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Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.20 no.4 São Paulo Oct./Dec 2022  Epub Jan 30, 2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2022v20i4p1826-1847 

Artigos

Algoritmos e Fake News:1 a importância da formação crítica de graduandos de TI

Algorithms and Fake News:the importance of critical education of IT undergraduates

Algoritmos y Fake News:la importancia de la formación crítica de los graduados de TI

Roberto Cardoso Freire da SILVAi 
http://orcid.org/0000-0001-7481-1568

Jaciara de Sá CARVALHOii 
http://orcid.org/0000-0003-1497-3930

i Doutorando e Mestre em Educação pela Universidade Estácio de Sá (UNESA/RJ). Especialista em Gestão Estratégica (UCAM-RJ) e em Didática do Ensino Superior (FEAP). Bolsista pesquisador no Instituto Nacional de Tecnologia (INT). Integrante do Grupo de Pesquisa Conexões: Estudos e Pesquisas em Educação e Tecnologia (CEPETec). E-mail: rcardosofreire@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-7481-1568.

ii Doutora e mestre em Educação pela USP. Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação da UNESA. Especialista em Gestão de Processos de Comunicação/ Educomunicação (ECA/USP). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Conexões: Estudos e Pesquisas em Educação e Tecnologia (CEPETec/CNPq). E-mail: jsacarvalho@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-1497-3930.


Resumo

Tecnologias digitais conformam sociedades e contribuem com a constituição de compreensões de realidades e relações pelos sujeitos. De forma quase invisível, promovem valores e visões de mundo daqueles que as projetam, desde proprietários de grandes corporações a profissionais iniciantes de TI. A partir deste contexto, este trabalho apresenta uma pesquisa com graduandos de TI, tendo como recorte o fenômeno Fake News e a ampliação do uso de algoritmos computacionais em diversas atividades humanas. O referencial adotado reúne autores da área de tecnologia e de uma perspectiva problematizadora de educação. Os achados de pesquisa sugerem que a formação específica desses futuros profissionais não implica, necessariamente, uma visão complexa das consequências das tecnologias para as sociedades, aproximando-as do senso comum.

Palavras-chave: tecnologias digitais; sistemas de informação; desinformação; ensino superior; educação problematizadora

Abstract

Digital technologies shape societies and contribute to the constitution of understandings about the realities and relationships by individuals. In an almost invisible way, they promote the values and worldviews of those who design them, from large corporations’ owners to young IT professionals. From this context, this work presents a survey involving IT undergraduates about the Fake News phenomenon and the expansion of the use of computational algorithms in several human activities. The theoretical framework adopted brings authors from the technology area and from a critical perspective of education. The research findings suggest that the specific education of these future professionals does not necessarily imply a complex view of the consequences of technologies for societies, bringing them closer to common sense.

Keywords: digital technologies; information systems; misinformation; undergraduate education; emancipatory education

Resumen

Las tecnologías digitales dan forma a las sociedades y contribuyen a que los sujetos comprendan las realidades y las relaciones. De forma casi invisible, promueven valores y cosmovisiones de quienes los diseñan, desde propietarios de grandes corporaciones hasta nuevos profesionales de TI. A partir de este contexto, este trabajo presenta una investigación con estudiantes de TI, centrada en el fenómeno de las noticias falsas y la expansión del uso de algoritmos computacionales en diversas actividades humanas. El marco adoptado reúne a autores del área de la tecnología y desde una perspectiva problemática de la educación. Los hallazgos de la investigación sugieren que la formación específica de estos futuros profesionales no implica, necessariamente, una visión compleja de las consecuencias de las tecnologias para las sociedades, acercándolas al sentido común.

Palabras clave: tecnologías digitales; sistemas de información; desinformación; enseñanza superior; educación emancipadora

1 INTRODUÇÃO

A popularização da Internet e as inovações no campo da computação dos últimos anos, mais especificamente no que se relaciona ao Big Data e à Inteligência Artificial (IA), potencializaram a capacidade de armazenamento e processamento de dados, promovendo inúmeros benefícios, mas também desafios como ameaça às liberdades individuais e potenciais riscos às democracias.

No compasso de uma nova fase do capitalismo, o de vigilância (ZUBOFF, 2021), o número de brasileiros com Internet não para de crescer. O acesso exclusivamente por dispositivos móveis já superou o número de acessos combinados com o computador. Atualmente, o uso de mídias sociais e o envio de mensagens está no topo das principais atividades realizadas. A preferência pelos celulares tem sido associada à baixa disponibilidade de recursos pessoais para a aquisição de mais de um equipamento (CGI.br - TIC Domicílios, 2021).

Assim, intensifica-se a exposição da humanidade a um fluxo intenso de informações mediadas por algoritmos computacionais. Algoritmos são procedimentos matemáticos que definem, por exemplo, como aplicativos, que são essencialmente “máquinas algorítmicas” (GILLESPIE, 2018, p. 97), devem funcionar. Eles vêm direcionando nossas escolhas, interações, bem como o acesso a informações por meio de um controle de possibilidades. Com os avanços no campo da computação, os algoritmos têm potencial de se reprogramarem, reescrevendo seu próprio código, alterando o seu funcionamento sem que haja intervenção humana (SILVEIRA, 2017).

A ampliação do acesso à Internet estreitou fronteiras, promovendo uma espécie de nova modernidade, alterando a dinâmica das relações (BAUMAN, 2012, 2013). Entre os atores dessa dinâmica estão os profissionais de Tecnologia da Informação (TI). Eles projetam e aperfeiçoam algoritmos a partir de suas visões de mundo, dos projetistas e sob a influência dos ideais neoliberais de empresas do Vale do Silício. Afinal, sabe-se há muito tempo que tecnologias não são neutras (FEENBERG, 2015) e, mesmo as educacionais, promovem ideologias e agendas de grupos com poder (SELWYN, 2014).

As discussões relacionadas às tecnologias digitais no campo da Educação, em geral, ora são posicionadas como potenciais soluções para problemas sociais diversos ora como promotoras de desigualdades (SELWYN, 2017b). Menos comuns são os trabalhos que discutem a formação recebida pelos profissionais que projetam, desenvolvem e aperfeiçoam essas tecnologias. Este artigo parte do pressuposto de que seria urgente a ampliação de discussões sobre a formação crítica dos profissionais de Tecnologia da Informação, considerando a crescente regulação da vida humana pelos algoritmos computacionais (O’NEIL, 2020).

É conhecido o direcionamento da formação desses profissionais para o mercado. Além de cursos específicos promovidos por empresas, as graduações, pós e outras modalidades de educação na área de TI têm o objetivo de preparar os estudantes para o que há de mais atual em termos de tecnologia e às necessidades de empregadores. Esses conhecimentos também devem resultar no desenvolvimento de aplicações que precisam se preocupar com questões éticas, de privacidade, entre outras. Mas nem sempre é assim... A empresa de recrutamento online Hirevue, por exemplo, enfrentou acusações de restringir o acesso de pessoas negras às vagas de trabalho (BARNES, 2019; HIREVUE, 2019).

Um outro problema envolvendo o uso de tecnologias digitais são as Fake News. No Brasil, o fenômeno ganhou notoriedade a partir das eleições presidenciais de 2018, período em que, segundo estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas, foram identificados diferentes tipos de “robôs” programados para interagir por meio de perfis falsos em mídias sociais, propagando desinformações e interferindo nas discussões que podem levar a determinados resultados (RUEDIGER, 2018).

Inúmeros são os benefícios relacionados às tecnologias de dados para as sociedades contemporâneas. No entanto, os exemplos ilustram como estas mesmas tecnologias também impõem desafios em função de suas potencialidades e dos interesses que as cercam. Fake News, como um fenômeno impulsionado por algoritmos e robôs, foi o recorte adotado em uma pesquisa (SILVA, 2020), cujo objetivo geral foi discutir a formação vivenciada por um grupo de graduandos de Análise e Desenvolvimento de Sistemas e suas visões sobre as implicações de tecnologias digitais, produzidas por este tipo de profissional, nas sociedades contemporâneas, marcadas pela expansão de algoritmos computacionais. Este artigo apresenta parte dos achados da investigação, começando por uma exposição sobre estudos desenvolvidos para compreender o fenômeno Fake News.

2 FAKE NEWS e ALGORITMOS

A complexidade do fenômeno Fake News não é algo que possa ser caracterizado por meio de sua simples tradução do inglês, como notícias falsas, ainda que estes conteúdos representem sua face mais visível. Segundo Wardle (2017, tradução nossa), a expressão "notícia falsa" não consegue abranger a complexidade e dimensão destes diferentes tipos de conteúdos, estrategicamente construídos e disseminados, com propósitos manipulativos, que promovem desinformação. Um “ecossistema” de desinformação que, para ser entendido, depende da compreensão de três elementos: “1) Os diferentes tipos de conteúdo que estão sendo criados e compartilhados”; “2) As motivações daqueles que criam esses conteúdos”; “3) As formas como esses conteúdos estão sendo disseminados”.

Estaríamos vivenciando uma “guerra da informação” que passa despercebida pela maioria das pessoas. Possibilitada a partir de um fenômeno que, diferente das notícias falsas, disseminadas a partir de “tecnologias de transmissão ‘um-para-muitos’ [...], trafegam pelas redes sociais como ‘átomos’ de propaganda, direcionados para grupos de usuários, que têm maior probabilidade de aceitar e compartilhar uma mensagem em particular” (WARDLE, 2017, tradução nossa).

A manipulação das massas, por meio da comunicação, não seria nenhuma novidade. Castells (2019, p. 29) nos lembra que as relações de poder são amplamente constituídas por meio de processos de comunicação, sendo a “moldagem de mentalidades [uma] forma mais decisiva e duradoura de dominação do que a subordinação de grupos por intimidação ou violência”. Grosso modo, dessa maneira, os “dominados”, seriam conduzidos e se tornariam disseminadores dos ideais de seus dominadores em suas redes de relacionamento.

Diferente da propaganda tradicional e de seus mecanismos de controle e persuasão, o que ocorre hoje em plataformas digitais é mais sutil, revestido de uma falsa neutralidade e liberdade de escolha. Um processo manipulativo de modulação, por meio da disseminação de informações estrategicamente construídas, envolvendo:

[...] um conjunto de procedimentos realizados nas plataformas digitais. Para modular opiniões, gostos e incentivar tendências é preciso conhecer muito bem aquelas pessoas que serão moduladas. Mas, não é possível compreender as técnicas de modulação com os simplismos das velhas teorias de manipulação [...] (SOUZA; AVELINO; SILVEIRA, 2018, p. 10).

No contexto das plataformas digitais, Cassino (2018, p. 16) observa dois subconjuntos inerentes a este modelo manipulativo: o primeiro referente à “manipulação midiática”, na escolha e direcionamento das informações que devem ser veiculadas; o segundo relacionado à “modulação algorítmica” que, com o uso de técnicas de IA, procura obter reações específicas dos diferentes sujeitos nas mídias sociais.

É importante destacar que, além dos recursos tecnológicos que contribuíram com o fenômeno Fake News, como a IA e o Big Data, outros dois fatores nos parecem figurar como fundamentais em sua concepção. O primeiro, relacionado ao aspecto de neutralidade, comumente associado às tecnologias; o segundo, referente ao modelo de negócio multibilionário, que vem sendo conduzido pelas grandes empresas de tecnologia, do qual trataremos mais adiante.

No que tange à pseudoneutralidade associada às tecnologias, observa-se que esta tende a influenciar o sentimento de liberdade e confiança que atribuímos às tecnologias, os mesmos ideais que, segundo Castells (2019), teriam permeado a própria evolução da Internet. Segundo Feenberg (2015, p. 01), tanto a racionalidade quanto a neutralidade são aspectos que vêm sendo associados às ciências e tecnologias desde o Iluminismo europeu no século XVIII. Porém, explica o autor, “a tecnologia não está preocupada com a verdade, mas sim com a utilidade. Onde a ciência busca o saber, a tecnologia busca o controle. Não obstante, há algo mais nessa história do que esse simples contraste". Os princípios de racionalidade e neutralidade, perpetuados no imaginário tecnológico das pessoas, diferente do que ocorre com a ciência, estariam intimamente e intencionalmente ligados a aspectos de poder, mascarados e sob o controle de grupos dominantes.

Esses mesmos aspectos, discutidos por Feenberg (2015), são observados por Gillespie (2018) em relação às tecnologias digitais e seus algoritmos. Para o autor, se observados apenas de seu ponto de vista técnico e funcional, os algoritmos podem ser vistos como um conjunto de instruções neutras, programadas de modo imparcial com base na lógica matemática, despidas de valores de natureza pessoal. São sequências de código criadas por programadores, a partir de diferentes linguagens de programação, que definem passo a passo o funcionamento e a estrutura dos artefatos que utilizamos, o que também inclui a dinâmica de funcionamento e o fluxo de informações que trafegam nas plataformas de mídias sociais.

Gillespie (2018) defende que os algoritmos não devem ser observados como algo técnico ou abstrato, mas como parâmetros políticos impostos que, incorporados aos sistemas informacionais, mediam nossas interações e as informações que recebemos. Podem estes algoritmos representar, nesse sentido, riscos às nossas escolhas, liberdades e à própria democracia. Os artefatos digitais não deveriam, deste modo, ser orientados sem uma profunda "[...] análise sociológica que [possa] revelar as escolhas humanas e institucionais que estão por trás de suas elaborações" (GILLESPIE, 2018, p. 96).

Com o intuito de tornar esta não neutralidade tecnológica ainda mais evidente, Gillespie (2018) explicita seis dimensões políticas dos algoritmos:

  • Padrões de inclusão: referente às escolhas que determinam as variáveis que devem ser consideradas na concepção de artefatos digitais, determinando o que será considerado, ignorado ou excluído;

  • Ciclos de antecipação: projeções ou previsões dos desenvolvedores, os quais definem os possíveis caminhos e ações que estarão disponíveis aos usuários, incluindo possíveis interações que podem ser realizadas;

  • Avaliação de relevância: decisões acerca do que deve ser considerado como relevante e o que deve ser ocultado;

  • A promessa da objetividade algorítmica: a própria reafirmação dos algoritmos como possíveis soluções neutras e imparciais, presentes nos discursos;

  • Entrelaçamento com a prática: a forma como as pessoas reconfiguram, seus comportamentos e formas de interação nas mídias sociais, se adequando ao modo de funcionamento dos algoritmos, como no uso hashtags específicas em postagens, objetivando maior visibilidade;

  • A produção de públicos calculados: a segmentação algorítmica, definindo públicos específicos para os conteúdos veiculados, dando origem a bolhas informacionais, que podem ser utilizadas para atender a propósitos diversos.

Gillespie (2018), nesse sentido, propõe uma abordagem problematizadora da dimensão humana das tecnologias, geralmente negligenciada ou dissociada das várias etapas que compõem o desenvolvimento tecnológico. O desafio é tratar as tecnologias de forma transdisciplinar, incluindo contribuições de diferentes campos, como das Ciências Sociais e da Filosofia. Esta seria uma forma de ampliar debates críticos e, assim, tentar prever riscos e impactos às sociedades.

Um outro fator que contribuiria diretamente com Fake News, enquanto fenômeno, está relacionado aos ambientes e às condições manipulativas favoráveis, criadas a partir do modelo de negócio adotado pelas grandes corporações do Vale do Silício. Um gigantesco mercado de dados, alimentados a partir de nossas interações nas inúmeras plataformas que utilizamos, em especial nas mídias sociais, expandindo as vitrines de anúncio, que fazem dessas empresas as mais ricas do mundo (MOROZOV, 2018; SILVEIRA, 2018).

A Alphabet, por exemplo, holding responsável pela Google, 4ª empresa de capital aberto a atingir "US$ 1 trilhão em valor de mercado nos Estados Unidos" (ÉPOCA, 2020), expande seu poder de atuação por mais de noventa diferentes tipos de aplicações ofertados em diferentes categorias. Plataformas que representam diferentes fontes para a coleta de dados de seus usuários, envolvendo: geolocalização; drones; mídias sociais; serviços de Internet; veículos autônomos; sistemas operacionais para computadores e smartphones; dispositivos de automação; assim como serviços de anúncios segmentados para negócios em redes sociais. Com resultados que podem ser monitorados pela plataforma Google Analytics, disponibilizada pela empresa para seus parceiros de negócios (GOOGLE, 2020; ÉPOCA, 2020; PRETA, 2020).

Em relação ao poder dessas empresas, se considerarmos especificamente as mídias sociais que utilizamos, seu potencial de alcance e influência pode ser observado no relatório Global Digital Yearbook. Segundo aponta o documento, cinco das plataformas de redes sociais mais utilizadas representam 3,8 bilhões dos usuários de mídias sociais, do universo das 4,5 bilhões de pessoas que utilizam a Internet. Um mercado sob o controle de apenas duas empresas, o Facebook e a Alphabet.

Em relação ao uso destas plataformas, os seguintes percentuais são observados: Youtube (95%), Facebook (90%), WhatsApp (89%), Instagram (71%) e Twitter (43%) (GLOBAL DIGITAL YEARBOOK, 2020). Dados que nos revelam o potencial de influência destas empresas que, através de seus algoritmos, controlam o fluxo dinâmico de informações que recebemos diariamente. Destaca-se ainda que, três destas cinco plataformas, as quais detêm o maior número de usuários (Facebook, WhatsApp e Instagram), pertencem à mesma empresa Facebook (2020). Ela vem respondendo a processos jurídicos pelo vazamento de dados e informações de 87 milhões de perfis de norte-americanos, que teriam sido usados para manipular as eleições presidenciais dos EUA em 2016, por meio da empresa Cambridge Analytics (O GLOBO, 2018).

Conforme discutido até aqui, diversos são os fatores que teriam proporcionado as condições favoráveis para o aparecimento das chamadas Fake News, interpretadas pelo senso comum apenas como notícias falsas. No entanto, a complexidade que envolve seu “ecossistema” de desinformação (WARDLE, 2017), no uso manipulativo das condições que propiciaram sua existência, conforme discutido, nos permitiria caracterizá-la não como notícias falsas, mas como um "Fenômeno", enquanto "fato ou acontecimento [...] surpreendente" (HOUAISS, 2009), até pouco tempo desconhecido, enquanto problemática a ser estudada e enfrentada, não identificado em teses e dissertações na área da educação até 2018 (SILVA, 2020).

Desse modo, compreendemos que Fake News pode ser caracterizado como um fenômeno propiciado a partir dos avanços tecnológicos, especialmente no que se relaciona ao Big Data 2 e à Inteligência Artificial3. A criação e disseminação de diferentes tipos de conteúdos falsos é apenas a face mais visível, a partir de propósitos manipulativos que utilizam da lógica de funcionamento de algoritmos computacionais, como as bolhas informacionais por eles gerados.

3 APRESENTAÇÃO DA PESQUISA

O fenômeno Fake News foi o recorte adotado para uma discussão sobre a formação de graduandos de TI, entendida como processo de ensino-aprendizagem que não poderia dissociar conteúdos específicos da problematização da realidade e da ação dos sujeitos no mundo. A perspectiva freiriana fundamenta a compreensão de que a finalidade da educação deva ser promover graus maiores de criticidade, comprometida com a ética, a democracia e a justiça social (FREIRE, 2005).

A pesquisa (SILVA, 2020) com jovens graduandos de TI permitiu ampliar o conhecimento sobre o que pensam esses futuros profissionais acerca de sua ação no mundo, além do processo educativo que vivenciam, tendo como foco a temática algoritmos e Fake News. Para isso, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 16 graduandos do Curso de Análise e Desenvolvimento de Sistemas Informatizados da Faculdade de Educação Tecnológica do Estado do Rio de Janeiro (FAETERJ-Rio) no início de 2020. O diálogo com os estudantes foi realizado individualmente em uma sala reservada na FAETERJ-Rio, após aprovação do projeto em Comitê de Ética em Pesquisa4 e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos participantes.

As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra para análise de conteúdo temática (BARDIN, 1977), feita manualmente pelo pesquisador. O material foi organizado agrupando-se as repostas dos participantes para cada questão do roteiro de entrevista. Após diversas leituras de cada agrupamento de respostas, o pesquisador pôde identificar achados que atendiam aos objetivos específicos e ao geral da investigação. Certamente, os achados resultam, além de temáticas agrupadas nas respostas, de pontos nevrálgicos destacados dos referenciais adotados, como a educação problematizadora em Freire (2005) e especificidades tratadas por autores da área de tecnologia (O´NEIL, 2020; GILLESPIE, 2018; SILVEIRA, 2018; FEENBERG, 2015.

Durante a análise também se considerou que, no Plano Político Pedagógico (PPP) da FAETERJ-Rio (2014, p. 31-32), consta que a instituição visa a formação de profissionais qualificados “para inserção ativa no mercado de trabalho de tecnologia da informação [capazes] de prover soluções nesta área”. Das atividades relacionadas às práticas e formação, são destacadas no PPP: “análise, projeto, desenvolvimento, gerenciamento e implantação de sistemas de informação computacionais corporativos, sistemas e portais Web, aplicações em dispositivos móveis”. Participaram graduandos do 1º ao 5º período, sendo 12 do sexo masculino e quatro do feminino, o que não foge à regra da área, predominantemente ocupada por homens. A maioria dos entrevistados encontrava-se no início do curso (2º e 3º períodos), com predominância da faixa etária entre os mais jovens, com idades entre 18 e 30 anos. Apenas dois dos participantes tinham mais de 30 anos.

4 ACHADOS DE PESQUISA E DISCUSSÃO

Inicialmente, buscou-se explorar percepções dos graduandos acerca do fenômeno Fake News, incluindo eventuais experiências pessoais vivenciadas. Ao longo da entrevista, buscamos identificar o reconhecimento, pelos entrevistados, de padrões e características específicas relacionadas a tais conteúdos, bem como sobre a formação que estavam vivenciando no curso de Análise e Desenvolvimento de Sistemas Informatizados. O diálogo começou pelas razões da escolha do curso, chegando-se a três principais fatores: a) Experiência anterior na área (mencionada por 12 dos 16 graduandos); b) Influência de familiares que atuavam com TI; c) Oportunidades no mercado trabalho.

As análises das respostas ao roteiro de entrevista, em diálogo com os referenciais da literatura, promoveram a identificação dos seguintes achados:

4.1 Disciplinas para a criação de algoritmos são as mais valorizadas e as “mais difíceis”

Em relação à proposta do curso e às disciplinas ofertadas ao longo da graduação, todos os entrevistados afirmaram estar de acordo com a proposta e conteúdos ofertados. Mesmo aqueles que disseram não possuir interesse ou ter dificuldades em disciplinas específicas (A02; A03; A04; A06; A09; A15) afirmaram considerar tais conteúdos válidos, adequados às necessidades demandadas pelo mercado de trabalho de TI. Um ponto de destaque, nesse sentido, é a admiração e o reconhecimento dos graduandos em relação ao corpo docente, os quais foram exaltados pelos entrevistados como profissionais atuantes no mercado de TI, e que em função disso, trariam para a sala de aula a "experiência de como é que funcionam as coisas [...]" (A03).

As disciplinas apontadas como as de maior dificuldade apresentam conteúdos voltados ao desenvolvimento do raciocínio lógico-matemático, com ênfase no desenvolvimento e estudo de algoritmos computacionais. Pode-se apreender que as aulas são dedicadas ao ensino da “matemática pura” para que os alunos consigam produzir algoritmos cada vez mais complexos. No entanto, a análise sugere que não há espaço para a problematização dos usos que vêm sendo feitos desses algoritmos, ocorrendo "mais uma abordagem de resolução de problemas." (A10).

Alerta O´Neil (2020) que orientado sob a lógica matemática, o desenvolvimento de algoritmos computacionais acaba sendo dissociado de uma prática crítica. Entre outras coisas, a pesquisadora aponta que esse hiato pode contribuir para excluir minorias e perpetuar preconceitos nas sociedades. A lógica matemática não crítica potencializaria e perpetuaria problemas sociais existentes, sob um falso aspecto de neutralidade.

4.2 Haveria pouca problematização durante o processo de formação

O roteiro apresentava questões referentes à abertura para o diálogo crítico durante as aulas, seja sobre questões sociais, também relacionadas às suas práticas, seja sobre conteúdos ensinados pelos docentes. Perguntamos, além disso, se se sentiam confortáveis em levar questões da realidade para diálogo durante as aulas. O objetivo principal, nesse caso, foi buscar identificar se alguns professores desses graduandos de TI atuavam a partir de uma perspectiva problematizadora (FREIRE, 2002, 2005).

Apenas seis (A01; A02; A06; A10; A13; A16) dos 16 entrevistados disseram haver algum tipo de problematização durante as aulas, relacionando a conteúdos sobre história da tecnologia, sobretudo da computação. Apenas A01 mencionou um problema social atual que era um debate sobre Fake News que teria ocorrido em uma das aulas, fazendo associação com o desenvolvimento de tecnologias, porém, sem qualquer conexão com as práticas e conteúdos aprendidos no curso.

Apreendemos que o fenômeno Fake News foi tomado pelos sujeitos da pesquisa como algo que “surge” graças às tecnologias atuais. A análise aponta uma visão “neutra” (FEENBERG, 2015) da tecnologia diante do fenômeno, até mesmo por estes sujeitos familiarizados com a produção e desenvolvimento de artefatos digitais.

O diálogo a partir das práticas é um dos fatores essenciais discutidos por Kellner, Kahn (2015) e Freire (2005) para a formação crítica. Para os autores, ao promover o questionamento de ações, valores e ideologias, a relação entre conteúdo ensinado e práticas sociais, colabora-se para que os educandos se tornem mais conscientes de seus papéis sociais, reconhecendo em si o potencial transformador de suas realidades. Mas, durante as entrevistas, grande parte dos entrevistados apontou não se sentir confortável em participar dos debates, evitando expor opiniões durante as aulas, por acreditar “[...] que as pessoas vão ter opiniões contrárias e gerar uma confusão por causa disso [riso contido]” (A01). Quando perguntados se sentiam liberdade para iniciar discussões sobre qualquer tema durante as aulas, quatro alunos disseram que sim, cinco responderam que apenas em disciplinas específicas (não técnicas) e sete consideraram não haver qualquer tipo de abertura nesse sentido. Mas, mesmo para os quatro entrevistados que se sentiam à vontade para falar, a análise apontou que isso somente acontecia em disciplinas específicas, de forma eventual, a partir de iniciativa isolada de alguns professores.

Durante a análise, identificamos que, quando questões sociais eram discutidas nas aulas, tecnologias digitais eram tratadas a partir de um viés otimista, o que nos sugere uma adesão ao discurso hegemônico da área (SELWYN, 2017a; MOROZOV, 2018). Nesse sentido, as tecnologias são percebidas como soluções para demandas diversas, promotoras do bem-estar social, não estando sujeitas a qualquer influência relacionada a questões de poder, exploração e dominação, como apontam outras pesquisas realizadas na literatura da área de educação e tecnologia (CARVALHO; ROSADO; FERREIRA, 2019), mesmo a partir da obra de Freire (CARVALHO; MARQUES; PELLON, 2021).

No que se refere ao papel do desenvolvedor, observou-se um enaltecimento destes profissionais, por parte dos entrevistados. A profissão de desenvolvedor é associada à promoção de melhorias, na forma de soluções tecnológicas, para os mais variados setores da sociedade. Os graduandos que consideraram anteriormente haver abordagens problematizadoras não demonstraram uma perspectiva otimista, apaixonada, em relação à potenciais contribuições que tecnologias digitais poderiam trazer à sociedade. Para os entrevistados, a “problematização” de suas práticas estaria relacionada a prover melhores soluções, orientadas sob critérios de eficiência e facilidade de uso - favorecendo a maior adoção dos artefatos tecnológicos produzidos. Uma perspectiva alinhada com ideais neoliberais e o discurso hegemônico sobre as tecnologias (SELWYN, 2017a; FEENBERG, 2015).

4.3 O desenvolvimento e aperfeiçoamento de artefatos são orientados por dados dos usuários, mas sem considerações sobre sua captura

Para que pudéssemos compreender os caminhos adotados por estes futuros profissionais na concepção de artefatos, solicitamos a cada um dos entrevistados que nos dissessem quais critérios considerariam (até cinco) se fossem incumbidos de desenvolverem uma aplicação para uma rede social qualquer. As escolhas poderiam sugerir possíveis consequências de suas práticas relacionadas às suas visões de mundo, conforme discutido anteriormente.

Dos critérios considerados pelos alunos, como os de maior importância para a produção de uma aplicação, estão: a facilidade de uso (A01; A02; A04; A05; A08; A09; A12; A14; A15), eficiência e o potencial de mercado para o uso da aplicação (A01; A04; A05; A06; A07; A08; A10; A11; A12; A14; A15). A segurança da tecnologia a ser criada foi mencionada por apenas dois entrevistados (A07; A08), ainda assim, como uma forma de resguardar os interesses de empresas contratantes. A própria questão da política de uso que, conforme observa Silveira (2018), deveria explicitar uso e tratamento de dados dos usuários, somente foi colocada pelo entrevistado A08, entretanto, como forma de proteger a empresa de eventuais consequências jurídicas.

Em geral, os critérios adotados para a concepção de artefatos tecnológicos pelos graduandos estavam pautados no desenvolvimento de produtos de fácil acesso e utilização, na busca de "[...] Gostos parecidos, [...] a interação [...], suas amizades específicas, suas conexões internas [...]" (A01). Deste modo, tais tecnologias seriam concebidas para o uso intuitivo dos sujeitos, projetadas com base nos dados de suas interações, favorecendo maior adesão ao seu uso. O uso de dados, nesse sentido, enfatizaria o desenvolvimento de aplicações mais eficientes e comercialmente rentáveis para empresas de tecnologias e seus desenvolvedores, sem que fosse considerado, em qualquer momento pelo grupo, a necessidade do aceite ou a transparência no uso destas informações, produzidas por diferentes em diferentes plataformas.

4.4 Graduandos têm visão sobre Fake News próxima do senso comum

Outro objetivo de pesquisa foi identificar se os graduandos de TI teriam uma visão particular das Fake News por produzirem tecnologias. Além disso, se relacionavam o fenômeno aos conhecimentos técnicos que aprendiam e os produtos que já desenvolviam ou iriam desenvolver futuramente, enquanto profissionais.

Dos 16 entrevistados, 14 compreendem Fake News como diferentes tipos de conteúdo falsos, propagados na mídia em geral com a intenção de manipular ou causar desinformação. No que se refere ao formato destes conteúdos, eles acreditam que podem assumir diferentes formatos: "notícias em si, e documentos" (A01), "uma pesquisa, alguma página" (A02), "contos fictícios [...] totalmente criados" (A04), "fofocas, ou algo que ainda vai acontecer" (A06), ou até mesmo de "um áudio encaminhado no WhatsApp" (A16). Apenas dois dos entrevistados consideraram Fake News estritamente como notícias, estando de acordo com os demais entrevistados em relação ao seu caráter manipulativo.

Apesar das caraterísticas citadas se aproximarem dos diferentes tipos de conteúdo discutidos por Wardle (2017), Allcott e Gentzkow (2017), um elemento central não foi mencionado. O fenômeno está, sobretudo, atrelado às mídias sociais, se beneficiando da lógica dos algoritmos e das bolhas informacionais criadas, o que foi considerado apenas por um dos graduandos (A15). A questão das bolhas também surgiu na fala de outros três participantes, no entanto, sem que estes fizessem qualquer relação com os algoritmos ou com o modelo de negócio das empresas que gerenciam tais plataformas. Dois entrevistados citaram as bolhas informacionais como formas de manipulação nestas plataformas, mas como influência dos próprios usuários, nos compartilhamentos que ocorrem em suas redes de relacionamento.

Apenas um dos entrevistados (A10) levantou a questão da manipulação nas mídias sociais por meio do uso de bots, afirmando possuir “amigos que foram trabalhar com Fake News [que] criavam bots para ficar jogando Fake News no Twitter”. Ainda assim, a questão técnica relacionada à manipulação dos algoritmos parece não ser considerada, mesmo sendo sustentada pelo modelo de negócio em que operam as mídias sociais. No diálogo sobre estes robôs, o entrevistado afirmou ter sido convidado para trabalhar no desenvolvimento deles por pessoas ligadas ao meio político, no período das eleições presidenciais de 2018. Vale apontar que este entrevistado era aluno do 2º período da graduação, confirmando a existência de contato ou experiência anterior com a área tratado anteriormente. Tal fato nos remete ao compromisso maior da graduação na formação crítica destes educandos para que possam contribuir na construção de uma sociedade mais democrática (FREIRE, 2005; NAZARÉ, 2018).

Questionados acerca das motivações para a criação das Fake News, 14 entrevistados disseram haver algum propósito específico, ainda que a "intenção seja simplesmente causar o caos [...] o famoso terrorista digital" (A10). Somente dois entrevistados disseram acreditar que Fake News podem ser compartilhadas sem a intenção de enganar, seja por “pessoas leigas ou realmente desinformadas [por conta de] um achismo" (A14), seja pela "própria mídia, sites de reportagem, jornalistas" (A06), de maneira acidental. Neste último exemplo, o que Wardle (2017) chama de “jornalismo pobre”, provocado pela escassez de tempo e recursos para uma checagem mais apurada dos fatos.

Para os entrevistados, Fake News são conteúdos falsos que podem ser criados por qualquer pessoa com objetivo de "gerar mídia, seja algum influenciador digital seja os próprios políticos" (A01). Mesmo quando não nos possibilitam uma visão clara dos seus objetivos, visariam ofuscar alguma questão no campo de debate, "causar alvoroço, [para] viralizar essa notícia" (A02), direcionando a agenda de debates e influenciando a opinião pública.

Das características relacionadas a estes conteúdos, os entrevistados mencionam: a) títulos e imagens chamativas, normalmente de forma "bem sensacionalista que chame muita atenção" (A13), "uma imagem enorme" (A02), "de uma forma mais tendenciosa" (A04), geralmente para "criar uma imagem negativa de um objeto ou de alguma pessoa." (A05); b) procuram atribuir seriedade no que está sendo dito, para "parecer mais autêntico" (A05), utilizando uma linguagem mais rebuscada “com algumas palavras difíceis" (A06); c) há uma clara intenção de provocar, ou prejudicar alguém, procuram geralmente "incitar alguma coisa" (A08), promover alguma reação. Por exemplo, o "clickbait, geralmente tem um título muito chamativo, que vai atrair assim, bem de imediato" (A14), podendo ser usado para "Calúnias, [criar] massa de manobra" (A16); d) a linguagem é adaptada para convencer um grupo específico, podendo se apresentar "com um linguajar mais informal" (A11), ajustada "ao público-alvo" (A13).

Quanto a possíveis orientações que, na visão dos graduandos, permitiria identificar Fake News, sugerem: a) checar a fonte; b) procurar outras fontes e comparar; c) ler o texto na íntegra; c) verificar se fontes mencionadas realmente postaram aquelas informações.

Acerca dos possíveis impactos causados por Fake News, a análise proporcionou a identificação de quatro categorias. São elas, da mais mencionada à menos: a) desinformação; b) interferência no processo democrático; c) danos à saúde pública; d) danos morais e materiais. A “desinformação” foi a categoria mais citada mencionada por 15 graduandos, resultando em: poluição informacional, dificultando a tomada de decisões; influência sobre a opinião pública, por meio de informações inverídicas; atrito entre grupos e discursos de ódio; ameaças à integridade física das pessoas; danos morais e materiais; problemas psicológicos. “Danos morais e materiais” foi a segunda categoria mais citada, referente aos possíveis impactos causados por Fake News.

Com relação a possíveis interferências no processo democrático, seis dos graduandos disseram acreditar que as Fake News podem influenciar os processos de escolha em uma sociedade democrática. Conteúdos falsos poderiam ser utilizados para promover ideias e candidatos, também servindo de estratégia de ataque aos seus adversários. Este mesmo ponto foi observado por Rudiger (2018) no levantamento realizado pela Fundação Getúlio Vargas, através da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da (FGV DAPP). O levantamento identificou diferentes perfis falsos gerenciados por "robôs", programados para interferir em discussões políticas nas mídias sociais.

Os entrevistados também observaram que as Fake News costumam permear temas que estão em alta na sociedade. A pandemia do novo coronavírus, por exemplo, mesmo antes do vírus chegar ao país, já estaria sendo utilizada como tema para a concepção de Fake News. Outro tema em alta, mencionado pelos entrevistados, foi a contaminação da água distribuída pela empresa Cedae, no Rio de Janeiro.

4.5 Graduandos não relacionam o trabalho dos profissionais de TI às Fake News e a outros impactos negativos à sociedade

O que foi tratado até aqui sugere que os futuros profissionais de TI não relacionam o fenômeno Fake News às especificidades de sua área, tendo em vista as respostas analisadas. Esperava-se que os graduandos comentassem questões relacionadas à produção de tecnologias, mas dos 16 entrevistados, apenas um deles mencionou a relação existente entre algoritmos e bolhas informacionais para a promoção da desinformação a partir de questões do roteiro que não faziam associação direta.

Perguntamos aos participantes se as atividades desenvolvidas por profissionais de TI poderiam, mesmo que intencionalmente, colaborar com o fenômeno Fake News. A maioria dos entrevistados não relaciona suas práticas e visões de mundo a eventuais impactos negativos na sociedade, como os causados por Fake News. Na perspectiva dos entrevistados, isso só ocorreria se houvesse uma motivação intencional por parte dos desenvolvedores, com o intuito de atingirem um objetivo. As respostas indicam que os graduandos não teriam consciência de seus papéis como agentes transformadores de sua realidade.

Os graduandos destacaram que a produção envolvendo tecnologias digitais na atualidade parece estar atrelada a uma necessidade de integração com as mídias sociais da Internet. Em seu entendimento, mesmo os aplicativos que não possuem uma relação direta com estas plataformas, acabam se beneficiando, de algum modo, dos dados oriundos dos usuários nestas redes, na identificação de "[...] Gostos parecidos, a interação [...], suas amizades específicas, suas conexões internas [...]" (A01), por exemplo. Neste aspecto, a enorme quantidade de dados que podem ser obtidos dessas plataformas e de seus aplicativos pode fornecer valiosas informações sobre o público-alvo para a concepção de produtos diversos. Sem políticas que consigam acompanhar as rápidas mudanças que ocorrem no mercado tecnológico (SILVEIRA, 2017) e com pouca criticidade dos profissionais de TI, o que o futuro nos reserva?

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas mais diversas atividades, pesquisadores vêm apontando o risco a lógicas, visões e condicionamentos promovidos por tecnologias digitais. É necessário refletir acerca da gigantesca quantidade de dados que estão sendo capturados e usados diariamente a partir de nossas interações, por exemplo, mas cujas consequências e potencialidades ainda nos são, em grande parte, desconhecidas. Nesse sentido, a área da Educação teria um papel fundamental não apenas em promover mais criticidade sobre questões relacionadas ao uso de algoritmos computacionais como, também, preocupar-se com a formação crítica de profissionais de TI.

Como discutido neste trabalho, valores e princípios de grandes empresas de tecnologia estão presentes na formação desses graduandos, preparando-os para se tornarem colaboradores de seus negócios, alinhados às suas perspectivas de mundo e de ser humano. Infelizmente, como atesta a pesquisa, o conhecimento técnico mais aprofundado acerca dos meandros das tecnologias não seria suficiente para uma crítica das realidades que elas promovem.

Reconhecendo os limites desta investigação, a formação de graduandos de TI não abordaria questões de interesses, poder e valores que impregnam as tecnologias que produzem. Os estudantes, inclusive, compartilhavam da premissa de neutralidade associada às tecnologias digitais tão presentes no senso comum, haja vista a limitação desses graduandos em relação às Fake News, o que foi caracterizado e problematizado neste trabalho. Nenhum entrevistado sugeriu uma perspectiva mais complexa deste fenômeno, adotado como recorte de realidade.

Em resumo, o trabalho aponta a urgente necessidade de ampliarmos caminhos para a formação crítica dos graduandos de TI - atuais e futuros arquitetos de artefatos digitais. Um processo que não depende apenas da compreensão de um fenômeno específico, que futuramente será substituído por outro, mas do desenvolvimento de uma perspectiva questionadora e comprometida com princípios éticos e democráticos que possam orientar as ações desenvolvidas por linhas digitais.

AGRADECIMENTOS:

À Capes, pelo financiamento da pesquisa.

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NOTAS:

1 Este trabalho integra uma pesquisa de mestrado, realizada com financiamento da CAPES.

2 Enorme quantidade de dados, constantemente atualizados, obtidos a partir de diferentes fontes. Possui três características principais: o volume de dados, a variedade e a velocidade em que são obtidos. Quando correlacionados, permitem identificar padrões, provendo informações estratégicas em tempo real para fins diversos (ANTONIUTTI, 2015).

3 Ramo da ciência da computação que utiliza algoritmos definidos por especialistas para identificar e analisar problemas, ou uma tarefa a ser realizada. Podem ser programados para tomar decisões, simulando a capacidade humana (LOBO, 2018).

4 CAAE: 21068819.0.0000.5284.

Recebido: 26 de Outubro de 2021; Aceito: 18 de Fevereiro de 2022

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