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Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.20 no.4 São Paulo Oct./Dec 2022  Epub Jan 30, 2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2022v20i4p1729-1749 

Artigos

Processos de Criação em Currículos:“O Possível Precisa Ser Inventado”

Curriculum Creation Processes:“The Possible Must Be Invented”

Procesos de Creación Curricular:“Las Necesidades Posibles que Hay que Inventar”

Cláudia Aparecida dos SANTOSi 
http://orcid.org/0000-0003-3525-9517

i Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Professora Substituta do Curso de Pedagogia da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). E-mail: claudiasartes@yahoo.com.br - ORCID iD: http://orcid.org/0000-0003-3525-9517.


Resumo

O estudo, ao desviar por ‘entre’ espaços da educação e da filosofia, compõe um traçado errático e um pouco mais livre na escrita e no pensamento educacional. As posições assumidas ao longo do ensaio engendram formas de organização provisória que suscitam tentativas de fazer fugir à linearidade e naturalização do pensamento-curricular. Trata-se de um estudo teórico-conceitual cujo interesse é problematizar o “pensamento-identidade” e seu espelhamento na educação. Como escopo teórico, acolhem-se as filosofias da diferença, sendo Deleuze (2006), Deleuze e Guattari (2010, 2012) e Larrosa (2011) alguns dos principais interlocutores da discussão. Como resultado, inscrevemos como possível um currículo educacional afeito por inflexões, que acontece pelas composições singulares, associações e linhas de fugas, ao experimentar uma educação pelo viés da diferença, em vez da identidade.

Palavras‐chave: educação; currículos; filosofias da diferença

Abstract

The study, when diverting through ‘between’ spaces of education and philosophy, composes an erratic and a little freer trace, in writing and in educational thought. The positions taken throughout the essay engender forms of provisional organization that give rise to attempts to escape the linearity and naturalization of curricular thinking. It is a theoretical-conceptual study whose interest is to problematize the “identity-thought” and its mirroring in education. As a theoretical scope, the philosophies of difference are accepted, with Deleuze (2006), Deleuze and Guattari (2010, 2012) and Larrosa (2011) being some of the main interlocutors of the discussion. As a result, we inscribe as possible an educational curriculum affected by inflections, which takes place through singular compositions, associations and lines of flight, when experiencing an education through the bias of difference instead of identity.

Keywords: education; curriculum; philosophies of difference

Resumen

El estudio, al desviarse por espacios ‘entre’ de la educación y la filosofía, compone una huella errática y un poco más libre, en la escritura y en el pensamiento educativo. Las posiciones adoptadas a lo largo del ensayo engendran formas de organización provisional que dan lugar a intentos de huir de la linealidad y naturalización del pensamiento curricular. Se trata de un estudio teórico-conceptual cuyo interés es problematizar la “identidad-pensamiento” y su reflejo en la educación. Como ámbito teórico se aceptan las filosofías de la diferencia, siendo Deleuze (2006), Deleuze y Guattari (2010, 2012) y Larrosa (2011) algunos de los principales interlocutores de la discusión. En consecuencia, inscribimos como posible un currículo educativo afectado por flexiones, que se produce a través de composiciones singulares, asociaciones y líneas de fuga, al vivir una educación a través del sesgo de la diferencia en lugar de la identidade.

Palabras clave: educación; planes de estúdios; filosofía de la diferencia

1 LINHAS ERRÁTICAS TAMBÉM COMPÕEM TRAJETOS

Meus territórios estão fora de alcance, e não porque sejam imaginários; ao contrário: porque eu os estou traçando

(DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 79).

O aporte da educação ajustada ao campo da representação, em que os modelos educacionais (ortodoxos) direcionam o pensamento para a apreensão do mundo como ele ‘verdadeiramente é’, instaura de antemão uma imagem a ser reproduzida. Esse modelo de produção de conhecimento justifica-se, segundo Deleuze e Guattari (2010, p. 237), por um conjunto de “regras protetoras” que supostamente nos manteriam a salvo do caos, uma vez que a produção de conhecimento está pautada por limites claros, objetivos e lineares, com início e fim bem definidos, previamente instituídos e passíveis de serem medidos. Dito de outro modo, a educação, tal qual a conhecemos, parte da manipulação e previsibilidade do que nos acontece. Conforme pontuou Kant (2003 apudDELEUZE, 2006), não se pode pensar, ou usar o entendimento, a não ser seguindo certas regras.

Diferente disso, e aliadas a Deleuze (2006) e Larrosa (2011), queremos pensar os currículos educacionais também como um exercício de experimentação, em meio a processos sempre singulares, isto é, em meio a produções inéditas que interrogam os códigos em sua abstração homogeneizante. Afinal, se tivéssemos apenas o princípio de identidade, “[...] seríamos mudos, imóveis, passivos, e o mundo não teria existência: nada de novo sob o sol” (SERRES, 2003, p. 38).

Assim, lançamo-nos a vagar pelos espaços da educação sem o temor das fronteiras, atentando às linhas erráticas que, vez ou outra, sobrepõem-se às linhas costumeiras para, quem sabe, provocar alguns desvios perante o instituído. Longe de mapas do tesouro, intuímos que estamos hoje, mais do que nunca, fadadas/os a criar percursos singulares. A emergência de pensar uma educação correlata ao nosso tempo justifica o porquê de jogarmo-nos no desafio de pensar os currículos escolares como espaços de criação e atenção aos paradigmas que circunscrevem a atualidade. Falar em currículos, como entendemos, alude fundamentalmente ao ato de potencializar o que nos acontece em meio à vida. E dar vez a um pensamento, que é da ordem do ‘acontecimento’, exige esquivar-se do “pensamento-identidade” que apregoa condições de universalidade pela supressão das diferenças (DELEUZE, 2006).

Nosso esforço está em pensar o currículo distanciando-o dos modelos prévios que o determinam. Sendo assim, este estudo se afirma em um empreendimento de “espreita”, ao deslocar a ênfase curricular de alguns conceitos atrelados exclusivamente ao campo pedagógico, do já sabido, entre o aprender e ensinar, para com ele compor um plano de imanência que torna possível ver a educação por uma nova perspectiva.

A composição de um plano de imanência para o pensamento curricular propõe perspectivar um mapa difuso, um campo aberto, que pelo traçar de algumas linhas em um platô determina-se não uma única direção para a educação, mas lança-se o pensamento para uma educação “porvir”. Logo, traçar linhas curriculares como espaço de criação coloca-nos atentas às contingências em que a realidade se produz, daí por que consideramos urgente a problematização da fixidez das teorias do currículo. Aliás, salientamos que o “porvir” é compreendido aqui a partir de Deleuze e Guattari (2010) não como um futuro que estaria para chegar, quer seja com brevidade ou lentidão, mas como o que nos alcança no instante. Assim, “[...] o porvir não é um futuro [...], mesmo utópico, é o infinito agora [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 135).

Em consonância com a vertente filosófica na qual nos movemos e pensamos - as filosofias da diferença e os estudos pós-críticos1, especialmente os autores que gritaram em nome da ‘grande recusa’2 -, buscamos compor vias possíveis para pensar a educação não de modo prescritivo, mas pelo traçado de algumas linhas que nos levem a outros lugares, de onde se possa ver aquilo que em dado momento parece não ter possibilidade de existir. De tal maneira, mover o pensamento curricular por zonas de variação contínuas, em um plano de imanência, desviando dos modos maiores na educação, constitui-se como criação. E nesse transitar pelo desconhecido é que o ‘possível’ se faz, uma vez que o possível trata da criação de novas possibilidades de vida, e criar uma possibilidade de vida é sempre introduzir uma diferença (DELEUZE, 2006).

Convidamos para esta conversa alguns interlocutores que nos ajudam com o que queremos dizer: Foucault (1996), Deleuze (2006), Deleuze e Guattari (2010) e Deligny (2015), Silva (2001) Corazza (2004). Esses pensadores, que de algum modo se ligam por sua vertente nietzchiana, permitem escapar aos modelos majoritários que tendem a plasmar a vida.

Certamente há nesta conversa sobre o currículo e diferença uma proposição de inversão ou, ainda, uma ruptura com a “naturalização” habitual do pensamento-curricular que vincula à “boa vontade do pensador” e à “boa natureza do pensamento” (DELEUZE, 2006). Tal ensejo permite perspectivar certo desregramento nos modos de fazer e ser na educação. Ao movimentarmos tal abordagem metodológica pelo viés da diferença, distanciando-a das verdades petrificadas e dos modelos impostos, temos espaço para a criação de currículos que fazem cintilar novos horizontes, em que se pode pensar diferente do que estamos acostumados.

O posicionamento teórico-conceitual assumido diante dos modos de perceber e criar a realidade aloca este estudo em lugar distinto das teorias tradicionais3. Se, de um lado, as teorias tradicionais aceitam mais facilmente o status quo, os conhecimentos preestabelecidos e os saberes hegemônicos, com maior ênfase no esforço de responder às questões técnicas (SILVA, 2001) “o que” e “como”. As teorias pós-críticas, por sua vez, compreendem o conhecimento como um constructo humano, problematizável e modificável, ao indagarem “por que” e “para quem” atentam às conexões possíveis entre os saberes; as identidades (entendidas como precárias e provisórias) e as relações de poder que aí estão intrincadas (SILVA, 2001).

De fato, o currículo escolar comumente se apresenta como um mecanismo que abaliza os territórios de ensino-aprendizagem que podem ser percorridos e experimentados em determinado tempo. A problematização do pensamento curricular e os modos de condução e elaboração fazem-se possível na medida em que compreendemos o plano de organização sobre o qual ele está estruturado. O “pensamento-identidade” que alicerça o pensamento curricular por espelhamento “[...] procura dar referências ao caos sob a condição de renunciar aos movimentos e velocidades infinitos”, visto que atua por “[...] operar, desde o início, uma limitação [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 53).

Pensar a educação na atualidade requer inicialmente a compreensão de que esse modelo de ciência majoritária ainda pesa consideravelmente sobre a educação tradicional. Um giro breve pela história nos mostraria que essas formulações fundamentam as pedagogias educacionais e, consequentemente, o pensamento curricular. Basta tomar algumas das grandes concepções filosóficas e científicas para verificar tal afirmação. Afinal, os modos pelos quais sustentamos conhecer, em cada momento histórico, relacionam-se às maneiras como representamos esse conhecimento, como admitimos o que é conhecer.

Aliás, parece-nos pertinente traçar os caminhos percorridos para a efetuação deste ensaio que oferece, entre outras, a possibilidade de mudança perante os modelos curriculares habituais. Logicamente, a discussão não ruma à certeza de algo melhor ou previamente idealizado, seu primado está posto no próprio movimento, e aí reside o ponto nevrálgico desta discussão.

Vejamos: se por um lado tem-se a matriz platônica, que concebe a ‘viagem’ como elevação teórica (ascensão ao universal), culminando na imperativa descida e consequente imposição da verdade como forma de dar ordem a um território caótico, sendo a viagem concebida como movimento natural, cujo trajeto é sempre preestabelecido (PLATÃO, 2007), de outro, vê-se/ouve-se o pensamento nietzschiano, para quem a viagem é anunciada como uma passagem alegre e “intempestiva” pela vida (NIETZSCHE, 2005). As duas matrizes assinaladas apresentam modos bastante distintos de conceber um pensamento em meio a um percurso e o localizam em lugares igualmente diferentes; enquanto a primeira coloca o pensamento nas alturas, a segunda matriz dispõe o pensamento como um trabalho próprio dos interstícios, das cavidades.

Seguiremos, assim, por uma aproximação da ideia de movimento, viagem, noções estas que perfazem um pensamento educacional que acontece atento ao mundo da vida. Ao lançarmo-nos por tais noções, poderemos, quem sabe, problematizar algumas sedimentações no campo educacional, mormente na construção curricular, problematizando sua vertente tecnicista ainda bastante presente na atualidade, bem como a ideia de linearidade, de progresso e mesmo de emancipação.

Com as teorias pós-críticas, especificamente as filosofias da diferença de Deleuze e Guattari (2010), buscamos pensar um currículo que não se sustenta em um pensamento tradicional da corrente platônica, cujo intuito estaria em traçar um mundo ideal, mas, inversamente, as discussões procuram fissurar suas temáticas, compondo narrativas menores, singulares. Compreendemos, portanto, que “[...] já não é mais possível operar com qualquer tipo de currículo; a não ser com currículos plurais” (CORAZZA, 2007, p. 1) que, acontecem ou, podem acontecer em um plano de pensamento perspectivo, imanente, aberto às contingências e aos acontecimentos como forma de obrar outra educação, uma educação “porvir”, agora não pelo viés da identidade, mas da diferença.

2 DESLOCAMENTOS CURRICULARES POR “ENTRE” ZONAS DE INVENÇÃO

No plano em que se inscreve a racionalidade moderna, consequentemente a educação moderna, a noção de verdade sempre teve lugar de destaque. Uma vez que a natureza passou a ser lida por leis universais, entendeu-se o mundo como muito mais linear e mensurável. Por muito tempo negou-se a pluralidade de meios dos quais emergem os saberes. A produção de conhecimento, baseada na formulação de regras gerais, aplicáveis e comensuráveis, decorreu subsidiada pela ideia de uma realidade externa instituída essencialmente por um sistema de regularidades, regidas por leis matemáticas em detrimento do sujeito. Tal perspectiva foi criticamente denominada por Morin (2008) como “paradigma da simplificação”, em que a natureza seria passível de desvelamento mediante as leis universais, e tudo graças à redução da complexidade.

A educação aliada ao projeto iluminista de escolarização universal, obrigatória, envolta em pretensões totalizantes, direciona-nos sempre para um espaço já conhecido. De fato, esse tema se vincula em parte ao emprego da ordem do ‘normal’ nos fenômenos e nas condutas humanas, em que se institui para os sujeitos uma imagem prefixada, normalizada.

A normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença. Normalizar significa eleger - arbitrariamente - uma identidade específica como o parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. Normalizar significa atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa. A identidade normal é “natural”, desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade (SILVA, 2000, p. 83).

No fundo das teorias do currículo, temos mais uma vez instituída a questão de identidade que apregoa condições de universalidade pela supressão das diferenças. Visto que as teorias do currículo, ao elencarem quais conhecimentos são importantes para se conhecerem, fazem-nos justamente a partir de ponderações sobre quais tipos de pessoas querem fazer existir. Olhamos assim para os currículos como dispositivos reguladores e normalizadores dos saberes e dos sujeitos, capazes de organizar o caos ou a diferença que possa vir a se manifestar.

A partir do anunciado, pode-se compreender a norma, antes de tudo, como um molde, um modelo de funcionamento, uma referência de medida que permite estabelecer padrões de rendimento, ou seja, tem-se a norma como unidade de medida para um processo qualquer: vestir-se, comer, sentar-se, pesquisar e mesmo pensar são verbos balizados por uma ‘regra natural’, sendo empregada para demarcar o que pode ser considerado normal (correto) ou não dentro de determinada cultura. Tudo aquilo que foge a esse aceitável, ao ser identificado, é então submetido a certa esfera de poder que vai readequá-lo ao sistema, corrigir as alterações, excluindo a diferença e reinserindo-o - aliás, busca-se reinserir sempre que possível, mas a exclusão e/ou o extermínio são aceitos em último caso (FOUCAULT, 1996).

O pensamento-curricular na contemporaneidade está abalizado por um pensamento identitário, afinal os pensamentos curriculares que aprendemos a usar preveem o currículo como esse fio de Ariadne4 que nos asseguram no caminho. Conforme também destaca Paraíso (2010, p. 592):

Os currículos deste mundo, os já existentes, são mesmo, sempre, currículos já formados. Olhamos para esses currículos e vemos estratos já constituídos: disciplinas, saberes, professoras, crianças, identidades, livros didáticos, conteúdos, literatura infantil e juvenil, exercícios, atividades, conhecimentos, mesas, carteiras enfileiradas ou em círculos, conversas, explicações, projetos, atividades, ensino... Até pode haver metamorfoses, transformações, mudanças, mas são sempre processos secundários aos estratos formados que daí resultam.

Essa concepção de educação atrelada ao modelo clássico de representação, consubstanciada por generalidades, ainda bastante comum na atualidade, pauta-se pela manutenção dele, pela falta de movimento. Não é distante do universo escolar a estratificação dos modos associados exclusivamente à verdade. Conforme explica Silva (2001), provavelmente o currículo tenha aparecido pela primeira vez nos Estados Unidos na década de 20, do século passado, como um objeto específico de estudo e pesquisa, em consonância com os processos de industrialização e imigração que intensificavam a massificação da escolarização e das culturas. Assim, houve um impulso, por parte dos administradores da educação, para racionalizar o processo de feitura, desenvolvimento e ampla testagem de currículos.

As ideias apresentadas encontram-se no livro The curriculum (BOBBITT, [1918] 2004), no qual o currículo é anunciado como um processo cuidadoso de racionalização dos resultados educacionais, testados e medidos. O modelo institucional, que caracteriza e, mais do que isso, fundamenta essa concepção curricular é o da fábrica, e nele os estudantes devem ser processados como um produto fabril, uma vez que o currículo seria supostamente isto: um conjunto de especificações precisas de objetivos, procedimentos e métodos para a obtenção de resultados que pudessem ser mensurados (SILVA, 2001).

Diante do exposto, podemos perceber que o currículo é o resultado de uma seleção, é um arranjo diante de um universo mais amplo de conhecimentos e saberes, em que se seleciona aquela pequena parte que vai configurar o currículo. Notoriamente, a política cultural do currículo detém funções estratégicas na política cultural de formação e sistematização dos saberes escolares. Ao problematizarmos os currículos, aproximando-os dos discursos postos em circulação na educação em geral, perceberemos que estes também produzem seus objetos de estudo e seus sujeitos, dado que sua prática abaliza a viabilização e a legitimidade dos temas e dos indivíduos.

Nesse sentido, perspectivar uma posição ética na educação, de modo a desconstruir alguns parâmetros que a enredam, pauta-se pela apropriação/criação de um conjunto de regras opcionais que ressoam nos modos de existência, atentando, sobremodo, para o que isso implica à vida. Isso posto, voltamos nosso olhar ao pensamento curricular. Ao afirmar que não há um fim superior e, a priori, ao se estar na vida, põem-se veementemente em xeque os modos de atuação prescritivos, as hierarquizações e o acúmulo de saberes ditados previamente. Afinal, que saberes terão mais validade ao processo educacional conectado à vida em puro devir?

Nietzsche (1999), em suas linhas intempestivas, ao aferir a exclusividade da existência de cada ser, afasta a ideia de identidade como modelo, concebendo esta invariavelmente como precária e provisória, pois, para o autor, é a diferença que está na essência dos seres. A partir de seus estudos, em que se confronta o princípio único de identidade, é preciso lidar também com a compreensão de que não há uma finalidade superior e a priori no mundo da vida.

Pois bem. Ao conceber o pensamento intempestivo, Nietzsche (2005) rejeita as grandes narrativas e o conhecimento como universal. Ao acarear essa perspectiva teórico-prática com as elaborações curriculares, tem-se espaço para efetuação de currículos “menores”, vinculados às diferenças. De fato, às voltas de todo o conhecimento, o que existe são lutas, e não natureza fixa. Concordamos com Nietzsche (2013, p. 116) quando refere que “[...] existe somente um olhar respectivo, um conhecer perspectivo; e quanto mais afetos nós deixamos transparecer a respeito de uma coisa, quanto mais olhos diferentes sabemos empregar para uma e mesma coisa, tanto mais completa se torna a compreensão desta coisa [...]”. Em face da colocação, desponta como pálida a noção de currículo tradicional, que ao operar com a noção de linearidade, de progressão, de utilitarismo em desatenção à vida, cria referências e define parâmetros para “[...] impor suas interpretações como sendo autênticas, legítimas e, portanto, autorizadas” (MARTINS, 2010, p. 27) sobre os demais - os outros - sejam outros saberes, sejam outros sujeitos. E “[...] possivelmente, aqui, a educação esteja cometendo equívocos” (CARVALHO, 2020, n.p.).

Nota-se que, comumente, a ênfase do pensamento curricular está na ordenação sistemática, tanto dos processos quanto dos sujeitos, pautados por um suposto universalismo, que arrola procedimentos de exclusão daqueles que não correspondem aos modelos impostos. Esse arquétipo identitário voltado para a educação assume um caráter totalitário, uma vez que não admite outras formas de ser e conhecer que não sejam orientadas pelos mesmos princípios epistemológicos. De tal modo, o conhecimento torna-se ‘natural’, cabendo, nesse processo, à educação cumprir o “[...] experimento controlado, e muito bem controlado, que conduz a uma formação desejada” (CARVALHO; GALLO, 2017, p. 626).

Assim, a renúncia das formas molares e dos marcadores de poder é um traço que define as escolhas e as posições assumidas para pensar um currículo “porvir”, dado que a ordem molar atende às estratificações que demarcam os sistemas de referência, os modos de fazer e ser, as linhas costumeiras. Tal perspectiva implica iniciar um pensamento curricular de maneira não dogmática, mas por associações, que não dependa da boa-fé do conhecimento verdadeiro e consiga lidar com a perspectiva de que não existe nenhum conhecimento preexistente, nenhum fazer assegurado e nenhum método perfeito (CORAZZA, 2004). Intuímos que, antes de estabelecer um método ou de procurar uma verdade prefixada, é preciso urdir um pensamento curricular sem pressupostos. Sendo assim, trata-se de “aprender que se é livre nessa pesquisa-criação” de currículos “porvir”, e isso é possível “não quando toda a gente concorda ou joga com as mesmas regras, mas, pelo contrário, quando as regras e os jogadores não são dados de antemão, e emergem a par dos novos conceitos criados e dos novos problemas que são colocados” (CORAZZA, 2004, p. 4).

Tratar-se-ia de começar a pensar um currículo sem pressupostos, de abdicar das presunções do senso comum, de jogar fora as bússolas representacionais, fenomenológicas, hermenêuticas, dialéticas, e transformar todas as opiniões curriculares nas idiossincrasias de um estilo de pensar-criar o currículo de outros modos (CORAZZA, 2004, p. 3-4).

Contudo, é certo que um currículo também se compõe por linhas estratificadas:

[...] um currículo é também território povoado por buscas de ordenamentos (de pessoas e espaços), de organizações (de disciplinas e campos), de sequenciações (de conteúdos e níveis de aprendizagens), de estruturações (de tempos e pré-requisitos), de enquadramentos (de pessoas e horários), de divisões (de tempo, espaço, áreas, conteúdos, disciplinas, aprendizagens, tipos, espécies...). Isso tudo porque o que está em jogo em um currículo é a constituição de modos de vida, [...] (PARAÍSO, 2010, p. 588).

É preciso perceber as diferentes linhas que constituem um currículo: linhas “de corte”, “de fenda” e “de fuga” (DELEUZE; GUATTARI, 2012), e essas linhas se cruzam, se atravessam e se seguem, estando frequentemente entrelaçadas. Evidente que não se deve simplesmente trocar uma pela outra; tal substituição somente poderia se dar como mera ilusão. Afinal, “[...] as linhas não param de interferir, de reagir uma sobre a outra, de introduzir cada uma na outra uma corrente de maleabilidade ou mesmo um ponto de rigidez” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 75).

As linhas duras que também compõem um currículo, ou a segmentaridade molar, tal qual anunciada por Deleuze e Guattari (2012, p. 80), possuem um modelo classificatório conhecido, a “linha de corte”, ela “sobrecodifica tudo o que acontece” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 79), “ocupa e atravessa nossa vida” e parece “sempre triunfar” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 73-74). Entretanto, ela não está sozinha, um currículo comporta também a diferença, pois trata-se de um território constituído por multiplicidades.

Um currículo é diferença por natureza; é pura diferença; é diferença em si. Afinal, é um território de multiplicidades de todos os tipos, de disseminação de saberes diversos, de encontros “variados”, de composições “caóticas”, de disseminações “perigosas”, de contágios “incontroláveis”, de acontecimentos “insuspeitados”. Um currículo é, por natureza, rizomático, porque é território de proliferação de sentidos e multiplicação de significados (PARAÍSO, 2010, p. 588).

Se, por um lado, os modos estratificados nos currículos atuam por plasmar uma vida naquilo que ela pode, de outro, os movimentos moleculares podem arrastar e desestabilizar as organizações prefixadas, e há ainda uma terceira linha a ser anunciada, que também atravessa os currículos e os compõe: a “linha de fuga”. No entanto, as fugas e as fendas não seriam nada se não retornassem pelas organizações e não remanejassem seus segmentos, suas distribuições.

O que queremos dizer é que algumas linhas, mesmo com seus perigos, mesmo não estando sozinhas ou imunes às demais, precisam ser inventadas e traçadas sem modelos prévios: “[...] devemos inventar como professoras[es] nossas linhas de fuga se somos capazes disso, e só podemos inventá-las traçando-as efetivamente, na vida” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 83). E isso, apesar de todos os poderes que controlam um currículo, demarcam seus limites e opinam sobre como evitar quaisquer desordens, definindo sua formatação. Ainda assim, tudo vaza, tudo escapa (PARAÍSO, 2010).

Temos no professor Deligny (2015) um potente exemplo de produção de fugas das formas dominantes na educação. Durante mais de 50 anos, ele trabalhou em um centro de acolhimento informal de crianças que não se adaptavam à sociedade, “crianças à parte”, como preferia chamá-las. Em seu trabalho, buscou, incessantemente, criar maneiras de dar a essas crianças a “[...] oportunidade de sobreviverem em uma sociedade excludente e normativa” (DELIGNY, 2015, p. 287). Seu método questionava a centralidade da linguagem e o rigor da educação formal, bem como a aplicação caricatural das teorias freudianas, preferindo a criação de um lugar de trocas e encontros aos espaços de confinamento.

O professor rompeu com pressupostos educacionais ao obrar formas inéditas de educar e viver junto (DELIGNY, 2015). Foi de fora da linguagem cotidiana, das linhas molares5 que sedimentam o ‘eu’, que o autor/professor rompeu com alguns dos paradigmas educacionais de sua época. Em uma espécie de “linguagem do infinitivo”, sem sujeito, propôs mover uma educação por “linhas de errância”.

As experiências (d)escritas por Deligny (2015, 2018) são caras ao entendimento do quanto alguns modelos curriculares configuram técnicas de castração, que, ao se utilizarem sistematicamente da reprodução de fórmulas, demonstram seu interesse na unificação, por meio da exclusão, seja dos temas, seja dos modos, seja das pessoas. Vemos aqui mais uma vez implicada a problemática da identidade, que, quando se põe a falar, não tolera, entre outras coisas, no pensamento as inflexões, na pele as cores, na língua os sons; então, como forma de sanção, produz “[...] pequenas crianças decepcionadas antecipadamente por não serem grandes homens” (DELIGNY, 2018, p. 120-121). Concordamos com Deligny (2018, p. 28) quando diz ser preciso se atentar ao fracasso das ações pedagógicas bem-intencionadas e ainda suspeitar das falcatruas por trás das simulações de “[...] sucessos estrondosos e imediatos”.

3 ESQUIVAS DE ‘UM’ PENSAMENTO, PARA PENSAR CURRÍCULOS OUTROS

Experimentar um currículo. Mover-se tal qual Deligny (2015) por entre um currículo-errante, ou seja, que permite a mudança de direção ou da posição habitual. Essa operação deambulante por entre currículos provoca desencaixes no projeto inicial instituído e certamente rearranjos se fazem necessários. O método inflexivo de operar um currículo reclama a cumplicidade dos sujeitos, na produção de avizinhamentos temporários e contágios mútuos como condição indispensável à sua experimentação.

Retomamos, assim, a ideia de viagem, que mais uma vez nos parece potente para afirmar o currículo educacional como uma cartografia dos caminhos percorridos. Perspectivamos a partir de Deleuze e Guattari (2012) que o ponto ou os pontos de partida e de chegada não são os mais importantes; ao contrário, talvez sejam de todo o processo o menos relevante, apontamos para o ‘entre’ como preponderante no processo educacional. Apostar em um currículo-inflexivo, errante, afeito por singularidades, consente assumir a experiência do trajeto por seu caráter formativo, que viabiliza um caminhar mais livre, capaz de acolher os erros, as provisoriedades e as encruzilhadas que o constituem.

Nesse sentido, dos eixos-curriculares-feitos-pela-escola, dos Parâmetros-Curriculares-Nacionais, das tarefas-escolares, dos livros-didáticos, dos remanejamentos-de-crianças e dos exercícios-escolares, que procedem por decalques, podem começar a brotar um novo rizoma (como em uma obra de arte ou em um livro de Deleuze). Isso porque o que precipita a criação de uma matilha em um currículo pode vir de lugares insuspeitados, e pode ser qualquer coisa. Assim, para ver, sentir e registrar o jogo da diferença, em vez do “é” (que remete à identidade), devemos priorizar o “e” (que remete à multiplicidade). O “e” é o entre-espaço de um currículo, é o que está no meio, que cresce no meio dos currículos; aquelas hastes de rizomas que brotam, crescem e se bifurcam (PARAÍSO, 2010, p. 595).

Aliás, parece-nos fundamental dizer, diante do cenário atual da educação, em tempos de pandemia da Covid-19, quando a educação forçosamente inventa-se, fragmenta-se em uma diversidade incontável de lares, que o uso de um modelo de currículo afiançado por técnicas de controle e exclusão passa a ser inaceitável na medida em que paramenta uma ética e uma política incoerentes com a vida. Portanto, é preciso urdir uma educação sensível, atenta ao mundo da vida, e criar aberturas pelas quais se possa ver aquilo que em dado momento parece não ter possibilidade de existir.

Em face dos desafios que se apresentam a nós como educadoras(es) e pesquisadoras(es), ao problematizarmos os currículos nos espaços educacionais, apontamos para a superação das “utopias pedagógicas”, conforme nomeia Schérer (2009)6. Sinalizamos, assim, as ‘utopias’ como balizas educacionais, que, se, por um lado, conferem certa segurança na oferta de trânsito seguro pelo território costumeiro, de outro, atêm-se tão somente ao que impõem como realidade, não deixando espaço para o imprevisível, os desvios e os acasos, negando-lhes a existência. Precisamente por essa compreensão que nos colocamos à espreita de um espaço múltiplo, composto por uma trama difusa, em que os quadros de pensamento são construídos e modificados a partir de contágios e rupturas que acontecem, ou podem acontecer, em um plano horizontal, em um espaço menor, cujos enunciados desfazem-se das palavras de ordem.

As vias desta escrita colocam em evidência algumas crenças que inviabilizam os movimentos na educação, entre elas o ‘conhecimento verdadeiro’, comensurável, assentado solidamente em um sistema de regularidades. Subverter a lógica do raciocínio dedutivo, que naturaliza, por exemplo, algumas teorias eurocêntricas concernentes às questões culturais, raciais e educacionais parece-nos ser um prisma para urdir currículos outros na contemporaneidade, que acolham as diferenças e as singularidades dos indivíduos. Tal subversão leva, em um primeiro instante, da representação mimética para a afirmação de uma diferença, uma vez que desloca, no campo educacional, “[...] a atenção dos ‘universais’ abstratos para a concretude dos eventos, dos acontecimentos” (GALLO, 2007, p. 36).

Gallo (2002, p. 171), a partir da leitura da obra Kafka: por uma literatura menor, de Deleuze e Guattari (2017), lança a seguinte questão: “Se há uma literatura menor, por que não pensarmos numa educação menor?”. O autor nos instiga a considerar modos “menores” para a educação, capazes de promover um deslocamento nas formas de ser e fazer majoritárias. Para o autor, “[...] para aquém e para além de uma educação maior, aquela das políticas, dos ministérios e secretarias, dos gabinetes, há também uma educação menor, da sala de aula, do cotidiano de professores e alunos” (GALLO, 2002, p. 169). É essa educação menor que nos permite traçar caminhos singulares, porquanto a:

Construção de possibilidades de libertação é uma luta que deve dar-se em diversos ângulos e em diversos níveis. Ela deve dar-se no ângulo do cotidiano da sala de aula, ela deve dar-se no ângulo que o professor trava com seus colegas no ambiente de trabalho, ela deve dar-se com as relações que o professor trava no seu ambiente social, mais amplo, mais geral, e ela deve dar-se também nas relações que o professor trava na luta sindical (GALLO, 2002, p. 171).

Embora suponhamos que tais movimentos tenham mais a ver com as intensidades do que com os percursos, perspectivar a criação de currículos permeada pelas noções de educação-menor, de singularidade, de acontecimento, conforme anuncia Gallo (2002; 2007), permite desarranjar a fixação de modelos prévios, fazendo com que os sujeitos da educação já não se acomodem com o estado fixo das coisas. Entendemos que, ao valermo-nos desses rearranjos conceituais, algumas linhas são traçadas entre o campo da filosofia e da educação e fazem cintilar esse estado capaz de desfigurar as formas a priori, que avalizam o pensamento-curricular identitário em favor de um campo de imanência.

Na busca de contribuir para a discussão acerca do currículo, problematizando seu modelo mais habitual de referenciais prescritivos e homogeneizantes no campo da educação, isto é, daqueles que submetem os processos de experimentação de uma vida a uma ideia geral e abstrata de vida, buscando enquadrar a experiência dos sujeitos em verdades preexistentes, propomos a necessidade de urdir currículos outros calcados por uma perspectiva ética em favor da vida, pela recusa às homogeneizações e metanarrativas, uma vez que assumimos a ideia de um currículo-inflexivo, que se:

[...] não sabe direito como alguém aprende; só sabe que não é por assimilação de conteúdos, nem por faculdades inatas, ideias a priori, elementos transcendentes. Ao juntar o pensar, o aprender e o viver, procura tornar o pensamento possível outra vez, pois acredita que, assim, pode retirar o pensar de sua imobilidade e de sua separação da vida. Encontrando-se em relação com forças e velocidades infinitas do caos, é um Currículo-que-aprende-ao-mesmo-tempo-em-que-ensina, [...] (CORAZZA, 2012, p. 11).

Esse movimento de inflexão-criadora por entre currículos, avesso à ideia linear, do cumprimento de passos predeterminados rumo a uma forma preestabelecida, requer igualmente a valorização do percurso e do lugar onde se está, pois, antes das formas, o que temos é o informe, o pensamento-errante a vagar em velocidades e lentidões, a experienciar um território, em que “vai cartografando regiões ao passo que as produz. Mas, muitas vezes, colocamos as formas como primeiras, e aí corremos o risco de entendê-las como verdades petrificadas, impossíveis de quebrar, o que acaba por nos petrificar em camadas duras também (OLIVEIRA et al., 2018, p. 98).

Apostamos, assim, em nossas pesquisas e em nossas salas de aula, em resistências, em ocupações singulares, menores e provisórias dos espaços hegemônicos dos quais também fazemos parte, por tão comuns que se mostram nas instituições educacionais, sejam escolas, sejam universidades. A opção pelas filosofias da diferença como campo teórico consente esse deslocamento errático por entre os currículos. Compreendemos a partir de Gallo (2007, p. 173) que uma educação menor é “um ato de singularização”, uma vez que “[...] está no âmbito da micropolítica, na sala de aula, expressa nas ações cotidianas de cada um”. O currículo contagiado por uma “educação menor” afasta-se dos modelos prévios, das respostas decoradas, ‘do que o autor quis dizer’, dando lugar para o que o estudante efetivamente compreendeu, ou ainda: o que aquele livro ou texto, ou conteúdo qualquer, movimentou nele, e o que ainda pode movimentar.

Larrosa (2011, p. 11) faz coro ao anunciado, instigando a pensar nossas experiências:

Quando eu leio Kafka (ou qualquer outro), o importante, desde o ponto de vista da experiência, não é nem o que Kafka pensa, nem o que eu possa pensar sobre Kafka, mas o modo como, em relação com os pensamentos de Kafka, posso formar ou transformar meus próprios pensamentos. O importante, desde o ponto de vista da experiência, é como a leitura de Kafka (ou de qualquer outro) pode ajudar-me a pensar o que ainda não sei pensar, ou o que ainda não posso pensar, ou o que ainda não quero pensar. O importante, desde o ponto de vista da experiência, é que a leitura de Kafka (ou de qualquer outro) pode ajudar-me a formar ou a transformar meu próprio pensamento, a pensar por mim mesmo, em primeira pessoa, com minhas próprias ideias.

Este ethos problematizador dos modos de ser e fazer aponta para a produção de currículos não subservientes ou assujeitados. Vejamos que a crítica produzida por Deleuze (2006) a toda e qualquer “imagem do pensamento” oferece, nesse ínterim, fôlego, para, quem sabe, “fazer fugir” o pensamento da ideia de transmissão e interpretação ‘sob o olhar do mestre’, daquele que seria capaz de responder a todas as perguntas. Afinal, ‘que sujeito tão ignorante seria este?’7.

Esse fazer fugir não é escapar, esconder-se, mas deixar fluir - é encontrar meios, brechas ou mesmo criá-las; é dar para a escuta e para a observação outras possibilidades de composições curriculares, reconhecendo os novos disparadores que se apresentam; os temas que insistem um borbulhar e transitar por entre as salas das casas ou salas de aulas, em movimentos não mais hierárquicos, mas transversais, que correm por qualquer direção.

Tal ensejo passa por deslocar alguns caminhos já consagrados, que levam, muito comumente, as formulações curriculares aos preconceitos, à subordinação, à imobilidade e à exclusão. É muitas vezes ter que se deslocar de si mesmo como meio de “[...] reapropriar-se da força vital em sua potência criadora” (ROLNIK, 2018, p. 132). Em todo caso, acreditamos que o desejo de inventar nos currículos “[...] outros mundos mais interessantes, mais desejantes, para dar vida e asas aos nossos pensamentos” (OLIVEIRA, 2015, p. 2), é um caminho necessário para a educação, e esse primeiro passo já nos parece muito.

4 NÃO ME VENHAM COM CONCLUSÕES! [...]8

Tecer uma crítica ao projeto das implicações universais, de totalidade e racionalidade formulado por Kant e aprimorado por Hegel (aliás, ninguém melhor do que este último soube sintetizar o ideal de racionalidade e totalidade ao aferir ‘a verdade’ e ‘o todo’) passa por jogar luz sobre o que perigosamente aí se esconde: a forma estável de uma suposta unidade, contada a partir do modelo majoritário, guarda uma enorme dívida com a humanidade, uma vez que o modelo universal, amplamente difundido e aceito, por sua pretensão de unificação suscita direta ou indiretamente a exclusão das diferenças.

Nesse cenário, os desdobramentos da verdade para as ciências humanas e, consequentemente, para a educação têm arraigada a seu feitio a justificativa para a existência de certa identidade que se pretende afirmar. Por isso mesmo, jogam ao mar tudo o que “[...] se opõe à estabilidade luminosa e adulta do espírito” (FOUCAULT, 1972, p. 18).

Todavia, não é nessa lógica, tampouco nesse pensamento, que gostaríamos de apostar, visto que um pensador ou uma pensadora “[...] não pode usar o pensamento para justificar a opressão, a submissão, e a escola não pode ser indiferente a esse uso” (KOHAN, 2015, p. 77). No plano de contingências e incertezas em que a vida opera, faz-se imprescindível a capacidade de movimento, de mudança e, nesse contexto, a despeito de algumas proposições políticas, não é suficiente uma educação para dominar habilidades, técnicas e ferramentas.

Assim, a importância deste estudo está em jogar luz a esse tema que se faz imprescindível. O currículo que anunciamos e experimentamos como educadoras(es) em nossas salas de aula e nos espaços educacionais que ocupamos insurge como um exercício em vez de ‘bússola’, ao problematizarmos os modos hegemônicos na educação ou, ainda, ao inscrevermos currículos menores, como uma micropolítica educacional, em que a dimensão ética assumida está no compromisso de pensar uma educação transgressora do status quo.

De modo geral, esta escrita insinuou um meio de estar à espreita, ao percorrer na educação as linhas de um currículo por deambulações. Apresentamos como resultados do estudo a proposta de um currículo como uma experimentação ética, um convite, que se justifica pelo desejo de produzir alianças com a vida, ao perspectivar uma educação que não se limita a uma função instrumental e utilitarista. Uma educação que não se presta, portanto, a ser lugar de treinamento de habilidades, mas que engendra alegria e altivez nos processos formativos em meio à vida. Anunciamos, assim, nos pensamentos lançados e nas linhas desta escrita uma educação “porvir”.

REFERÊNCIAS

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NOTAS:

1 As correntes teóricas que conhecemos sob os rótulos de pós-estruturalismo e de pós-modernismo influenciaram profundamente, como sabemos, as teorizações e as pesquisas em diversos campos das ciências sociais e humanas nos últimos anos; [...]. Os efeitos combinados dessas correntes expressam-se naquilo que se convencionou chamar de “teorias pós-críticas em educação” (PARAÍSO, 2004, p. 284).

2 Uma bela alcunha pela qual se mencionam os acontecimentos de ‘maio de 68’, a grande recusa nomeia o movimento francês cujos ideais mobilizadores, oriundos de distintas vertentes, espalharam-se por diversas partes do mundo em diferentes conjunturas sociais, políticas e culturais. Os alicerces das manifestações ocorridas nesse período, no campo prático e discursivo, não podem ser enquadrados por fragmentados que são; dividem-se em uma multiplicidade de sujeitos e categorias. Em suma, em maio de 68, ouvia-se a voz das minorias que recusavam as totalizações e lutavam por modos de vida mais livres.

3 É importante apresentar o que se entende aqui por teorias tradicionais, não estando necessariamente ligadas a um grupo de autores(as), mas diz respeito àquelas teorias da educação constituída por certezas, cujos conhecimentos estão assentados em perfeita ordem. Refere-se, assim, mais aos modos e menos aos meios.

4 A denominação liga-se por analogia ao mito de Ariadne, princesa da mitologia grega, também chamada ‘senhora dos labirintos’, que entrega um fio de lã para Teseu, permitindo que ele não se perca e, após cumprida sua missão no labirinto, possa retornar em segurança ao ponto inicial da jornada.

5 “[...] as linhas não param de interferir, de reagir uma sobre a outra, de introduzir cada uma na outra uma corrente de maleabilidade ou mesmo um ponto de rigidez” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 75). As linhas duras (ou molares), as linhas moleculares e as linhas de fuga coexistem.

6 “Utopia pedagógica”, a partir de Schérer (2009, p. 26), tem relação com “[...] a ideia de uma reforma social pela educação, a ideia de que seria possível formar um homem capaz de construir uma sociedade mais bem instruída ou, capaz de construir uma sociedade diferente”. Para o autor, trata-se de um duplo princípio que orienta o círculo vicioso do poder.

7 Essa questão tem por inspiração uma escrita de Voltaire (1983), ao dizer que alguém deve ser muito ignorante, porque responde a todas as perguntas.

8 O título “Não me venham com conclusões” é fragmento do poema “Lisbon Revisited” (Lisboa Revisitada) (1923), de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa.

Recebido: 30 de Junho de 2021; Aceito: 14 de Fevereiro de 2022

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