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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.20 no.4 São Paulo oct./dic 2022  Epub 30-Ene-2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2022v20i4p1653-1681 

Artigos

Análise do Papel da Escola em Tempos de Pandemia da Covid-19:sob a Ótica do Ciclo de Políticas de Ball

Analysis of the School’s Role During the Covid-19 Pandemic:from the Perspective of Ball’s Policy Cycle

Análisis del Papel de la Escuela en los Tiempos de Pandemia de la Covid-19:bajo la Óptica del Ciclo de Políticas de Ball

Graziele Borges de Oliveira PENAi 
http://orcid.org/0000-0002-1131-7789

Luciene Pereira da Silva GONÇALVESii 
http://orcid.org/0000-0002-4975-1214

Kaique de OLIVEIRAiii 
http://orcid.org/0000-0003-4709-158X

i Doutora em Química (Ensino de Química) pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professora do Instituto de Ciências Exatas e da Terra da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) campus Universitário do Araguaia. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT. E-mail: grazieleborges@hotmail.com - ORCID iD: http://orcid.org/0000-0002-1131-7789.

ii Doutora em Química (Ensino de Química) pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professora do Instituto Federal Goiano campus Campos Belos. E-mail: luciene.pereira@ifgoiano.edu.br - ORCID iD: http://orcid.org/0000-0002-4975-1214.

iii Mestrando em Educação (Educação em Ciências e Matemática) pela Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: kkaiquebg@gmail.com - ORCID iD: http://orcid.org/0000-0003-4709-158X.


Resumo

Este artigo visa examinar o papel da escola por meio das políticas públicas educacionais desenvolvidas durante o ano de 2020, o primeiro da pandemia da Covid-19, no Centro-Oeste, sob a ótica do ciclo de políticas de Stephen Ball. A análise documental e as entrevistas semiestruturadas com duas professoras constituíram os instrumentos metodológicos. Observamos o discurso de que o Estado tem desempenhado seu papel nesse momento da pandemia, a presença direta de grupos ligados aos setores privados, a preocupação maior com o cumprimento de carga horária em detrimento da qualidade do ensino. Além disso, houve improvisação para a adoção das aulas remotas, falta de recursos e de políticas públicas para que os alunos se mantivessem na escola, o que aprofundou o processo de desigualdade social, em face da evasão e exclusão de alunos de classes mais pobres, da cidade e do campo, como também indígenas.

Palavras-chave: políticas públicas educacionais; pandemia da Covid-19; ciclo de políticas de Stephen Ball; currículo; exclusão social

Abstract

This article’s goal is to analyze the role of the school using educational public policies developed in 2020, the first year of the Covid-19 pandemic, in Center-west, from the perspective of Stephen Ball's policy cycle. Document analysis and semi-structured interviews with two teachers formed the methodological instruments. We observed the speech that the state has enforced its role at these pandemic times, the direct presence of groups connected to private sectors, a greater concern with the workloads fulfillment at the expense of the education quality. In addition to that, it was noted improvisation to assume remote learning, lack of resources and public policies for students to remain in school, which enhanced social inequality, given the avoidance and exclusion of low-income students from the city and the countryside, as well as indigenous peoples.

Keywords: educational public policies; Covid-19 pandemic; Stephen Ball’s policy cycle; curriculum; social exclusion

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar el papel de la escuela por medio de las políticas públicas educacionales desarrolladas durante el año de 2020, el primero de la pandemia de la Covid-19, en el Centro-Oeste, bajo la óptica del ciclo de políticas de Stephen Ball. La análisis documental y entrevistas semiestructuradas con dos profesoras, han constituidos los instrumentos metodológicos. Observamos el discurso de que el Estado ha cumplido su papel en ese momento de la pandemia, la presencia directa de grupos vinculados a los sectores privados, mayor preocupación con el cumplimento de la carga horaria en detrimento de la calidad de la enseñanza. Por otra parte, hubo improvisación para la adopción de las clases remotas, falta de recursos y de políticas públicas para que los alumnos se mantuvieran en la escuela, lo que profundizó el proceso de desigualdad social, frente a la evasión y exclusión de alumnos de clases más pobres, de la ciudad y del campo, así como, indígenas.

Palabras clave: políticas públicas educacionales; pandemia de la Covid-19; ciclo de políticas de Stephen Ball; currículo; exclusión social

1 INTRODUÇÃO

1.1 A pandemia da Covid-19

Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a pandemia da Covid-19, doença causada pelo coronavírus (Sars-Cov-2)1, que se mostrou altamente contagiosa e que ataca gravemente o sistema imunológico de algumas pessoas que podem não resistir e vir a óbito. Sem muito conhecimento sobre possíveis tratamentos e diante dos números crescentes de pessoas contaminadas e de mortes no mundo, o uso de máscaras e, especialmente, o isolamento social evidenciaram-se as formas mais eficientes de conter a disseminação do coronavírus. Em dezembro de 2020, o mundo se emocionou com a primeira pessoa a ser vacinada2, na Europa e, desde então, estamos acompanhando a produção e a vacinação no mundo.

No Brasil, em razão de uma onda ultraconservadora e pelo modo como governa o atual Presidente do País, de extrema-direita, houve uma politização da pandemia. O governo, marcado por medidas de austeridade com relação às políticas ambientais, indígenas e quilombolas, desmonte da ciência e das políticas educacionais, declara-se contra os servidores públicos, contra as universidades públicas e propaga o negacionismo da ciência.

O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanon, durante uma coletiva, no dia 23 de julho de 2020, afirmou que a falta de liderança política e as disputas partidárias, em alguns países, agravaram a pandemia da Covid-19 no mundo. Representantes da OMS, nessa mesma coletiva, alertaram para o fato de que quase metade de todos os casos de coronavírus, no mundo, estava concentrada em apenas três países: Estados Unidos, Brasil e Índia3.

No Brasil, até a data atual, 20 de dezembro de 2022, 692.041 mil4 brasileiros perderam suas vidas em decorrência de complicações da Covid-19. A crise pandêmica agravou ainda mais a situação econômica do País, elevando os índices de pobreza, desemprego, fome e deixando parte da população em completa falta de perspectiva de melhorias das condições de vida.

Segundo Alves, Silva e Reis (2020), o impacto sobre a vida da população foi agravado pela pandemia da Covid-19, especialmente pelo desmonte do governo, ao negar a gravidade da doença e descumprir medidas recomendadas pela OMS. Foi instaurada uma CPI da Covid-19 para analisar os atos do governo e verificar a causa dos altos índices de mortes no País, que destoa da maioria dos países e destaca o Brasil como um dos primeiros colocados no cenário mundial, com maior número de mortes e curvas ascendentes de mortos e contaminados.

Nesse complexo cenário e em meio a medidas de isolamento social, a forma mais eficiente de evitar a contaminação pelos vírus da Covid-19, as atividades educacionais foram suspensas em meados de março de 2020. Após mais de 120 dias sem atividades presenciais nas escolas e universidades, tanto públicas como privadas, emergem questões como algumas citadas por Alves, Silva e Reis (2020, p. 7-8):

[...] qual o papel da escola nesse cenário? Seria possível cumprir os dias e horas letivos em tempos de emergência sanitária? A escola tem que cumprir a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)? [...] Mas o que a escola deveria fazer nesse momento? Cumprir com o currículo e a BNCC como se nada tivesse acontecido? Qual é a nossa função social?

Sem muito tempo para refletir, professores, alunos e pais da rede da educação básica de ensino público foram surpreendidos, em alguns estados, com a retomada obrigatória das aulas no modelo chamado: “ensino remoto”5. Um exemplo dessa retomada abrupta ocorreu no estado de Goiás e, nos meses seguintes, vários estados adotaram as mesmas medidas obrigatórias de retorno às aulas de igual modelo.

1.2 Ensino remoto durante a pandemia da Covid-19

Aqueles que justificam e defendem a implementação do “ensino remoto” negam veementemente que se trata de uma modalidade de Ensino a Distância (EaD). Dois motivos em especial parecem justificar tal negação. O primeiro deles trata-se da questão legal, ou seja, afirmar que a proposta de “ensino remoto” constitui-se na modalidade EaD poder-se-ia constituir em uma admissão de ilegalidade, pois o artigo 32, § 4.º, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) estabelece que o ensino fundamental será presencial, sendo o ensino a distância utilizado somente em caso de complementação, ou em situações de emergência. O detalhamento desse tipo de situação é mencionado na LDB, no Decreto 9.057/2017, artigo 9.º, no item que diz: “[...] estejam impedidas, por motivo de saúde, de acompanhar o ensino presencial” (BUENO et al., 2020, p. 136).

Entretanto, Alves, Silva e Reis (2020) compreendem que não cabe a adoção do EaD para o ensino fundamental em situação de emergência, pois ele deveria atender somente alunos impossibilitados por motivos de saúde (isso caracterizaria a emergência) de acompanhar o ensino presencial, ou seja, seria para alguns estudantes, e não para todos, como foi proposto durante a pandemia. Portanto, Alves, Silva e Reis (2020) mencionam que não existe amparo legal que autorize a oferta de ensino fundamental na modalidade EaD.

Outro motivo que poderia levar à negação da ideia de que o ensino implantado durante a pandemia trata-se da modalidade EaD é que os sistemas e as instituições de ensino não disponibilizaram as condições de que essa modalidade necessita para tanto, tais como: “[...] Na EaD encontramos elaboradores de conteúdo, atores, tutores, e por aí vai. Um trabalhador prepara o conteúdo, outro grava, um outro elabora a avaliação e um outro faz a correção” (PIOLI, 2020 apudJESUS; SOUZA, 2020, p. 120).

Logo, o “ensino remoto” como foi implantado, de forma improvisada e aligeirada, é insuficiente em relação à modalidade EaD, que requer, como mencionamos, muitas especificidades. Mesmo que fosse implantado em circunstâncias adequadas e tivesse fundamentação legal para ocorrer, seria ele de qualidade para todos os alunos durante a pandemia? Estariam os professores em condições de ensinar e os alunos em condições de aprender?

Nesse sentido, ressaltamos questões de natureza psicológica e mental dos alunos, pais e professores, durante o período pandêmico. Schmidt et al. (2020) realizaram um estudo de revisão da literatura técnico-científica ligada à Covid-19 produzida em diferentes países e discutem, a partir dessa revisão, as implicações da pandemia na saúde mental dos indivíduos.

Estudos têm sugerido que o medo de ser infectado por um vírus potencialmente fatal, de rápida disseminação, cujas origens, natureza e curso ainda são pouco conhecidos, acaba por afetar o bem-estar psicológico de muitas pessoas [...]. Sintomas de depressão, ansiedade e estresse diante da pandemia têm sido identificados na população geral [...]. Ademais, casos de suicídio potencialmente ligados às implicações psicológicas da Covid-19 também já foram reportados em alguns países como Coréia do Sul [...] e Índia [...] (SCHMIDT et al., 2020, p. 3).

Sobre o distanciamento social como medida tomada para contenção da pandemia da Covid-19, os autores indicam alguns fatores de risco à saúde. Sem condições psicológicas, alunos, professores e pais, além de lutarem contra a Covid-19, contra a fome, o medo do despejo e do desemprego, foram condicionados a aderir, obrigatoriamente, a um “ensino remoto”, sem receber apoio adequado, ou nenhum apoio, como se coubesse a eles toda a responsabilidade pela educação. Como se não bastasse essa insensatez desumana, no mês de julho de 2020, foram discutidas perspectivas para retomada das aulas presenciais, em plena pandemia, sem imunização da população pela vacinação, como consta no Parecer do Conselho Nacional 11/2020, aprovado em 07.07.2020.

De fato, o cenário nos impõe muito sobre o que pensar com relação à educação, a escola, o trabalho do professor, as políticas públicas educacionais, o currículo e tantas outras questões, a fim de que possamos não ver como normalidade o que está se passando, assumindo, ao mesmo tempo, um compromisso ético de produzir reflexões e conhecimentos que possam contribuir para não desistirmos de lutar por uma educação de qualidade e para todos.

A diversidade, segundo Sodré (2006 apudMADUREIRA, 2019, p. 137), “[...] deve ser considerada como coexistente em sua lógica própria, portadora de epistemologias e paradigmas tecno-científicos próprios [...] se há diversidade, há coexistência de referenciais”.

Desse modo, quando nos predispomos a refletir sobre a função da escola, não podemos fazê-lo de forma inconsciente da influência de nossa perspectiva simbólica, da influência da cultura, do entendimento de cultura como um fenômeno discursivo e dinâmico que ativa a própria diversidade cultural, a qual, por sua vez, produz um multiculturalismo que vem transformando as identidades e os indivíduos.

Para Kant (apudSODRÉ, 2005, p. 126), “[...] os alunos devem ir à escola não para aprender pensamentos, mas para aprender a pensar e a se conduzir. Pensar reconhecendo o que os leva a pensar da forma como pensam e do que querem”. As ideias de Kant sobre a função da escola parecem se concatenar com a teoria de currículo pós-estruturalista, que defende que a função da escola não pode ser a de definir o aluno pelos conteúdos, deve haver uma lógica de a escola permitir que o sujeito seja, e não de torná-lo certo sujeito.

[...] enquanto a palavra educação designa, utilitariamente, o treinamento individual na direção de uma meta civilizada, cultura consolida-se como um ideal de aperfeiçoamento humano, da mesma maneira que o caminho para o estabelecimento de relações sociais satisfatórias. No jogo do poder de classe e da divisão do trabalho social, o termo continuava a preencher a necessidade de nominação, por parte de pensadores e artistas, da ideia crescente de que a condição intelectual representava um estado próprio, a ser considerado em si mesmo (SODRÉ, 2005, p. 21).

Neste ponto do texto, a citação de Sodré (2005) sobre a educação e a cultura, no século XIX, ajuda-nos, contrapondo, a refletir acerca das idas e vindas da função da escola de diferentes concepções, crenças e verdades sobre ela, de como as teorias de currículo influenciam e são influenciadas e, quiçá, ajudem-nos a revisitar nossas “verdades” a respeito da função da escola, durante o período de pandemia da Covid-19.

2 METODOLOGIA: O CICLO DE POLÍTICAS PROPOSTO POR STEPHEN BALL

Para refletir sobre as políticas públicas educacionais, durante a pandemia, sob a ótica do Ciclo de Políticas de Ball, precisamos, de antemão, explicar nosso entendimento de como utilizamos o termo “política” neste trabalho, para, em seguida, esclarecer aspectos que caracterizam esse método analítico.

Tendo como base as ideias de Ball (1993), entendemos a política como processo e produto, com seu caráter dual, política como texto e discurso ao mesmo tempo. A política como texto é a representação codificada por documentos, normativas, publicações, atas etc., sendo tal codificação complexa, pois resulta de tensões, embates, negociações de autoridades públicas, de arenas diversas, em cada arena representados seus anseios e interesses políticos. Os autores não podem controlar o significado desses textos políticos, mesmo que eles “[...] façam os esforços necessários para afirmar tal controle com os meios disponíveis e obter uma leitura correta” (BALL, 2002, p. 21). Os textos não são necessariamente claros, fechados ou completos. São produtos materializados de múltiplas influências e agendas. No entanto, nem todas as influências e agendas são acatadas e legitimadas; há, nesse processo, vozes que são silenciadas e não participam da formulação dos textos políticos, tornando um ou outro texto (ou discurso político) hegemônico, ou não.

Assim, mesmo insaturado, esse texto passa por diversas leituras, como é o caso exemplificado por Andrew Pollard, citado por Stephen Ball, acerca do “Guia para Avaliação Docente do Conselho de Avaliação e Exame Escolar (The School Examination and Assesment Council Guide to Teacher Assesment, 1990), documento pensado para propiciar apoio às escolas, fortemente questionado e deslegitimado, denotando que seus autores pareciam desconhecer as demandas dos professores, pois fizeram sugestões simplistas e ingênuas (BALL, 2002).

Algumas políticas podem ser implantadas no contexto da prática para marginalizar outras. Nesse sentido, os textos políticos representam uma disputa pelo poder, porém não se trata de exclusão de poder, até porque “[...] o poder é multiplicador, interativo e complexo [...] daí a complexidade das relações entre intenções políticas, textos, interpretações e efeitos” (BALL, 2002, p. 25). Sendo assim, a prática e os efeitos da política não podem ser lidos fora dos textos e estes são resultados de conflitos e disputas entre interesses vindos de diversos lugares. O Estado, por exemplo, é um dos produtores de textos curriculares, mas não o único.

Considerando essas relações de poder, a política utiliza estratégias diversas, de modo que, às vezes, a troca de um Secretário de Estado, Ministro, ou chefe de Estado é uma tática deliberada para mudar o significado da política e resultar em uma nova interpretação, prática que tem ocorrido frequentemente no Brasil com a troca de Ministros, principalmente na área da saúde, justamente o setor que tem sido alvo de grande atenção em razão da crise sanitária que o mundo enfrenta nos dias atuais.

No mesmo sentido, no contexto escolar, esses textos passam por novas interpretações e traduções. Ball, Maguire e Braun (2016) ressaltam a diferença entre esses dois termos: enquanto as interpretações ocorrem na dimensão da linguagem da política, a tradução acontece na linguagem da prática.

Desse modo, a interpretação está voltada para um primeiro contato com a política, uma leitura inicial com foco nas prioridades institucionais, posições das escolas nos rankings estabelecidos pela política, ou seja, níveis de desempenho, posição na tabela classificatória etc., e, no caso do Estado brasileiro, essa interpretação acontece por meio do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e da Prova Brasil, além de outros processos avaliativos. A interpretação corresponde a um olhar “legítimo e autoral”, com o intuito de direcionar as equipes de liderança para o alcance de metas dentro da política educacional, espécie de “vender política para a equipe” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 69).

Enquanto a interpretação é uma “decodificação’ (BALL, 1993), a tradução é uma “recodificação” da política com relação às “lógicas da prática” da sala de aula (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016). Ela pode acontecer em reuniões de departamentos ou em toda a escola, e até mesmo nas conversas de corredores, trocas rotineiras de métodos e modelos de trabalho que deram certo em determinadas turmas de estudantes, ou que não foram adequadas. Entendemos que essas e outras práticas constituem o processo de tradução das políticas educacionais.

Essas “leituras” representam uma pluralidade de interpretações e traduções por parte dos atores envolvidos que trazem suas próprias experiências, seus questionamentos, suas visões de mundo para aceitar/rejeitar/alterar o que eles veem, leem das políticas, a partir de suas identidades e subjetividades. Esse jogo de interpretações, no campo da política, resulta em disputas e tensões que nos fazem entender a política não apenas como texto, mas também como discurso. Ball (2002, p. 26), tendo como base as ideias de Foucault, define:

Os discursos são sobre o que pode ser dito e pensado, mas também sobre quem, quando, onde e com que autoridade pode falar. Os discursos incorporam significados e usam proposições e palavras. Desta forma, certas possibilidades de pensamento são construídas. As palavras são organizadas e combinadas de uma maneira particular, removendo ou excluindo outras combinações.

Nesse sentido, ao se investigarem as políticas educacionais, faz-se necessário atentar-se para as questões de discurso: O que está sendo dito? Quais os intentos sobre o que se diz? Quem diz? Quando diz? Onde diz? Quais relações de poder existem sobre tal discurso? Assim dizem Mainardes, Ferreira e Tello (2011, p. 157): “[...] a análise de documentos de políticas não é algo simples, mas demanda pesquisadores capazes de identificar ideologias, interesses, conceitos empregados, embates envolvidos no processo, e vozes presentes e ausentes, entre outros aspectos”.

Determinadas vozes estão ausentes justamente porque a política como discurso é um instrumento balizador, separando e determinando quais discursos são aceitos, que vozes são ouvidas, legitimadas e hegemonizadas. Convém ressaltar que os discursos produzidos na política, além de sinalizarem questões de poder, configuram-se como questão de resistência (BALL, 1994). No que refere às políticas curriculares, como é o caso da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), trata-se de um aspecto importante, visto que o currículo que chega às escolas é intencional, fruto de um processo de disputas e interesses, cabendo a elas implementá-lo ou resistir-lhe.

Desde o final do século XX e, de forma mais intensa, no momento mais crítico de pandemia, observa-se nas políticas educacionais do Brasil o caráter mercadológico e economicista e, nesse sentido, palavras, como: eficiência, meritocracia, eficácia passam a fazer parte de um sistema que mira a qualidade educacional, “[...] com vistas à produção de uma nova sociabilidade mais adequada aos interesses privados do grande capital nacional e internacional” (SHIROMA; CAMPOS; GARCIA, 2011, p. 226).

A partir dessa perspectiva, a ideia não é simplesmente reformar a escola no sentido de torná-la mais adequada às demandas do capital, mas de formar um “novo trabalhador” que atende às demandas de uma “sociedade moderna”. Considerando os princípios de “eficiência e eficácia”, como eixo estruturante da função social da escola, convém a introdução de mecanismos de avaliação dos resultados e a responsabilização de todos os atores sociais pela efetivação das mudanças necessárias (SHIROMA; CAMPOS; GARCIA, 2011, p. 227).

Com base nesses pressupostos, este trabalho se desenvolve sob a perspectiva da abordagem do ciclo de políticas (Policy Cycle Approach), um método proposto por Ball e colaboradores (BALL; BOWE, 1992; BALL, 1994) para pesquisar as políticas e compreender como elas acontecem. Apesar de essa metodologia ser utilizada por um grande número de pesquisadores, na área educacional e políticas de currículo, esta abordagem não está restrita a esse campo, mas a uma variedade de outras áreas políticas (MAINARDES; GANDIN, 2013).

Na perspectiva do Ciclo de Políticas, a fase de formulação e a de “implementação” da política - com todas as ressalvas que temos com relação a esse termo - caminham juntas, ou seja, disputas e embates precisavam ser considerados no processo político. Ball e Bowe (1992) tomam emprestado os termos “writerly” e “readerly” do linguista Roland Barthes para adjetivar a participação no processo de formulação e/ou “implementação” de políticas dos profissionais que atuam nas escolas. Para Barthes, um texto “readerly” (de leitura) é um texto estático que perpetua uma visão estabelecida da realidade, um mundo com valores predeterminados, ao passo que um texto “writerly” (de escrita) é um texto dinâmico, que convida o leitor a lê-lo conscientemente, a participar da inter-relação entre leitura e escrita. Em suma, utilizando a mesma analogia do autor, “readerly” é um texto em que os significantes marcham e “writerly”, em que eles dançam. Nesse sentido, Ball e Bowe (1992) caracterizam o grau de envolvimento no processo político por parte dos profissionais que atuam nas escolas, afirmando que um texto político readerly baliza a participação do leitor, ao contrário do texto writerly que convida o leitor a significar, a interpretar e a completar seus espaços.

Bowe, Ball e Gold (1992) argumentam que esses textos (de leitura e escrita) são os produtos de um processo político, processo que interage com uma variedade de contextos inter-relacionados, no sentido de que “[...] a política cria o contexto, mas o contexto também precede a política” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 36) e, por essa razão, ainda em suas primeiras obras, Bowe, Ball e Gold (1992) trouxeram a ideia de um ciclo contínuo constituído por três contextos principais, cada um deles consistindo em várias arenas de ação, algumas públicas, outras privadas. Esses contextos são: o contexto de influência, o contexto da produção de texto e o contexto da prática. Posteriormente, em 1994, no livro Education reform: a critical and post-structural approach, Ball expande o ciclo para outros dois contextos: o contexto dos resultados (efeitos) e o contexto da estratégia política, porém conduziremos este trabalho abarcando apenas os três primeiros contextos.

O contexto de influência é, normalmente, o espaço no qual as políticas se iniciam, os discursos são construídos e as partes interessadas lutam para influenciar a visão e os propósitos da educação. Os discursos nesse contexto são advindos de várias partes, instituições locais e globais, tanto da esfera pública quanto da esfera privada, agências multilaterais e especialistas de comunidades acadêmicas, de modo a influenciarem a trajetória política. Nesse sentido, concordamos com as ideias de Shiroma, Campos e Garcia (2005), ao evidenciarem a influência de organismos multilaterais, por exemplo, o Banco Mundial (BM), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Essas instituições, principalmente na década de 1990, prescreviam normativas com orientações a serem adotadas e elaboravam todo um discurso político a fim de justificarem suas reformas, como o conceito de qualidade do ensino, baseado no desempenho de alunos em avaliações externas, como o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA).

No Brasil, atualmente, ocorre o que Peroni e Caetano (2015) denominam de processo de privatização do público, como é o caso Movimento Todos pela Educação, pelo qual os empresários acabam influenciando o governo federal tanto na agenda educacional quanto na venda de produtos educativos.

Os autores também destacam a presença de uma série de institutos e fundações privadas, atuando como arenas de influência, como é o caso do Instituto Ayrton Senna, do Unibanco e da Fundação Lemann que têm exercido grande influência nos debates de políticas e nas decisões para a educação pública do País. No entanto, concordamos com Ball (2005), ao afirmar em uma de suas entrevistas que essas fundações empresariais não possuem nenhuma legitimidade e autoridade política, pois não foram eleitas pela sociedade civil para interferirem nos encaminhamentos da educação pública. O que essas organizações sociais possuem, na verdade, é muito dinheiro e objetivam usá-lo para mudar os rumos da política educacional, a fim de atender interesses próprios e consagrar suas ideias (AVELAR, 2016).

Nesse sentido, atualmente, no contexto de influência, nota-se, cada vez mais, a presença de discursos políticos que balizam a educação pública com vieses mercadológico e economicista baseados nos princípios da competitividade, eficiência e produtividade. Concordamos com a crítica feita por Ball (2004, p. 1119) de que o setor público educacional não herda apenas “eficiência e produtividade” com a participação do setor privado, mas também adquire mudanças culturais e éticas, com o incentivo ao lucro, que, inclusive, afetam o currículo oculto, de forma direta ou indireta; fazendo-se necessário refletir de modo crítico sobre: “[...] o que é que o setor privado ‘ensina’ em nossas escolas e faculdades?”.

Ligado ao contexto de influência está o contexto de produção de textos, que é a forma materializada da política e que representa (ou tenta representar) a política, por meio dos documentos, das normativas legais, dos pronunciamentos oficiais, vídeos, comentários produzidos, de maneira formal e informal, com o propósito de tornar os documentos mais esclarecedores para os sujeitos envolvidos no processo de “implementação” das políticas educacionais. Enquanto o contexto de influência acontece nos bastidores e relaciona-se à articulação de interesses mais específicos, o texto político é a expressão materializada da política e, normalmente, articula-se aos interesses do coletivo, do público mais geral.

Ball e Gold (1992) destacam que os textos de política não são, necessariamente, claros e coerentes, são generalizados e não contam eventualidades, dando abertura para diversas interpretações. Eles nos alertam sobre o fato de que os textos de política não terminam no momento em que são produzidos:

[...] A política não é feita e terminada no momento legislativo, evolui nos e através dos textos que a representam, os textos têm que ser lidos em relação ao tempo e ao local particular de sua produção. Eles também precisam ser lidos com e contra os outros - a intertextualidade é importante. Em segundo lugar, os textos em si são o resultado da luta e do compromisso. O controle da representação da política é problemático. Controle sobre o momento da publicação dos textos é importante. [...] Grupos de autores que trabalham em diferentes locais de produção de texto estão competindo pelo controle da representação da política. A maioria dessas lutas acontece a portas fechadas, mas vislumbres ocasionais da dinâmica do conflito são possíveis. O que está em jogo são tentativas de controlar o significado da política por meio de sua representação. As políticas, então, são intervenções textuais, mas também carregam consigo restrições e possibilidades materiais. As respostas a esses textos têm consequências reais (BOWE; BALL; GOLD, 1992, p. 21).

Essas consequências reais são percebidas no contexto da prática e dizem respeito às leituras e às diversas interpretações dos textos normativos pelos sujeitos envolvidos nessa arena. Tendo como base as ideias de Ball, pensamos para além da implementação, pois a política não é simplesmente recebida e “implementada”. Está sujeita à interpretação e, depois, à restrição, podendo até mesmo modificar o texto inicial, como ocorre, por exemplo, na elaboração do regimento interno da escola.

Esse movimento de “recriar” acontece porque os sujeitos desse contexto (da prática) não veem os textos de política de forma neutra e ingênua, mas, sim, a partir de suas vivências, seus propósitos e valores que, sendo diferentes para cada profissional da prática, ou para cada grupo dessa arena, refletirá diferentes significados e diversas interpretações. Concordamos com os autores, ao afirmarem que os formuladores dos textos de políticas não têm controle no significado de seus textos, pois “Partes de textos serão rejeitadas, selecionadas de forma ignorada, deliberadamente mal compreendidas, respostas podem ser frívolas etc.” (BOWE; BALL; GOLD, 1992, p. 22).

Diante do exposto, não podemos deixar de destacar que a interpretação é uma questão de luta, pois diferentes olhares, dentro de uma mesma arena, poderão estar nos embates, nos confrontos, considerando-se que os interesses podem ser diversos e, assim, uma ou outra interpretação predominará, e outras leituras, mesmo que minoritárias, terão sua importância.

Quando nos atentamos ao aspecto da interpretação da política pelos sujeitos envolvidos no processo, pensamos em “[...] como as escolas fazem política, especificamente sobre como as políticas tornam-se vivas e atuantes (ou não) nas escolas” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 12). Essa teoria, também proposta pelos referidos autores, tem como foco a atuação das políticas (policy enactment) na escola. Eles utilizam o termo enactment no sentido teatral, conferindo a ideia de que o ator possui um texto que pode ser representado de diversas maneiras e que ele é apenas uma pequena (mas importante) parte da produção.

Nesse sentido, as políticas são impactadas e colocadas em prática, de diferentes modos, por atores envolvidos (os professores) que têm o controle do processo e não são simplesmente meros implementadores delas. Por isso, ao pesquisar as políticas educacionais, “[...] precisamos observar a política em ação, traçando como as forças econômicas e sociais, as instituições, as pessoas, os interesses, os eventos e as oportunidades interagem. Questões de poder e interesses precisam ser investigadas” (TAYLOR et al., 1997 apudBALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 14).

Outro aspecto que convém ressaltar é a flexibilidade que o Ciclo de Políticas, como viés metodológico, permite. No que concerne às entrevistas, por exemplo, optamos por uma análise do conteúdo das falas, e não necessariamente utilizamos uma teoria de discurso, pois trata-se de uma metodologia de natureza aberta, não demandando, assim, em uma análise de política, abordar de forma estática, mas, sim, de maneira dinâmica e flexível (MAINARDES, 2006).

A coleta de dados se deu por meio de entrevista semiestruturada realizada de forma virtual pelo Google Meet com duas professoras do Centro-Oeste, no primeiro semestre de 2021. A entrevista foi gravada utilizando-se o programa OBS Studio. As professoras participantes da pesquisa concordaram com o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE),5 após os pesquisadores o lerem no início da entrevista. Para fins de preservação da identidade, as professoras serão identificadas por: Professora_01 e Professora_02.

3 FUNÇÃO DA ESCOLA À LUZ DO CICLO DE POLÍTICAS DURANTE A PANDEMIA

Com a necessidade de isolamento social para o enfrentamento e combate à pandemia da Covid-19, a educação básica passou a acontecer no regime não presencial, sob orientações do Conselho Nacional de Educação (CNE), como também de Conselhos Estaduais e Municipais de Educação em todo o território brasileiro. Portanto, é importante compreender como a política educacional nesse momento de pandemia está sendo colocada em ação, como as negociações, os embates, os discursos híbridos vinculam textos à prática e de que maneira o contexto da influência, o da produção do texto e o da prática inter-relacionam-se. A reflexão que faremos aqui é acerca dos discursos que surgem e que influenciam o desenvolvimento das políticas educacionais nesse cenário de pandemia.

Para tanto, utilizaremos o termo ‘gerencialismo’, o qual, segundo Ball (2005), representa a inserção, no setor público, de uma nova forma de poder, no sentido de criar uma cultura empresarial competitiva, por meio de avaliações e classificações de desempenho. A lógica gerencialista é uma ideia que existe há tempos como uma possível saída para a crise enfrentada pela educação no Brasil. Desde o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, a educação já era entendida a partir de ideias e palavras, como: qualidade total, modernização do ensino, adequação ao mercado de trabalho, competitividade, eficiência e produtividade, fruto da ideologia neoliberal (SHIROMA; CAMPOS; GARCIA, 2005). Com esse viés, cabia à educação formar sujeitos capazes de se inserir em um mercado de trabalho cada vez mais restrito, no qual apenas “os melhores” seriam mais bem-sucedidos.

Sendo assim, grupos empresariais e instituições privadas fazem parte, cada vez mais, direta ou indiretamente, do processo de formulação de políticas públicas educacionais, cujo debate é sempre no sentido da eficiência da escola e da educação, e não na qualidade, ou seja, o discurso que sempre vem à tona refere-se às ações que a escola precisa realizar para que a educação aconteça, os seus meios, e não aos fins da educação.

No cenário de pandemia, parece que, mais do que nunca, os meios se tornaram o centro das atenções: (1) Como fazer para a escola não parar? (2) Como os conteúdos escolares chegarão aos alunos? A escola deve continuar a fazer o que já fazia? (3) Como avaliar? Como registrar a frequência dos alunos? Essas e outras questões relacionadas aos meios pelos quais a educação se daria em tempos de pandemia foram amplamente debatidas pelos empresários da educação, influenciando, assim, a formulação de políticas públicas educacionais para tempos de crise sanitária como a que o País enfrentou. Nas falas das professoras a seguir, percebemos essa demasiada preocupação com os meios para que a escola não parasse durante a pandemia, uma preocupação que não contempla a qualidade nem o acesso à educação:

Professora_01: Quando as aulas começaram [...] foi muito trabalho, tanto na questão da elaboração da plataforma, que toda semana teria que ter uma postagem e elaboração do material impresso [...]. Na parte interna, [...] todas as quartas-feiras tinha reuniões, as vezes tinham coisas das regionais, que tinha que participar e tinha a coordenação individual, [...] Sem falar dos relatórios de teletrabalho, que tinha que preencher diariamente, [...], a coordenação sempre ficava em cima cobrando. Então era muita coisa, até ficava sobrecarregada, [...] Tinha cursos, que a gente tinha que participar e dominar bem o sistema da plataforma. [...] Na questão da tecnologia e emparelhamento, para o desenvolvimento das minhas aulas serem melhor para os alunos, cheguei a comprar uma “mesa digitalizadora” [...] Esse material foi pago pelo meu bolso, se for esperar do governo, não tem. Internet, mesmo era minha. Teve um dia, que dormi quase uma hora da madrugada, planejando aula e elaborando para ser postado na plataforma. [...] Elaborava os materiais tanto para aulas remotas e principalmente para os apostilados, onde passava para coordenação e eles buscavam. Alguns chegavam em branco e eu até chorava. [...] porque como esse aluno está sem acesso à internet [...].

Professora_02: Como o estado cobrava, você tinha que dar atividade; todos os dias você tem que dar atividade para o aluno; você tem que cobrar do aluno, era uma forma que você tinha que fazer um portfólio e comprovando que você fez ou se você cobrou do aluno. Era uma cobrança do estado e aí você jogava em cima do aluno e esquecia da parte humana. Então, a partir disso, que eu parei e falei não, pera aí! Qual é a função da Química, aqui? Os meninos, está igual a mim desorientados, perdidos e a gente vai ficar cobrando.

A lógica gerencialista na educação que Ball (2005) nos faz refletir e que mencionamos anteriormente é percebida na fala da Professora 01 ao afirmar: “Sem falar dos relatórios de teletrabalho, que tinha que preencher diariamente, após o final do mês tinha que está enviado, a coordenação sempre ficava em cima cobrando”. Entendemos que relatórios, planilhas e outros mecanismos medidores de desempenho são uma característica marcante da presença de grupos privados na educação, os quais vão conduzindo as políticas públicas educacionais dentro da cultura do “melhor desempenho possível nos rankings de classificação” e se utilizam do discurso de que a educação vai de mal a pior para justificar suas atuações e interferências nas políticas.

Concordamos com Bueno et al. (2020), ao afirmarem que o Instituto Unibanco é um desses grupos ligados ao setor privado que, com o discurso de “compromisso com a educação pública”, exerce influência na condução das políticas educacionais, transformando o que era para ser educação de qualidade para todos em um negócio lucrativo com interesses próprios.

Segundo os autores: “A Fundação Lemann afirmou que está trabalhando junto a mais de 30 organizações sociais em projetos de EaD, oferecendo ‘aulas’ e conteúdos educativos por meio de canais de televisão, plataformas on-line e aplicativos” (BUENO et al., 2020, p. 143). Entre os produtos ofertados por essas organizações podemos mencionar, de acordo com Bueno et al. (2020), Portal Aprendendo Sempre (curadoria para selecionar ferramentas e soluções gratuitas que podem facilitar o ensino remoto), o Aprendizap (que propõe educação por meio do aplicativo WhatsApp), o YouTubeEdu (ensino por meio de vídeos com conteúdo da BNCC) e o Simplifica (plataforma on-line com recursos digitais para apoiar gestores, professores e estudantes em tempos de educação remota).

As ações desenvolvidas por esses grupos empresariais, somadas ao grande interesse manifestado por empresas, como o Google (por exemplo, Google Classroom), Facebook, Apple, Amazon e Microsoft, destoam do que entendemos por educação de qualidade e da função social da escola. Concordamos com Dourado e Oliveira (2009), ao expressarem que a qualidade da educação perpassa pelo espaço social e pelas obrigações do Estado. O primeiro diz respeito, entre outros aspectos, à dimensão socioeconômica e cultural dos entes envolvidos; a segunda, à dimensão dos direitos dos cidadãos e das obrigações do Estado, cabendo a este último

[...] ampliar a obrigatoriedade da educação básica; definir e garantir padrões de qualidade, incluindo a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; definir e efetivar diretrizes nacionais para os níveis, ciclos e modalidades de educação ou ensino; implementar sistema de avaliação voltado para subsidiar o processo de gestão educativa e para garantir a melhoria da aprendizagem; implementar programas suplementares, de acordo com as especificidades de cada estado e município, tais como: livro didático, merenda escolar, saúde do escolar, transporte escolar, recursos tecnológicos, segurança nas escolas (DOURADO; OLIVEIRA, 2009, p. 208).

Tendo como base as ideias desses autores, entendemos que o papel da escola diante de uma educação de qualidade perpassa por uma perspectiva polissêmica na qual são diversos elementos que contribuem para um processo exitoso de ensino e aprendizagem e que, a nosso ver, não fazem parte da lógica empresarial e gerencialista.

Outro discurso que também faz parte do contexto da influência no processo de formulação e implantação das políticas educacionais é o da mídia. Segundo um levantamento realizado por Chagas, Guimarães e Sousa (2020), com o intuito de identificar como a mídia goiana vem abordando temas ligados às atividades de ensino não presenciais desenvolvidas pela rede estadual de educação, os autores encontraram dezoito publicações, no período de 13 de março a 12 de junho de 2020, a maioria enfatizando as ações da Secretaria Estadual de Educação e medidas governamentais e conferindo pouca atenção aos problemas enfrentados na realidade concreta das práticas das aulas não presenciais, por exemplo, as dificuldades de acesso à internet por parte dos alunos.

Concordamos com os autores ao afirmarem que há uma relação entre a agenda midiática e a agenda pública, formando opiniões de leitores que acompanham esses veículos de informação, transmitindo a ideia de que o Estado cumpriu seu papel na pandemia e indo ao encontro dos interesses do poder público. Salientamos ainda que as reportagens que abordaram as dificuldades de acesso à internet por parte dos estudantes fizeram-no por um viés meritocrático, por exemplo: “[...] aluno de escola pública comove a web ao estudar usando wi-fi de açougue, em Goiás” (CHAGAS; GUIMARÃES; SOUSA, 2020). Em outras palavras, o que a mídia, em consonância com o pensamento neoliberal do Estado, quer transmitir é a ideologia de meritocracia, ou seja, a ideia de que quem quer consegue, não importam as dificuldades. Pelo relato a seguir, entendemos que o acesso e a permanência na educação não implicam apenas uma força de vontade do estudante, mas, sim, estão vinculados às questões sociais e econômicas da vida do estudante e de sua família:

Professora_01: Como em Brasília é uma cidade grande, houve diminuição de alunos. No início das aulas, principalmente no 1.º semestre até que tinha alguns alunos fazendo as atividades e participando das aulas no Google Meet. Daí depois percebeu, que eles quase não frequentavam o Google Meet, alguns faziam as atividades. Quando os alunos não participavam das aulas no Google Meet, muitos diziam que estavam com falta de internet, só possuíam dados móveis, e preferiam utilizar para fazer as atividades da plataforma. Eu criei um grupo no WhatsApp para falar com eles, sempre mandavam uma dúvida, mas eram poucos e isso foi se diminuindo. Mesmo assim teve muito alunos desistindo, os pais compareciam na escola para avisar que o seu filho não queria mais estudar, principalmente é o que eu percebi muito nos conselhos, dito pela coordenação dos alunos que tinham deficiência, no caso, surdo, eles tinham dificuldades e muitos deles já estavam querendo desistir, até com acompanhamento do intérprete estava muito difícil nessa pandemia (grifos nossos).

A Professora_01, ao afirmar que muitos dos alunos “diziam que estavam com falta de internet, só possuíam dados móveis, e preferiam utilizar para fazer as atividades da plataforma”, retrata a realidade dos estudantes brasileiros, que, sem condições de acesso à internet, optam por desistirem dos estudos, como ela mesma afirmou: “os pais compareciam na escola para avisar que o seu filho não queria mais estudar”. Mesmo com todo o empenho por parte da professora que percebemos em sua fala ao proferir “Eu criei um grupo no WhatsApp para falar com eles, sempre mandavam uma dúvida, mas eram poucos e isso foi se diminuindo”, isso por si só não garante a promoção da aprendizagem, pois entendemos como Dourado e Oliveira (2009) no sentido de que outros aspectos, os de ordem social e econômica, estão intimamente relacionados a essa questão. Ferreira (2020, p. 79) indica que, de acordo com a pesquisa divulgada recentemente pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), na “[...] região Centro-Oeste do Brasil, 15% dos alunos da escola pública acessam a internet exclusivamente por meio do aparelho de celular e fazem uso dos dados móveis”. Entendemos como a autora que considera ser “[...] desumano acreditar e propagar a ideia de que a disponibilização de material de estudo on-line via grupos de WhatsApp e outras plataformas virtuais garante, por si só, a igualdade de aprendizagem dos estudantes” (FERREIRA, 2020, p. 79).

Tratando-se da esfera nacional, Ferreira (2020, p. 72) aponta que:

[...] quase 40% dos estudantes das escolas públicas no Brasil não dispõem de computador ou de tablet em suas residências e 21% acessam a internet exclusivamente pelo celular, enquanto esses dados caem para 9% e 3% respectivamente quando aborda os alunos da rede privada de ensino. Em relação ao uso de plataformas virtuais, apenas 16% dos estudantes (públicas e privadas) declararam ter participado de algum curso on-line e 24% deles (públicas e privadas) realizaram simulados ou provas via internet.

Essa pesquisa divulgada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), no dia 9 de junho de 2020, evidencia a desigualdade de acesso à internet entre os alunos das redes públicas e privadas, reafirmando, assim, a urgência do comprometimento com a formulação e implantação de políticas públicas voltadas para aumentar o acesso à internet pelos alunos das escolas públicas no Brasil.

Relacionado ao contexto da influência está o contexto da produção de texto, pois o discurso que acontece na arena de influência vai se materializar nas normativas e nos documentos oficiais. Dentro do contexto da produção de texto, podemos exemplificar, utilizando o Parecer 11/2020 do CNE, que trata das “Orientações Educacionais para a Realização de Aulas e Atividades Pedagógicas Presenciais e Não Presenciais no contexto da Pandemia”. Observamos nesse parecer a presença direta de grupos ligados aos setores privados, principalmente no que diz respeito às pesquisas realizadas por eles, como podemos constatar no seguinte trecho do documento:

Outro estudo, realizado pela Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (IEDE) em parceria com o Instituto Rui Barbosa (IRB), mostra grande variedade e diversificação das redes de ensino para sua organização interna e disponibilização de conteúdos e atividades pedagógicas não presenciais durante o período de pandemia. Revela que 82% (oitenta e dois por cento) das redes municipais ofereceram aulas ou conteúdos pedagógicos aos estudantes utilizando diferentes estratégias. Em relação às redes estaduais pesquisadas, todas disseram ofertar algum tipo de conteúdo pedagógico no período de isolamento (BRASIL, 2020, p. 5).

A Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (IEDE), em parceria com o Instituto Rui Barbosa (IRB), é apenas um exemplo da participação de grupos ligados aos setores privados no contexto da produção de texto do documento a que nos referimos. Convém ressaltar que a preocupação dos elaboradores dos documentos que estão “guiando” a educação durante a pandemia é no sentido de disponibilização de conteúdos e cumprimento de carga horária, transmitindo a ideia de que a escola não pode parar, mesmo que em uma pandemia. Outro aspecto importante a salientar são os dados que esse Parecer do CNE traz; são resultados de estudos dos grupos ligados ao setor privado: as redes indicam que 93% das intervenções pedagógicas implementadas estão embasadas na BNCC e 87% delas no currículo de referência (BRASIL, 2020).

É interessante observar que os grupos que realizam esses estudos e expõem esses dados (97% e 87%) possuem uma agenda neoliberal e neoconservadora e atuaram, direta ou indiretamente, no processo de elaboração da BNCC (PERONI; CAETANO; LIMA, 2017). Outra normativa que consideramos importante analisar é o Parecer 5/2020 do CNE, que trata da “Reorganização do Calendário Escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da Pandemia da Covid-19”, e reforça que:

[...] as atividades pedagógicas não presenciais podem acontecer por meios digitais (videoaulas, conteúdos organizados em plataformas virtuais de ensino e aprendizagem, redes sociais, correio eletrônico, blogs, entre outros); por meio de programas de televisão ou rádio; pela adoção de material didático impresso com orientações pedagógicas distribuído aos alunos e seus pais ou responsáveis; e pela orientação de leituras, projetos, pesquisas, atividades e exercícios indicados nos materiais didáticos. A comunicação é essencial neste processo, assim como a elaboração de guias de orientação das rotinas de atividades educacionais não presenciais para orientar famílias e estudantes, sob a supervisão de professores e dirigentes escolares (BRASIL, 2020, p. 8-9).

A partir desses documentos, percebe-se que o regime de aulas não presenciais mostra-se como um improviso para que a escola não pare de funcionar durante a pandemia. Não percebemos, em nenhum momento, nos dois documentos a que nos referimos, a presença de ações concretas que viabilizem uma educação de qualidade e para todos. Não há menção a políticas públicas para resolver o problema da dificuldade de acesso à internet e às tecnologias de informação e comunicação por parte da grande maioria dos alunos da rede pública de ensino, da falta de computadores, tablets, celulares, e ainda desconsideram a realidade das famílias brasileiras, as quais, em sua maioria, não apresentam uma situação socioeconômica favorável para propiciar o ensino em seus lares, nem escolaridade para acompanhar as atividades pedagógicas dos filhos com todas as dificuldades que a pandemia tende a aumentar.

Portanto, nessas normativas, sentimos falta de uma política pública compromissada, de forma efetiva, com a educação para todos e de qualidade, durante a pandemia, e que estivesse ainda em conformidade com o que preconiza a Constituição de 1988, que reconhece a educação como direito de todos e dever do Estado e da família, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988), bem como o artigo 3.º da LDB, o qual orienta que o ensino seja ministrado com base nos seguintes princípios:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; [...] VII - valorização do profissional da educação escolar; [...] VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino; [...] IX - garantia de padrão de qualidade; [...] XII - consideração com a diversidade étnico-racial; [...] XIII - garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida (BRASIL, 1996, p. 9).

Com base na Constituição de 1988 e na LDB 9.394/1996, entendemos que o direito à educação abrange não apenas a garantia do acesso à escola e da permanência nela, mas também o aspecto da qualidade do ensino, o qual está interligado ao contexto da prática.

Nesse contexto, trazemos algumas narrativas de estudos realizados durante a pandemia. Um relato sobre o ensino no município de Goiânia, em Goiás, ressalta que: “[...] no dia 29 de junho, em sua página no Instagram (@smegoiania), a Secretaria divulgou que a programação televisiva estaria disponível durante todo o mês de julho (período de férias escolares) por meio de parceria com a Fundação Lemman” (SILVA; BARBOSA, 2020, p. 22). Tal fato desperta nossa atenção em virtude da presença de instituições privadas, na realidade da escola pública, ou seja, a possibilidade de se utilizarem verbas públicas com esses grupos do setor privado, principalmente nesse período de pandemia, é maior.

Há também declarações de inúmeros professores de todas as redes de ensino do estado de Goiás, que, além de enfrentarem as circunstâncias complexas relacionadas à saúde física e mental impostas pela Covid-19, tiveram que, mesmo sem formação específica para o uso de Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), improvisar estratégias didáticas, “[...] necessitando gravar vídeos, aprender a editar textos em vários formatos e planejar atividades para que os alunos pudessem realizá-las de forma mais autônoma” (JESUS; SOUZA, 2020, p. 119). Esse fato também é percebido na entrevista a seguir:

Professora_02: Foi um desafio no início, porque a gente teve que aprender a mexer na plataforma e era uma plataforma pesada, no caso, Microsoft Teams. Não era igual o Google Meet, mais prático. Você aprendia e os alunos não, então, nós tínhamos que ensiná-los e criar um guia para os alunos entrarem e realizarem as atividades na plataforma. Cheguei a fazer bastante testes com essa plataforma. Não deu uma semana que o estado optou, dizendo que seria o ensino remoto e iria utilizar a plataforma do Microsoft Teams. Eu cheguei a ficar com medo, de não dar certo com essas aulas remotas. Eu pensei qual seria o meu plano B? Então, a ansiedade no início foi bem forte.

A Professora_02, ao relatar “porque a gente teve que aprender a mexer na plataforma [...] Eu cheguei a ficar com medo, de não dar certo com essas aulas remotas”, demonstra insegurança por parte dos professores. Este fato está relacionado à falta de ambientação desses recursos nos cursos de formação de professores. Baseados em Alonso (2008), assumimos que as questões referentes às TIC, quando abordadas nos cursos de formação de professores, ocorrem de forma superficial e com visão tecnicista, o que compromete a atuação do professor no contexto da prática da sala de aula.

E, no contexto da prática, concordamos com Ball, Maguire e Braun (2016), ao enfatizarem a teoria da atuação nesse contexto. Os professores, na escola, recebem um currículo que foi imposto, porém não podemos deixar de levar em consideração os processos de interpretação e tradução por parte deles, ou seja, a política não é meramente implementada, mas passa por um processo de recriação por parte dos sujeitos envolvidos.

Esse processo de interpretação e tradução é percebido no relato de experiência de Soares (2020), em uma escola pública da rede municipal da região de Trindade. Ele evidenciou que, no atual momento de pandemia, o cumprimento do Documento Curricular para Goiás (DC-GO), documento norteador da elaboração dos planos de aula, em Trindade, somado a uma exigência da Secretaria de Educação do Município, mostrou-se desafiador em virtude do excesso de atividades e afazeres destinados aos professores, como também de demandas particulares das famílias dos estudantes, ressaltando, assim, as dificuldades para o cumprimento dos conteúdos elencados como essenciais pelo DC-GO.

Precisamos ficar atentos às ações dos governantes com relação ao momento pós-pandemia e mostrar resistência, quando necessário. O fato de os professores já estarem trabalhando, no contexto da prática, com ferramentas on-line pode respaldar ações governamentais para a implantação do EaD, com a contratação de grupos privados na área da tecnologia e materiais didáticos prontos. O problema dessa modalidade de ensino não é o uso em si da tecnologia, mas perpassa pela falta de formação dos professores acerca das TIC, formação tecnicista, desvalorização da figura do professor, entre outros. Um ensino na modalidade EaD de qualidade não significa apenas consumir as novas tecnologias, mas também produzir e interagir, integrando-se em novas comunidades, criando significados com visões alargadas, novos rumos e desenvolvendo identidades (PONTE, 2000).

Analisando ainda o contexto da prática, um estudo realizado por Schmidt et al. (2020) revela um quadro tenebroso e assustador. O medo de ser infectado por um vírus potencialmente fatal, de rápida disseminação, um verdadeiro enigma desafiador para os pesquisadores e profissionais da área da saúde, pelo fato de haver ainda elementos a serem descobertos sobre ele, acaba por afetar o bem-estar psicológico de muitas pessoas. Por conseguinte, sintomas de depressão, ansiedade e estresse diante da pandemia e pós-pandemia têm sido identificados na população geral do mundo e ainda um aumento do número de casos de suicídio.

Professora 02: Relatei um caso de um aluno que suicidou o que me deixou chocada e em alerta com os outros alunos, especialmente com a demanda de atividades que aplicava nas aulas. [...] assim que as minhas aulas começaram, a gente teve um choque, que todo mundo não esperava de um aluno se suicidar. Então, a partir disso, eu comecei a ficar mais atenta com os meus alunos, [...] a partir do que aconteceu, eu comecei a diminuir mais, porque eu estava cobrando muito. [...] Era uma cobrança do estado e aí você “jogava” em cima do aluno e esquecia da parte humana. Então, a partir disso, que parei e falei não, pera aí! Qual é a função da Química, aqui? Os meninos, estão iguais a mim, desorientados, perdidos e a gente vai ficar cobrando? (grifo nosso).

Diante de tal relato, é imperioso afirmar que, mesmo se houvesse todas as condições de infraestrutura, recursos, professores altamente preparados e qualificados, a escola não conseguiria propiciar uma educação de qualidade para todos em virtude da grande crise sanitária pela qual o País e o mundo passaram, diante da pandemia da Covid-19, principalmente porque muitos brasileiros estão vivenciando situações psicológicas ainda piores, em virtude das condições de vulnerabilidade a que estão sujeitos.

4 CONCLUSÃO

Entendemos que uma das concepções amplamente aceitas e difundidas é que a educação deve ser um direito de todos e que ela deve ser de qualidade. Dentre as muitas funções da escola uma delas é a de auxiliar que essas “verdades” sejam cumpridas. O dever de que esses princípios sejam observados é do Estado e da família, segundo a Constituição de 1988.

O que foi mencionado anteriormente pode ser reconhecido como verdades culturalmente atribuídas, mas cada sujeito as interpreta de acordo com as próprias relações que estabelece com sua cultura, com a cultura em que está inserido, com sua identidade constituída diante da diversidade cultural, com seus valores, padrões econômicos, sociais, políticos e ainda de influência da comunicação.

Se desconsiderarmos o cenário de pandemia, constataremos que sempre houve vários embates sob variadas óticas, entre as quais algumas julgam que o Estado deveria se comprometer mais com as responsabilidades de melhorar o acesso à educação; por sua vez, outras julgam que o Estado não deveria ter esse dever. Esses embates, que não fogem da esfera política e de poder, não só perpassam pela questão do que é ou não dever do Estado, mas também: O que se deve ensinar nas escolas? O que é um ensino de qualidade? A quem ele deve ser proporcionado e por que ele deve ser útil? Desse modo, a escola se torna um instrumento de reprodução desses embates ideológicos e de diversidade cultural que caracterizam os sujeitos com diferentes identidades.

Se já não havia acesso e qualidade de ensino para todos, antes da pandemia, o que tivemos o desprazer de ver durante esse período, que por si só já é impactante para a vida das pessoas, tornou-se um campo “minado” de disputa de poderes, lucros e de desigualdade de acesso à educação. Para alguns, a retomada das aulas pela proposta de “ensino remoto” foi tratada com naturalidade e facilidade, é como se nada estivesse acontecendo, e, de fato, a pandemia não afetou o cotidiano de todos da mesma forma. Por outro lado, cumprir o currículo com a obrigatoriedade de um “ensino remoto” foi um verdadeiro massacre emocional para professores, alunos, pais e famílias, pois, além do medo, as condições de acesso a hospitais e tratamento médico não são as mesmas para todos. O medo foi vivido de forma mais gritante por alguns, especialmente trabalhadores que não podem cumprir isolamento social e precisam arriscar suas vidas e de entes queridos para ir em busca de alimento e para garantir moradia.

Logo, durante a pandemia da Covid-19, o Estado não cumpriu vários de seus deveres com relação à educação, de acordo com a Constituição de 1988, e descumpriu princípios básicos da LDB, especialmente de propiciar que o ensino seja ministrado com base na igualdade de condições para o acesso à escola, permanência nela e garantia de padrão de qualidade, entre outros.

As análises dos discursos educacionais em tempos de pandemia da Covid-19 evidenciam a possibilidade de perceber que certas “verdades” nunca seriam possíveis. As lutas nas quais devemos nos envolver não devem ser no sentido de forçar que algo se “encaixe” para todos. Isso não deve, também, permitir um conformismo com as injustiças, mas apenas “gritar” por elas não faz com que sejam “ouvidas”, em um mundo com diferentes “focos auditivos”. É necessária uma revolução no campo educacional que deve ser assimétrica.

AGRADECIMENTO

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Mato Grosso (FAPEMAT) pela concessão de Bolsa de Iniciação Científica.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 30 de Junho de 2021; Aceito: 14 de Fevereiro de 2022

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