocorreu a implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER) nos cursos de Pedagogia. A partir das perspectivas decolonial e pós-colonial, realizamos uma análise pormenorizada de dez produções. Identificamos como o racismo experimentado por essas mulheres, bem como alguns marcadores africanos, fizeram-se presentes em suas trajetórias, pavimentando um desejo de compreender como se consolida um currículo de formação de professores e como o tema das relações étnico-raciais permeia o território acadêmico.

Palavras-chave: contracolonização; diretrizes curriculares nacionais; educação das relações étnico- raciais; currículo; mulheres negras

Abstract

This work aims at establishing a talk with the stories, traumas and happy moments that propel the research praxis of black women researchers, as well as appear in their academic works, whose goal were to inquire how the National Curricular Guidelines were carried out in the Ethnic-racial Relations Education and in the Teaching of Afro-Brazilian and African History and Culture in Pedagogy courses. From a decolonial and postcolonial perspective, we have done a detailed analysis of ten studies. We have identified how racism experienced by those black women researchers as well as how some African markers appear in the women’s pathway, underpinning the longing for understanding how teacher education curriculum is consolidated and how the topics involving ethnic- racial relations pervade the academic setting.

Keywords: contra-colonization; national curricular guidelines; ethnic-racial relations education; curriculum; black women researchers

Resumen

Este trabajo tiene como objetivo dialogar con las historias, traumas y alegrías que impulsan el proceso de investigación de las mujeres negras, así como aparecen en sus trabajos académicos, cuyos propósitos fueron indagar cómo ocurrió la implementación de los Lineamientos Curriculares Nacionales para la Educación de las Relaciones Raciales para la Enseñanza de la Historia y Cultura Afrobrasileña y Africana (DCNERER) en los cursos de Pedagogía. Desde una perspectiva decolonial y poscolonial, realizamos un análisis detallado de diez producciones. Identificamos cómo el racismo vivido por estas mujeres, así como algunos marcadores africanos, estuvieron presentes en sus trayectorias, abriendo el camino para un deseo de entender cómo se consolida un currículo de formación docente y cómo el tema de las relaciones étnico-raciales permea el ámbito del territorio académico.

Palabras clave: contracolonización; directrices curriculares nacionales; educación en relaciones étnico-raciales; currículo; mujeres negras

1 INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, no Brasil, temas como a educação das relações étnico-raciais, políticas de cotas e pautas que tangenciam o debate multicultural vêm ocupando os espaços na sociedade e em seus campos de discussões, resistência e reexistência. Como corroboram Gonçalves e Silva (1998), são fatores que vieram para questionar o paraíso racial, no qual o Brasil se alicerçou desde o século passado, entre eles a ideia engessada e regimentada da democracia racial. As novas subjetividades negras, sejam por meio da arte, pesquisa ou política, ocuparam os espaços e provocaram deslocamentos até os dias hoje, forçando a passagem (EVARISTO, 2018). Entre elas temos o Teatro Experimental do Negro (TEN) nos anos 1940, liderado por Abdias Nascimento, o Projeto financiado pela Unesco na década de 1950, que buscou compreender como se davam as relações raciais no Brasil, tendo Florestan Fernandes, Alberto Guerreiro Ramos, Virginia Bicudo, entre outros, como pesquisadores envolvidos; significou a abertura de novas possibilidades de ler o Brasil. Para Maio (2000), a pesquisa da Unesco foi além das expectativas, pois, quando o objetivo era ter o Brasil como referência internacional contra as mazelas raciais, a agência sistematizou um conjunto de dados que comprovavam a existência do preconceito e da discriminação no País, reverberando no campo das ciências sociais e nas produções acadêmicas.

Nos anos seguintes, vários movimentos econômicos e políticos, a fim de fortalecer uma aproximação internacional entre Brasil e África, foram incentivados. Saraiva (2012), discorre sobre esse ir e vir, desde a Segunda Guerra ao início do século XXI, período da retomada da política africana no Brasil, reabrindo uma agenda africana-brasileira voltada para a construção de um mundo mais plural e mais justo.

Assim, após a realização da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlatas de Durban, em 2001, chamada por Carneiro (2019) de Batalha de Durban, uma vez que aflorou a problemática étnico-racial no plano internacional, em destaque os Estados Unidos, e reconheceu a urgência da implementação das políticas reparadoras e o reconhecimento da população afrodescendente e a existência do racismo e da discriminação racial sobre essa população, no campo da Educação, em 2003, ocorre a aprovação da Lei 10.639 (BRASIL, 2013).

A Lei 10.639/2003, por meio do artigo 26-A, torna o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira obrigatório na educação básica e, pelo artigo 79-B, inclui no calendário escolar o dia 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra. Em consequência, tem-se a publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCN/ERER), amparada pelos atos normativos que a regulamentam, o Parecer CNE/CP 03/2004 e a Resolução CNE/CP 01/2004 (BRASIL, 2013), que direcionam como as Instituições, sejam de ensino superior ou de educação básica, deverão inserir o tema na formação.

No que concerne especificamente à formação docente, seja por meio da formação continuada ou inicial, a Resolução CNE/CP 01/2004 dispõe que:

§ 1.º Instituições de Ensino Superior incluirão nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos que ministram, a Educação das Relações Étnico-Raciais, bem como o tratamento das questões e temáticas que dizem respeito aos afrodescendentes, nos termos explicados no Parecer CNE/CP n.º 3/2004 (BRASIL, 2013, p. 77).

Portanto, a formação do docente poderá ocorrer tanto de forma transversal ou a instituição poderá deliberar e institucionalizar a disciplina específica no Plano Curricular.

No tocante à formação inicial, diante da forma como ainda se estruturam os currículos, os Projetos Políticos Pedagógicos, a distribuição das disciplinas e suas respectivas cargas horárias, deve-se ter um olhar atento e cuidadoso quando nos referimos a inserção pelas vias transversais. Nossas instituições ainda consolidam o currículo como lugar do conhecimento dos poderosos, quando muitas vezes deveria ser conhecimento poderoso, aquele que ele considera útil aos estudantes (YOUNG, 2007). E nesse mergulho em diferenciar o que é conhecimento dos poderosos e conhecimento poderoso compreendemos a relação de forças de contestação desse espaço, pois o currículo é um território político, é relação de poder, é documento de identidade, é território (SILVA, 1999).

Nessa perspectiva, pensar educação no campo das relações étnico-raciais requer considerar além dos espaços já estabelecidos, assim como romper esses espaços demanda identificar os espaços de fronteiras, o “entre--lugar” (BHABHA, 2013), bem como conceber a inserção não como inclusão de tema de forma partilhada e fragmentada, mas lugar de enunciação (MACEDO, 2006). Carvalho (2020) propõe o rompimento das grades que cercam as instituições, descolonizar o pensamento e ir ao encontro dos contracolonizadores (BISPO DOS SANTOS, 2019).

Podemos dizer que o processo de construção das DCNERER se aproxima um pouco dessa proposta, uma vez que foram construídas com o envolvimento direto e indireto do movimento negro iniciado ainda em 2002, que, segundo Gatinho (2008), foi realizado por meio de escuta, seminários, reuniões e questionários, gerando um documento robusto, o qual, além de tratar sobre a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, convoca para o enfrentamento ao racismo, a construção e abertura para novas epistemologias, para o mergulho nas subjetividades, o que aponta o desafio do processo de implementação na formação dos professores.

Nesse sentido, com o objetivo de compreender como ocorreu essa tratativa no campo da formação docente, mais especificamente na formação inicial dos cursos de Pedagogia, realizamos um levantamento no banco de teses e dissertações da base de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), mapeando pesquisas que indagaram a respeito, seja por meio de análise do currículo escrito, entrevista com professor e/ou pesquisa com egressos. No consolidado, deparamos com um volume de trabalhos majoritariamente produzidos por mulheres, totalizando dezoito trabalhos desenvolvidos entre os anos de 2006 a 2019. Mediante a leitura destes, identificamos dez feitos por mulheres negras, sete por brancas e um que não foi possível identificar pelos escritos ora apresentados.

Reconhecendo que analisar e questionar um currículo, suas forças e, consequentemente, as estruturas na perspectiva da educação das relações étnico-raciais, e que, nesse caso, o trabalho ainda pode expor as mazelas de como o racismo institucional ainda arregimenta esse território, mesmo em vista de se abrir para um diálogo multicultural, uma vez que “nem todas as políticas multiculturais são progressistas” (MACEDO, 2006, p. 333), escolhemos dialogar com as produções elaboradas pelas pesquisadoras negras, resgatando suas histórias, traumas e alegrias que impulsionaram o processo de pesquisa e como o racismo experimentado por essas mulheres pavimentaram suas pesquisas. Debater a inserção das relações étnico-raciais é conectar a seus processos de subjetivação e a seus cosmos e que a formação ocorre ao longo de nossas vidas. Lembramos que referenciamos como negra a soma de pretas e pardas que devem ser agrupadas não apenas pelas proximidades socioeconômicas, mas pelas demandas políticas e identitárias (MUNANGA, 2004).

Quadro 1 Produções 

TÍTULO AUTOR ANO
A educação para as relações étnico-raciais em um curso de Pedagogia: estudo de caso sobre a implantação da resolução CNE/CP 01/2004 MONTEIRO, Rosana Batista 2010
Educação das relações étnico-raciais: limites e possibilidades no curso de Pedagogia da UFSCar CARDOSO, Ivanilda Amado 2016
A pesquisa na formação docente e a temática étnico-racial: uma análise dos TCCs do curso de Pedagogia da FACIP/UFU NOGUEIRA, Rafaela Rodrigues 2016
A Lei 10.639 em dois cursos de Pedagogia ofertados no Estado do Rio de Janeiro: ponto de discussão ou de negação? CORENZA, Janaina de Azevedo 2017
Educação, diversidade e formação de professores: relações étnico-raciais na proposta pedagógica de cursos de Pedagogia de Instituições de Ensino Superior Sul-Mineiras. COSTA, Ieda Maria da 2017
As relações étnico-raciais na formação inicial de pedagogos REIS, Natália do Carmo 2016
Formação de professores para o trabalho com a educação das relações étnico-raciais MIRANDA, Vanessa Regina Eleutério 2018
Educação das relações étnico-raciais e práticas curriculares de enfrentamento do racismo na UNILAB FERREIRA, Michele Guerreiro 2018
A educação das relações étnico-raciais no currículo de um curso de Pedagogia: percurso, contribuições e desafios MEIRA, Flávia Paola Félix 2018
Os cursos de licenciatura em Pedagogia da UESB: uma “outra” episteme para a temática étnico-racial no âmbito do currículo formal. MACEDO, Janine Couto Cruz 2019

Fonte: Plataforma Tese e Pesquisa Capes.

Conhecer e reconhecer as histórias dessas pesquisadoras negras e trazê-las para o centro do diálogo colaboram com o rompimento de um lugar construído e ocupado historicamente pelo homem branco em “nossas” universidades cunhadas no modelo ocidental, eurocêntrico e brancocêntrico. Dávila (2006) elucida um pouco desse panorama ao tratar sobre o pensamento racial e a expansão do ensino brasileiro entre os anos de 1917 a 1945, proporcionando-nos refletir sobre a dinâmica do branqueamento desses espaços e apontando para a redução gradual de afrodescendente nas escolas do Rio de Janeiro.

Hoje, os sem-lugar, como denomina Arroyo (2014), vão ocupando esses espaços onde cada nova situação vivida e padecida leva a novas indagações e a novas aprendizagens. As pesquisadoras, mulheres negras, lançaram-se no desafio de questionar a estrutura curricular vigente e em muitos casos endurecidas, sugerindo novas formas e estratégias de descolonização desse espaço.

Assim, para além de compreender o processo de implementação das DCNERER, dialogamos com suas histórias, seu existir.

[...] é fundante existirmos em nossas pesquisas, falarmos de nós mesmas, desde nossas experiências, fragilidades, dúvidas, curiosidades, lutas conquistas, pois o racismo, a colonialidade afeta profundamente nossas subjetividades, desde o sertão que nos tece. A afirmação de si é afirmação de todas as nossas ancestrais... de quem já veio, de quem aqui está e de quem virá (MACHADO, 2020, p. 36).

Ao insurgir, o corpo feminino negro deixa de ser disciplinado e domesticado, troca-se o objeto de estudo, o outro deixa de ser outro e passa a ser sujeito, surge a mulher raivosa, sendo a raiva uma reação às atitudes racistas, o silêncio transforma-se em ação, o invisível torna-se visível (LORDE, 2020).

2 CONTRACOLONIZAR PARA IMPLEMENTAR: PRECISAMOS SABER QUEM SOMOS NÓS

Discorrer sobre a implementação das DCNERER no currículo da formação inicial corrobora o que Bispo dos Santos (2019) traz ao discutir sobre ação e descolonizar e contracolonizar, reforçado também por Carvalho (2020). Ambos tratam sobre o papel daqueles que estão dentro da academia, suas forças e suas demandas nessa agenda, e, por estarem exatamente dentro, são aqueles que preparam o território, abrem caminhos para os que estão fora e as grades para que os contracolonizadores possam entrar, insurgir dentro desse espaço.

Nessa mesa, eu disse que as universidades são as chocadeiras dos ovos do colonialismo, e a função das pretas e pretos que estão lá dentro é fazer esses gorarem. Já a função de quem está fora é trazer novos ovos fecundados e mudar quem nascerá dentro da academia. E que da academia saiam doutores em humanidades, em vida, e não em sinteticidade (BISPO DOS SANTOS, 2019, p. 27).

Nessa confluência de existirem o de dentro e o de fora é que realizamos nossas pesquisas, compreendendo que suas motivações estão ancoradas com o desejo de contracolonizar e, consequentemente, refundar uma nova academia, construir um novo pacto entre todos os grupos e comunidades (CARVALHO, 2020) e estabelecer uma “linha de fuga que possa acolher outra epistemologia, um outro contorno para um jeito de educar para ser-no mundo, sendo diferente” (MACHADO, 2010, p. 12). Nesse sentido, saber quem somos e de onde viemos, falar de nossas histórias e quem as compõem, é uma das tarefas para se construírem novas epistemologias e outras formas de pensar e intervir no mundo. O ideograma sankofa representa esse movimento; um dos símbolos gráficos da comunidade akan é representado por um pássaro olhando para trás com um ovo na boca; em resumo, é preciso voltar às nossas raízes para seguir voando, aprender e saber de onde viemos.

Com muito cuidado em nossa leitura dos trabalhos, recorremos a dois caminhos, um realizando a leitura do que está literalmente escrito pelas autoras e outro, ao que não foi escrito no texto, mas o que atravessa suas palavras, seus silêncios. De acordo com Orlandi (2007), as palavras são carregadas de silêncio, logo o silêncio não é a ausência ou falta de palavras, mas a conexão com a linguagem e com o discurso dos sujeitos. É relevante ressaltar que essa escolha não foi realizada com intenção de interpretar o que foi escrito pelas pesquisadoras, pois não cabe interpretação, elas já o são. A proposta é escutar, unir suas forças em um movimento de cura, partilha e comunhão.

Consequentemente, bebemos também em Kilomba (2019), autora que problematiza esse processo de escrita como forma de tornarmos sujeito e como essa ação resulta em possibilidades de mudanças que ocorrem quando falamos. Assim, ela nos provoca além de reflexões que nos subsidiam na construção do diálogo com as pesquisadoras, contribuindo para discorrermos sobre o campo curricular e como este se organiza, estrutura-se e, sobretudo, definir quem pode falar e quem é ouvido. Spivak (2010) também contribui reforçando a necessidade de reconhecermos o lugar de fala desse outro como sujeito, separando-o das referências culturais ocidentais e os riscos do que denominamos representação. E Lorde (2020, p. 159) fala sobre nossa raiva que vem em forma de manifestação ao racismo e opressão experimentada e, como essa manifestação pode provocar mudanças e deslocamentos:

[...] toda mulher tem um artesanal de raiva bem abastecido que pode ser muito útil contra as opressões, pessoais e institucionais, que são a origem da raiva. Usada com precisão, ela pode se tornar uma poderosa fonte de energia a serviço do progresso e da mudança. E quando falo de mudança não me refiro a uma simples troca de papéis ou a uma redução temporária das tensões, nem à habilidade de sorrir ou se sentir bem. Estou falando de uma alteração radical na base dos pressupostos sobre os quais nossas vidas são construídas.

Seguindo ainda com essas inquietações, Anzaldua (2000) denomina esse deslocamento da escrita pelas mulheres do Terceiro Mundo como estratégias de sobrevivência, uma forma de confrontar nossos demônios e viver para falar sobre eles, e por meio dessa escrita revelamos nossos medos, nossa força, nossa raiva. Essa raiva, chamada por Kilomba (2019) de força, é a mesma que provoca a reação no homem branco, a designada de negação, porque, escrevendo, tornamo-nos sujeitos e revelamos o que há de pior na branquitude.

2.1 O racismo cotidiano que impulsiona a escrita

As produções, divididas entre teses e dissertações, foram publicadas entre os anos 2010 e 2019 por pesquisadoras de várias regiões do País, um lócus de pesquisa vasto. Os trabalhos, na organização de suas estruturas, antes de abordarem a questão sobre os caminhos para implementação das DCNERER no currículo na formação inicial, vêm compostos de agradecimentos, dedicatórias, memoriais, apresentações, manifestos, até chegarem à introdução, e foram nesses escritos que mergulhamos e nos aventuramos. Nesses lugares, as autoras, além de escreverem a respeito de suas motivações, indagações e do lugar no mundo, registraram suas angústias, dores, medos, traumas, revoltas e alegrias, falaram de suas famílias, seus territórios e suas africanidades. Nesse momento, já é possível identificar com quem se quer falar (ECO, 1998), mas sobretudo quem está falando.

Entre os diversos relatos surgem histórias traumáticas provocadas pelo racismo cotidiano, em destaque no ambiente familiar e escolar, sejam diretamente a elas ou aos estudantes. O termo racismo cotidiano utilizado neste trabalho vem inspirado e referenciado em Kilomba (2019, p. 80), que em sua produção relata episódios como esses, suas inferências e como essas ações nos colocam no lugar de outro/outra:

O termo “cotidiano” refere-se ao fato de que essas experiências não são pontuais. O racismo cotidiano não é um ataque único ou um “evento discreto”, mas sim uma “constelação de experiências de vida”, uma exposição “constante ao perigo”, um “padrão contínuo de abuso” que se repete incessantemente ao longo da biografia de alguém - no ônibus, no supermercado, em uma festa, no jantar, na família.

Surgem também histórias de alegrias, de potências e de fortalecimento da identidade negra, tendo a tranforAÇÃO, a aceitação da dor, por meio da empatia, amor e cura, e só assim venceremos o racismo e o patriarcado, com nossas armas, ressignificações, pela força vital que nos tece (MACHADO, 2020, p. 35). As pesquisadoras também trazem o papel da família nesse caminhar, como o suporte para o acesso à educação e busca de reparação, uma vez que muitos dos seus não tiveram essa chance, impactando diretamente sua mobilidade social. Hasenbalg (2005, p. 207) realiza essa discussão de forma profunda ao discorrer sobre mobilidade social, desigualdade de oportunidade e raça, a partir de suas análises, afirmando que “a abertura da estrutura social para mobilidade social ascendente é inversamente relacionada à negritude da pigmentação da pele”. Fanon (2008) também fala sobre esses traumas, o impacto de nossas experiências como negro em ambientes predominantemente brancos. De acordo com o autor, “uma criança negra, normal, tendo crescido no seio de uma família normal, ficará anormal ao menor contato com o mundo branco” (FANON, 2008, p. 129), drama presente com mais intensidade nos países colonizados.

Salienta-se que a forma de tratar essas experiências do racismo na educação consta como dever nas DCNERER, que apontam a necessidade desse cuidado no ambiente escolar, por meio da revisão e construção de propostas pedagógicas desenvolvidas pela escola no combate ao racismo, a emergência das dores e medos nessa reeducação (BRASIL, 2013).

Costa (2017, p. 19), ao escrever em seu memorial de apresentação, denominado por ela de entrelaçamento de Histórias e experiências, e com uma formação advinda de uma trajetória de educação básica em escola pública, relata:

Quando eu estava no ensino fundamental sempre ouvia muitas piadas e comentários sobre os negros e sua cultura. Nas aulas de História, nas leituras e discussões acerca da escravidão no Brasil, percebia olhares que os colegas lançavam em minha direção. Nesses dias, sabendo que esse seria o conteúdo das aulas, arrumava uma desculpa qualquer para não ir à aula. Nunca um professor - nesse nível de ensino e nos que o sucederam - posicionou-se frente a essas brincadeiras de mau gosto. Talvez não soubessem como lidar com tal situação ou talvez concordassem com as brincadeiras [...]. São experiências que, muitos anos depois, constituíram a professora que me tornei.

Esse trecho relata o que de mais violento pode existir e acontecer quando a escola se isenta de discutir e reprimir atitudes racistas, e essa isenção ocorre tanto por naturalizar o fato ou por não saber como tratar a situação. Na perspectiva da colonialidade, em que as diferenças, políticas de morte e desumanização se comungam, esse espaço que a estudante ocupa, determinado pela escola e pelos colegas de sala, compõe o lugar de não ser, não poder e não saber, “a colonialidade do poder, ser e saber objetiva manter os condenados em seus lugares, fixos, como se estivessem no inferno” (TORRES, 2020, p. 44), e assim a escola passa a ser o inferno desta e de outros estudantes negros.

Em situação semelhante, Reis (2016) descreve sua primeira experiência com o racismo, que iniciou ao se inserir na escola. A autora reforça o quanto ter sido uma criança amada, crescida em ambiente acolhedor da família e amigos contribuiu para o fortalecimento de sua autoestima. No entanto, esse acolhimento e amparo não foram suficientes para se proteger e não ser colocada no lugar chamado por ela de “limbo escolar”, espaço destinado aos estudantes negros, local de apelidos racistas e exclusão das brincadeiras pelas crianças brancas. E lugar também do não visto e omitido pelos funcionários e professores da escola que, de certa forma, ao silenciarem, autorizam e concedem às crianças brancas o direito de reproduzirem a prática racista. Cavalleiro (2017, p. 54) desenvolve essa discussão em sua pesquisa, realizada durante meses no espaço pré-escolar, observando o convívio social e suas relações multiétnicas, dissertando sobre a interação entre crianças brancas e negras e a omissão da comunidade escolar no processo:

O silêncio permanente das professoras a respeito das diferenças étnica no espaço escolar, somado ao das crianças negras, parece conferir aos alunos brancos o direito de reproduzir aos alunos brancos o direito de reproduzir seus comportamentos, pois não são criticados ou denunciados, podendo utilizar essa estratégia como trunfo em qualquer situação de conflito.

Ainda nessa perspectiva, da ausência do debate acerca do impacto do racismo e tudo o que ele abarca, vivida na discussão na Educação Básica, ser inspiração para pesquisa, Corenza (2017) e Miranda (2018) trazem duas ponderações importantes. Corenza (2017), a partir de sua experiência como professora na Educação de Jovens e Adultos, que segundo a autora é um lugar ocupado pela maioria de estudantes negros, relata a dificuldade de esses estudantes se reconhecerem negros e negras e a invisibilidade da discussão no ambiente escolar. Assim, após desenvolver um trabalho voltado para o reconhecimento dessa identidade, percebe o quanto ser negro está relacionado diretamente a algo negativo pelos estudantes (OLIVEIRA, 2000), bem como as estratégias de não se reconhecerem negros se fazem presentes, não existindo uma identidade racial entre ambos. Nesse mesmo percurso do projeto, a pesquisadora expõe sobre a dificuldade do trabalho em razão da ausência do debate em sua formação e que

[...] junto às professoras parceiras que acreditavam na importância deste debate, criávamos estratégias para estudarmos e buscarmos melhorias nos nossos projetos e atividades com a temática das relações raciais. É possível afirmar que trabalhávamos nas brechas do currículo oficial (CORENZA, 2017, p. 17).

É no campo curricular, um espaço de disputa e recorrentemente contestado, que criamos espaços de elaboração de novas estratégias de subjetivação, o “entre-lugar”, o lugar de fronteira, que pode ser tanto conflituoso como consensual e desafiar as normas já estabelecidas (BHABHA, 2013).

Miranda (2018), por sua vez, além de falar de sua experiência como professora, trata sobre o lugar e a violência recebida como estudante entre os anos 1970 e 1990. No trecho, colocado em nota de rodapé no trabalho, ela elucida sobre os espaços que poderiam ocupar dentro do ambiente escolar sendo uma boa aluna:

Estudei em escolas públicas estaduais entre as décadas de 1970 e 1980, quando as mesmas tinham por prática a premiação de estudantes bem-sucedidos (boas notas), muitas vezes com medalhas. Fui premiada em quase todas as disciplinas, nos anos iniciais do ensino fundamental (1.º grau, na época) e bem avaliada por professores, ao longo de toda a trajetória escolar. Todavia, minha condição de “boa aluna” não me favorecia a participação em atividade de destaque público, que ultrapasse os muros da sala de aula, principalmente nos eventos onde famílias e comunidade estivessem presentes na escola (MIRANDA, 2018, p. 17).

Nesse relato, fica visível que, se a escola concedesse visibilidade à criança negra, além de reconhecer sua capacidade e conhecimento, possibilitaria e oportunizaria a construção de uma nova posição e diferentes formas de ser visibilizada e representada, sair do lugar de não-ser para ser. Para ilustrar essa reflexão, citamos de forma bem objetiva, sem tratar na profundidade e potência que o texto abarca, o exemplo de Bairros (2020) na discussão sobre feminismo negro. A autora descreve um episódio em que assistia a um programa de culinária na televisão apresentado por uma mulher branca que dava conselhos e ensinava a cozinhar. No cenário montado percebe uma jovem negra, que “participava da cena no mais completo mutismo” (BAIRROS, 2020, p. 207). Ali, colocada como adereço no cenário, sendo objetificada e coisificada, a jovem negra fortalece a autoridade da mulher branca, torna-se invisível e representa o lugar de incapaz e de não-ser. Essas estratégias de manutenção desse não lugar tornam-se uma das maiores ferramentas de opressão e enfraquecimento da população negra, tendo suas subjetividades negadas, pois assim eles não existem. Collins (2016) faz esse mesmo exercício ao abordar sobre a invisibilidade das empregadas domésticas, em que os patrões dialogam em sua presença como se elas não existissem, fortalecendo a mulher negra como objeto. Nessa mesma discussão do não lugar encontra-se a reflexão que Miranda (2018) nos apresenta. Fanon (1968) corrobora ao tratar acerca da relação colonos e colonizados e da agenda do processo de descolonização. Esses símbolos sociais, marcados pela violência de colocar o colonizado nesse não lugar, no caso a mulher negra, são uma estratégia da manutenção do poder e da ordem.

Além das experiências traumáticas nos ambientes escolares, como professores ou estudantes, as histórias e vivências familiares também emergem de forma cuidadosa e zelosa nos textos, por meio de histórias sobre os mais velhos que não tiveram acesso à educação, o apoio aos estudos por parte desses atores como forma de reparação ao que lhes foi negado, fortalecendo a ideia de comunidade e comunhão, ou acerca da necessidade de estudar para oferecer uma melhor condição para a família. Enfim, são marcas que apontam e confirmam o quanto os valores civilizatórios africanos se fazem presentes nesses relatos. Petit (2015) denomina de marcadores africanos ou africanidades, marcadores que nos conectam com os nossos ancestrais, com a nossa africanidade, seja pela comida, pelas histórias, de onde viemos e os nossos territórios.

Nesse sentido, Cardoso (2016) e Nogueira (2016) fazem suas costuras na pesquisa trazendo esses referenciais familiares, texto denominado pela primeira pesquisadora de minha itinerância:

A minha mãe quer aprender a ler para escrever a sua história de vida e minha vó humildemente quer apenas a ler o letreiro dos ônibus, para não parar no bairro errado [...]. Estudar tem sido o modo que encontrei para romper o silêncio imposto que imobiliza a minha vó de ler o letreiro do ônibus e descer no destino indesejado. Algumas vezes ela falou bem baixinho em meu ouvido, e com certa rispidez: “Ivanilda, eu sei que somos negros, mas não pode dizer!!”, ela sabe qual o peso da racialização, mas o não dizer que se é negra inclui também o silêncio sobre a história da sua mãe, de seus avós e das suas visitas esporádicas aos terreiros de candomblé, pois isso sempre foi muito silenciado na família (CARDOSO, 2016, p. 20).

De forma cuidadosa e afetuosa, a autora, por meio de suas palavras, traz sua história, de sua família e trajetória para o centro da pesquisa, como a história de sua avó e de sua mãe que querem aprender a ler e assim acabar com seus abafados dentro de si, suas angústias e suas perdas. Walker (1986) discorre sobre esses abafados e agonias das mulheres que nunca tiveram seus sonhos e desejos realizados, citando sua própria experiência ao falar de sua mãe; ela reforça sobre o espírito criativo da mulher negra, aprisionado, e acerca dos lugares que se faz relevante olhar, não sendo somente para cima, mas também para baixo, para si, nesta ordem, olhar para baixo é olhar para onde veio.

No que tange a esse movimento de olhar para cima e para baixo, esbarramos nos textos, nas manifestações e gritos de manifestos demarcados pelas pesquisadoras. Cardoso (2016), em seus agradecimentos, faz sua abertura com uma manifestação contra o governo Temer, a publicação realizada em 2016 traz a marca do período vivenciado no País pelo golpe que foi o impeachment da Presidenta Dilma Rousself. Em seguida, segue referenciando seu percurso até a universidade, permeado pelo Ubuntu, marcado por carinho, solidariedade, fé e energia. Ferreira (2018) também, antes mesmo do texto de agradecimento, faz sua dedicatória a Marielle Franco, que se fez semente da luta contra o genocídio da mulher negra. Ambos os marcos reverberam no debate das questões das relações étnico-raciais no Brasil e de alguma forma insurgem no texto como manifesto e resistência, como uma ferramenta de luta (hooks, 2019).

Nos agradecimentos, Ferreira (2018) também traz sua africanidade. Além dos atores que auxiliaram sua caminhada, como mãe, irmãos, pais etc., ela fala dos encontros da família “em nome da vida” proporcionados pela avó. Nesse momento, ela reforça o quanto o viver em coletividade e comunidade foi significativo para sua sobrevivência, seguindo com agradecimento aos Orixás, a seu Babalorixá e às mais velhas e irmão dos IIê Axé Xangô ty Ayra, pelo fortalecimento no campo espiritual. Com um trabalho elaborado todo na perspectiva decolonial, a autora encerra sua produção fazendo referência à escritora Conceição Evaristo, que não teve os votos necessários para ocupar uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras em 2018. Por meio de suas palavras ratificamos a nossa existência. “Nem a literatura negra nem milhares de brasileiros/as se deixarão sucumbir pelo banzo desse momento, sempre haverá a esperança no quilombo” (FERREIRA, 2018, p. 254).

Em Nogueira (2016, p. 14), além da presença da família, emerge de forma intensa seu processo de construção de se descobrir negra:

Os conhecimentos adquiridos dentro e fora do espaço acadêmico me propiciaram a compreensão de uma pluralidade de trajetos e vozes que conduziram a realização desse trabalho. Nesse percurso, fui me construindo e desconstruindo, descobri-me negra, eu que até então me via parda, morena ou mulata, localizei-me, como sujeito, com orgulho de minha pertença identitária, antes indefinida.

Assim, a autora nos convoca a refletir sobre esse processo na formação de professores, como na aplicabilidade do tema em sala de aula, reforçando o quanto ele deve ser construído, observando nossas histórias e o cuidado com o conteúdo que definimos, formando assim “espaços acolhedores para os pensares e sentires negro-africanos” (NASCIMENTO, 2020, p. 40).

Por sua vez, Meira (2018) traz em seus agradecimentos o ideograma Sankofa, fazendo referência à família e ao lugar que ocupa, ao olhar para baixo e para cima. Em seguida, no encerramento destes, faz um agradecimento ovacionando as mulheres negras que estiveram em sua caminhada “fortalecendo e me ensinando a importância do nosso autocuidado e do nosso bem-viver” (MEIRA, 2018, p. 15). O bem-viver foi tema da Marcha das Mulheres Negras realizada em novembro de 2015 em Brasília, reunindo mais de cinquenta mil mulheres negras de vários lugares do País1. Ainda na apresentação, fala de suas motivações pela pesquisa, indagando também a ausência do tema na formação inicial, e pelas experiências vivenciadas na prática, em que ainda era fortalecida a visão estereotipada da África, a África coisificada. Nessa mesma perspectiva, Monteiro (2010) faz referência às mulheres negras e a seus ancestrais em seus agradecimentos.

Por fim, trazemos Macedo (2019) ou “macedo”, iniciando com letra minúscula, como a própria autora escreve na capa de seu trabalho. Começando com Eduardo Galeano, ela faz referência à multiplicidade do mundo no qual vive, apresentando a poesia O Mundo, do referido autor. Em seguida, esclarece o fato de sua escrita nesse momento não ser linear ou não acadêmica, pois “as memórias perpassadas pelo preconceito racial ao qual fui submetida me chegam de forma assimétrica e se revisitam muitas vezes” (MACEDO, 2019, p. 13-14). E, mantendo a não linearidade, insurgente como ela denomina, inspirada, dialoga com bell hooks, cujo nome vem todo em letras minúsculas na capa do trabalho. bell hooks, batizada como Gloria Jean Watkins, assumiu esse nome em homenagem a sua avó, que, segundo a autora, era um nome forte que remetia a sua ancestralidade e seria uma forma de reivindicar esse lugar, e o nome em minúsculo nos livros vem para ressaltar que, nestes, o mais relevante é o que está escrito, o conhecimento, e não quem o escreveu.

Nas linhas seguintes, Macedo (2019) descreve o quanto o racismo esteve presente em seu percurso formativo desde a infância e como essas experiências a afetam na escrita, cuja introdução a faz voltar ao passado, a suas memórias. Ao longo do texto, ela explica também o quanto o encontro, o acesso a novos teóricos e as teorias decoloniais e pós-coloniais foram relevantes em seu processo de pesquisa para questionar e subsidiar o modelo e o sistema, e é exatamente esses questionar e problematizar que, em muitos casos, as instituições evitam enfrentar quando é preciso discutir as relações étnico-raciais, o que demanda confronto e fôlego.

3 CONCLUSÃO

Após quase vinte anos da publicação das DCNERER, deparamo-nos, além dos desafios que um processo de mudança curricular apresenta-nos, no caso da formação inicial, com a demanda pelo deslocamento, desconstrução e abertura para novas formas de conhecimento, sendo preciso descolonizar os saberes e os espaços, como também trazer e ouvir novas vozes e experiências.

Diante do diálogo que tentamos construir neste trabalho, constatamos que a agenda da educação das relações étnico-raciais na formação inicial e, em específico, no curso de Pedagogia, curso ora proposto para análise, é insurgente e feminina. No caso das mulheres negras, esse diálogo vem atrelado a suas experiências com o racismo, ancestralidade e africanidades, vem movimentando e é impulsionado pela sua raiva. Nessa perspectiva, a inserção dessa temática permite que essa raiva insurja dentro dos espaços escolares, nas cadeiras das instituições. “Rejeitar a raiva das mulheres negras com desculpas e pretextos de intimidação é não conceder poder a ninguém - é apenas outra forma de preservar a cegueira racial, o poder de um privilégio inconteste” (LORDE, 2020, p. 165), e a mudança não ocorre separadamente desses corpos, os quais foram inferiorizados, massacrados e coisificados.

Diante do exposto, inserir as DCNERER na formação inicial significa trazer nossas histórias, de onde viemos e quem somos para esse debate, é intervir verdadeiramente no mundo. É estabelecer conexão com os cosmos, é instituir formas de cuidados e de viver em coletividade e comunidade. É garantir o bem-viver.

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NOTA:

1 Na oportunidade, foi entregue um documento analítico à presidência denominado Carta as Mulheres Negras 2015 - Marcha contra o Racismo, a Violência e Pelo Bem-Viver, Brasília, 2015.

Recebido: 29 de Junho de 2021; Aceito: 23 de Novembro de 2021

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