SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 issue4Law 10.639/2003 and the Curriculum of Pedagogy Courses in the Southern Region of BrazilLiterature at BNCC in High School Stage: author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.20 no.4 São Paulo Oct./Dec 2022  Epub Jan 30, 2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2022v20i4p1534-1554 

Artigos

Aproximações e distanciamentos identitários entre empreendedorismo e gênero na Base Nacional Comum Curricular e na formação de professores

Identity approximations and distances between entrepreneurship and gender in the National Common Core Curriculum and teacher training

Aproximaciones y distanciamientos identitarios entre emprendimiento y género en la Base Nacional Común Curricular y en la formación de profesores

Francisco Egberto de MELOi 
http://orcid.org/0000-0003-0749-136X

Antônio Germano MAGALHÃES JUNIORii 
http://orcid.org/0000-0002-0988-4207

i Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Líder do Núcleo de Pesquisa Ensino, História e Cidadania (NUPHISC/CNPq). Professor da área de Ensino de História da Universidade Regional do Cariri (URCA) e do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória/URCA/UFRJ). Email: francisco.melo@urca.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-0749-136X.

ii Doutor em Educação pela UFC. Pós-doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professor da UFC na Graduação, na Especialização, no Mestrado e no Doutorado Acadêmico em Educação, no Mestrado Profissional em Ensino de Saúde, no Mestrado Profissional em Políticas Públicas e no Doutorado Acadêmico em Políticas Públicas, pesquisando na área de História da Cultura e Educação Brasileira, Avaliação e Tecnologias na Educação. Email: germano.junior@uece.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000- 0002-0988-4207.


Resumo

Neste artigo, buscou-se compreender as relações discursivas e conflituosas entre o empreendedorismo neoliberal e as identidades de gênero presentes na Base Nacional Comum Curricular de 2018 e na Base Nacional Comum para Formação Inicial de Professores da Educação Básica de 2019, interseccionadas por documentos que interferem na elaboração dos projetos pedagógicos dos cursos de Licenciatura. Como base teórica, utilizaram-se os conceitos de identidade na pós-modernidade, de gênero, de empreendedorismo e o currículo como espaço de disputas de identidades. Como metodologia, construíram-se as relações discursivas, aqui pensadas como teia discursiva, entre os documentos analisados, a partir de expressões caras ao empreendedorismo e às identidades de gênero. Identificou- se ser possível constituir projetos pedagógicos que considerem as identidades de gênero, ainda que os documentos analisados priorizem o empreendedorismo.

Palavras-chave: Base Nacional Comum Curricular; formação de professores; empreendedorismo; identidade de gênero

Abstract

In this paper, it was sought to understand the discursive and conflicting relationships between neoliberal entrepreneurship and gender identities present at the 2018 National Common Core Curriculum and the in the 2019 Common National Base for Initial Training of Basic Education Teachers, intersected by documents that interfere in the elaboration of the pedagogical projects of the teaching undergraduate courses. As a theoretical basis, the concepts of identity in post-modernity, gender, entrepreneurship and curriculum as a space for identity disputes were used. As a methodology, discursive relationships, thought here as a discursive web, among the documents analyzed were built, from expressions dear to entrepreneurship and gender identities. It was identified that it is possible to create pedagogical projects that consider gender identities, even though the documents analyzed prioritize entrepreneurship.

Keywords: National Common Core Curriculum; teacher training; entrepreneurship; gender identity

Resumen

En este artículo, se buscó comprender las relaciones discursivas y conflictivas entre el emprendimiento neoliberal y las identidades de género presentes en la Base Nacional Común Curricular de 2018 y en la Base Nacional Común para la Formación Inicial de Docentes de Educación Básica de 2019, interseccionadas por documentos que interfieren en la elaboración de los proyectos pedagógicos de los cursos de Licenciatura. Como base teórica, se utilizaron los conceptos de identidad en la posmodernidad, de género, emprendimiento y el currículo, como espacio de disputas identitarias. Como metodología, se construyeron las relaciones discursivas, aquí pensadas como una tela discursiva, entre los documentos analizados, a partir de expresiones caras al emprendimiento y a las identidades de género. Se identificó que es posible constituir proyectos pedagógicos que consideren las identidades de género, aunque los documentos analizados prioricen el emprendimiento.

Palabras clave: Base Nacional Común Curricular; formación de profesores; emprendimiento; identidad de género

1 INTRODUÇÃO

Nosso objetivo, neste artigo, é compreendermos as relações de aproximações e de distanciamentos entre as prescrições curriculares estabelecidas pela Base Nacional Comum Curricular - BNCC (BRASIL, 2018a) e a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação) - Resolução No 2, de 20 de dezembro de 2019 (BRASIL, 2019) -, interseccionadas por outras regulamentações que geram conflitos identitários entre o empreendedorismo neoliberal e as identidades de gênero. Destacamos que, a partir de 2019, os documentos da BNCC e da BNC-Formação, como ficaram conhecidos respectivamente nos meios educacionais, chamaram à cena as normativas definidas pelo Ministério da Educação (MEC) e pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) para a reforma curricular, que diz respeito à formação de professores no Brasil.

Embasamos nossas análises e reflexões sobre identidades conflituosas em Hall (2006, p. 11), segundo o qual a “identidade cultural na pós-modernidade” é fragmentária, plural e volátil, define-se, portanto, histórica e não biologicamente. Assim, o sujeito assume suas identidades em diferentes momentos, visto que as identidades não são unificadas ao redor de um “eu” coerente, são contraditórias e permanentemente se descolam (HALL, 2006).

Foi, pois, no sujeito pós-moderno que a identidade de gênero teve a possibilidade de ser contemplada em propostas curriculares fundamentadas no multiculturalismo. Esse movimento surgiu nos Estados Unidos a partir da problematização educacional e curricular feita por diversos grupos e movimentos sociais de mulheres, de negros, de negras e de homossexuais que fizeram fortes críticas aos cânones curriculares tradicionais que reforçavam os privilégios “[...] da cultura branca, masculina, europeia, heterossexual” (SILVA, 2013, p. 88), autodenominada superior.

Nossa tese é que o foco da BNCC (BRASIL, 2018a) e, consequentemente, da BNC-Formação (BRASIL, 2019), no empreendedorismo se aproxima do currículo tradicional, criticado pelo multiculturalismo, sendo um retorno à identidade do sujeito iluminista, que compreende a pessoa humana como indivíduo “[...] totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo” (HALL, 2006, p. 11-12).

Em relação à metodologia, apropriamo-nos do conceito de “teia discursiva” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007; FOUCAULT, 2016). Entendemos que a BNCC (BRASIL, 2018a) e a BNC-Formação (BRASIL, 2019), tomadas aqui como discursos, silenciam em relação às composições múltiplas de gênero como expressões sociais humanas variáveis, ao mesmo tempo que investem no homem empreendedor como única verdade possível. Em nosso percurso investigativo, identificamos que a BNCC e a BNC-Formação não são documentos isolados, tendo em vista formarem uma rede com outros documentos que se apoiam, se cruzam ou mesmo se excluem em relação à diversidade de gênero silenciada. Assim, este artigo foi construído a partir do confronto entre os dois documentos para explicitar a teia discursiva que envolve a BNCC e a BNC-Formação em relação ao empreendedorismo e às identidades de gênero.

Para traçar nossa “teia discursiva”, fixamos a BNC-Formação como importante acontecimento para a educação brasileira, em torno do qual se interseccionam diversos discursos de origens e de tempos diferentes, ou não, que afetam especialmente o processo de formação de professores para a Educação Básica. Dentre os discursos analisados, destacamos, além da BNC-Formação (BRASIL, 2019) e da BNCC (BRASIL, 2018a), as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) da Educação Básica (BRASIL, 2013) e o Projeto de Lei (PL) do Senado Federal de N° 193, de autoria do Senador Magno Malta, em 2016 (BRASIL, 2016a), que se desdobrou em diversos projetos de lei municipais apresentados pelo Movimento Escola Sem Partido (MESP). Assim, tomamos os documentos citados como discursos e os confrontamos, não necessariamente como opostos, tampouco plenamente concordantes, para identificar como prescrevem o perfil dos professores da Educação Básica que deverão ser formados em cursos da Educação Superior, nos próximos anos.

Na construção de nossa “teia discursiva”, concebemos, assim como Silva (2013, p. 134-135), “[...] o conhecimento e o currículo como campos culturais, como campos sujeitos à disputa e à interpretação, nos quais os diferentes grupos procuram estabelecer sua hegemonia”. Nesse sentido, na análise das teias “discursivas referidas”, usamos o conceito de “governamentalidade” (FOUCAULT, 2017a) como chave para compreendermos como as mesmas prescrições que visam à formação do homem empresa abrem espaços para outras identidades, mesmo que silenciadas nos documentos prescritivos, a exemplo da identidade de gênero. A governamentalidade, dessa forma, é identificada como sendo a racionalidade governamental de tentar conduzir a conduta dos outros, inclusive na constituição de suas identidades, uma forma de dirigir a produção de sujeitos, de tentar moldá-los e guiá-los de acordo com a conduta desejada de quem governa (MARSHALL, 2011). As prescrições curriculares da BNCC e da BNC-Formação, assim, são aqui estudadas como fios condutores de constructos da governamentalidade neoliberal com vistas à formação de sujeitos a serem sujeitados ao empreendedorismo.

Buscamos, portanto, responder aos seguintes questionamentos: Como os usos de expressões como “empreendedorismo” e “gênero” e palavras correlatas de ambas se organizam para definir as identidades culturais e profissionais de professores da Educação Básica, na BNC-Formação que tem por base a BNCC? É possível, a partir das relações de saber e de poder estabelecidas nos documentos curriculares, abrir fissuras que considerem a heterogeneidade das identidades de gênero na formação de professores, em meio à “governamentalidade” neoliberal?

Esperamos que a compreensão do currículo como campo de disputas de poder possa contribuir para a constituição de propostas curriculares que tragam uma formação inicial de professores que permita uma contraposição à educação universalizante do sujeito empresarial, que considere outras possiblidades de existência humana, a exemplo da diversidade de gênero.

2 O NEOLIBERALISMO NAS BASES CURRICULARES COMO DEFINIDOR DAS CONDUTAS DE SI

Após as reflexões introdutórias da seção anterior, vamos tecer as “teias discursivas” que se estabelecem entre as legislações curriculares nacionais. Nosso objetivo é identificarmos como a BNCC e a BNC-Formação fazem parte do projeto neoliberal de estruturação de uma racionalidade educacional, vinculando à formação de professores para a Educação Básica um conjunto de tecnologias de poder capazes de intervir na vida das pessoas e transformá-las em agentes de si para o empreendedorismo. Compreendendo os sujeitos da educação como empreendedores, as prescrições curriculares analisadas tendem a definir a identidade desses sujeitos como “homens empresas”, suscetíveis à individualização e à normalização neoliberal, com a falsa ilusão de liberdade, tendo em vista que, “[...] como empreendedor de si mesmo, o sujeito de desempenho é livre, na medida em que não está submisso a outras pessoas que lhe dão ordens e o exploram; mas realmente livre não é, pois ele explora a si mesmo e quiçá por decisão pessoal. O explorado é o mesmo explorador” (HAN, 2017, p. 21-22).

Ao mesmo tempo que a BNCC (BRASIL, 2018a) e a BNC-Formação (BRASIL, 2019) investiram no empreendedorismo, esses documentos ocultaram os debates curriculares em torno da identidade de gênero, se contrapondo aos debates que vinham se desenvolvendo, principalmente a partir do final dos anos de 1990. Desse modo, à matriz curricular da BNCC e da BNC-formação associaram-se as pautas conservadoras que ganharam espaço na cena pública brasileira nos primeiros anos deste século como parte das contestações aos direitos sociais conquistados no pós-Segunda Guerra Mundial, o que abriu espaço para o MESP, um dos fios de nossas “teias”. Abordemos, então, nossa tessitura pelo fio do MESP.

A primeira versão da BNCC foi disponibilizada em setembro de 2015 (BRASIL, 2015a). Em 2016, o PL do Senado N° 193 (BRASIL, 2016a) foi posto para consulta pública, obtendo uma aprovação de 199.873 votos e 210.819 votos de reprovação1 (BRASIL, 2016b). Diante da derrota na audiência pública e da ameaça do projeto ser rejeitado pela relatoria da Comissão de Educação, Cultura e Esporte, o autor o retirou de pauta, mas a quantidade de votos de aprovação demonstrou sua capilaridade na sociedade. Aproveitando-se dessa capilaridade, o MESP resolveu agir pelas bases, aprovando o mesmo projeto, com algumas adaptações às realidades locais, em várias Câmaras Municipais do país. O foco era o mesmo: excluir dos currículos municipais qualquer referência à diversidade de gênero e de orientação sexual, a exemplo de Ipatinga, em Minas Gerais (MG), Foz do Iguaçu, no Paraná (PR), dentre outros. Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que os municípios não tinham o poder de legislar sobre essa matéria.

Em sua terceira e última versão (BRASIL, 2018a), a BNCC contemplou a racionalidade neoliberal associada à exclusão dos debates sobre gênero e/ou orientação sexual. É fato que não proíbe, tampouco indica qualquer caminho específico nesse sentido. Ao ter um caráter prescritivo, o documento abre uma fresta para o ideário do MESP. Da mesma forma, abre-se um caminho em direção contrária. A análise de outros documentos referenciados na BNCC e/ou que lhe dão legitimidade permite identificarmos possibilidades de inserções da diversidade de gênero e da orientação sexual na produção curricular derivada da própria BNCC e da BNC-Formação. Dessa produção curricular derivada, interessam-nos os Projetos Pedagógicos dos cursos de Licenciatura, uma vez que deverão ter como referência a BNCC, conforme definido pelo § 8º, Art. 62, incluído na Lei N o 9.394, de 20 de dezembro de 1996, pela Lei Nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 (BRASIL, 2017a).

Não nos restam dúvidas que a formação de professores no Brasil é muito insuficiente e que a BNC-Formação é uma tentativa de superar essas lacunas. É fato, da mesma forma, que o professor está no centro do debate sobre a necessidade de novos parâmetros de educação escolar no Brasil. Não podemos negar, também, que muitas mudanças ocorreram nas práticas de ensinar e de aprender nas últimas décadas, sem romper, todavia, com os pilares fundantes de uma educação escolar ainda centrada no professor que, de forma individual, seleciona e “transmite” informações, como sendo esse o objetivo final da educação. Sobressai-se, portanto, a tendência em repetir as práticas docentes seculares, caracterizadas pela reprodução de uma realidade já conhecida e pronta a ser transmitida pela exaustiva repetição, em desacordo com a sociedade do século XXI de acesso amplo à informação, mas com grande dificuldade de serem transformadas em conhecimento.

Ao propor a superação dos modelos tradicionais de educação centrados na transmissão e na repetição, a crítica neoliberal tecnicista propõe formar professores com focos na eficiência e na produtividade. Nessa acepção, a preocupação é fazer com que o professor seja capaz de reinventar suas técnicas conforme as novas exigências da sociedade de metas de produtividade. Desse modo, o modelo neoliberal proposto não supera, mas reforça e aprimora o tecnicismo tradicional, conforme a crítica a seguir:

[...] o discurso da pedagogia tecnicista se coaduna com a lógica do modelo de competências ao ter como base uma educação que privilegia a lógica da instrução e a transmissão da informação. Mais especificamente, o reducionismo tecnicista - em que a formação de professores parte da dimensão acadêmica para a dimensão experimental/instrumental/pragmática e coloca a ênfase nas competências e habilidades dos professores e alunos busca, prioritariamente, o alcance das metas e resultados pré-estabelecidos para assim garantir a eficiência e a produtividade na educação (SILVA, 2016, p. 198).

Há uma recorrência aos paradigmas das competências, das habilidades e das técnicas constituídos ao longo do final do século XX e início do século XXI. Crítica semelhante podemos observar em artigo recentemente publicado na Revista do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN), ao analisar a adoção do ensino remoto na Educação Superior, por conta da pandemia da covid-19:

Como uma das consequências desse processo, tem-se o aprendizado reduzido à aquisição meramente instrumental de competências e conhecimentos tácitos-práticos, à miséria da razão utilizada tão somente para a resolução de problemas que emergem da imediaticidade cotidiana, especialmente do mundo do trabalho. Nesta lógica, o educando deve ser adestrado a ser “flexível”, “proativo”, “resiliente”, “empreendedor”, “criativo” e todo esse léxico que tem como fito a docilização/passivização do sujeito (MARTILIS; MENEZES; MENDES, 2021, p. 56).

É possível identificarmos discursos de resistência entre as representações sindicais e uma considerável parcela de pesquisadores da educação, que criticam os usos do neoliberalismo como definidor das regras educacionais e de formação de professores com base nas regras do mercado.

Nesse sentido, mesmo que não possamos encontrar, diretamente, no documento da BNC-Formação as expressões típicas do neoliberalismo, como “competitividade”, “produtividade”, “inovação”, “empreendedorismo”, “mercado”, “consumidor”, “terceirização”, “empresa”, dentre outras, não podemos desconsiderar que é possível identificar as tecnologias de governança neoliberais a partir da teia discursiva que se estabelece entre os documentos aqui analisados, a exemplo do que ocorre com o fato de a BNCC ser o documento definidor da BNC-Formação, conforme já mencionado. Portanto, a BNC-Formação e a BNCC são fios discursivos que se amparam mutuamente em consonância com outros fios da rede de tecnologias de governança neoliberal que se retroalimentam.

A BNCC define a BNC-Formação e, na leitura da primeira, é possível observarmos expressões ou palavras da “racionalidade neoliberal” citadas no parágrafo anterior, a exemplo de “competitividade”, “produtividade” e “inovação”, presentes nos “itinerários estratégicos integrados”, que reafirmam os termos das DCN do Ensino Médio publicadas em 20182:

V - formação técnica e profissional: desenvolvimento de programas educacionais inovadores e atualizados que promovam efetivamente a qualificação profissional dos estudantes para o mundo do trabalho, objetivando sua habilitação profissional tanto para o desenvolvimento de vida e carreira quanto para adaptar-se às novas condições ocupacionais e às exigências do mundo do trabalho contemporâneo e suas contínuas transformações, em condições de competitividade, produtividade e inovação, considerando o contexto local e as possibilidades de oferta pelos sistemas de ensino [...] (BRASIL, 2018a, p. 478).

As palavras “competitividade”, “produtividade” e “inovação” presentes na DCN para o Ensino Médio (BRASIL, 2018b) revelam comportamentos e ações caros ao neoliberalismo. Nessa perspectiva, há uma racionalidade que se sobrepõe à ideologia e à política econômica, pois busca estruturar e organizar as ações de governantes e de governados. No caso escolar, é uma racionalidade constituída para gestores, professores e estudantes da Educação Básica. São ações típicas da racionalidade neoliberal como destacado por Dardot e Laval (2016).

Considerando-se que a BNCC é a principal referência para a BNC-Formação, há uma tendência à constituição dos projetos pedagógicos dos cursos de formação de professores no mesmo sentido, como destacado nos “considerandos” da BNC-Formação: “As aprendizagens essenciais, previstas na BNCC-Educação Básica, a serem garantidas aos estudantes, para o alcance do seu pleno desenvolvimento [...], requerem o estabelecimento das pertinentes competências profissionais dos professores” (BRASIL, 2019, p. 1).

Se, na BNC-Formação, os discursos neoliberais são menos explícitos, não podemos dizer o mesmo em relação à BNCC. Basta observarmos os quatro momentos nos quais o termo “empreendedorismo” é utilizado na BNCC, como na seção “As finalidades do Ensino Médio na contemporaneidade”:

[...] proporcionar uma cultura favorável ao desenvolvimento de atitudes, capacidades e valores que promovam o empreendedorismo (criatividade, inovação, organização, planejamento, responsabilidade, liderança, colaboração, visão de futuro, assunção de riscos, resiliência e curiosidade científica, entre outros), entendido como competência essencial ao desenvolvimento pessoal, à cidadania ativa, à inclusão social e à empregabilidade (BRASIL, 2018a, p. 466).

Da mesma forma, a BNCC repete o previsto na Resolução N° 3/2018, que atualiza as DCN para o Ensino Médio (BRASIL, 2018b), destacando, entre os eixos estruturantes dos itinerários formativos, o empreendedorismo, o qual “[...] supõe a mobilização de conhecimentos de diferentes áreas para a formação de organizações com variadas missões voltadas ao desenvolvimento de produtos ou prestação de serviços inovadores com o uso das tecnologias” (BRASIL, 2018a, p. 479).

Não por acaso, a ideia do empreendedorismo é reforçada novamente nas reflexões introdutórias da área de “Ciências Humanas e Sociais e Sociais Aplicadas”:

Há hoje mais espaço para o empreendedorismo individual, em todas as classes sociais, e cresce a importância da educação financeira e da compreensão do sistema monetário contemporâneo nacional e mundial, imprescindíveis para uma inserção crítica e consciente no mundo atual (BRASIL, 2018a, p. 568).

E mais uma vez essa ideia é reforçada em uma das habilidades da Competência Específica 5, também da área de “Ciências Humanas e Sociais Aplicadas”:

(EM13CHS501) Analisar os fundamentos da ética em diferentes culturas, tempos e espaços, identificando processos que contribuem para a formação de sujeitos éticos que valorizem a liberdade, a cooperação, a autonomia, o empreendedorismo, a convivência democrática e a solidariedade (BRASIL, 2018a, p. 577, grifo do autor).

A ênfase no empreendedorismo, ou no “homem empresarial”, não se dá por acaso, é um dos fundamentos no pensamento de Mises (1995), um dos principais representantes da escola austro-americana neoliberal. Para ele, o entrepreneurship, entrepreneurialité ou empreendedorismo é uma dimensão antropológica inerente ao homem, na qual a gestão estatal e a sociedade devem investir. Quando o Estado não cumpre essa função, ocorre uma anomalia. Assim, o papel do Estado é o de garantir a cooperação social, sem fazer intervenções, ao mesmo tempo que garante um mercado capaz de criar empreendedores criativos (MISES, 1995). Nesse sentido, para o que estamos analisando, compreendemos que o Estado assiste os cidadãos com educação, enquanto a educação alimenta os princípios do neoliberalismo. O management, ou gestão, do processo dá-se pela BNCC como forma de gerenciar as ações de ensino e de aprendizagem escolar em todos os seus níveis, em todas as suas modalidades e dimensões.

Fica evidente que a “governamentalidade”, ou a razão de “governamentalidade” no que diz respeito aos documentos curriculares prescritivos, tem uma intenção fundada na “racionalidade neoliberal”, com influências da perspectiva antropológica empreendedora de Mises (1995), seguindo a lógica neoliberal da competividade como conduta humana, sendo a escola importante espaço de subjetivação dessa racionalidade.

A análise da BNC-Formação (BRASIL, 2019) evidencia, ainda mais, a teia da racionalidade neoliberal estabelecida entre os documentos, ao apontar para uma formação de professores que sejam capazes de favorecer

[...] o desenvolvimento de competências que possibilitem aos estudantes inserir-se de forma ativa, criativa e responsável em um mundo do trabalho cada vez mais complexo e imprevisível, criando possibilidades, para viabilizar seu projeto de vida e continuar aprendendo, de modo a ser capazes de adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores (BRASIL, 2018a, p. 465-466).

Não se trata de uma ação conspiratória, deliberada ou proposital, mas de concepções neoliberais que se entranharam nas teias discursivas curriculares, propondo formar o indivíduo para um mercado de trabalho cada vez mais restrito no qual somente “os melhores”, os que forem capazes de apreender competências suficientemente fortes para o momento e flexíveis para as mudanças futuras no mercado de trabalho, atingirão o sucesso. A BNCC, portanto, reproduz o ethos do neoliberalismo vinculando a maneira de governar o homem com o modo como ele mesmo se governa como empresa responsável de si mesmo, um sujeito criativo, ativo e flexível.

Importa-nos estabelecer, por conseguinte, que a BNC-Formação (BRASIL, 2019) e a BNCC (BRASIL, 2018a) convergem para o mesmo fim: formar pessoas que se identifiquem com a ascese da empresa de si mesmo. Em outras palavras, a BNCC traz em suas linhas uma educação que se apropriou das técnicas da racionalidade neoliberal com vistas a formar indivíduos cuja identidade deve ser a empresa de si (L’entreprise de soi), descrito por Aubrey (2000) como alguém que seja capaz de desenvolver sua capacidade de conhecer-se, de educar-se e de conectar-se, para adaptar-se ao mundo que lhe cerca e que, dessarte, também deverá ser conhecido. Para esse homem, seu desenvolvimento significa a melhoria dos seus negócios, da sua família, de sua Igreja, do seu bairro, de suas redes de contatos (AUBREY, 2000).

A preocupação curricular em focar suas prescrições na universalização identitária do homem como empresa de si se põe em operação contrária às pluralidades identitárias constituídas ao longo da história da democracia ocidental, pois a tendência é que somente haja lugar para a disciplina pessoal de investimento em si, baseada na eficácia, no envolvimento e na dedicação ao trabalho, no aperfeiçoamento de uma aprendizagem contínua e flexível, características típicas das mudanças constantes do mercado (DARDOT; LAVAL, 2016).

O novo “espírito capitalista” da autogestão, na qual cada um deve se planejar e estabelecer suas próprias normas e metas, não deixa espaço para as diversidades humanas, a exemplo da diversidade de gênero. O que tende a predominar e fortalecer-se é um novo sujeito para o neoliberalismo, o que não implica, todavia, que não seja possível constituir os espaços de formação de professores como lugares de resistência. Na seção seguinte, procuramos identificar essas possibilidades.

3 OS PROJETOS PEDAGÓGICOS DE CURSOS DE LICENCIATURA COMO PODER CURRICULAR PERIFÉRICO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA A EDUCAÇÃO DE GÊNERO

Antes de ser aprovada, a BNCC seguiu o ritual do CNE, passando pelo parecerista Professor Eduardo Deschamps, que considerou, no Parecer N° 15, de 15 de dezembro de 2017 (BRASIL, 2017b), a necessidade de superar os resultados desiguais da educação brasileira, no que toca principalmente às desigualdades expressas socialmente:

Ainda que o enfrentamento do desafio de elevar o resultado médio de aprendizagem dos alunos brasileiros seja, por si só, tarefa de grande monta, tal esforço terá seu impacto de transformação individual e coletiva comprometido se não for realizado em consonância com o objetivo de reduzir as substantivas desigualdades nos resultados educacionais observados do ponto de vista regional, socioeconômico, racial, de diferenças de gênero e da relação urbano/rural (BRASIL, 2017b, p. 14).

A versão final da BNCC, todavia, não considerou as observações do parecerista no que diz respeito aos aspectos voltados à educação sexual e ao gênero. Em outra passagem do parecerista, ainda que não especifique a condição de gênero, há uma abertura para algumas possibilidades de táticas futuras em relação a esse aspecto, tendo em vista entender que as etapas da educação brasileira deverão considerar

[...] as múltiplas dimensões dos sujeitos, associando cognição e afetividade, assegurando que os estudantes desenvolvam plenamente conhecimentos, habilidades, atitudes e valores, necessários à realização do projeto de vida pessoal, social e profissional e à construção de uma sociedade mais humana, ética, inclusiva, democrática e sustentável (BRASIL, 2017b, p. 28).

Lembrando que a dimensão cultural defendida pelo parecerista pressupõe para os estudantes a “[...] capacidade de reconhecer suas identidades culturais, respeitar e valorizar a diversidade, abrir-se ao novo, apreciar, fruir e produzir bens e manifestações artísticas e culturais [...]” (BRASIL, 2017b, p. 28). O parecerista destaca, ainda, que a educação precisa ser integral, portanto necessita considerar as “[...] capacidades sintonizadas com os desafios da sociedade contemporânea, marcada pela expansão do conhecimento, pela globalização da cultura e da ciência e pela multiplicação das identidades” (BRASIL, 2017b, p. 29). Identificamos, assim, uma tentativa de aproximar a racionalidade neoliberal, pela globalização da cultura, com as múltiplas identidades. Dessa maneira, ainda que o foco dos documentos curriculares aqui analisados seja o de valorizar o homem neoliberal em detrimento da pluralidade de gênero, é possível verificarmos, em pontos mais periféricos dos mesmos documentos, fissuras discursivas que contradizem os objetivos principais, dando margem para outras possibilidades curriculares disformes em relação ao objetivo neoliberal.

As disputas e as relações de poder e de saber que perpassaram a elaboração da BNCC e da BNC-Formação extrapolam os limites das instituições do Estado e se capilarizam para outros espaços da sociedade. Os dois documentos e demais legislações curriculares não podem, por conseguinte, ser vistos como camisas de forças. Na medida em que se espraiam pelos finos poros da sociedade, são repensados e redefinidos em poderes difusos até chegarem nos espaços das salas de aula da Educação Básica, onde se encontram professores formados a partir dos Projetos Pedagógicos, cuja estrutura curricular e de suas práticas dependem das opções feitas pelos professores dos cursos de formação de professores para a Educação Básica.

Nesses jogos de poder e de disposições de forças, os projetos pedagógicos de cursos de Licenciatura, conforme a autonomia de cada curso/departamento, carregam, em suas normatizações, potenciais para trazerem à cena educativa formações que considerem as relações étnicas, raciais e de gênero. Para tanto, podem, por exemplo, se apropriar do próprio documento da BNCC em sua nona competência geral para a Educação Básica:

Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos, de forma harmônica, em cooperação, fazendo-se respeitar, bem como promover o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza (BRASIL, 2018a, p. 10).

É fato que, no documento da BNCC, não encontramos uma manifestação direta em relação à condição de gênero das pessoas. A palavra “gênero” aparece 320 vezes, em suas 600 páginas. Somente em língua portuguesa, a palavra repete-se 80 vezes, do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental. Todavia, todas se referem a gêneros textuais, jornalísticos, artísticos, produção digital, literário, dentre outros. Não há uma só palavra referente à gênero como identidade dos sujeitos. No entanto, ao destacar o “[...] acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e grupos sociais” (BRASIL, 2018a, p. 10), abre-se uma brecha para o plural e o diverso.

Destacamos, ainda, que o documento da BNCC, na seção intitulada “O pacto interfederativo e a implementação da BNCC - Base Nacional Comum Curricular: igualdade, diversidade e equidade” (BRASIL, 2018a, p. 15, grifo do autor), faz referências a diversos documentos que tratam das condições identitárias e/ou de inclusão, como, por exemplo: a Resolução Nº 1, de 17 de junho de 2004, que institui as “[...] Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” (BRASIL, 2004, p. 1), e demais regulamentações curriculares que dizem respeito ao tema; o Parecer Nº 13, de 10 de maio de 2012, que fixa Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena (BRASIL, 2012a); a Lei Nº 13.146, de 6 de julho de 2015, que institui “[...] a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) (BRASIL, 2015b, n.p.); o Parecer Nº 14, 6 de junho de 2012, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Ambiental (BRASIL, 2012b); a Lei Nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, que dispõe “[...] sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências” (BRASIL, 2003, p. 1); o Parecer Nº 8, 6 de março de 2012, que estabelece as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2012c); e as DCN da Educação Básica (BRASIL, 2013).

Assim, a BNC-Formação, a BNCC e toda legislação que lhes transversa formam uma “teia discursiva” que se espraia pelos mais variados espaços da Educação Básica e da formação de professores. Na medida em que esses discursos ganham novos condutos e espaços, redimensionam-se nos jogos de poder ali estabelecidos. Não há discurso único porque não existe poder único capaz de efetivar os currículos prescritos que regulamentam a educação nacional em sua integridade. Podemos, assim, argumentar com Foucault (2014, p. 100-101):

Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo através de lutas e afrontamentos incessantes, as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de forças encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas, ou ao contrário, as defasagens e contradições que se isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação das leis, nas hegemonias sociais.

Nessa acepção, nossa tessitura encaminha-se para pensar os projetos pedagógicos de cursos de formação de professores como possibilidades de resistência à redução da condição humana ao “homem empreendedor”, conforme já descrito anteriormente. Entendemos que os projetos curriculares devem considerar a formação de professores para a diversidade da sociedade, incluindo-se, portanto, questionar o essencialismo dos currículos que reduzirem o humano à naturalização e à universalização da condição anatômica dual com base no sexo biológico, como nos apresenta a BNCC, ao silenciar sobre a diversidade de gênero. Conforme Butler (2015, p. 56),

[...] o gênero não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois vimos que seu efeito substantivo é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da coerência do gênero. Consequentemente, o gênero é sempre um feito, ainda que não seja obra de um sujeito tido como preexistente à obra.

Nesse viés, entendemos ser possível elaborar projetos pedagógicos de cursos de formação de professores que deem conta da diversidade de gênero, mesmo que isso não seja explicitado na BNCC, sem corrermos o risco de uma ação fora do previsto pelas normativas curriculares nacionais. Professores de cursos/departamentos de Licenciaturas têm a possibilidade de elaborar projetos pedagógicos que retomem os debates há décadas constituídos no Brasil, “[...] propondo conteúdos curriculares e pedagógicos que contemplem essas questões e atuem como propulsores no combate às discriminações e às desigualdades de gênero” (BARREIRO; MARTINS, 2016, p. 96).

A BNCC deixa margens para currículos inclusivos. Ainda que não especifique gênero como categoria a ser debatida na perspectiva política, cultural, religiosa e educacional no campo da diversidade humana, ao destacar, em sua “apresentação”, o vínculo com os “[...] princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva” (BRASIL, 2018a, p. 7), definidos pelas DCN da Educação Básica (BRASIL, 2013), cria a possiblidade de uma educação voltada à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva, o que não pode ser pensando sem considerar a inclusão da diversidade e da pluralidade de gênero.

É, consequentemente, o conduto aberto com as DCN para a Educação Básica, reconhecidas pela BNCC como um de seus pilares para a Educação Básica, que os projetos pedagógicos dos cursos de formação de professores podem se apropriar. Nas DCN citadas, ao contrário da BNCC, a valorização em relação aos debates sobre “gênero”, “identidade de gênero”, “questões de gênero”, dentre outras expressões correlatas, aparecem 56 vezes, em suas 565 páginas. Nesse caso, o documento é direto, chegando a fazer o destaque em negrito:

A educação destina-se a múltiplos sujeitos e tem como objetivo a troca de saberes, a socialização e o confronto do conhecimento, segundo diferentes abordagens, exercidas por pessoas de diferentes condições físicas, sensoriais, intelectuais e emocionais, classes sociais, crenças, etnias, gêneros, origens, contextos socioculturais, e da cidade, do campo e de aldeias. Por isso, é preciso fazer da escola a instituição acolhedora, inclusiva, pois essa é uma opção “transgressora”, porque rompe com a ilusão da homogeneidade e provoca, quase sempre, uma espécie de crise de identidade institucional (BRASIL, 2013, p. 25, grifo do autor).

Assim sendo, a BNCC (BRASIL, 2018a), embora não se comprometa diretamente com a especificidade de “gênero”, ao fundamentar-se, dentre outros documentos, nas DCN para a Educação Básica (BRASIL, 2013), e sendo fundamento para a BNC-Formação (BRASIL, 2019), abre espaço para que os projetos pedagógicos para os cursos de formação de professores insiram em seus currículos e em suas ações pedagógicas dispositivos diversos de ensino e de aprendizagem que possam trazer à tona alternativas às práticas impositivas e de homogeneização das manifestações humanas, exclusivamente no âmbito do feminino ou do masculino.

Mesmo tendo a BNCC como principal documento de base em sua fundamentação, a BNC-Formação abre uma possibilidade para a formação de professores que tenham em suas práticas o diálogo com a diversidade de gênero. É possível identificarmos na Resolução No 1, de 27 de outubro de 2020 (BRASIL, 2020), do CNE e do Conselho do Pleno (CP), que institui a BNC-Formação, uma, ainda que única, justificativa que respalda o debate sobre a questão de gênero na formação dos professores para a Educação Básica. Trata-se de umas das “COMPETÊNCIAS ESPECÍFICAS E HABILIDADES DA DIMENSÃO DA PRÁTICA PROFISSIONAL-PEDAGÓGICA” (BRASIL, 2020, p. 11, grifo do autor), a de número 2a.4.1: “Promover o respeito e a participação de todos os alunos nas ações educativas, considerando a diversidade étnica, de gênero, cultural, religiosa e socioeconômica” (BRASIL, 2020, p. 12).

Dessa forma, tomando-se os documentos periféricos da BNCC e da BNC-Formação, é possível constituir projetos pedagógicos para formar professores transgressores aos que insistem em referendar a sociedade desigual a despeito da equidade e da diversidade humana em suas mais variadas manifestações de gênero.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não acreditamos no determinismo das prescrições curriculares, as quais são capazes de controlar os indivíduos e a população escolar de forma geral, uma vez que o poder age no campo da possiblidade e conforme o comportamento dos sujeitos envolvidos. Para Foucault (2017b, p. 1056, tradução nossa), “[...] ele [o poder] incita, ele induz, ele desvia, ele facilita ou torna mais difícil, ele amplia ou ele limita, ele torna mais ou menos provável; no limite, ele obriga ou impede absolutamente; mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou sobre sujeitos agentes, uma ação sobre ações”. Dessa maneira, a ação do currículo dá-se conforme os envolvidos agem ou são suscetíveis à ação, e onde o poder existe há sempre possibilidades de resistência e de liberdade.

Por um lado, problematizar os discursos presentes nas prescrições curriculares citadas nos ajuda a compreender as intensões previstas para a formação inicial de professores que poderão se render à racionalidade neoliberal de educação em detrimento das relações de gênero como possibilidade identitária. Entendemos, por outro lado, que é possível abrir brechas nos discursos das normativas curriculares para potencializar a formação de professores que pensem e ajam no “plural’, que considerem o “outro” como humano em sua diversidade, implicando considerar-lhe as heterogeneidades identitárias, a exemplo das identidades de gênero.

A racionalidade neoliberal é muito mais do que uma racionalidade econômica, ela é um processo de interiorização, uma subjetivação do modelo da empresa de si que se constituiu condicionada pela globalização da economia ocidental e da concorrência em variados graus da convivência humana, sendo-lhe a escola um espaço privilegiado de normatividade. Nesse sentido, não basta a existência passiva dos modelos curriculares de formação empreendedora; é preciso que sejam apresentadas alternativas de racionalidades que se contraponham à racionalidade neoliberal.

Entendemos que formar-se e ser-se professor necessita de projetos pedagógicos que fomentem o ato de pensar sobre si; aprender a ler-se e ler o mundo que lhe cerca como espaço de intervenção com vistas à coexistência humana da vida planetária em comunhão. Nesse sentido, é pouco provável que a realidade acelerada da racionalidade neoliberal globalizada seja revertida, mas é possível buscar caminhos para uma convivência menos danosa à comunidade humana, tendo os professores um papel decisivo nesse processo. Nesse caso, a docência define-se por sua proximidade com a ética, com os comportamentos e com as emoções individuais e das coletividades, o que implica formar professores que valorizem os estudantes como sujeitos dotados de uma constituição sociocultural e não apenas como futuros profissionais vazios de existência preocupados somente com o mercado de trabalho.

Quando destacamos a importância de que os projetos curriculares devem valorizar as identidades, dentre elas as identidades de gênero, entendemos que as identidades são múltiplas. Como destacamos no início deste artigo, a identidade de gênero é apenas uma delas. Certamente, outros estudos poderão ampliar esse debate considerando as muitas outras identidades, como a étnica, de raça e regional, em contraposição ao imperativo do empreendedorismo permanente. Destacamos, assim, a possibilidade de construirmos projetos de formação de professores que proponham uma ética de subjetivação coletiva que enfatize a alteridade como princípio, que considere a cooperação plural e diversa em busca de novas formas do “con-viver”.

Nossas reflexões sobre as regulamentações curriculares para a formação de professores consideraram as contingências e os sujeitos que lhes são fronteiriços e que poderão influenciar nos projetos pedagógicos de cursos de Licenciatura, os quais devem obedecer às normatizações estabelecidas pelos diversos órgãos de controle institucionalizados ligados aos poderes do Estado, a exemplo das Resoluções do CNE e das decisões do MEC.

Não sabemos exatamente quais os resultados que poderão ser obtidos com os novos currículos para os cursos de formação de professores propostos pela documentação que analisamos, mas sabemos que o ethos do empreendedorismo e do mercado como se fossem um destino e a única possibilidade não podem se sobrepor às aquisições de direitos até aqui conquistados a duras penas. Entendemos que, nos processos de redefinição dos projetos pedagógicos de cursos, os direitos humanos e o respeito à vida são inegociáveis. O perfil previsto dos profissionais que desejamos formados deve considerar a responsabilidade coletiva e não a cegueira do homem empreendedor do individualismo neoliberal.

Ponderamos, por fim, que é fundamental a inserção desse debate nos cursos de formação de professores, principalmente por sermos uma sociedade de flagrante desrespeito à condição e à existência humana plural. Precisamos encarar o neoliberalismo conforme a historicidade humana recente e necessitamos que o planeta seja visto como possibilidade de nossa existência em comunidade, ainda que isso possa parecer um lugar imaginário e distante.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JÚNIOR Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaio sobre teoria da História. Bauru: Edusc, 2007. [ Links ]

AUBREY, Bob. L’entreprise de soi. Paris: Flamarion, 2000. [ Links ]

BARREIRO, Alex; MARTINS, Fernando Henrique. Bases e fundamentos legais para a discussão de gênero e sexualidade em sala de aula. Leitura: Teoria & Prática, Campinas, v. 34, n. 68, p. 93-106, 2016. Disponível em: Disponível em: https://ltp.emnuvens.com.br/ltp/article/view/535 . Acesso em: 23 maio 2021. [ Links ]

BRASIL. Lei No 10.741, de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 192, p. 1-6, 3 out. 2003. [ Links ]

BRASIL. Resolução Nº 1, de 17 de junho de 2004. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro- Brasileira e Africana. Brasília: Ministério da Educação, Conselho Nacional da Educação, [2004]. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/res012004.pdf . Acesso em: 25 nov. 2022. [ Links ]

BRASIL. Parecer Nº 13, de 10 de maio de 2012. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena. Brasília: Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Básica, [2012a]. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=10806- pceb013-12-pdf&Itemid=30192 . Acesso em: 25 nov. 2022. [ Links ]

BRASIL. Parecer No 14, de 6 de junho de 2012. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental. Brasília: Ministério da Educação, Conselho Nacional da Educação, [2012b]. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/maio-2012-pdf/10955-pcp014- 12/file . Acesso em: 25 nov. 2022. [ Links ]

BRASIL. Parecer Nº 8, de 6 de março de 2012. Estabelece as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. Magistério da Educação Básica. Brasília: Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação, [2012c]. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=10356- pceb008-12-pdf&Itemid=30192 . Acesso em: 25 nov. 2022. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional da Educação. Câmara Nacional de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2015a. Disponível em: Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/relatorios- analiticos/BNCC-APRESENTACAO.pdf . Acesso em: 25 nov. 2022. [ Links ]

BRASIL. Lei N° 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília: Presidência da República, Secretaria-Geral, Subchefia para Assuntos Jurídicos, [2015b]. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm . Acesso em: 25 nov. 2022. [ Links ]

BRASIL. Projeto de Lei do Senado N° 193, de 2016. Inclui entre as diretrizes e bases da educação nacional, de que trata a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, o “Programa Escola sem Partido”. Brasília: Senado Federal, [2016a]. Disponível em: Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg- getter/documento?dm=3410752&ts=1630411033190&disposition=inline . Acesso em: 25 nov. 2022. [ Links ]

BRASIL. Consulta Pública. Projeto de Lei do Senado nº 193 de 2016 (PLS 193/2016). e- Cidadania, Brasília, 2016b. Disponível em: Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=125666 . Acesso em: 12 maio 2021. [ Links ]

BRASIL. Lei Nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis Nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e o Decreto-Lei no 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei no 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 35, p. 1-3, 17 fev. 2017a. [ Links ]

BRASIL. Parecer N° 15, de 15 de dezembro de 2017. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Brasília: Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação , [2017b]. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro-2017-pdf/78631-pcp015-17- pdf/file . Acesso em: 25 nov. 2022. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: Educação é a base. Brasília: MEC , 2018a. Disponível em: Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 10 maio 2021. [ Links ]

BRASIL. Resolução Nº 3, de 21 de novembro de 2018. Atualiza as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 155, n. 224, p. 21-24, 22 nov. 2018b. [ Links ]

BRASIL. Resolução No 2, de 20 de dezembro de 2019. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC- Formação). Brasília: Conselho Nacional de Educação; Conselho Pleno, [2019]. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro-2019-pdf/135951-rcp002-19/file . Acesso em: 11 maio 2021. [ Links ]

BRASIL. Resolução CNE/CP No 1, de 27 de outubro de 2020. Dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica (BNC-Formação Continuada). Brasília: Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação , Câmara de Educação Básica, [2020]. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/outubro-2020-pdf/164841-rcp001-20/file . Acesso em: 25 nov. 2022. [ Links ]

BUTLER Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. [ Links ]

DARDOT, Pierre; LAVAL, Chistian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. [ Links ]

FOUCAULT, Michel A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. La governementalité. In: DEFERT, Daniel; EWALD, François (Orgs.). Dits et écrits. v. II. (1976-1988). Paris: Seuil/Gallimard, 2017a. p. 635-657. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Le sujet et le pouvoir. In: DEFERT, Daniel; EWALD, François (Orgs.). Dits et écrits. v. II. (1976-1988). Paris: Seuil/Gallimard , 2017b. p. 1041-1062. [ Links ]

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. [ Links ]

HAN, Byung-Chul. Agonia do Eros. Petrópolis: Vozes, 2017. [ Links ]

MARSHALL, James. Governamentalidade e educação liberal. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). O sujeito na educação: estudos foucualtianos. Petrópolis: Vozes , 2011. p. 21-34. [ Links ]

MARTILIS, Luiz Fernando de Sousa; MENEZES, Kelly Maria Gomes; MENDES, Virzângela Paula Sandy. Os impactos do ensino remoto para a saúde mental do trabalhador docente em tempos de pandemia. Universidade e Sociedade, Brasília, ano XXXI, n. 67, p. 50-61, jan. 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.andes.org.br/img/midias/0e74d85d3ea4a065b283db72641d4ada_1609774477.pdf . Acesso em: 15 maio 2021. [ Links ]

MISES, Ludwig von. A ação humana: um tratado de economia. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1995. [ Links ]

SILVA, Andréa Villela Mafra da. A pedagogia tecnicista e a organização do sistema de ensino brasileiro. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 70, p. 197-209, dez. 2016. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8644737/15765 . Acesso em: 18 maio 2021. [ Links ]

SILVA, Tomás Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. [ Links ]

NOTAS:

1 Conforme o site do e-Cidadania do Senado Federal: “PROJETO DE LEI DO SENADO nº 193 de 2016 (PLS 193/2016) Inclui entre as diretrizes e bases da educação nacional, de que trata a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, o ‘Programa Escola sem Partido’” (BRASIL, 2016b, n.p.).

2 Resolução Nº 3, de 21 de novembro de 2018 (BRASIL, 2018b).

Recebido: 28 de Junho de 2021; Aceito: 29 de Dezembro de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons