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Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.20 no.4 São Paulo Oct./Dec 2022  Epub Jan 30, 2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2022v20i4p1555-1573 

Artigos

A Literatura na BNCC na Etapa do Ensino Médio:Avanços e Retrocessos

Literature at BNCC in High School Stage:Advancesa Setbacks

La Literatura en el BNCC en la Etapa de Bachillerato:Avances y Retrocesos

Micheline Madureira LAGEi 
http://orcid.org/0000-0003-3756-3029

Flávia Nobre dos SANTOSii 
http://orcid.org/0000-0003-2637-4409

i Doutora em Educação. Professora de Língua Portuguesa/Literatura Brasileira nas várias modalidades de ensino do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG-Goiânia-GO). Membro do Núcleo Multicampi de Pesquisa e Estudos em Linguagem (NuMPEL) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG-Goiânia-GO). E-mail: micheline.lage@ifg.edu.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-3756-3029.

ii Graduada em Letras/Português. Membro do Núcleo Multicampi de Pesquisa e Estudos em Linguagem (NuMPEL) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG-Goiânia-GO). Pós-graduanda na Especialização em Docência em Educação e Tecnologias pelo IFG-Luziânia-GO. E-mail: flavianobre@outlook.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-2637-4409.


Resumo

Esta pesquisa objetivou refletir sobre o papel da literatura no currículo do ensino médio. Inicialmente, o trabalho foi de natureza bibliográfica. Analisou-se a versão preliminar da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no que concerne à literatura e ao ensino médio. Em uma segunda fase, foi-se a campo testar em que medida os objetivos de aprendizagem elencados na 2.ª versão da Base contribuíam para a formação de um leitor literário mais reflexivo. O trabalho foi exitoso e mostrou que os pressupostos contidos no documento apontavam para um caminho que levava o jovem ao encontro da literatura. Na terceira fase, em que se traçou uma nova leitura da Base, agora em sua versão definitiva, percebeu-se que esse caminho foi dificultado em razão da reforma do ensino médio, bem como em virtude das alterações realizadas no documento.

Palavras-chave: Base Nacional Comum Curricular; ensino médio; formação de jovens leitores; ensino; literatura

Abstract

This research aimed to reflect on the role of literature in the high school curriculum. Initially, this work was bibliographical in nature. The preliminary version of the Common National Curriculum Base (BNCC) was analyzed regarding literature and secondary education. In a second phase, developed in the field, it was tested to what extent the learning objectives listed in the 2nd version of the Base contributed to the formation of a more reflective literary reader. The work was successful and showed that the assumptions contained in the document pointed to a path that led the young person to get in touch with literature. In the third phase, there was a new reading of the Base, now a document in its definitive version. As a result, it was noticed that this path to literature was made more difficult due to the reform of secondary education, as well as the changes made to this document.

Keywords: Common National Curriculum Base; high school; training of young readers; teaching; literature

Resumen

Esta investigación pretendía reflexionar sobre el papel de la literatura en el plan de estudios de secundaria. Inicialmente, el trabajo era de carácter bibliográfico. Se analizó la versión preliminar de la Base Curricular Nacional Común (BNCC) en lo que respecta a la literatura y el bachillerato. En una segunda fase, fuimos a campo para comprobar en qué medida los objetivos de aprendizaje enumerados en la 2.ª versión de la Base contribuían a la formación de un lector literario más reflexivo. El trabajo fue exitoso y demostró que los supuestos contenidos en el documento señalaban un camino que llevaba a los jóvenes a conocer la literatura. En la tercera fase, en la que se realizó una nueva lectura de la Base, ahora en su versión definitiva, se percibió que este camino se vio dificultado por la reforma de la escuela secundaria, así como por las modificaciones realizadas en el documento.

Palabras clave: Base Curricular Nacional Común; bachillerato; formación de jóvenes lectores; enseñanza; literatura

1 A LITERATURA COMO ITINERÁRIO À EMANCIPAÇÃO HUMANA

Falar sobre literatura é também falar do ser humano, visto ser a língua o objeto da matéria literária. A língua, ou melhor, a língua(gem) atravessa as relações sociais. Assim, pressupõe-se a urgência de discutir a literatura como componente curricular necessário à formação humana. A literatura é um bem simbólico a que todos têm direito, porém constata-se que seu ensino ainda é muito precário nas escolas.

Em pesquisa de mestrado defendida na Universidade de Brasília (UnB) em 1999, e depois transposta para o formato de livro, Lage (2003), na obra Ler sem doer: perspectivas para a leitura do texto literário no ensino médio, trata do assunto. Entre os dados preocupantes percebidos por ela e outros pesquisadores citados na referida obra, os maiores problemas quando se fala em literatura e ensino são: desinteresse dos jovens pela leitura literária em razão do modo como é ofertada nas escolas; presença dominante do livro didático nas aulas de literatura; ausência de obras literárias e foco centrado na periodização literária; mitificação do texto literário, dando-se a ele status de distinção; descompasso existente entre as obras literárias indicadas e as expectativas e possibilidades de leitura dos alunos.

Isso nos permite concluir que o ensino de literatura deve passar por mudanças se realmente almeja-se alcançar objetivos que levem os jovens ao letramento literário, tornando-os leitores mais autônomos e críticos. Não há dúvida de que a leitura literária liberta e emancipa os indivíduos e que esta não se restringe ao espaço escolar, é uma prática social que pode ser levada para toda a vida, influenciando o modo de o leitor se relacionar com o outro, de ver o mundo, de lê-lo em uma perspectiva freiriana.

2 O PERCURSO SINUOSO DA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR

Diante da importância da leitura literária no processo de emancipação e formação crítica do indivíduo e da necessidade de orientação dos professores que carecem de uma proposta realmente capaz de guiar o trabalho em sala de aula, revendo planejamentos didáticos e estratégias metodológicas, torna-se essencial a análise das concepções acerca de leitura, literatura e ensino subjacentes ao principal documento orientador responsável por conduzir o ensino das escolas brasileiras, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Essa análise tem como propósito refletir sobre o papel da literatura no currículo do ensino médio, tendo em vista também a reforma dessa etapa formativa, aprovada pela Lei n.º 13.415/2017.

A fim de situar leitor na linha do tempo da BNCC, diante das conjecturas políticas, é preciso realizar um breve histórico. Em setembro de 2016, após o golpe que derrubou a Presidenta Dilma Rousseff, na nova gestão do Ministério da Educação (MEC), tendo como Ministro da Educação Mendonça Filho, sob a Presidência de Michel Temer, é aprovada em regime de urgência a Medida Provisória n.º 746, que tramitava no Congresso desde 2013, e se converteu na Lei n.º 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, chamada de Reforma do Ensino Médio, alterando, assim, a Lei n.º 9.634/1996, Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB).

Em virtude da Reforma do Ensino Médio, a BNCC foi lançada em 3.ª versão, em abril de 2017, abarcando apenas a educação infantil e o ensino fundamental. Sua versão final, com inclusão da etapa do ensino médio, foi concluída um ano mais tarde, em abril de 2018, após inúmeras alterações em relação à 2.ª versão e ignorando, sem qualquer diálogo, o processo de constituição histórica do documento, deixando de fora autores fundamentais.

É necessário ressaltar que a Reforma do Ensino Médio é o resultado da parceria entre instituições privadas (Instituto Ayrton Senna, Unibanco, Fundação Roberto Marinho, Lemann etc.) e partidos políticos que contribuíram para o impeachment da Presidenta Dilma.

Entretanto, apesar de certa desconsideração da 2.ª versão da BNCC (abril de 2016), esse documento não deixa de ser significativo, em razão do processo coletivo de sua construção, que envolveu uma equipe de 116 profissionais da educação formada por pesquisadores doutores, alguns, inclusive, vinculados a importantes Associações de Pesquisa Brasileiras como Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED) e Associação Nacional de História (ANPUH), professores das redes públicas de ensino, profissionais da União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), profissionais do Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED), estabelecendo-se uma rede de vozes de diferentes partes do País e com formações diversas para se discutirem educação e ensino.

Para se ter uma ideia dos números de contribuições para a Base, até abril de 2016, o sítio da Base, disponibilizado pelo MEC, recebeu doze milhões, duzentos e vinte e seis mil e quinhentos e dez (12.226.510) colaborações advindas de todas as regiões do País.

Esse histórico, em que se destaca a democratização na construção de um documento-chave, nunca ocorrido antes no Brasil, por si só já justifica uma pesquisa em que se valide ou não o que está proposto nos objetivos de aprendizagem elencados para a literatura.

3 A INVERSÃO DA PERIODIZAÇÃO LITERÁRIA RUMO À FORMAÇÃO DE LEITORES LITERÁRIOS

Uma das etapas da pesquisa foi ler a 2.ª versão da Base (2016) com as lentes voltadas aos objetivos que lá estavam (língua portuguesa, literatura, ensino médio). Após várias leituras no que tange à língua portuguesa, fizemos um recorte, trabalhando apenas com os objetivos da etapa escolar do ensino médio. Na referida versão, a língua portuguesa foi organizada pelos seguintes campos ou esferas de atuação: campo literário, campo político-cidadão, campo investigativo (p. 524-526), e as práticas culturais das tecnologias de informação e comunicação deveriam perpassar todos eles. Isso na etapa escolar do ensino médio, pois as etapas anteriores incluíam também o campo da vida cotidiana.

A nós interessaram os objetivos organizados no campo literário, em que se encontram aqueles ligados à área literária. Testamos, então, a validade desses objetivos que têm a proposta de inversão da periodização literária, começando por textos mais próximos da realidade dos jovens dos primeiros anos. Entendemos, assim como constam nesses objetivos, que os alunos que têm entre 14 e 15 anos estão distantes dos textos do Trovadorismo, por exemplo, e que deveriam iniciar suas leituras por produções textuais mais próximas da realidade em que se inserem, em diálogo com outros textos (de diferentes tempos e estilos) e também com outras manifestações artísticas que se relacionam com a literatura.

Desvendado um dos caminhos trilhados para a efetivação dessa pesquisa, coloca-se a questão que perseguimos em nosso trajeto: os estudantes do Ensino Médio Técnico Tecnológico do IFG (Campus de Senador Canedo-GO) teriam uma boa recepção da leitura literária nos moldes previstos pela BNCC em sua 2.ª versão? Para tanto, foram ofertadas oficinas em horários extraturnos, com a metodologia de aulas a partir da obra de Lage (2003). Outros textos teóricos foram lidos ao longo do percurso em nossos encontros, sempre em diálogo, a fim de testar o que estava previsto na BNCC por meio de oficinas literárias construídas em grupo. Esse trabalho foi realizado com os pesquisadores bolsistas e voluntários da pesquisa para que fosse constituída a metodologia que deveria ser aplicada aos alunos da escola-campo.

4 A TRAJETÓRIA TEÓRICA PARA EFETIVAÇÃO DA PESQUISA

O referencial teórico proposto para efetivação da pesquisa, como não poderia deixar de ser, buscou enfrentar um dos maiores obstáculos postos à formação escolar de leitores literários, qual seja, o fato de a literatura ter deixado de ser presença na sala de aula para dar lugar à teoria literária e à história da literatura brasileira, ainda que as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (BRASIL, 2006) apontem, de forma bastante clara, para o papel da teoria no “ensino” de literatura “[...] não se trata de sobrecarregar o aluno com informações sobre épocas, estilos, características de escolas literárias. Trata-se de formar o leitor literário, fazendo-o apropriar-se daquilo a que tem direito” (BRASIL, 2006, p. 54).

Até bem pouco tempo atrás, o texto literário ocupava o pedestal de “algo inalcançável” para classes menos abastadas, sendo a literatura considerada um luxo para quem tinha tempo disponível para ler e estudar, pois a educação não era um direito de todos e todas. A partir do momento que esse direito é assegurado, passa-se a refletir sobre a função do ensino de literatura, ou educação literária, por compreender que a leitura literária não é ensinada, mas sim construída em um processo de formação de leitores articulado com o texto. Para Candido (2004, p. 180), uma das funções primordiais da literatura é a humanização do ser humano, contribuindo essencialmente para a formação integral das pessoas:

Entendo aqui por humanização [...] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.

Em virtude dessa potencialidade da literatura, nosso foco é a formação de leitores autônomos para que se apropriem da prática literária. Assumimos, portanto, o letramento literário como uma das principais tarefas do componente “língua portuguesa”. Essa escolha diz respeito aos processos de apropriação da leitura e da escrita para, em consonância com Soares (1998), a leitura ser algo além da decodificação de um código linguístico, referindo-se ao domínio de um conjunto de competências e habilidades dentro das práticas sociais. A isso Soares (1998) denominou letramento. Nesse sentido, Paulino (1998) afirma que o conceito de letramento é também apropriado para se pensarem a literatura e a formação do leitor literário. Para ela, a leitura de textos literários é uma prática social que não se reduz à escola, mas passa por ela:

A formação de um leitor literário significa a formação de um leitor que saiba escolher suas leituras, que aprecie construções e significações verbais de cunho artístico, que faça disso parte de seus fazeres e prazeres. Esse leitor tem de saber usar estratégias de leitura adequadas aos textos literários, aceitando o pacto ficcional proposto, com reconhecimento de marcas linguísticas de subjetividade, intertextualidade, interdiscursividade, recuperando a criação de linguagem realizada, em aspectos fonológicos, sintáticos, semânticos e situando adequadamente o texto em seu momento histórico de produção (PAULINO, 1998, p. 8).

Essa formação amplamente discutida por outros pesquisadores das áreas de letras e de educação tem como primordial objetivo o desenvolvimento do letramento literário, ou seja, aponta para a condição daquele jovem que não apenas leia obras literárias, compreendendo os gêneros tradicionais do campo literário (épico, lírico, dramático), as escolas literárias, a vida dos autores, mas que também saiba apreciar a leitura literária e a faz por escolha, como parte de seus fazeres e prazeres. Preocupados com a formação de leitores e a situação do ensino de literatura no Brasil, tais pesquisadores ressaltam a necessidade de um ensino ativo, centrado no leitor e nos textos literários, colocando-o em interação com o texto artístico, e não somente com o conjunto de características que permitem classificar uma obra literária em determinada categoria, os dados biográficos dos autores e a periodização literária.

Voltamo-nos exclusivamente à esfera escolar por compreendermos que esta é a principal, porém não única, provedora do acesso à literatura. Entretanto, deparamo-nos com um grande número de professores que transformam o ensino de literatura em aulas de gramática, redação, história, enfim, abrindo mão da leitura de textos literários no espaço-tempo curricular a ela destinado. A literatura - quando abordada de maneira superficial e fragmentada - é vítima do processo inadequado de escolarização (SOARES, 2001) e influencia diretamente as práticas de letramento literário dos estudantes. Complementando essa ideia de Soares (2001), o pesquisador Cosson (2006, p. 23) diz que

[...] devemos compreender que o letramento literário é uma prática social e, como tal, responsabilidade da escola. A questão a ser enfrentada não é se a escola deve ou não escolarizar a literatura, como bem nos alerta Magda Soares, mas sim como fazer essa escolarização sem descaracterizá-la, sem transformá-la em um simulacro de si mesma que mais nega do que confirma seu poder de humanização.

A obra literária, de acordo com Bakhtin (1997), estabelece vínculos com o conteúdo da consciência dos indivíduos destinatários e só é apreendida no contexto dessa consciência. É nisso que reside a vida da obra, e “em cada época de sua existência histórica, a obra é levada a estabelecer contatos estreitos com a ideologia cambiante do cotidiano, a impregnar-se dela, a alimentar-se da seiva nova secretada” (BAKHTIN, 1997, p. 119)1. Isso porque a obra literária é uma construção polifônica, resultando em várias vozes que se cruzam com ideologias diversas, tornando-a um grande sistema de correlações. Esse processo é definido por Bakhtin (1997) como dialogismo, a relação necessária entre um enunciado e outros, sempre situados em um horizonte histórico.

O ensino de literatura na escola, como vimos por meio de diversos estudiosos, acaba não priorizando esse dialogismo, próprio da arte literária, e tem se caracterizado mais pela insistência no viés da periodização literária, o que não contribui para a formação do leitor crítico. Vieira (1989) refere-se à incoerência de iniciar-se um curso de literatura brasileira com textos dos séculos XVI ou XVII. Tais obras demandam o conhecimento não só de uma norma culta em desuso na contemporaneidade, mas também de situações e realidades distantes dos jovens do ensino médio, pois, no primeiro ano, a maioria dos alunos ainda não tem domínio linguístico para entender textos tão distantes no tempo. A esse respeito, Bosi (1981, p. 102-103), entrevistado por Maria Thereza Fraga Rocco, também afirma:

Quanto à literatura brasileira, o estudo literário já está se tornando muito difícil mesmo se quisermos seguir uma ordem cronológica para o curso secundário [ensino médio]. O critério não funciona, está duplamente errado! Não funciona em termos de comunicação, nem em termos de tempo escolar. De modo que uma sugestão seria a de começar por textos em linguagem acessível. [...]. Temos que aceitar que o adolescente tem um mundo de experiência mais restrito e que é preciso começar pelo conhecido e, depois, aventurar-se pelo desconhecido.

Romper com essa proposta de ensino é reconhecer que o aluno tem direito à literatura, bem como a uma metodologia diferente de abordagem na prática escolar. Isso implica diretamente a formação dos mediadores de leitura e suas escolhas, como também o contato com as obras e a acessibilidade ao acervo literário. É por meio dos bons mediadores de leitura que o caminho para a compreensão de outras realidades é aberto, possibilitando a reflexão e a ressignificação do mundo. Novamente entram em discussão a formação e a prática leitora daqueles que atuam como professores de literatura no ensino médio, que, de acordo com Barros e Buarque (2019, p. 29), muitas vezes, por limitações impostas durante a formação e prática docente, cerceiam o desejo e a autonomia de leitores no processo de letramento de responsabilidade da escola:

Nesse cenário, responsabilizar o alunado pela não leitura é discurso corrente, frases como “O aluno não gosta de ler” ou “Os alunos preferem ler resumos a obras” vão cristalizando inverdades no meio escolar e construindo fossos entre o/a leitor(a) e o livro, uma vez que é incomum convocar para sala de aula o interesse de leitura e a prática leitora do alunado.

Sabemos que a mediação de leitores de literatura não cabe somente aos professores de língua portuguesa, mas envolve também a família, instituição responsável pelo primeiro contato da criança com praticamente todas as coisas, inclusive o livro. A obra da autora Michèle Petit, Os jovens e a leitura (2008), afirma que a família deveria ser o primeiro elo de incentivo entre a criança e o livro. Entretanto, os pais e demais membros da família não têm percepção da influência que podem exercer sobre as crianças no sentido de motivá-las à leitura. De acordo com a autora, “[...] o iniciador aos livros é aquele ou aquela que pode legitimar um desejo de ler que não está muito seguro de si... que ajuda a ultrapassar os umbrais em diferentes momentos do percurso. Seja profissional ou voluntário [...]” (PETIT, 2008, p. 175).

5 A PESQUISA APLICADA: COLOCANDO EM PRÁTICA A 2.ª VERSÃO DA BASE

A pesquisa de campo foi realizada no segundo semestre de 2016. O universo final contou com a participação de 23 alunos do Ensino Médio Técnico Tecnológico dos primeiros anos do IFG (Campus de Senador Canedo-GO). Trabalhou-se com esse número de participantes a fim de averiguar a eficácia das proposições reunidas nos objetivos definidos pela Base acerca dos estudos literários no ensino médio. Até aquele ano, ainda não havia sido publicada a versão final do documento para a etapa escolar em questão, como já exposto neste artigo. Por essa razão, trabalhou-se com as premissas do documento provisório, porém já disponível no sítio do MEC.

A metodologia desenvolvida para as oficinas constituiu-se em um momento inicial de sensibilização, com a finalidade de estimular o aluno a ter o primeiro contato com o texto literário. O segundo momento visou ao desenvolvimento de atividades de leitura de textos literários que envolviam a realidade desse aluno. A introdução de textos e atividades de leituras que ampliavam o horizonte dos alunos foi o propósito do terceiro momento da metodologia e, por último, o quarto momento, no qual o aluno era convidado a ser o ator do processo a partir de experiências socializantes nas quais o saber era construído com a contribuição do grupo.

Realizamos cinco encontros em sala de aula de acordo com a sequência didática suprarreferida. O primeiro encontro teve como tema “Literatura e resistência”, no qual lemos o poema “No caminho, com Maiakóviski”, de Eduardo Alves da Costa, e “Os estatutos do homem”, de Thiago de Mello, para, no segundo encontro, cantarmos juntos a canção “Para não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, analisando a canção como gênero próprio, que associa letra e melodia. Fizemos aproximações entre literatura e Música Popular Brasileira, além de discutirmos questões políticas que envolvem a vida dos jovens. Os alunos tiveram a oportunidade de criar seus próprios poemas a partir de palavras-chave que estavam associadas à temática trabalhada.

“O navio negreiro”, do escritor Castro Alves, foi o poema lido e cantado na versão do rapper Slim Rimografia em nosso terceiro encontro. Dando continuidade a essa oficina, os alunos, no quarto encontro, foram motivados à confecção de cartazes com temas abrangendo a luta do povo negro, o empoderamento, a resistência, em resposta à pergunta que norteou a parte prática da oficina: “Onde estão os navios negreiros hoje?”.

No quinto encontro, foi a vez de nos emocionarmos com o conto “Baleia”, do escritor Graciliano Ramos. Em seguida, propusemos, ao som da banda indígena Arandu Arakauaa e cenas do espetáculo de dança “Cão sem plumas”, direção de Débora Colker, que os alunos fizessem performances utilizando argila, flores, folhas secas, sementes de pau-brasil e outras riquezas do cerrado, e que extravasassem - por meio de gestos e expressões corporais - suas relações com a terra em articulação com o texto literário lido. As performances foram fotografadas para que os alunos pudessem se ver nessa relação ser/terra/natureza.

Finalmente, para o fechamento da pesquisa, realizamos um sexto encontro na Biblioteca Municipal de Senador Canedo, envolvendo a comunidade acadêmica do Campus IFG/Senador Canedo, os pais dos alunos, os jovens participantes da pesquisa, a bibliotecária da região, com professoras convidadas especialistas no tema “leitura”, para uma ampla discussão acerca da “Importância da leitura e da literatura na vida do jovem”.

A pesquisa realizada com esses jovens mostrou que é possível trabalhar a literatura como arte, invertendo-se a ordem cronológica presente no livro didático, realizando-se um entrelaçamento polifônico com outras manifestações artísticas. Durante as oficinas foi gratificante perceber que jovens pouco afeitos à literatura canônica se embrenharam nos sentidos dos textos e nas atividades propostas. Os dados qualitativos da pesquisa mostraram que os alunos avaliaram positivamente a metodologia comparativa dos textos, iniciando-se as leituras por um texto/autor mais próximo de suas vivências.

Isso é o que aponta o questionário aplicado para avaliar a percepção dos alunos com relação às aulas. Assim se manifestou um aluno: “Achei as oficinas maravilhosas, pois mostraram textos históricos (O Navio Negreiro) e os relacionando com textos de hoje em dia”. Essa fala demonstra que esse aluno percebeu o diálogo da obra de Castro Alves com a releitura feita pelo rapper Slim Rimografia, fato que observamos também por meio das discussões em sala de aula. No tocante ao questionário sobre a metodologia aplicada, muitos consideraram que os temas ajudaram nas aulas de literatura do primeiro período do ensino médio, como no exemplo a seguir:

Quanto ao curso literário e ao conteúdo do ensino médio que é Trovadorismo e Arcadismo teve bastante ligação com o conteúdo, parece que ampliou muito a minha área de conhecimento e foi muito bom eu participar das aulas delas [das professoras] e eu aprendi muito e ajudou muito nas aulas e sinceramente gostei muito das aulas do curso literário.

A fala desse aluno corresponde ao que diz Cosson (2006). Ele sugere a expansão da interpretação recomendando o dialogismo de um texto ao outro, propondo que haja possibilidades de desvelar os diálogos da obra com a sociedade contemporânea.

Sobre as relações do texto literário com outras manifestações artísticas, um dos alunos disse: “As aulas foram bastante dinâmicas, pois para aula não ficar muito chata com apenas teoria, elas passaram música, vídeo, fotografia, e isso foi muito bom da parte delas, a aula ficou mais divertida e agradável de participar”. Outro participante assim se manifestou: “Foram bem diferentes [as aulas] do que aprendemos com o livro didático, pois tratava de obras variadas não dando muita ênfase ao tempo que foram escritas, mas ao seu significado”. Outra fala interessante: “Bem divertidas e estimulantes, e sempre era algo novo que dependia de nossa colaboração e participação”. A análise qualitativa comprovou, assim, que as oficinas foram capazes de estimular os alunos para a leitura do texto literário, agregando prazer e conhecimento, contrariando a ideia de que jovens não gostam de ler. A respeito da literatura como fator de humanização, tivemos esse depoimento que comprova o quanto a leitura literária promove reflexão, estabelece diálogos consigo mesmo e com o outro, propõe saídas para algo que está atravessado como um nó na garganta: “A oficina foi muito boa e melhorou até o meu humor na escola com a forma que as aulas foram ministradas, me ajudou até no meu problema de saúde, pois tenho depressão e crises de ansiedade”.

6 OS DESCAMINHOS DA REFORMA DO ENSINO MÉDIO E A VERSÃO FINAL DA BNCC

Faz-se necessário, a essa altura, falar a respeito da versão final da BNCC. Como se percebe, atualmente, na situação política brasileira, destaca-se a crise da democracia, acentua-se o retrocesso social e cresce o avanço de pautas conservadoras ligadas a um discurso político que menospreza os direitos sociais e, consequentemente, a educação pública, alegando que o Estado é incapaz de lidar com todas as demandas sozinho, favorecendo e ampliando a ação do empresariado.

Essa abertura do público para o privado é vendida como solução flexível, não burocrática e mais eficiente. Dentro da lógica capitalista e neoliberal, o Estado passa de prestador dos serviços públicos a coordenador. Esse cenário, comandado pelo mercado empresarial, é o principal ponto de referência para a Reforma do Ensino Médio e a versão definitiva da BNCC. Houve controvérsias na construção final do texto e a retomada da nomenclatura empresarial, induzindo uma forma de ensino mais tecnicista, como destaca o artigo “O castelo de cartas da Base”, publicado na revista Nova Escola (CASSIMIRO et al., 2017).

Como parte das perdas irreparáveis da Reforma do Ensino Médio, destacamos a extinção da obrigatoriedade da filosofia e da sociologia como disciplinas e dos componentes em arte e educação física, matérias inerentes à formação do cidadão crítico. Tais disciplinas constituem o chamado currículo flexivo, mas, na prática, ao serem ofertadas como itinerários formativos à escolha dos jovens estudantes, o governo estadual se desobriga de ofertar esses componentes, caso não haja professores nas escolas públicas. Os componentes curriculares obrigatórios nos três anos do ensino médio, independentemente da(s) área(s) de aprofundamento que o estudante escolher em seu itinerário formativo, são Língua Portuguesa e Matemática, conforme consta na estrutura da BNCC (BRASIL, 2018 p. 24). Por conseguinte, o fosso já existente entre a educação pública e a privada tende a se acentuar ainda mais. Evidentemente, para que os alunos passem nos vestibulares e no Exame do Ensino Médio (ENEM), as instituições privadas de renome não se furtarão de oferecer todos os componentes que auxiliam o aluno a ler o mundo com criticidade. Outras questões que se colocam são: O aluno do ensino médio teria maturidade para montar seu currículo? Não precisaria de uma formação ampla, integral? Quem orientará o aluno nessa sua escolha? Haverá professores na rede pública em quantidade suficiente para exercer o papel de orientadores quanto às aptidões dos estudantes, em consonância com as habilidades que estes apresentam?

Outros problemas da Reforma do Ensino Médio que destacamos são: o reconhecimento do corpo docente a partir do notório saber para atender a área técnica e profissional, desmerecendo-se os cursos de licenciaturas, tão importantes para a formação docente; o aumento da carga horária de 800 para 1.000 horas por ano letivo, sem ampliação de investimentos, pelo contrário, com o congelamento dos gastos públicos; a possibilidade do ensino a distância de maneira exagerada, chegando a 80% no caso da modalidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA), entre outras medidas que apontam para retrocessos nessa etapa imprescindível para a formação do estudante.

Homologada em abril de 2018, a Base elaborada de forma autônoma pelo Comitê Gestor favorece o ensino por meio dos critérios de competências e habilidades, dividindo-se nas áreas de linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e ciências humanas. A versão final, porém, fragilizou a formação integral dos estudantes e tirou a autonomia dos profissionais da educação por meio de um percurso que não deu voz suficiente a professores, pesquisadores e comunidade educacional no geral, na visão de algumas entidades e de alguns cientistas da área de educação. Foi oficializada, então, não sem o voto contrário de três conselheiras do Conselho Nacional de Educação - Aurina Oliveira Santana, Malvina Trutmann e Márcia Angela Aguiar -, por não compactuarem com o processo antidemocrático no qual foi desenvolvido o documento em sua reta final.

[...] reitero o meu posicionamento contrário ao Parecer, por ser favorável ao diálogo democrático e republicano, como princípio que fundamenta a minha trajetória de quase cinquenta anos como professora deste país. Concluo, afirmando que lutarei para que o diálogo democrático e republicano aconteça em todos os espaços e recantos do Brasil, inclusive nesse colegiado (AGUIAR; DOURADO, 2018, p. 22).

A literatura permanece como campo de atuação da área de linguagens (campo artístico-literário), reduzindo, em certa medida, sua importância para a formação humana e incluindo-a na aprendizagem escolar como um gênero textual. Contando com apenas quatro das quase 600 páginas do documento, comprova-se certa falta de zelo que vem sendo dado a seu ensino, seguindo a tendência dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) que orientaram a educação a partir de 19992. Com a parte teórica bem engendrada, atenta às mudanças do mundo globalizado e ao contexto das juventudes, a Base é interessante do ponto de vista teórico, porém, na prática, há muitas pontas soltas e o enfrentamento da questão curricular pode ficar à mercê dos livros didáticos e dos professores. A falta de orientações específicas para se alcançarem determinados objetivos de aprendizagem, principal meta do documento orientador, pode acabar dando abertura para caminhos diferentes no currículo, aumentando, assim, a desigualdade no que tange à qualidade do ensino de literatura de escola para escola.

Quando a Base coloca a literatura como campo de atuação da área de linguagens e suas tecnologias, fica implícito o diálogo do ensino da língua portuguesa com a literatura. A organização de cada campo de atuação se refere a práticas (leitura, escuta, produção de textos - orais, escritos, multissemióticos e análise linguística/semiótica), o que representa um avanço nos estudos da linguagem, percebendo-se influências da perspectiva dos letramentos/multiletramentos.

Tratando-se do cânone literário, percebemos a tentativa de consolidar sua leitura no trecho: “ampliar o repertório de clássicos brasileiros e estrangeiros com obras mais complexas que representem desafio para os estudantes do ponto de vista dos códigos linguísticos, éticos e estéticos” (BRASIL, 2018, p. 514), porém, com a Reforma do Ensino Médio e a ênfase na ideia do currículo flexivo, haveria tempo para a leitura dos clássicos brasileiros e estrangeiros?

A inversão cronológica das obras literárias, começando por leituras mais próximas dos jovens, enfatizada pela 2.ª versão da Base, agora ficou a critério dos estados e municípios. A perspectiva continuou sendo a da comparação e do dialogismo, como se vê neste excerto: “Estabelecer seleções em perspectivas comparativas e dialógicas, que considerem diferentes gêneros literários, culturas e temas” (BNCC, 2017, p. 526). Contudo, a questão da inversão cronológica assim ficou estabelecida:

Propor a leitura de obras significativas da literatura brasileira, contextualizando sua época, suas condições de produção, circulação e recepção, tanto no eixo diacrônico quanto sincrônico, ficando a critério local estabelecer ou não a abordagem do conjunto de movimentos estéticos, obras e autores, de forma linear, crescente ou decrescente, desde que a leitura efetiva de obras selecionadas não seja prejudicada (BRASIL, 2017, p. 526 - destaques nossos).

Acreditamos que a versão definitiva da Base deixou a critério local a abordagem das obras (invertendo-se ou não a periodização literária) porque acabou vencendo o lobby das editoras. A lucrativa indústria do livro didático, presente nas escolas brasileiras, trabalha com trechos de obras literárias, fragmentando as referências e comprometendo o estudo efetivo da literatura, além de iniciar sempre os estudos a partir do Trovadorismo até o Modernismo. Quase nunca o professor consegue, no espaço-tempo escolar, no terceiro ano do ensino médio, levar os alunos a lerem literatura contemporânea.

Entretanto, para se adaptar a uma Base realmente revolucionária, seria necessário rever todo o material didático disponível. Além disso, os cursos de letras deveriam adequar suas matrizes curriculares quase sempre assentadas na periodização literária, embora se estude tanto a perspectiva do letramento hoje em dia em tais cursos.

Assim, é possível que o processo de escolarização da literatura continue sendo reforçado pelos livros didáticos que, por sua vez, não conseguem acompanhar o ritmo das mudanças tecnológicas tão presentes na juventude cibernética. Uma das principais perspectivas da Base é justamente o diálogo com essa nova realidade. Todavia, se não há uma orientação concreta para a reformulação dos livros didáticos, as editoras não vão acatar simples sugestões, afinal, gastam-se dinheiro e especialistas para tanto.

Destacamos mais um trecho da Base sobre a ampliação de repertório sociocultural “considerando a diversidade cultural, de maneira a abranger produções e formas de expressão diversas da literatura juvenil, literatura periférico-marginal, o culto, o clássico, o popular, cultura de massa, cultura das mídias, culturas juvenis etc.” (BRASIL, 2018, p. 500). Contudo, sem a preciosa ideia de inversão da periodização literária, o que prevalecerá, sem dúvida, a escassez de textos contemporâneos de autoria feminina, indígena e negra, assim como textos da literatura marginal e gêneros textuais orais como slam, lendas, parlendas, cordéis, entre outros, na sala de aula. Isso acontecerá simplesmente porque o conteúdo dos três anos (Trovadorismo, Humanismo, Classicismo, Quinhentismo no Brasil, Barroco, Arcadismo, Romantismo, Realismo/Naturalismo, Parnasianismo, Simbolismo, Pré-Modernismo, Modernismo) é imenso. Não se chega à literatura brasileira dos últimos anos, tampouco a essa diversidade proposta pela Base, da maneira como os estudos literários estão organizados atualmente. Deixar essa escolha a cargo de estados e municípios não vai mudar efetivamente essa realidade já amalgamada pelos livros didáticos e é provável que poucos docentes terão a ousadia de buscar o caminho mais difícil, desconhecido.

Reiteramos as palavras de Bonnici (2007, p. 38) para quem “o cânone literário ocidental é composto principalmente de obras escritas por autores brancos, masculinos e que pertencem às nações hegemônicas”. Ao priorizar o cânone, os livros didáticos privam o aluno do acesso a outras obras literárias com diferentes estéticas e aspectos estilísticos. Para se aproximar da proposta da BNCC, é necessária a reformulação dos livros didáticos mediante a abertura para a diversidade de textos literários relacionados a diferentes manifestações culturais, o que provavelmente não acontecerá, porquanto “as sugestões” trazidas no texto do documento não são obrigatórias, mas sim um conjunto de indicações, de modos de ver e trabalhar o texto literário.

Fica a critério do professor escolher autores e obras que se encaixem nos projetos que incentivem e desenvolvam o hábito de leitura com enfoque na formação de leitores literários fluentes e habilidosos, que é o sentido principal do trabalho com a literatura. Não podemos deixar de destacar também a dificuldade que os professores de escolas públicas encontram para o trabalho com a leitura literária em virtude da falta de livros e bibliotecas minimamente equipadas em diversas regiões do País. Assim, embora o documento final tenha acatado algumas recomendações da Base em sua 2.ª versão, o não enfrentamento da questão da periodização literária infelizmente levará a uma tendência de manter o status quo.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Defendemos a leitura da literatura nas escolas por reconhecê-la como expressão artística transgressora que possibilita a reflexão crítica, fundamental à emancipação do indivíduo. Com essa perspectiva, buscamos trazer à discussão, neste artigo, os caminhos e descaminhos da literatura para o currículo do ensino médio de acordo com as versões da BNCC, fruto de uma pesquisa que durou quatro anos (de 2016 a 2020).

O trabalho prático realizado a partir das orientações da 2.ª versão da Base, ainda que restrito a uma realidade específica, foi exitoso e mostrou que é possível levar a literatura como arte aos jovens alunos, invertendo-se a ordem cronológica proposta pelos livros didáticos, fazendo um entrelaçamento polifônico com outras manifestações artísticas, além de diálogos históricos. Esse caminho foi dificultado com as alterações na Base em sua versão definitiva e, sobretudo, com a Reforma do Ensino Médio. No que tange à literatura, o texto da BNCC ficou impreciso porque deixou livre o aspecto principal trazido pela versão preliminar, que era a inversão da periodização literária, enfocando os diversos diálogos que a literatura pode oferecer com textos e manifestações artísticas de diferentes épocas, embora parte do trecho do documento anterior subsista.

Acentua-se, porém, que as proposições da 2.ª versão (inversão da periodização/diálogo) são producentes, mas dependem de uma boa formação inicial na área de letras, assim como uma formação continuada, além de um bom repertório cultural por parte do professor de português/literatura para promover os múltiplos diálogos que a literatura pode proporcionar.

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NOTAS:

1 A versão consultada da obra Marxismo e filosofia da linguagem é a 8.ª edição brasileira, de 1997. Entretanto, é importante ressaltar que a 1.ª edição brasileira, pela Hucitec, é de 1979, a partir do francês com consultas à tradução americana e ao original russo. Em 2017, foi publicado pela Editora 34 Marxismo e filosofia da linguagem , com tradução do texto diretamente da primeira edição russa, de 1929. Contudo, optamos pela versão traduzida a partir do francês, pois não consideramos que a nova edição muda substancialmente o pensamento bakhtiniano.

2 Em 2006, em razão da ausência da literatura nos documentos oficiais, foi realizado um adendo aos PCNs, com a publicação das Orientações Curriculares (BRASIL, 2006).

Recebido: 07 de Fevereiro de 2021; Aceito: 14 de Fevereiro de 2022

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