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Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.20 no.4 São Paulo Oct./Dec 2022  Epub Jan 30, 2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2022v20i4p1484-1511 

Artigos

Saberes e Práticas Docentes:Implementação da Lei Federal 10.639/2003 na Educação Básica, Poconé/MT

Teaching Knowledge and Practices:Implementation of Brazil’s Federal Law 10.639/2003 in Basic Education in Poconé/MT

Saberes y Prácticas Docentes:Aplicación de la Ley Federal 10.639/2003 en Educación Básica, Poconé/MT

Lilian Santos de ANDRADEi 
http://orcid.org/0000-0003-4916-9205

Osvaldo Mariotto CEREZERii 
http://orcid.org/0000-0002-9206-3855

i Mestre em Ensino de História pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino de História - ProfHistória da Universidade do Estado de Mato Grosso. Professora de História da Educação Básica na Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso. E-mail: andradelilian51@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003- 4916-9205.

ii Doutor em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU. Professor do Departamento de História e do ProfHistória da Universidade do Estado de Mato Grosso - Unemat, Campus de Cáceres. E-mail: osvaldocerezer@unemat.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-9206-3855.


Resumo

O presente artigo analisa a implementação da Lei Federal 10.639/2003 na educação básica em Poconé/MT, a partir dos saberes e práticas de professores de História, Arte e Língua Portuguesa. Realizamos entrevistas orais baseadas nos procedimentos da história oral temática e buscamos construir um diálogo entre os registros orais e as fontes documentais, como documentos curriculares e bibliografias sobre o tema. Utilizamos a abordagem qualitativa somada à perspectiva teórica intercultural crítica e os estudos decoloniais. Procuramos pensar como a história e a cultura africana e afro-brasileira foram inseridas na escola lócus de pesquisa. Notamos as práticas e imaginários racistas que estiveram e ainda estão presentes na escola e os desafios enfrentados pelos professores. O caminho para uma implementação efetiva ainda é longo, mas transformações importantes têm ocorrido, inclusive para a decolonização dos saberes e práticas.

Palavras-chave: ensino de história; Lei Federal 10.639/2003; saberes e práticas docentes; relações étnico-raciais

Abstract

This article analyzes the implementation of Brazil’s Federal Law 10.639/03 into basic education in the city of Poconé, in Mato Grosso, through history, arts, and Portuguese teachers’ knowledge and practices. The research was conducted through oral interviews, based on thematic oral history procedures, combining oral records to documentary sources, such as curricular documents and subject bibliography; through qualitative approach, critical and intercultural theoretical perspectives, and decolonial studies; and thinking about how African and Afro-Brazilian history and culture were inserted into the lócus of research. This research hás highlighted racist practices and imaginaries that persist in the school; the challenges faced by the teachers; and that the path to the law’s effective implementation is still long, although important changes have taken place, such as the decolonization of knowledge and practices.

Keywords: history teaching; Federal Law 10.639/2003; teaching knowledge and practices; ethnic and race relations

Resumen

El escrito analiza La aplicación de La Ley Federal n. 10.639/03 de educación básica en Poconé/MT, a partir de saberes y prácticas de profesores de Historia, Arte y Lengua Portuguesa. Se hicieron entrevistas orales, basadas em herramientas de historia oral temática, construyendo un diálogo entre registros orales y fuentes documentales, como documentos curriculares y bibliografías sobre la temática. Usando um abordaje cualitativo junto a la perspectiva teórica intercultural crítica y los estúdios decoloniales. Pensando cómo La historia, la cultura africana y afro-brasileña fueron introducidas em La escuela donde se hizo la pesquisa. Se notó que lãs prácticas e imaginarios racistas, estuvieron y aún están presentes y también los desafíos que enfrentanlos maestros. El camino de una implementación efectiva es largo; pero, han ocurrido importantes transformaciones, incluso para La decolonización de los saberes y prácticas.

Palabras clave: enseñanza de historia; Ley Federal 10.639/2003; saberes y prácticas docentes; relaciones étnico-raciales

1 INTRODUÇÃO

Este artigo é resultado de uma dissertação de Mestrado Profissional em Ensino de História e buscou analisar como se deu a implementação da Lei Federal 10.639/2003que tornou obrigatório o estudo da história e cultura africana e afro-brasileira na educação básica. A pesquisa foi desenvolvida no município de Poconé/MT a partir de uma escola estadual da cidade por meio dos saberes e práticas mobilizados por professores de História, Artes e Língua Portuguesa.

Neste artigo, refletiremos a respeito dos saberes e práticas dos professores colaboradores a partir de suas narrativas sobre questões fundamentais em torno do que versam a lei e suas diretrizes, tais como: formação inicial e continuada, atuação profissional, carga horária semanal de trabalho, pertencimento étnico-racial, existência e avaliação do racismo e discriminação relativamente aos negros na escola estudada e na sociedade, quem são os estudantes da escola e a opinião acerca das leis e da obrigatoriedade do estudo das temáticas africana e afro-brasileira na educação básica.

Diferentes trabalhos1 apontam para o cenário de desafios, rupturas, permanências e possibilidades nos ambientes escolares brasileiros - públicos e privados - de educação básica e superior sobre a implementação da Lei Federal 10.639/2003. Muitos estudos revelam que ainda existe uma distância entre as intenções e a efetivação real dessas leis (SOUZA, 2018; CEREZER, 2019). Apesar de muitos avanços, entre as inúmeras dificuldades podemos perceber que ainda é marcante a presença do racismo, da discriminação, do preconceito, dos estereótipos e silenciamentos sobre a história e a cultura afro-brasileira no espaço escolar.

Acreditamos que “as dificuldades para implantação dessas políticas [...] se devem muito mais à história das relações étnico-raciais neste país e aos processos educativos que elas desencadeiam” (SILVA, 2007, p. 500). Fomos constituídos de maneiras distintas para conhecer o universo branco e eurocêntrico e conhecemos muito pouco (de forma muito limitada) a história e a cultura dos povos não europeus. O problema é acentuado pelo modo como foram ignoradas as diferenças raciais e as diversas narrativas presentes na história do Brasil, país multiétnico e multicultural.

Especialmente a partir da Constituição de 1988 e da década de 1990 - no contexto das preocupações democráticas -, aconteceram mudanças nas perspectivas de ensino em face de opções políticas e pedagógicas, por exemplo, a ideia de pluralidade e diversidade cultural como conceitos-chave no debate educacional. No interior dessas transformações, são lançados a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e, em 1997, o “PCN - temas transversais”, no qual a Pluralidade Cultural é apresentada como um dos temas a serem trabalhados pelos professores no que diz respeito à diversidade étnico-racial brasileira e à própria identidade nacional. Ocorre certa ruptura na concepção de um Brasil e de uma identidade nacional homogênea e sem conflitos, que servia para mascarar as desigualdades raciais e culturais do País. Há o reconhecimento das diferenças entre os diversos grupos que fazem parte do território nacional, compreendido como fundamental na construção da democracia, no exercício da cidadania e da luta contra as desigualdades (GONTIJO, 2009).

Nesse sentido, ocorreram as discussões e a promulgação da Lei Federal 10.639/2003 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e da Cultura Afro-Brasileira e Africana2 e da Lei 11.645/2008, e ambas as leis alteram o artigo 26 da LDB. A Lei 10.639/2003 e as respectivas diretrizes correspondem a um grande avanço na luta pelo combate ao racismo e por uma educação antirracista, na medida em que, diferente dos PCNs, não apenas se referem à pluralidade cultural, “mas se propõem a desenvolver diretamente políticas de reparação e de ação afirmativa em relação às populações afrodescendentes [...] e possui um tom claramente mais político que o dos PCNs” (ABREU; MATTOS, 2008, p. 8-9).

Apesar de diversas limitações entre distintas políticas educacionais (MACEDO, 1999; CANEN, 2000; ABREU; MATTOS, 2008; ABREU, 2012; OLIVA, 2009), é fundamental pontuar que os documentos finais dessas políticas são fruto de muitas negociações, lutas e intenções. O mesmo ocorre em sua implementação, mas elas têm em comum o fato de versarem sobre a necessidade e importância de o ensino - em especial o de História - proporcionar a valorização e o reconhecimento dos diferentes povos, identidades e culturas presentes na formação do povo brasileiro, evidenciando sua complexa diversidade.

Como consequência dessas políticas públicas educacionais, resultado das pressões dos movimentos sociais por direitos e garantia da igualdade, ocorre uma crescente transformação nos materiais didáticos e nos cursos de formação inicial e continuada. Há a criação de secretarias específicas, como a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em 2003, e a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), em 2004.

A partir da Lei 10.639/2003 e suas diretrizes, entre as mudanças nas políticas educacionais no ensino das relações étnico-raciais no Mato Grosso podemos citar a criação das “Orientações Curriculares: Diversidades Educacionais”, em 2010, do Fórum Permanente de Educação e Diversidade Étnico-Racial e da Superintendência de Promoção da Igualdade Racial, em 2012, e o aumento da oferta de materiais didáticos e cursos de formação continuada sobre as temáticas nas escolas que formavam parceria com universidades do estado, como a Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) e a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), especialmente os ofertados pelos seus respectivos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, o NEGRA e pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais (NEPRE) (SILVA, 2018; CEREZER, 2019). O estado de Mato Grosso possui dois Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs). O NEGRA é o Núcleo de Estudos sobre Educação, Gênero, Raça e Alteridade que pertence à UNEMAT e o Núcleo de Estudos de Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação (NEPRE) é pertencente à UFMT.

Mesmo após os diversos avanços nas políticas públicas para a educação básica, acreditamos que ainda há um longo caminho a ser percorrido no que diz respeito à complexificação das narrativas e representações sobre as culturas e identidades africanas e afro-brasileiras. Os diferentes sujeitos escolares ainda possuem visões e interpretações preconceituosas, estereotipadas e etnocêntricas acerca dessas temáticas.

Soma-se ainda o cenário de desigualdades ainda marcantes no País, apesar das importantes políticas públicas do Estado brasileiro voltadas para sua diminuição nas últimas décadas. Considerando a totalidade da história do Brasil e seu passado colonial, pouco foi feito no sentido de alterar as estruturas sociais. Após o fim da escravização, não foram colocadas em práticas políticas de reparação que assegurassem uma vida e um futuro digno àqueles que foram libertos. Os ex-escravizados e seus descendentes não apenas foram jogados à própria sorte, como também enfrentaram diversas relações estruturais e mecanismos de segregação, dominação, controle e exploração que têm garantido até hoje a perpetuação das desigualdades raciais e, portanto, a permanência da grande maioria dos não brancos brasileiros em um lugar subalterno na hierarquia social (ALMEIDA, 2019; HASENBALG, 2005). Chamamos a atenção para os legados e as atualizações coloniais no presente. A urgência da decolonização se dá nos variados âmbitos da vida.

Entendemos que a tarefa de decolonização3 do pensamento não é fácil. O conceito de decolonialidade é fundamental neste estudo, pois acreditamos que os efeitos da colonização não acabaram com a emancipação e/ou descolonização das colônias, sendo necessário combatê-los. Apesar das dificuldades de desconstruir imagens cristalizadas no imaginário social, consideramos que a atuação docente precisa estar fortemente preocupada em romper imagens limitadas e excludentes sobre diferentes povos e culturas.

Assim sendo, são importantes para nós questões como: Quais saberes, experiências e concepções foram apreendidos e produzidos pelos professores ao longo de sua trajetória docente na escola em questão? Quem são tais professores? O que pensam, fazem e enfrentam com relação à temática étnico-racial no ambiente escolar? O que mudou na organização da escola após a implementação da lei?

A escola escolhida como lócus de pesquisa desenvolve ações há vários anos com projetos que envolvem as temáticas das leis estudadas. Trata-se de uma escola localizada no centro da cidade e com boa estrutura, se comparada à realidade de muitas escolas públicas do estado e do País. Na zona urbana do município de Poconé, existem apenas duas escolas de ensino médio - ambas públicas, sendo a maior da cidade a escolhida como lócus de pesquisa. As turmas da escola são de Ensino Médio Inovador4. Existem aproximadamente oitocentos alunos matriculados; a escola possui atualmente vinte e seis turmas, quadra poliesportiva coberta, biblioteca, laboratório de informática, linguagens e ciências da natureza e uma sala chamada Sala Afro, destinada ao trato das temáticas étnico-raciais e ao projeto “O negro na sociedade e na educação”, desenvolvido pela escola desde o início dos anos 2000.

Vale ressaltar que a população do município é majoritariamente formada por afrodescendentes, como o País e o próprio estado do Mato Grosso, é um território multiétnico e multicultural. De acordo com o IBGE (2010-2019), a porcentagem de pessoas negras5 no Mato Grosso é de aproximadamente 60%. Por sua vez, no município de Poconé, os negros representam cerca de 81% da população, e, em todo o Brasil, os números caem para 56%. Além disso, das 79 comunidades quilombolas de Mato Grosso reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares6 29 estão em Poconé, o qual, conforme o IBGE, é o segundo município do estado com maior incidência de pobreza7, atrás apenas de Peixoto de Azevedo.

Isso posto, os ambientes formativos como as escolas são ambientes de conflitos, disputas e permanências e é preciso analisá-los. Como lugar de disputas, a escola é um espaço importante e privilegiado para transformações fundamentais na sociedade (FONSECA, 1993). Esperamos contribuir para análises que ajudem a compreender a realidade do ambiente escolar, em especial sobre as experiências de implementação da lei estudada, para que continuemos a aprender com suas potências, limites e problemas.

2 FONTES E COMPREENSÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Neste estudo, analisamos fontes orais por meio das narrativas dos professores de História, Língua Portuguesa e Artes e fontes documentais, tais como leis, diretrizes curriculares nacionais e estaduais e bibliografias que versam sobre o ensino de História da África e dos afrodescendentes na educação básica.

A partir do diálogo em relações colaborativas e com compromissos éticos com os professores, buscamos em seus relatos compreender suas concepções e práticas relativas às temáticas africanas e afro-brasileiras. Os professores são concebidos aqui como sujeitos, e não simples objetos ou fontes de pesquisa, uma vez que os documentos (entrevistas) resultam do diálogo entre pesquisador e professor (PORTELLI, 1997a, 1997b). Considerados como produtores de conhecimento e saberes específicos (TARDIF, 2011), os professores são colaboradores da pesquisa (MOURA, 2005).

Utilizamos a abordagem qualitativa em educação, pois estudamos as complexas redes de práticas, saberes, significados e representações de um ambiente escolar. Na investigação qualitativa, as percepções dos colaboradores da pesquisa são de suma importância e os significados são centrais e demandam atenção especial (BOGDAN; BIKLEN, 1994). Somada à perspectiva dos estudos decoloniais, tem o potencial de permitir o diálogo e a compreensão de diferentes vozes e percepções, o que pode evidenciar a pluralidade de ideias, sentidos, representações e concepções sobre o tema estudado (WALSH, 2010). Acreditamos que a análise qualitativa oferece a possibilidade de estudar o mundo que nos cerca, evitando abordagens reducionistas, pois diz respeito à preocupação com âmbitos da realidade que não podem ser reduzidos apenas a quantificações, como o universo dos significados, crenças, valores e ações (MINAYO, 2001).

No registro das vozes dos colaboradores, utilizamos a entrevista oral, baseada nos procedimentos da história oral temática (MEIHY; HOLANDA, 2007), para construir um diálogo entre os registros orais e as fontes documentais, tais como leis, diretrizes e orientações nacionais e estaduais. Por meio das vozes dos colaboradores, poderemos ampliar a compreensão sobre os impactos da Lei 10.639/2003 em suas ações e práticas, bem como na educação básica, especialmente na escola estudada, onde esses sujeitos trabalham.

Os professores não agem a partir do nada, são sujeitos ancorados no mundo (BUTLER, 2015), portanto as formas como agem, como pensam, como pensam que agem, têm uma relação direta com o que são e com o mundo que os constitui de diferentes maneiras, em suma, com as condições concretas em que trabalham e vivem (CHARTIER, 1990). Nas narrativas, interessam-nos as regularidades, mas também as especificidades de cada entrevista, porque, apesar de todos comporem uma comunidade de professores, possuem singularidades, diferentes experiências, relações de pertencimento, pois são seres de memória, cultura e história (CANDAU, 2011). Entendemos que:

A memória “gira em torno da relação passado-presente, e envolve um processo contínuo de reconstrução e transformação das experiências relembradas” em função das mudanças nos relatos públicos sobre o passado. Que história escolhemos para recordar e relatar (e, portanto, relembrar), e como damos sentido a elas são coisas que mudam com o passar do tempo [...] também variam dependendo das alterações sofridas por nossa identidade [...] as história que relembramos não são representações exatas de nosso passado, mas trazem aspectos desse passado e os moldam para que se ajustem às nossas identidades e aspirações atuais [...] para dar um sentido mais satisfatório a nossa vida [...] significados ocultos podem revelar experiências e sentimentos que foram silenciados (THOMSON, 1997, p. 57-58).

Realizamos a gravação das entrevistas seguindo um roteiro de perguntas semiestruturado. Entrevistamos cinco professores, sendo dois professores de História, duas professoras de Língua Portuguesa e uma de Artes. As entrevistas foram transcritas na íntegra e aprovadas pelos colaboradores. A conversão do oral para o escrito é importante para a análise e para facilitar as leituras, pois transforma a grafia para adequá-la às normas oficiais da Língua Portuguesa. Meihy e Holanda (2007, p. 157) chamam esse processo de “transcriação”, um ato que recria o texto oral sem perder suas informações, portanto “a transcriação nos aproxima do sentido e da intenção original que o colaborador quer comunicar” e “a textualização final da entrevista é de autoria do historiador, sendo o depoente um colaborador para a fabricação desse novo documento”.

As entrevistas foram realizadas entre os meses de março e julho de 2020. Em razão da pandemia do coronavírus, uma das entrevistas foi feita via aplicativo Zoom Meetings e as demais foram presenciais seguindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde. Os dois professores da disciplina de História foram denominados Professor I e II, respectivamente; as duas professoras da disciplina de Língua Portuguesa designamos de Professora III e IV, respectivamente; e a professora da disciplina de Arte, de Professora V. A escolha dos professores das disciplinas para a pesquisa está relacionada ao que prevê o texto da Lei Federal 10.639/2003, que orienta o estudo das temáticas em componentes curriculares prioritários, no § 3.º do artigo 3.º:

§ 3.º O ensino sistemático de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica, nos termos da Lei 10.639/03, refere-se, em especial, aos componentes curriculares de Educação Artística, Literatura e História do Brasil.

Consideramos indispensável escutar e registrar as vozes dos professores, o acesso a suas experiências, memórias e significados para refletir sobre os saberes e práticas pedagógicas mobilizados em seus trabalhos. Procuramos perceber questões como o tratamento e a relevância atribuída à história e à cultura da África e dos afro-brasileiros nos diferentes processos formativos dos sujeitos envolvidos, temáticas historicamente silenciadas pelas diversas instituições de ensino no País. Poderemos compreender questões como a formação inicial e continuada dos docentes, os modos de pensar e fazer, os desafios e as alternativas realizadas pelos professores para tratar das temáticas.

Compreendemos os professores como produtores de saberes. Portanto, os professores não são vistos como meros executores a partir de uma dicotomia hierarquizante que os coloca em uma posição inferior à de pesquisadores e produtores de conhecimentos. Referimo-nos assim aos saberes que os professores constroem no e para o exercício de sua profissão. Trata-se de reconhecer a especificidade do campo educacional que produz constantemente saberes específicos em diálogos com os diferentes saberes na sociedade, bem como a mediação dos sujeitos escolares nesse processo, em especial os professores.

Os sujeitos escolares produzem e mobilizam constantemente no ambiente escolar saberes e práticas. Eles não estão dissociados das diferentes dimensões de suas vidas, ou seja, de suas experiências de vida, crenças, concepções e saberes da formação formal e informal. Portanto, é importante a análise dos saberes e práticas mobilizados e produzidos pelos professores e também como o são (TARDIF, 2011; MONTEIRO, 2007b). Trata-se de questionar, por exemplo: “[...] suas narrativas possibilitaram novas leituras de mundo? [...] ou serviram para impor o silêncio, para calar alunos, memórias, histórias?” (MONTEIRO, 2007a, p. 120).

Nossa preocupação está em produzir uma compreensão da realidade escolar em diálogo com os professores colaboradores, e não falar sobre ou por eles, pois são “sujeitos de seu pensar e fazer” (PAIM, 2012), possuem voz, só não são, muitas vezes, ouvidos ou compreendidos (SPIVAK, 2010). Nessa tarefa, levaremos “em consideração o que o professor pensa, como vive, quais experiências tem para contar, que metodologias desenvolve, qual a relação que faz entre teorias e práticas cotidianas” (PAIM, 2007, p. 166). Por essa razão, buscamos “sair da forma prevalecente de olhar para a escola, procurando o que ela não é, ou seja, o que deveriam ser a escola, os professores, os alunos, os funcionários, deixando de lado o que efetivamente são” (PAIM, 2012, p. 121).

3 RESULTADOS E ANÁLISE DOS DADOS

3.1 Os professores colaboradores

O Professor I é graduado em História pela Universidade de Cuiabá em 2001 e pós-graduado em interdisciplinaridade em 2016 pela Faculdade de Educação de Tangará da Serra. Trabalha como professor contratado na escola estudada desde 2005 com algumas interrupções, mas atua na rede estadual desde 1994, sempre em escolas de Ensino Médio. É também professor concursado da rede municipal de Poconé (MT) desde 2006. Sua atuação como professor no município foi principalmente no ensino fundamental em escolas rurais, do campo e quilombolas. Possui uma carga horária de trabalho semanal em torno de quarenta horas, distribuídas nos turnos matutino, vespertino e noturno, sendo vinte e cinco no município e quinze horas no Estado. Declarou-se negro, católico e natural de Poconé.

O Professor II é graduado em História pela Universidade de Cuiabá em 2000 e pós-graduado em História de Mato Grosso pela mesma universidade em 2002. Trabalha na escola estudada como concursado desde 2002, sem interrupções. Atua como professor de História desde 1995, época em que tinha apenas o magistério e, anteriormente, foi secretário escolar por treze anos. É concursado desde 2000 e possui uma jornada de sessenta horas semanais, divididas entre todos os turnos, pois é concursado em dois cargos como professor de História. É diretor na escola pesquisada desde 2016 e também foi diretor entre os anos de 2010 a 2013. Faz parte das lideranças sindicais do Sindicato dos Trabalhadores do Ensino Público de Mato Grosso (SINTEP/MT) no município e no estado desde a década de 1990. É católico e natural de Poconé. Declarou-se preto e chamou atenção para ancestralidade quilombola pela família de sua mãe.

A Professora III é graduada em Letras - Português e Inglês pela Universidade do Oeste Paulista em 2003 e especialista em Ensino de Linguagem pela Universidade de Cuiabá. Atualmente, está de licença para o mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso, desenvolvendo pesquisa sobre ensino de literatura e a temática étnico-racial está presente. É professora na escola estudada desde 2011 e no município trabalha em uma escola urbana desde 1998, atuando principalmente no Fundamental I. É concursada em ambos os cargos. Possui uma carga horária semanal de cinquenta e cinco horas, sendo trinta no Estado e vinte e cinco horas no município. Declarou-se negra/preta, católica e natural de Poconé.

A Professora IV é graduada em Letras - Português e Inglês pela Universidade de Cuiabá em 1999 e também em Letras - Espanhol pela Universidade Federal de Mato Grosso em 2012. É especialista em Interdisciplinaridade pelo Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e Extensão em 2003 e Mestre em Ensino pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso em 2020. No mestrado, sua pesquisa versou sobre educação das relações étnico-raciais e racismo ambiental. Trabalha na escola pesquisada e no município em uma escola urbana desde 2000, no município atua principalmente na educação infantil. É concursada em ambos os cargos. Possui uma carga horária semanal de cinquenta e cinco horas, sendo trinta no Estado e vinte e cinco no município. Declarou-se negra/preta, candomblecista e natural de Poconé.

A Professora V é graduada em Educação Artística - habilitação em música pela Universidade Federal de Mato Grosso em 2001 e em Fisioterapia pela Universidade de Cuiabá em 2012. É pós-graduada em Gestão Escolar e em Ortopedia. É professora na escola estudada desde 2013, quando passou no concurso, e fisioterapeuta no SUS do município. Possui uma carga horária semanal de cinquenta horas, sendo trinta na escola e vinte no SUS. Declarou-se branca, adventista do sétimo dia e natural de Cuiabá.

Apresentados os professores, iniciaremos as análises de suas narrativas a partir de questões-chave que contribuam para a compreensão dos saberes e práticas dos professores e que dizem a respeito à implementação da Lei Federal 10.639/2003 e suas diretrizes na educação básica em Poconé (MT).

3.2 Compreensões e relatos sobre racismo e discriminação

Neste tópico, analisaremos as respostas dos professores sobre as questões relacionadas ao preconceito, racismo e exclusão dos negros na atualidade e como se colocam diante dessa problemática e se consideram que existe racismo ou discriminação com relação aos negros na escola em que atuam e como lidam com essa situação. Entendemos o racismo estrutural como um fenômeno reprodutor de desigualdades que constitui os diferentes âmbitos da sociedade, inclusive a escola (ALMEIDA, 2019). Nesse sentido, é de suma importância examinar a maneira como aparece no imaginário dos professores, como o compreendem e o que fazem.

Comecemos pela Professora IV:

Essa situação do racismo existe não só entre os alunos, mas existe em todas as escolas. É visível nos gestos, nas brincadeiras, nas falas, no tratamento. Quando você conhece um determinado assunto e situação, você percebe que está acontecendo um racismo e discriminação [...], na maioria dos casos, isso se passa por uma brincadeira ou porque a pessoa não dá importância ou porque não tem informação. Quando eu vejo que isso está acontecendo na sala de aula ou mesmo na sala dos professores, eu procuro me colocar ali na defesa, [...] porque as pessoas precisam te respeitar e aprender a conviver com as diferenças. [...]quando me chamavam de descabelada, cabelo de Bombril e pixaim e não tinha nem como você dar respostas porque quando a pessoa te chamava de tudo isso você se sentia tudo isso, eu me sentia tudo isso e eu procurava me esconder. Meu cabelo era totalmente alisado e preso, [...] porque era algo que estava invisibilizado, ninguém falava disso. Os próprios professores vêm de um sistema que não os preparavam para trabalhar isso, fiz todo meu ensino fundamental, médio e graduação totalmente sem conhecer esses valores e se escondendo atrás de algo, para parecer branca [...]. Penso que tudo que é discriminado e desvalorizado é por falta de informação. [...] Quando o próprio negro tenta querer ser o feitor da história com outros negros é por uma falta de informação porque se ele soubesse que se ele somar com aquele outro negro e esse outro negro vai somando com outros a nossa história seria bem diferente. [...] Coloco-me de frente a esses problemas, [...] porque a gente precisa ter pessoas corajosas que se identificam com a causa, uma pessoa que é preta mesmo para a gente ir para o enfrentamento porque se a gente deixar tudo como está acontecerá novamente uma outra colonização (PROFESSORA IV).

A Professora IV destacou a importância de compreendermos nosso lugar no mundo nas relações com os outros e conosco. Chamou atenção para o racismo presente de diferentes formas na instituição escolar e que por vezes não é percebido como tal porque é visto como brincadeira ou piada. Percebemos uma das características do racismo brasileiro que é a sua própria negação, bem como a invisibilização a partir de âmbitos considerados neutros, aceitáveis, despretensiosos, tal como o humor. Nesse caso, temos o chamado racismo recreativo (MOREIRA, 2019).

O humor é uma mensagem e, como tal, exprime ideias, valores e concepções de uma sociedade. A colonialidade no presente, como legado e atualização da colonização, atua de diferentes marcadores sociais hierarquizantes, inclusive pelo humor, que é uma das maneiras de legitimar esses marcadores; isso se torna evidente nas piadas realizadas contra grupos subalternizados como negros, mulheres, pessoas com deficiência e LGBTQIAPN+. Logo, o humor, bem como o riso a partir dele, contêm representações, sentidos e significados cujo propósito é afirmar ou legitimar uma ordem social hierarquizante, em que os negros, por exemplo, devem ocupar um local subalterno.

Além disso, a professora relatou situações de racismo e discriminação vivenciadas por ela, bem como suas consequências em sua experiência de vida. Por ter interiorizado que seus traços negros eram inferiores, não conseguia reagir ao racismo porque se sentia inferior. Para se afastar dessas situações, buscava se esconder ou embranquecer por meio de algumas estratégias, como alisar o cabelo e prendê-lo. Como apontado pela própria professora, isso é fruto de uma sociedade que afirma a superioridade do branco e que nega informações aos negros a respeito de si e de sua história.

Fanon (2008) ajuda-nos a compreender essa situação quando explica que o mundo colonial é um mundo dividido em dois a partir de uma hierarquização entre os seres humanos e as diferentes culturas (branco vs. negro, progresso vs. atraso). Dessa forma, perante a superioridade do mundo branco, muitos negros buscam ilusoriamente ser aceitos ou atenuar suas situações de subalternização por meio do embraquecimento, ou seja, de uma busca em se distinguir de seu grupo étnico para se parecer com os brancos aderindo aos hábitos, costumes, cultura e estética considerados superiores. Não queremos afirmar que pessoas negras não possam alisar o cabelo ou fazer o que achar necessário, mas sim entender as razões que as levam a fazê-lo em determinadas situações.

Por sua vez, o Professor II discorreu sobre o racismo e discriminação presente no País, no município e na escola, mas que é mascarado e tem impacto direto em sua vida e na de outras pessoas negras. Explicou como a luta antirracista pode ser, muitas vezes, uma luta solitária de um indivíduo em alguns espaços e por isso se torna desgastante com o tempo. Ainda assim acredita na centralidade da educação para transformação desse cenário. Vejamos:

Essa questão do preconceito e do racismo ele está ainda presente em razão do nosso processo histórico [...]. Você achar que vai conseguir eliminar isso em um país jovem, recente... há menos de 200 anos que acabou a escravidão, que acabou no papel, mas de fato nós vivemos ainda um período muito longo de escravidão [...]. Como é que a gente vai aos poucos distanciando desse processo de discriminação e preconceito no município? Acho que só a escola para gente dar conta disso. Como que vai dar conta? Primeiro a formação [...] isso tem trazido um atraso do ponto de vista do desenvolvimento do município porque você exclui parte da sociedade, a maioria, porque a minoria domina o intelecto cultural. Tudo do município, a grande massa é excluída e vista como sem condições de ser inserida, é tida como incapaz porque são negros, porque são pobres. É na escola, é no emprego (PROFESSOR II).

Um aspecto importante da fala do Professor II é a percepção de que os mecanismos de perpetuação das desigualdades raciais, que reproduzem posições inferiores para os negros, continuam mesmo após o fim da escravização e da colonização formal. Após a abolição, para a manutenção da dominação, exploração, controle e opressão, o racismo “como construção ideológica e conjunto de práticas mais ou menos articuladas, foi preservado e [...] até mesmo reforçado, [...] serviu aos interesses, materiais ou não, daqueles que dele se beneficiaram” (HASENBALG, 2005, p. 120) direta ou indiretamente no presente, resultando na manutenção intra e intergeracional da posição subalterna dos não brancos na hierarquia social. Entre esses mecanismos, o professor cita as diferenças no tratamento dado aos estudantes brancos e não brancos na escola; os estereótipos a respeito dos negros e generalizações acerca de seu caráter e suas capacidades, a segregação dos espaços (escola, emprego, política, cidade etc.) e a hegemonia cultural dos brancos nos aspectos culturais da cidade.

Percebemos que, mesmo Poconé sendo uma cidade majoritariamente negra, nem sempre essa população está igualmente representada nos espaços de poder político, social e econômico de maior mobilidade social. A maioria da população negra ocupa as posições mais subalternas, mesmo dentro da mesma classe social dos brancos pobres. Entre os indivíduos da mesma escolaridade, os marcadores sociais como raça, classe e gênero atuam de maneira a permitir que pessoas negras ocupem os empregos com piores condições de trabalho e menor retorno distributivo material e simbólico dentro da classe social (renda, status, mobilidade social, estilo de vida etc.). Trata-se de uma força de trabalho abaixo do custo da média nacional, ou seja, a discriminação é lucrativa (HASENBALG, 2005; AKOTIRENE, 2019).

Quando o professor tece acercadas diferenças no tratamento dado aos estudantes brancos e não brancos na escola e dos estereótipos, generalizações e projeções a respeito do lugar, do caráter e das capacidades dos estudantes negros, diz-nos um pouco sobre os mecanismos racistas de exclusão dos não brancos do sistema educacional brasileiro. Esse conjunto de práticas e concepções impacta diretamente a autoimagem, as aspirações e os maiores índices de abandono escolar desses estudantes. Ainda que a educação tenha sido historicamente um dos principais canais de ascensão social dos negros, soma-se aos fatores de abandono o fator de os anos a mais de educação não oferecer o mesmo retorno aos estudantes negros. Por sua vez, o abandono escolar é utilizado para reafirmar os estereótipos na tentativa de justificar a discriminação sofrida pelos negros. Notamos, assim, como os mecanismos racistas funcionam e se reforçam mutuamente (HASENBALG, 2005).

A Professora III pontua a importância das políticas públicas e da formação no enfrentamento do racismo que perpassa os diversos espaços sociais. Apesar dos diferentes limites dos amparos legais em uma sociedade estruturalmente racista, ainda assim, quando ocorre o reconhecimento desse racismo pelo Estado por meio de direitos fundamentais e ações afirmativas, como a Lei 10.639/2003 e a lei de cotas raciais, há transformações nas relações sociais. Por exemplo, os sujeitos se sentem mais amparados para o enfrentamento e denúncia dessa problemática (ALMEIDA, 2019). Além disso, percebemos como o conhecimento foi importante para transformar a maneira como ela observa e age no mundo, inclusive na escola. Por sua vez, o Professor I chamou atenção para o recorte de classe, vejamos:

Ainda existe racismo e discriminação [...]. Em especial, pela questão da divisão de classe social, porque o negro só mora nas rebarbas, nas periferias enquanto as outras pessoas ficam mais centralizadas. Infelizmente é difícil desconstruí-lo em sala de aula por essas situações. [...] Eu vejo que hoje o racismo ele está muito baseado na questão financeira, pelo processo de construção da nossa história, porque o negro e índio têm crescido depois da sua liberdade, vamos dizer, começaram a correr para poder ter hoje uma colocação social melhor. [...] A questão das formas de preconceito está inserida dentro da classe social que a pessoa está inserida, pelo poder econômico [...], por exemplo, se é um negro que está com carrão, bonitão, ele é diferente de um negro que está de bicicleta e anda a pé. [...] Muitas barreiras já foram quebradas [...], antes o conhecimento era restrito para poucos e hoje não. Hoje estamos chegando a um patamar de igualdade, todo mundo, independente da classe social, com direitos iguais. Todos com a mesma capacidade. É buscar para que todos possam, independente de onde está localizado, [...] com direitos iguais, tentar chegar a uma igualdade, até de informação, de conhecimento [...] (PROFESSOR I).

Na narrativa do Professor I, há uma compreensão que faz parte do imaginário social brasileiro e é consequência de certa adesão ao mito da democracia racial, mas é questionada por muitas pesquisas. É o caso da ideia de que o preconceito racial ocorre em razão da classe social e que mascara as clivagens raciais das desigualdades sociais. Sabemos que a desigualdade de classe não pode ser compreendida separadamente da desigualdade racial, existem diferentes mecanismos que garantem a perpetuação das desigualdades raciais e dificultam e impedem a mobilidade social, especialmente dos negros. A raça subalterniza ainda mais a experiência de vida dentro da mesma classe social.

No Brasil, o racismo também perpassa as diferentes classes sociais. Um negro rico não estará imune ao racismo por ser rico, aliás, poderá ser visto como pobre, pois a pobreza é o local atribuído como comum aos negros no Brasil. A passabilidade no País, ou seja, a capacidade de transitar entre os espaços sociais sem ser tão afetado pelo racismo está muito mais ligada à cor da pele clara, e não em razão da classe, ainda que um negro de pele clara sofra racismo também. Ademais, a compreensão de que o racismo está ligado à classe evidencia a permanência da noção de que “o dinheiro branqueia”, intimamente relacionada ao ideal de branqueamento. Nesse caso, a busca da aceitação e do afastamento da negritude ocorre pela ascensão econômica (MUNANGA, 1999; HASENBALG, 2005).

Outro elemento importante do discurso do professor é a respeito da presença do racismo na cidade, em especial porque “o negro só mora nas rebarbas, nas periferias enquanto as outras pessoas ficam mais centralizadas”. Quando estudamos a história da construção das cidades no Brasil e da migração das pessoas do campo para a cidade, percebemos o quanto ela perpetua as desigualdades presentes no País, em especial nos pilares da concentração de riquezas e poder no Brasil: a concentração fundiária e a pauperização dos negros. Após o fim da escravização e até hoje, não houve políticas de reparação que permitissem uma inserção social igualitária dos negros, portanto não houve uma alteração nas estruturas de concentração de poder econômico, social e político. Quando olhamos as cidades brasileiras, é nítida a segregação dos espaços com fortes conotações de raça e gênero. Apesar de algumas conquistas a partir da Constituição Federal de 1988, de maneira a garantir a função social da propriedade e da cidade, pouco foi cumprido e realizado nesse sentido. A terra e a própria cidade ainda são concebidas como mercadorias (MARICATO, 2006, 2009, 2015).

O relato da Professora V foi divergente dos demais professores. Sobre a presença do racismo na escola e na sociedade, ela disse:

Para ser bem sincera eu acredito que [...], independente da cor, um respeita o outro, na escola a qual eu trabalho, não tem esse problema. [...] Acredito que hoje está mais tranquilo com relação a isso, o racismo teve agora uma grande ajuda. Para dizer a verdade, eu não frequento nenhum lugar que tenha esse desrespeito, essa discriminação. [...] por exemplo, na igreja nós temos total respeito, aprendemos a amar a todos independente de cor, raça, então não temos esse problema. Fora da igreja, dentro do meu convívio social, na minha família não temos esse problema [...], hoje em dia é bem mais tranquilo. A não ser que você vá assistir alguma coisa e fala de outras pessoas que discriminaram não sei quem e foi para a justiça. Mas não no meu convívio. Acho tranquilo hoje em dia, acho que as pessoas ganharam seu espaço, a questão racial ganhou seu espaço, estão ganhando ainda (PROFESSORA V).

A percepção da professora a respeito do racismo é muito representativa da adesão de muitos brasileiros ao mito da democracia racial. O racismo, segundo essa lógica, é sempre reduzido a uma ação discriminatória esporádica e não é tratado como uma estrutura que permeia todas as organizações e relações sociais. O racismo sutil é naturalizado. Exceto pela Professora V, os demais professores foram unânimes na compreensão da presença do racismo na sociedade e nos diferentes espaços sociais, como a escola. Foi comum nas falas a defesa da formação e da educação como um espaço central para a construção de uma sociedade antirracista. Houve, na maioria dos relatos, o reconhecimento das diferenças e a compreensão das razões históricas do racismo e suas consequências negativas na educação e na experiência de vida e na vida de pessoas negras.

3.3 Os estudantes da escola

Quando questionados sobre o perfil socioeconômico, cultural e étnico-racial dos estudantes da escola lócus de pesquisa, a maioria dos professores considera que grande parte dos estudantes é pobre e negra. Apesar de maioria, nem todos se identificam como negros. Em um país como o Brasil, onde a negritude é sempre associada a algo ruim e ser negro é lidar cotidianamente com mecanismos de exclusão, dominação e exploração, ainda que impossível, a busca pelo afastamento da negritude é também a tentativa de fugir desses mecanismos (MUNANGA, 1999; HASENBALG, 2005). O Professor II complementa:

[...] a maioria são filhos de trabalhadores, muitos de trabalhadores empobrecidos mesmo, que muitas vezes não têm as mínimas condições de garantir as condições para as crianças virem a escola. Temos também alunos filhos de uma classe média, de comerciantes e profissionais liberais do município. Esses alunos acabam misturados aqui no chão da escola e a escola em razão de certa fragilidade não trata os alunos com esse diferencial. Trata todo mundo numa régua só. Aqueles que são de famílias mais empobrecidas, que vêm com dificuldades de aprendizagem desde o processo da pré-escola, acabam possuindo dificuldades muito grandes na escola e muitas vezes sendo abandonados pela escola que não consegue acompanhá-los. A maioria dos alunos são pretos, mesmo aqueles que tentam fugir. Lógico, é cultural do município porque, vamos dizer, é um município racista, preconceituoso. A criança já nasce em um ambiente onde percebe que ele tem que dizer que ele é moreno claro ou branco [...]. A maioria dos alunos são negros, pretos e são pouquíssimos alunos da cor clara, vamos supor, branca. A maioria dos alunos de situação econômica um pouco mais elevada no município, de família mais abastada financeiramente, vai fazer o ensino médio em Cuiabá, quase não ficam no município. Temos em torno de 60 alunos que são do transporte escolar e/ou da zona rural. [...] Temos alunos com distância de moradia de 30 a 35 km longe da escola (PROFESSOR II).

A famosa frase de Santos (1995, p. 61), que diz que “temos o direito a ser iguais sempre a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”, ajuda-nos a compreender um ponto importante a se destacar da narrativa supra. Tratar as pessoas como iguais não significa não reconhecer as diferenças, pois o tratamento igualitário, ao contrário do que defendem as propostas liberais, depende desse reconhecimento. O não reconhecimento das diferenças, nesse sentido, favorece a perpetuação das desvantagens e desigualdades sociais, por exemplo, ao não se atentar para as diferenças socioeconômicas e de aprendizagem dos estudantes. Esse tipo de prática favorece não apenas o abandono escolar, mas também diminui as chances de ascensão social dos estudantes e de acessarem os diversos níveis de ensino. Ignorar as diferenças significa, portanto, fortalecer uma política da desigualdade (HASENBALG, 2005).

3.4 Compreensões sobre a Lei Federal 10.639/2003 e o estudo da história e cultura africana e afro-brasileira

Vejamos aqui o que cada professor disse sobre a lei e a obrigatoriedade do estudo das temáticas africana e afro-brasileira na educação básica e se consideram importante que existam estudos sobre questões étnico-raciais no Brasil. Em resposta, o Professor II pontuou a importância de suas experiências de vida para ser quem é hoje na luta antirracista, como alguém que se coloca e que entende que essa luta é, de alguma forma, uma obrigação sua, pois tem um conhecimento que é negado à maioria dos negros:

É uma lei que não foi fácil fazê-la. Alterar a LDB e ver ela hoje como parte da LDB, as pessoas não têm a dimensão que foi a luta dos movimentos negros e do próprio congresso em aprovar a alteração da LDB. [...]é uma lei boa. [...] É uma lei que os movimentos educacionais, porque não é só do negro, precisam resgatar porque senão vai ser apagada [...]. Então, o movimento negro precisa avançar, mas ela é uma obrigação de nós da educação e precisamos fazê-la valer do ponto de vista prático. [...] Porque essa lei colocada em prática com as condições necessárias de recurso financeiro para as escolas de estrutura e de formação ela vai nos ajudar a tirar milhões de jovens negros da periferia, da pobreza e da violência. A gente não faz essa relação de quantos milhões de negros e negras são jogados às traças porque a formação é precária. [...] Acho que é fundamental que existam estudos, porque se tivéssemos tido essa formação e o estudo mais aprofundado sobre esses temas teríamos condição de fazer com que as comunidades negras e os negros estivessem mais preparados para reivindicar mais direitos. [...] Se a lei de fato acontecer na prática como está escrita, vai melhorar muito, não sei se a relação, mas deve provocar mais conflito e o conflito vai gerar talvez a diminuição desse distanciamento entre o negro e a classe branca do município, do estado e no Brasil. [...]não tem como na minha vivência de mais de 30 anos de escola e na percepção que eu tive até agora da minha rejeição na sociedade como negro, não tenho como eu não me sentir na obrigação de carregar essa bandeira, de fazer a defesa desse meu existir na cor negra. Eu me sinto [...], vitorioso, do ponto de vista de ser negro, vindo de um bairro periférico e poder estar presente em um ambiente que ainda é de divisão. Isso me ajuda a me colocar, não negar, mas isso só é possível por conta de todos os processos, de longas caminhadas. Agora é duro para quem não tem essa caminhada que eu tenho, é negro, mas vai ficar acanhado, não vai fazer a defesa, vai fugir de se colocar, [...]. Eu tenho a obrigação de me colocar e fazer a defesa da raça porque não posso esperar de quem ainda está iniciando (PROFESSOR II).

A relação entre conhecimento e poder está muito presente na fala do Professor II e também do Professor I, inclusive quando percebe que a aprovação da lei foi uma conquista fundamental que sofreu e sofre muitas resistências dos setores conservadores do País, que pretendiam - e ainda pretendem - manter o status quo. Eles entendem que o conhecimento sobre si e sobre o mundo pode permitir a negros(as) e brancos(as) brasileiros(as) que batalhem por uma sociedade mais justa, por isso consideram a luta por sua implementação importante. Vejamos o que disse o Professor I:

A Lei 10.639/2003 é importante, mas não podemos colocar a obrigatoriedade como se fosse uma questão de força. Isso tem que ser despertado e temos que se respeitar e valorizar e não focar no “é obrigatório ou você faz ou você tem alguma penalidade”. [...] São lutas que ainda não foram vencidas, estamos vencendo as barreiras, ainda será um processo. [...] é por mais direitos, pela igualdade [...]. Acho muito importante os estudos, mas não só, para a sociedade ter menos problemas de modo geral, tem de ter mais conhecimento voltado para quem realmente faz parte dessa sociedade (PROFESSOR I).

As compreensões dos Professores I e II estão, de alguma maneira, na narrativa das Professoras III e IV; esta última ainda afirma a relevância da obrigatoriedade da lei porque senão parte importante da nossa história vira esquecimento. Sabemos que a lei surge justamente da necessidade e do reconhecimento de que a história ensinada ignorava ou subalternizava a história e a cultura dos negros no Brasil e no mundo:

[...] não precisaria de uma lei para as pessoas saberem que todos são iguais perante a lei, perante Deus e perante a sociedade. Porém ela foi necessária para as pessoas verem tudo que é feito com o racismo e a discriminação porque isso existe, nunca acabou e sempre existiu. Mas foi preciso uma lei para que isso virasse obrigação, como se fosse uma obrigação quando a gente sabe que não é. Mas considero que foi muito importante para que as pessoas entendessem toda essa questão étnico-racial e para a gente ensinar para os alunos, para eles crescerem com a consciência de que eles são amparados em lei. Acho importantes os estudos sobre essas questões (PROFESSORA III).

Acho que o surgimento da lei para você trabalhar essas temáticas, surge de uma necessidade da sociedade, do reconhecimento e valorização da pessoa preta, negra na sociedade [...]. É como dizem, talvez você não fez parte daquelas matanças que aconteceram, mas você vive esses privilégios e o resultado desses privilégios. [...] é para descolonizar essa história porque nós sabemos que somos compostos de uma maioria de pessoas pretas, no entanto, há uma desvalorização, por ex., uma mulher preta, por todas as situações de humilhação e violência que uma mulher branca sofra, as pretas sofrem o dobro por causa da melanina. Todas essas situações podem ser trabalhadas quando você recorre a essa lei porque essa história precisa ser mudada. O negro tem de ser valorizado, tem de ser visto, tem que ser colocado às claras tudo que ele fez. Quantos cientistas negros e descobertas que eles fizeram, mas tudo isso está escondido, ninguém sabe porque não é valorizado, não é visto. Apesar da gente perceber que não haveria necessidade de ter uma lei para discutir esses assuntos, mas é uma necessidade porque senão vira esquecimento, porque o branco ainda prevalece [...], então se você não pesquisa, não se atualiza sobre o que foi, sobre o que é e poderá ser a vida do negro, então fica no esquecimento, ninguém conhece as raízes, as histórias, as heranças na arte, na música, no cinema etc. pouco se sabe sobre o cinema negro e o que foi esse cinema negro para acontecer esse cinema branco (PROFESSORA IV).

A Professora IV também apontou que muitos professores da escola ainda trabalham a lei de forma superficial, apenas para cumprir conteúdos ou porque são obrigados. Isso é revelado por muitas pesquisas (SOUZA, 2018; SILVA, 2007; GOMES, OLIVEIRA, SOUZA, 2010; CEREZER, 2019) e também de diferentes formas pelos demais professores colaboradores, quando relatam a mesma preocupação ou afirmam que possuem dificuldades de trabalhar com as temáticas da lei porque conhecem pouco a respeito em virtude das lacunas em sua formação inicial e continuada.

Apenas no relato da Professora V houve um maior incômodo com a obrigatoriedade da lei. Para ela, não deveria ser obrigatório trabalhar um tema que não se conhece bem, e justamente por ser um tema importante e necessário não deveria ser imposto:

Quando você coloca uma coisa como obrigatório gera certo desconforto porque [...], você domina outro tema. Acho que a obrigação de trabalhar esse tema meio que deixa a gente triste, [...] porque eu não gostaria de ser obrigada a trabalhar um tema que eu não tenho domínio. É claro que terá uma hora que irá trabalhar esse tema independente dele ser obrigado ou não, você vai sentir necessidade de acordo com suas pesquisas. Você estuda e vê um tema que não pode ver e simplesmente pular, então você vai abordar, de acordo com a sua necessidade, mas ela não deveria ser um tema obrigatório não [...]. É muito importante, é claro que falei que não concordo que seja obrigatório, mas são temas que acho muito importante, tanto é que não precisava ser obrigado porque é um tema importante, e precisa sim abordar na escola, debater e buscar alternativas para melhorar (PROFESSORA V).

Entretanto, como assinalado por alguns professores colaboradores, sabemos que:

A obrigatoriedade de inclusão de conteúdos sobre História e Cultura Afro-Brasileira e Africana no currículo do sistema nacional de ensino não constitui uma imposição de cima para baixo. Ela vem carregada de anseios e aspirações. Corresponde, portanto, a necessidade social a que se cumpre responder com políticas públicas de currículo eficazes, inclusive como uma forma de resistência aos interesses de que a escola pública continue ao exclusivo serviço da parcela dominante da sociedade (COSTA, 2013, p. 94).

De modo geral, percebemos que, apesar das importantes transformações sociais no Brasil nas últimas décadas no combate às desigualdades raciais, como a própria lei aqui estudada, o racismo ainda é uma estrutura organizadora das relações e práticas sociais tanto na escola lócus de pesquisa quanto na cidade em que está localizada. Portanto, tem consequências negativas não apenas para a educação de modo geral, mas também em toda a experiência de vida das pessoas negras, inclusive dos professores colaboradores.

Em suma, as narrativas evidenciam o que tem sido dito por diferentes pesquisadores sobre a formação inicial e continuada de professores para o ensino de História da África, dos afro-brasileiros e das relações étnico-raciais8. Apesar da centralidade do racismo estrutural na sociedade brasileira, os professores relataram que as formações que receberam para o ensino das relações étnico-raciais e da história e cultura africana e afro-brasileira ocorreram em suas formações continuadas, em razão das experiências profissionais e pessoais. Revelaram as lacunas nas formações iniciais, bem como a necessidade de investimentos permanentes na formação continuada dos professores para garantia da implementação da Lei 10.639/2003.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da narrativa dos professores colaboradores, pudemos compreender a escola como um espaço aberto, mutável e permeado de práticas e saberes diversos, e, como qualquer espaço social, está inserido na sociedade e atravessado por estruturas e relações de poder. Por isso mesmo, o campo de pesquisa a partir da Lei 10.639/2003 é aberto com inúmeras possibilidades e esperamos ter contribuído para novas questões tanto para pesquisadores quanto para docentes. Mesmo porque a implementação da lei depende também do conhecimento de como ela está e tem sido inserida nos espaços escolares.

Nesse sentido, foi importante pensar a respeito, por exemplo, da recepção dos professores à lei, suas concepções sobre temas centrais para sua implementação, as transformações ou permanências no currículo, nos saberes e práticas docentes. Em quase 20 anos de implementação da Lei, percebemos transformações relevantes, desde a formação continuada dos professores, a produção de materiais didáticos e os saberes e práticas escolares voltados para o ensino das relações étnico-raciais e da história e cultura africana e afro-brasileira, ainda que algumas das transformações sejam mais tímidas que outras.

É notável que a implementação efetiva ainda depende de um longo caminho, pois o racismo, a discriminação, o preconceito, os estereótipos e os silenciamentos sobre a história e a cultura afro-brasileira ainda são traços estruturais da sociedade brasileira e, no caso específico desse estudo, da escola lócus de pesquisa e na cidade em que está inserida. Da educação básica ao ensino superior, pois este último tem papel central na formação de professores, é preciso evidenciar que os deslocamentos e as transformações éticas, políticas, epistemológicas e pedagógicas necessárias à implementação efetiva da lei não se resumem à mera inclusão de temas e conteúdos sobre história e cultura africana e afro-brasileira.

Não obstante as diversas barreiras na implementação da lei, tais como a falta de recursos, as lacunas nos materiais didáticos ou a presença do racismo e preconceito na escola, notamos o comprometimento de alguns professores com o ensino para as relações étnico-raciais e da história e cultura africana e afro-brasileira, inclusive de forma a contribuir para a decolonização dos saberes e práticas escolares. No entanto, muitas vezes esse ensino, mesmo quando fortalecido pela gestão escolar, não é tomado com o mesmo engajamento por todos os professores, tornando o processo solitário para alguns professores, problemático ou superficial pela forma com que é tratado e impõe dificuldades para que as ações que visam sua implementação sejam efetivas e/ou fortalecidas com o tempo. Apesar de importantes, muitos saberes e práticas relativos à implementação da lei são marcados pela descontinuidade, mesmo na escola estudada, que possui uma história longa de trabalho com as temáticas.

Por fim, ressaltamos que a força da implementação da lei não depende apenas da boa vontade dos sujeitos escolares, mas também de investimentos governamentais nos diferentes âmbitos educacionais, entre eles, a remuneração dos profissionais da educação, a redução da jornada de trabalho, a formação inicial e continuada, os materiais didáticos, a estrutura escolar, material e humana, aspectos evidenciados pelos professores colaboradores.

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NOTAS:

2 Construída com propósito de atender os dispositivos da Lei Federal 10.639/2003.

33 Podemos observar melhor essa compreensão a partir da diferenciação entre os termos de colonialismo e colonialidade descrita por Maldonado-Torres (2007, p. 131), pois “o colonialismo denota uma relação política e econômica, na qual a soberania de um povo está no poder de outro povo ou nação, o que constitui a referida nação em um império. Diferente dessa ideia, a colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno, mas, em vez de estar limitado a uma relação formal de poder entre dois povos ou nações, se relaciona à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista mundial e da ideia de raça. Assim, apesar do colonialismo preceder a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Ela se mantém viva em textos didáticos, nos critérios para o bom trabalho acadêmico, na cultura, no sentido comum, na autoimagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa experiência moderna. Neste sentido, respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente”.

4 O Programa Ensino Médio Inovador (PROEMI) é uma modalidade de ensino instituída pela Portaria 971, de 09.10.2009, com o objetivo de repensar com os estados um ensino médio de propostas curriculares inovadoras e flexíveis a partir da reestruturação dos currículos. Há ainda apoio técnico e financeiro específico voltado para instalação de laboratórios, compra de equipamentos, entre outros. No Mato Grosso, a implantação foi gradual a partir de 2010. Os estudantes do Ensino Médio Inovador permanecem mais tempo na escola, pois a carga horária passou de oitocentas para mil horas aula. Cada escola tem autonomia para estruturação do currículo e distribuição das disciplinas nas diferentes áreas do conhecimento, pensando o estímulo às atividades teóricas e práticas apoiadas nos laboratórios que a escola possui e nas suas necessidades e da sociedade. Mais informações disponíveis em: http://liferayee.mt.gov.br/web/cos/-/9579420-proemi-2018. Acesso em: 13 jun. 2020.

5 Para tanto, foram agregadas as categorias de pertencimento de cor/raça preta e parda. A categoria negra como unificante refere-se ao exposto por autores como Munanga (1999). No Brasil, foram criados diversos mecanismos para diminuir a solidariedade e união daqueles que sofrem as consequências diretas do racismo. Esses mecanismos concernem às possibilidades de os negros, em especial os de pele clara, afastarem-se de sua negritude, tais como a criação do termo pardo. Entretanto, estudos evidenciam como pretos e pardos estão submetidos às consequências do racismo estrutural.

6 Dados disponíveis em: http://www.palmares.gov.br/?page_id=37551. Acesso em: 3 abr. 2021.

7 Dados disponíveis em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mt/pocone/panorama. Acesso em: 15 jan. 2021.

Recebido: 21 de Junho de 2021; Aceito: 22 de Dezembro de 2021

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