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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.20 no.4 São Paulo oct./dic 2022  Epub 30-Ene-2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2022v20i4p1904-1923 

Entrevistas

Utopias Concretas para Renovar Esperanças Democráticas: Entrevista com a Professora Amabília Almeida

Concrete Utopias to Renew Democratic Hopes: Interview with Amabília Almeida, School Teacher

Utopías Concretas para Renovar las Esperanzas Democráticas: Entrevista con la Profesora Amabília Almeida

i Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora Titular da PUC-SP, pelo Programa de Estudos Pós-graduação em Educação: Currículo. Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Justiça Curricular (GEPEJUC). E-mail: tresponces@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-9959-2680.

ii Doutoranda em Educação do Programa de Estudos Pós-graduação em Educação: Currículo da PUC-SP. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Justiça Curricular (GEPEJUC). E-mail: thaisalmeidacosta245@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-3354-9385.


Resumo

A realização desta entrevista integrou as atividades do projeto (2020-2022) do Grupo de Educação e Pesquisa em Justiça Curricular (GEPEJUC), coordenado pela Professora Branca Jurema Ponce do Programa de Educação: Currículo, da Faculdade de Educação da PUC-SP. Um dos objetivos do projeto consiste em registrar experiências históricas de educação escolar, assim como práticas curriculares atuais que revelem avanços democráticos. A história de Amabília Almeida é testemunho da ação feminista rebelde contra o patriarcado, da resistência política contra o autoritarismo e do ativismo docente pela garantia do direito à educação. Com mais esta publicação, reafirma-se a essência utópica das produções acadêmicas ancoradas no conceito de justiça curricular. Histórias como essas permitem afirmar a impossibilidade de silenciar experiências emancipatórias, e elas sobrevivem nas memórias, nos sonhos, nas resistências.

Palavras-chave: democracia; memórias, justiça curricular; resistências; direito à educação

Abstract

This interview was part of the academic activities set that made up the project (2020-2022) of the Education and Research in Curricular Justice group (GEPEJUC) coordinated by Professor Branca Jurema Ponce, of the Education Program: Curriculum, from the Faculty of Education at PUC-SP. One of the objectives of this project is to record successful historical experiences of school education, as well as current curricular practices that also reveal democratic advances. The story of Amabília Almeida is a testimony of the rebelious feminist action against patriarchy, of political resistance against authoritarianism and of teaching activism to guarantee the right to education. With this publication, the utopian essence of academic productions anchored in the concept of curricular justice, is reaffirmed. Stories like these allow us to affirm the impossibility of erasing the emancipatory experiences, which survives in memories, in dreams, in resistance.

Keywords: democracy; memories; curricular justice; resistance; right to education

Resumen

Esta entrevista formó parte de un conjunto de actividades académicas del proyecto (2020-2022) del Grupo de Educación e Investigación en Justicia Curricular (GEPEJUC) coordinado por la profesora Branca Jurema Ponce, del Programa de Educación: Currículo, de la Facultad de Educación de la PUC SP. Uno de los objetivos de este proyecto es registrar las experiencias históricas de educación escolar, así como las prácticas curriculares actuales que muestran avances democráticos. La historia de Amabilia Almeida es un testimonio de la acción feminista rebelde contra el patriarcado, de la resistencia política contra el autoritarismo y del activismo docente por la garantía del derecho a la educación. Con esta publicación se reafirma la esencia utópica de las producciones académicas ancladas en el concepto de justicia curricular. Historias como éstas nos permiten afirmar la imposibilidad de haer calalr las experiencias emancipadoras, que pervivan en los recuerdos, sueños y resistências.

Palabras clave: democracia; memorias, justicia curricular; resistencias; derecho a la educación

1 INTRODUÇÃO

A realização da presente entrevista integrou o conjunto de atividades acadêmicas que compôs o projeto (2020-2021) do Grupo de Educação e Pesquisa em Justiça Curricular (GEPEJUC) coordenado pela Professora Branca Jurema Ponce, que se inclui na linha de pesquisa Políticas Públicas e Reformas Educacionais e Curriculares do Programa de Educação: Currículo, da Faculdade de Educação da PUC-SP. Um dos objetivos que compõem o projeto (2020-2022) do referido grupo consiste em registrar experiências históricas exitosas de educação escolar democrática em passado recente, assim como práticas curriculares atuais em redes e/ou escolas que também revelem avanços democráticos. Em um contexto de retrocesso autoritário, de recorrentes ataques à escola pública e precarização da profissão docente, acredita-se na urgente necessidade de divulgar vivências concretas de educadores e educadoras brasileiros/as que lutaram e lutam pela garantia do direito à educação.

O estudo e a documentação de práticas curriculares emancipatórias e a confiança nos sujeitos da educação, tão abalada nestes últimos tempos, são bases para as pesquisas pautadas pelo conceito de justiça curricular desenvolvido pelo GEPEJUC. Por justiça curricular compreende-se a construção coletiva do currículo baseada nas experiências históricas significativas de educação/currículo que buscaram/buscam justiça social, compreendida como superação de desigualdades e respeito e afirmação das diversidades, que visa dignificar todos os sujeitos da escola no presente e no futuro (PONCE, 2018).

A partir do referencial de Santos (2020), no universo das epistemologias do sul, firma-se o compromisso de validar conhecimentos nascidos da luta e ancorados em experiências de resistência à opressão. Resgatar e credibilizar conhecimentos históricos de professores e professoras que viveram e construíram atos de resistência é um gesto político, necessário reconhecimento de protagonismos afirmativos daqueles que contribuem para a renovação das narrativas e dos repertórios de utopias concretas referentes à construção de outro mundo possível (SANTOS, 2020).

A documentação das memórias da professora Amabília Almeida, por meio da presente entrevista, configura-se um ato da “sociologia das emergências”1 (SANTOS, 2020, p. 49), valorização simbólica, analítica e política de formas de ser e saberes de pessoas resistentes que praticam lutas contra a exclusão e dominação, fazendo vislumbrar possibilidades de transformação social. A história de Amabília Almeida é um testemunho concreto da ação feminista rebelde contra o patriarcado, da resistência política em oposição ao autoritarismo e do ativismo docente pela garantia do direito à educação: professora, nascida em Jacobina, Chapada Diamantina, em 1929, integrou o quadro de professores do Centro Integrado de Educação Popular Carneiro Ribeiro2 em Salvador. Foi presidente da Associação Feminina da Bahia (1955), assumiu a liderança do sindicato da classe, participando intensamente das campanhas de melhoria para o trabalho docente desde os anos 1960. Em virtude da atuação política, foi alvo de perseguição pela ditadura militar brasileira, que visava silenciar e liquidar qualquer tipo de liderança. Com apenas 17 anos de serviço público, foi aposentada compulsoriamente, teve seus direitos políticos suspensos por dez anos por força do Ato Institucional de outubro de 1964. Foi vereadora de Salvador de 1982 a 1986 e a única mulher eleita em 1986 como deputada estadual a integrar a Assembleia Constituinte baiana, ao lado de 43 homens. Em função de seu mandato como deputada, a Bahia foi o primeiro Estado a inserir em sua Constituição um capítulo específico sobre os Direitos das Mulheres3. Atuou em projetos sociais da Prefeitura Municipal de Salvador ao lado da Prefeita Lídice da Mata de 1992 a 1996, integrou a Comissão Estadual da Verdade4 da Bahia de 2012 a 2016, além de ter sido condecorada com a Medalha Anísio Teixeira pela Câmara Municipal de Salvador pelo trabalho em prol da educação e com o Prêmio Bertha Lutz no Senado Federal (SOUZA, 2019)5.

A entrevista de Amabília Almeida foi realizada em uma sessão de 3h30 no ano de 2021 em um dos Encontros do Grupo de Educação e Pesquisa em Justiça Curricular. Embora a condução dos trabalhos tenha sido feita pelas autoras deste texto, a participação dos membros do Grupo estava franqueada, razão pela qual se utiliza, a seguir, a expressão “entrevistadores”.

As palavras proferidas pela entrevistada constituem-se como elementos de uma política da esperança (SANTOS, 2020), memórias que recuperam as matrizes democráticas brasileiras e nos ajudam a construir outras realidades possíveis. Por meio dessa entrevista, reafirmamos a essência utópica das produções acadêmicas do GEPEJUC, ancoradas no conceito de justiça curricular. Acreditamos na impossibilidade de se apagarem experiências democráticas por completo da história, e mesmo em períodos de obscurantismo elas sobrevivem nas memórias, nos sonhos, nas resistências, voltando a pulsar sempre que acionadas para fazerem nutrir nosso inconformismo rebelde (PONCE; ARAÚJO, 2019).

Entrevistadores: Professora Amabília Almeida, a senhora é uma educadora, é uma política brasileira da maior importância. Uma mulher que desafiou seu tempo, abrindo caminhos que se tornaram mais transitáveis para outras mulheres caminharem depois. A senhora é uma mulher de lutas, luta pela emancipação, pela anistia, pela educação, pelos direitos humanos, por todos os direitos dos brasileiros. Nosso grupo de pesquisa tem estudado o quanto o Brasil, em sua história da educação, passou por momentos curtos e intermitentes de experiências democráticas, que sempre foram seguidos de golpes: o de 1937, o de 1964 e, o mais recente, de 2016. Com certeza, esses golpes não são casuais. Quando começamos a ter um pouco de oxigênio democrático, propostas e práticas educacionais progressistas, ocorrem esses golpes gerando retrocessos. Assim, na história, não conseguimos, nem temos conseguido, enraizar experiências democráticas para torná-las mais efetivas. O tempo é sempre curto. Entretanto, elas não se perdem, elas vêm servindo de sementes para o próximo movimento, um estímulo para os novos passos democráticos. Temos trabalhado com essa ideia e gostaríamos de ouvi-la acerca da sua trajetória como educadora e líder política feminista.

Amabília Almeida: Primeiro, quero cumprimentar a todos os que aí estão. E dizer a vocês que eu poderia até me sair melhor, mas meus 92 anos já me pesam um pouco. No entanto, vou procurar transformar esse momento em uma memória. Cursei Magistério no Colégio Instituto Senhor do Bonfim de Jacobina. Meu ideal era, como todo professor, fazer o concurso para escola pública, para o Estado. No ano de 1947, fiz concurso e fui ensinar numa escola de difícil, acesso. Digo-lhes isso porque essas questões são de injunções políticas. Minha família era ligada ao Partido Social Democrático (PSD), contrária ao poder local, e as outras famílias das demais professoras aprovadas eram associadas à União Democrática Nacional (UDN), do Deputado Francisco Rocha Pires, que foi deputado muitos anos na nossa terra. As apadrinhadas do político tinham direito a ficar na sede da cidade ou nas redondezas. Eu, que não tinha padrinho político, não tive escolha, fui para onde a Secretaria de Educação achou que não tinha professora. Fui ensinar numa roça de café, numa região muito fria, numa casa que chamaram de escola, um salão que não tinha piso, era chão batido, e um quartinho para mim, que não tinha sanitário. Eu tomava banho de bacia que uma mocinha preparava para no meu quarto. Quando as crianças sentiam necessidade de ir ao banheiro, tínhamos que ir para o cafezal. Essa foi a escola onde fui ensinar, e eu podia ter me revoltado. Meu pai perguntou: “E você, vai ficar aqui?”. Eu disse: “Pai, aqui tem 60 crianças de 7 a 12 anos que não sabem ler. Eu acho que eu vou ficar aqui. Eu preciso dar minha contribuição, eu vou ter dificuldade, mas eu vou conseguir”. Meu pai foi me levar a esse lugar; tomamos um trem em Jacobina, saltamos em Miguel Calmon e viajamos 12 km a cavalo. Eu me lembro que meu pai levou a cama onde eu ia dormir no outro animal que alugou na cidade de Miguel Calmon. Não foi fácil, mas fiquei um ano e meio nessa escola. Quando eu saí, 80% das crianças estavam alfabetizadas, e eu fiquei muito feliz. Era para ensinar um turno, mas eram tantas necessidades que aquelas crianças tinham que eu desdobrava o turno. O Estado não ia pagar nada, mas eu estava fazendo aquilo porque eu precisava fazer...

Entrevistadores: Pode nos contar sobre a experiência como professora do Centro Integrado de Educação Popular Carneiro Ribeiro e seu contato com Anísio Teixeira?

Amabília Almeida: Então, eu tenho recordações muito boas de Doutor Anísio Teixeira, pois foi ele que me nomeou professora quando secretário de Educação do Estado da Bahia6. Ele foi fonte de inspiração dessa minha longa vida... Saí de Jacobina para continuar meus estudos na capital. Cheguei em Salvador. Como pertencia ao quadro de professores do interior, eu só poderia trabalhar na periferia da cidade. Para sorte minha, estavam terminando de construir as escolas do Centro Educacional Carneiro Ribeiro, esse complexo educacional idealizado por Doutor Anísio. Ele já não estava na Secretaria de Educação nesse período, e sim no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP)7, mas havia plantado as bases do sistema educacional que idealizou para todo o País. Tivemos a sorte de ele começar sua experiência por nossa terra. Ele era baiano de Caetité. Então fui para periferia e não estranhei, pois eu conhecia o que era essa coisa da periferia... Eram três escolas, a Escola Classe Número 1, que ficava no bairro da Liberdade, a Escola Classe Número 2, no bairro de Pero Vaz, onde eu ensinava, e a Escola Classe Número 3, no bairro de Pau Miúdo. As crianças tinham tudo. Chegavam à escola pela manhã, tomavam um café, iam para a sala, tinham aula; quando era meio-dia, iam para a Escola Parque. Quando eu cheguei no Centro Educacional, já estava sendo inaugurada a Escola Parque. A Escola Parque era tudo de bom que uma criança poderia ter, era tudo de bom. E íamos muito lá, na Escola Parque, porque a irmã do Doutor Anísio, Doutora Carmem Teixeira, coordenou o trabalho e a formação de professores. É a escola onde a gente dá vontade de voltar a ser criança para estudar de novo. As Escolas Classes eram muito boas, diretoras e coordenadoras escolhidas a dedo pela Secretária da Educação. Não tinha essa coisa de escolha política, era escolha mesmo a partir do que conheciam do trabalho das pessoas. A Escola Parque, como eu disse, era tudo de bom, maravilhoso, tinha artes, dança, teatro, pintura, e tudo isso me encantava muito. O teatro era tudo de bom, maravilhoso. Tinha oficina de todo tipo: padaria, marcenaria, oficina de doces, biscoitos... Era uma escola para vida. E era assim como o Doutor Anísio Teixeira pensava; ele queria uma escola onde o estudante pudesse sair de lá um cidadão com sua formação. Era a escola democrática, pública, de boa qualidade que ensinava a ser um cidadão verdadeiro. Tudo aquilo me encantou... Como dizia Doutor Anísio: “Para se formar um cidadão verdadeiro nós precisamos de democracia, a escola tem que ser um espaço democrático...”.

As crianças da Escola Classe Número 2, onde eu trabalhava, viviam numa localidade muito difícil, muito pobre, eram famílias que vinham do campo para a cidade em busca de melhor condição de vida. Essas crianças tinham uma fome minha gente... Tanto que certo dia houve um incidente no final da aula, uma criança estava chorando, eu fui lá e lhe perguntei: “O que foi que aconteceu?”. Ele me mostrou o bracinho escorrendo sangue. Eu perguntei: “O que foi?”, ele disse: “Esse meu colega me enfiou aqui a ponta do lápis”. Eu tive que ter cuidado com o que estava ferido, mas meu coração pediu para saber o porquê de uma criança de oito anos ter essa atitude de enfiar o lápis no colega a ponto de sair sangue. Aí falei: “O que foi que aconteceu, por que você fez isso?”. Ele ficou muito zangado e depois falou: “É porque estou com fome...” Percebi que precisávamos tomar uma atitude, principalmente com aqueles meninos, de mudar o horário da merenda, em vez de a merenda chegar às 10h30min, precisava estar lá mais cedo, às 8h30min. Precisávamos dar comida para os meninos. Eu percebia que eles com fome não aprenderiam nada, iriam agredir uns aos outros. Só vendo a mudança, a alegria, a satisfação e a mudança de atitude das crianças com estômago cheio.

Lembro também da formação de professores. Tinha muito investimento. Os professores faziam cursos especializados em outros lugares, em Minas Gerais, no Rio Grande do Sul, onde o ensino já estava mais desenvolvido. Nossa professora de educação física, por exemplo, foi para o Rio de Janeiro fazer curso de Artes. Nós, das Escolas Classes, participávamos da formação de 15 em 15 dias com a professora Carmem Teixeira. Ali naquele espaço aprendemos a ser professores, ali fomos valorizados.

Depois, Dona Carmem saiu da Escola Parque e, como tudo no nosso país, as coisas que pensamos que vão para frente vão para trás... Eu passei seis anos na Escola Classe e na Escola Parque. Depois, eu já havia constituído minha família, tinha ingressado nesse mundo da política e fui atuar em outras escolas estaduais.

Entrevistadores: E como aconteceu seu ingresso na atuação política?

Amabília Almeida: Eu tive a sorte de me casar com Luiz Contreiras8, que era um socialista verdadeiro, que amava o seu país, que queria que as pessoas fossem felizes, trabalho para todos, democracia e liberdade. Um socialista verdadeiro... Ele começou a abrir minha cabeça para essas coisas, e ele me dizia: “Olhe, você não deve se conformar de ser só uma boa professora, você precisa pensar também que existe um mundo lá fora, de muitas pessoas que precisam melhorar, que precisam ter boas escolas como essa que você trabalha, que precisam ser educadas, que precisam de oportunidades. Veja que nós moramos numa cidade cuja maioria é negra e que nós precisamos apoiar na mudança desta sociedade...” Ele me levou para me mostrar o mundo socialista, e nesse tempo se chamava comunista mesmo. Fui para as Olimpíadas de Moscou em 1980, aproveitei a oportunidade para conhecer a Federação Internacional de Mulheres, de mulheres muito simpáticas. Havia uma intérprete que falava espanhol, e eu já entendia um pouquinho de espanhol... Luiz me levava para uma livraria dos socialistas em Salvador e ele me mostrava como era a vida das mulheres no mundo socialista9. Não havia diferença de trabalho: mulher dirigia caminhão como homem também; mulher dirigia trator como homem também; todo trabalho que homem fazia a mulher também fazia. Talvez fosse até uma utopia, mas ele tinha o seu encanto, acreditava na filosofia, no socialismo, e me fez acreditar realmente no socialismo. Eu acho que é a forma de governo em que pode haver fraternidade, igualdade, educação para todos sem tantas diferenças. Eu acho que a melhor forma de vida é no socialismo. Sobre meu ingresso na luta feminista, acho importante destacar que fui presidente, na década de 1950, da Associação Feminina da Bahia10, uma das fundadoras. Levantei no meu mandato muitas bandeiras pela independência da mulher, oportunidades de emprego, melhores condições de vida e luta por creches.

Ocorreu também um fato importante, a minha participação no primeiro Congresso Nacional dos Professores Primários11. Eu já estava um pouco sabidinha. Lembro que Luiz me disse: “Você poderia apresentar um trabalho no Congresso, você tem condições”. Eu disse: “Olha, se eu for apresentar um trabalho para esse Congresso, eu vou fazer um trabalho sobre as condições do professorado, as condições materiais e pela valorização do professor”. O que ganhávamos não dava para comprar um livro, não dava para comprar uma revista. Então, apresentei o trabalho levantando uma série de reivindicações e a maior delas era que, para ser professor de qualidade no Estado da Bahia, e nos outros Estados, teríamos que desenvolver uma Campanha Nacional para que o professor ganhasse no mínimo três mil cruzeiros. O trabalho levantou o ânimo do pessoal. Porque só se falava na pedagogia, no conhecimento, mas as condições necessárias não eram abordadas. Como se desenvolve uma boa pedagogia sem uma boa condição para o professor, sem um estímulo para o professor? Que professor é esse que ganha menos de um salário mínimo? Não é possível! E aí foi criada uma revolução, uma das revoluções aprovadas por unanimidade a partir da iniciativa dessa professorinha de Jacobina. Desenvolvemos a Campanha dos três mil cruzeiros12 até chegar ao conhecimento do governo do Estado da Bahia.

Em 1964, por causa do movimento dos professores, pois eu já era uma liderança no seio da classe, tive a desdita de ter que responder inquérito policial militar, ser perseguida, perdi meus direitos políticos por dez anos. No dia do golpe, tive que sair correndo com meus meninos pequenos, e o marido eu não sabia onde estava. Nessa época, passamos 60 dias sumidos, passei 60 dias sem ver as minhas filhas, tive que fugir para Minas Gerais. Só não fui presa porque um tempo depois as coisas já tinham se acalmado. A gente já podia voltar para casa, eu sabia onde meu marido estava, mas não podia visitar. Voltei para minha casa e disse assim: “Eu não posso ficar longe, eu sou uma mãe de família, eu não posso ficar assim tão longe dos meus filhos, meus meninos estão precisando de mim, eles são muito pequenos”. Fui buscar meus meninos, contratei um advogado, fui me apresentar ao quartel-general e contar a minha história. Não fiz nada demais no dia do golpe de 64, eu não fiz nada demais, só fui com minhas colegas professoras numa passeata, numa caminhada até o Palácio do Governo da Bahia para saber se íamos ficar sem dinheiro, porque no dia do pagamento as folhas foram arrancadas das nossas mãos e as professoras todas estavam sem dinheiro. Fizemos a caminhada indo ao governador para pedir uma explicação. Só que o governador Lomanto Junior estava sitiado. Ele teria que definir se ficava com Jango ou com os golpistas. Eu entrei no Palácio do Governo enquanto representante da classe e lá dentro tomei conhecimento da gravidade da situação. Mas mesmo assim falamos com o governador que assegurou o pagamento em 48 horas. Penso que era o tempo que precisava para tomar a decisão. Ficou a favor dos golpistas13. Saímos do Palácio e vimos que a situação era muito grave, havia tanques do exército parados nas portas dos sindicatos. Havia um clima policialesco na cidade de Salvador. Fomos para casa após a manifestação. Ligamos o rádio para saber o que estava acontecendo; éramos de esquerda e meu marido pertencia ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foi muito difícil, foi um corre-corre. Uma pessoa ligada ao PCB passou na minha casa e disse: “Amabília, seu nome está na lista dos que serão presos, caia fora antes que isso aconteça”. Dentro de meia hora coloquei as crianças no carro e não tive tempo de pegar nada. Para minha sorte, quando saí de casa passei pelo jipão do exército. Olhei para traz e eles estavam saltando na porta da minha casa. Por questão de segundos não fui presa com minhas crianças...

Tinha uma situação de terror, como em todos os lugares. Quando decidi me entregar no quartel-general, tive que responder a muitas perguntas, queriam saber se eu tinha livros de Paulo Freire, quais eram minhas leituras. Eu disse: “Leio muito sobre educação, Rui Barbosa, Castro Alves, Anísio Teixeira...”. Fui falando as coisas que eu lia, de autores também que eles nem sabiam. Voltei para casa. Quando foi no dia 2 de outubro de 1964, saiu uma lista no Diário Oficial, uma relação suspendendo os meus direitos políticos e me aposentando compulsoriamente. Eu fiquei desempregada e ainda com os direitos políticos cassados. Então, eu disse assim: “Desempregada, como que eu vou ficar? Eu sou professora”. Tínhamos um terreno perto da nossa casa, eu disse: “Oh Luiz, o terreno que você tem aqui perto de casa que você pretende construir um prédio de apartamentos, você entraria como sócio e a gente fundaria uma escola?”. Luiz era uma pessoa muito generosa, aí ele disse: “Sem dúvida alguma, mas nós não temos dinheiro”. Eu disse: “Vamos fazer uma sociedade, a gente faz uma sociedade, feita a sociedade nós vamos tomar algum empréstimo em algum banco”. E isso aconteceu; juntei com outras três colegas, que também foram da Escola Parque, Escola Classe, professoras da melhor qualidade, éramos muito amigas, porque comungávamos da mesma filosofia do Mestre Anísio Teixeira e elas acharam uma ideia ótima, tanto que começamos a escola assim que fui aposentada em outubro. No dia 14 de março de 1965, inauguramos a primeira etapa da escola. Inauguramos a Escola Experimental14 em Salvador com apenas 14 alunos no início. A experiência da Escola Parque, da Escola Classe, mostrou-nos o que era uma escola aberta, o que era escola democrática, o que era a escola que ensinava a criança a viver, a ser ela mesma, a respeitar o outro, a defender seus direitos, a ser um democrata, um cidadão verdadeiro. Essa era a filosofia que estávamos desenvolvendo na nossa escola. Saíamos, íamos mostrar o rio São Francisco lá em cima, Canindé do São Francisco, a Barragem de Sobradinho, viajávamos com as crianças...

Um dia, disse: “Agora já podemos ir mais longe, vou levar os meninos do quinto ano para conhecer Disneylândia”. Maluca, não é? Então, lá fui eu com a turma de 45 crianças para Disney, uma alegria só, felicidade. Os pais confiaram inteiramente em mim; outra colega foi também, fizemos a nossa Caravana, foi uma alegria só. Voltamos em julho de 1975. Quando eu chego ao Aeroporto, achei um ambiente pesado, não achei que os pais vieram assim em cima de mim para me abraçar, porque era um ambiente muito afável na escola. Até que veio uma amiga da universidade, professora de letras, muito minha amiga e disse assim: “Amabília se prepare. Olha, entregue os meninos que você vai ter uma tarefa árdua. O Luiz está preso, seu marido está com 15 dias que ele está desaparecido”. Eu entreguei todo mundo, fui para casa e confesso a vocês que nesse dia, eu que era uma pessoa forte, que enfrentava tudo, golpe de 64 e tudo, nesse dia eu chorei muito, mas não foi só pelo Luiz, eu chorei muito por todos os brasileiros que estavam no exterior, que estavam exilados, outros que tinham desaparecido, tantos que tinham sido mortos, eu chorei muito por essa gente toda, que era toda a nossa gente. Lembrei até da música de Chico Buarque “Pai afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue”. Nessa aflição, continuei trabalhando. Ia para escola e à tarde saía atrás de advogado; depois de uns oito dias conseguimos localizá-lo. Nem preciso dizer a vocês, todos vocês sabem o que esses democratas, verdadeiros socialistas, sofreram nessa Ditadura Militar. Meu marido sofreu muito, voltou de costela quebrada, tuberculoso, magro, acabado, mas forte como jacarandá. Nunca abriu a boca para dedurar ninguém, nunca foi condescendente com nenhum desses torturadores, tipo Brilhante Ustra. Vejam que absurdo, esse Presidente Jair Bolsonaro faz homenagem a Brilhante Ustra. Quando escutei aquilo disse: “Minha Nossa Senhora, foi esse daí que torturou meu marido. Foi esse daí que quase mata Luiz afogado num tanque de água”. Felizmente, ele conseguiu se recuperar, conseguiu voltar para o trabalho.

Então, foi assim que Amabília, que está com 92 anos, chegou até essa etapa. Tem outra metade de vida para contar, eu estou à disposição para lhes contar como é que foi meu trabalho com as mulheres, com educação, sendo vereadora em Salvador, como eu instalei e presidi a Comissão de Defesa do Consumidor15 inspirada numa cidade chamada São José do Rio Preto, em São Paulo. E, depois, o trabalho com as mulheres, creche, escola. Fazer escola onde nunca teve escola na periferia de Salvador, onde até hoje ninguém sabe quantos milhões de pessoas moram. Quando fui Deputada Constituinte, ficou mais bonito, mas eu gostei mais de ser vereadora. Vereador é aquele que trabalha com pé no chão, é aquele que vai no bairro saber quais são as necessidades básicas da população, das crianças, das mulheres. É aquele que sabe como o povo sofre, como a cidade pode acolher seu povo. Foi muito bom ser deputada constituinte pelo que ficou expresso na Constituição do Estado da Bahia. Tem muita coisa boa expressa na Constituição do Estado da Bahia. Fui relatora da educação, fui relatora da comissão de Meio Ambiente e fui relatora da Comissão da Mulher. E nessa comissão eu trabalhei de forma muito organizada. Nunca trabalhei sozinha, sempre acompanhada; sempre fiz as coisas com as pessoas. Nunca achei que eu era dona da verdade, sempre me aconselhava com meu grupo, e criamos um Fórum de Mulheres em Salvador que tinha a representação de todas as mulheres do sindicato de professores, sindicato de médico, sindicato de trabalhadoras, em todos os setores da Prefeitura, da Ordem dos Advogados (OAB). Essas mulheres discutiam lá em seus espaços e traziam para a comissão suas reivindicações. Na comissão, a relatoria estudava para saber o que era possível considerar como prioridade, porque uma constituição é composta de capítulos, não pode ser um só para mulheres. E então estudávamos para analisar o que era possível entrar; terminamos como a única Constituição no Brasil que tem um capítulo específico sobre os direitos da mulher. Os homens, deputados, não ficaram muito felizes, não concordaram muito não. Diziam: “Mas vocês já têm tantos direitos...” Eu questionava, “por exemplo”? Eles respondiam, acho até de brincadeira: “já escolhem marca de geladeira, marca de fogão”. Eu retrucava: “Espera aí, vou abrir a porta do gabinete que é para o jornalista entrar e você repetir isso o que está dizendo, vamos ver ficará amanhã perante as mulheres de Salvador”. Foi assim, muito engraçado, mas conseguimos a nossa Constituição.

Entrevistadores: Gostaríamos de saber quais literaturas, obras, autores lhe inspiraram, quais foram as histórias que lhe formaram? Considerando seu engajamento no que diz respeito à luta dos professores, como a senhora vê a importância da formação política dos professores, seja ela no âmbito da formação inicial, seja no âmbito da formação continuada no interior da escola?

Amabília Almeida: Sempre li muito Castro Alves. Lembro que, quando terminei o 5.º ano primário, eu estava com 12 anos, e fiquei muito feliz porque minha madrasta me deu de presente Espumas flutuantes de Castro Alves. Fiquei muito encantada com aquele livro e eu gostava muito de ler; não se tinha muito televisão, rádio, essas coisas todas. Eu gostei muito do livro, gostava de ler, e gostei muito do livro de Castro Alves. A coisa que mais me encantou no livro de Castro Alves foram suas ideias libertárias, suas ideias de um democrata, e que, sendo de uma família de escravocratas, ele lutava pela libertação dos escravizados. Eu me encantei com aquilo e comecei a decorar as poesias de Castro Alves. A primeira que eu decorei foi “Vozes da África”; depois eu decorei “Espumas flutuante”; “Navio Negreiro”, essas mais assim políticas, não é? Mas eu também gostava das poesias românticas, “As duas flores” e “O laço de fita”; essas poesias todas de Castro Alves. Penso que foi nessa leitura de Castro Alves que me despertei para a discriminação racial. Lia também livros de Ruy Barbosa, poesias de Olavo Bilac, adorava ler as poesias do maranhense que escreveu o poema enorme que decorei, Juca Pirama. Sempre fui ligada nesse mundo da poesia. Houve uma época que eu gostava muito de escrever cordel. Cordel vocês sabem que é uma literatura tão nordestina, não é? Tivemos o Ariano Suassuna, aquela genialidade. Também lia os Clássicos. Hoje já não me recordo, e agora, quando leio um livro que gosto, tenho que lê-lo duas vezes para ficar na minha memória. Outro dia comecei a ler a série de Elena Ferrante, escritora italiana. Adorei aqueles livros e fico pedindo pra ler de novo, eu quero ler de novo. Só fica na minha cabeça se eu ler de novo. Eu lia Dostoievski, eu lia Victor Hugo. Sempre gostei, sempre gostei de ler.

Sobre os professores, acho que nas faculdades de formação deve ter um diferencial. Porque tudo o que vivemos é política, tudo é política. Então, não se pode ser um professor que ignora tudo e não sabe de nada. Quando não sei uma coisa, vou lá buscar, porque acho que o professor tem que ter formação política. Ele não precisa ser um político-partidário, mas ele tem que ter um conhecimento político.

Entrevistadores: Você teve um grande inspirador, Anísio Teixeira. Gostaríamos de ouvir um pouco mais sobre essa inspiração. O que a senhora traria? O que gostaria de destacar como uma recomendação?

Amabília Almeida: Sobre Dr. Anísio, não temos nenhuma dúvida de que foi o maior educador brasileiro. Ele só pensava na escola pública. Ele não era uma pessoa de muita conversa. Quando ele foi diretor de instrução pública da Bahia16, deixou esboçado o que achava que era importante para a educação no Estado. Cada Estado tem suas peculiaridades. No momento em que foi para os Estados Unidos fazer o doutorado e depois voltou, ficou muito contrariado porque a equipe que permaneceu não seguiu justamente o que ele queria. Aí, sabe o que fez? Foi ser professor da Escola Normal de lá de Salvador. Sim, foi ser professor da escola normal porque ele disse: “desfiguraram o meu projeto e eu não quero isso para mim”. Então, ele vai ser professor. É na condição de professor da Escola Normal, depois da Revolução de 30, que ele é convidado para ser diretor de instrução pública no Rio de Janeiro17. Ele então foi e fez um trabalho muito interessante. Mas, posteriormente, ele volta porque sofre algumas ameaças. A família do Dr. Anísio era gente abastarda, porque Caetité é uma região do Estado da Bahia rica em mineração. Então, Dr. Anísio, com sua família, constrói uma empresa18. Mas essa coisa de ganhar dinheiro não estava na cabeça Dr. Anísio, ele aí não fica, disse aos irmãos que não queria ficar. Então, ele retorna para o Rio e vai trabalhar mesmo em Educação. Depois veio aquela época do Brasil democrático, depois do governo de Getúlio Vargas e quando Jânio renuncia. Jango foi ser o Presidente da República e vivemos uma época assim de plena democracia. Vivemos uma época muito boa de democracia que possibilitava que as pessoas se organizassem.

Dr. Anísio lutava por uma escola pública, por uma escola democrática, por uma escola laica. A gente sabe que a educação era comandada basicamente pela Igreja Católica, não é? Então, os que comandavam a educação se rebelavam muito contra Anísio, até achando que ele era comunista. Mas eu acho que a inspiração do Dr. Anísio veio do Manifesto da Escola Nova de 1932, um manifesto verdadeiro, que acreditava que a educação tinha que ser democrática, que escola tinha que ser pública e para todos. Depois, Dr. Anísio foi para Brasília, com todo o entusiasmo, com Darcy Ribeiro para lançar as bases da Universidade de Brasília (UNB). Quando terminou o seu trabalho, voltou para o Rio de Janeiro. Contam que, um dia, ele saiu de casa, terminou de almoçar e disse que iria visitar Aurélio Buarque de Holanda. E ele não chega lá... Todos ficam aflitos, principalmente a família; a família dele não era muito grande, eram três filhos e a esposa, e ficam todos muito aflitos e ninguém sabia dizer onde estava o Dr. Anísio Teixeira. Passaram a noite procurando, buscando em todos os lugares e telefonando. Quando no outro dia, parece até coincidência, no dia 13 de março, Dr. Anísio foi encontrado morto no poço do elevador. Mas como uma pessoa cai no poço do elevador e os óculos estão lá em cima da viga certinhos, não teve uma fratura, nada? Mas nesse tempo, no Brasil, tudo poderia acontecer, não é? Dia 14 de março, outra data significativa. Minha escola foi fundada em 14 de março de 64. Castro Alves nasceu em 14 de março de 1647 e Dr. Anísio foi sepultado no dia 14 de março. E Marielle Franco assassinada no dia 14 de março... Também preciso dizer que a maior contribuição de Dr. Anísio foi a concepção da escola de tempo integral.

Entrevistadores: Gostaríamos de saber como a senhora vê e compara as lutas contra o autoritarismo e a favor dos direitos das mulheres naqueles tempos com as mesmas lutas nos dias de hoje.

Amabília Almeida: Aqueles tempos eram muito difíceis. Eu estou com 92 anos, posso me reportar àquela época e ver como era muito difícil a vida das mulheres. Então, o que era delegado às mulheres: tomar conta da casa, criar os filhos, cozinhar... As mulheres sofriam terríveis discriminações. Não tinham direito à voz, não tinham direito a voto, só em 1932 que começamos a votar pela primeira vez. E hoje, então, temos uma luta que não vem de agora, vem de muito tempo. Não é por acaso que recebi o meu diploma de Bertha Lutz no Senado Federal pela luta desenvolvida em prol da emancipação das mulheres, o que muito me orgulhou. Penso que as mulheres nunca ficaram paradas. As mulheres sempre batalharam para eliminar suas discriminações, para se posicionarem no mundo, para terem o direito de estudar. As mulheres não tinham direito a coisa nenhuma. Agora, essa luta me parece que se firma mais a partir da década de 75, que foi a década da mulher. Foi quando tivemos dez princípios que as mulheres deveriam alcançar em dez anos. Em 1975, também ingressei no Movimento Feminista em Salvador, um pouco devagar, mas havia companheiras boas. Essas minhas companheiras foram para São Paulo, fizeram cursos e trouxeram a ideia do jornal Brasil Mulher. Eu tinha os meninos pequenos, mas ajudava muito no que eu podia contribuir. Eu saía com elas dia de domingo e distribuíamos o jornal Brasil Mulher nas praias, nos bares, distribuíamos assim mesmo. Porque aquele jornal continha todas as nossas reivindicações, artigos, coisas que poderiam levar as mulheres a saírem daquele estado de submissão. Olha, quando a gente estava nesse Movimento Feminista, eu também ia para os bairros populares fazer palestras nas creches, nos grupos de mulheres, porque paralelamente íamos organizando as mulheres. E um dia, quando terminei minha palestrinha, uma mulher virou para mim e disse assim: “Dona Amabília, eu quero dizer uma coisa. A senhora falou na libertação da mulher, pois eu quero lhe dizer, a minha libertação só vai acontecer o dia que eu tiver um emprego para eu ganhar o meu dinheiro e não ter que virar para o meu marido, estirar a mão para pedir um dinheiro até para comprar um batom”. Então, entendi que a minha palestra estava dizendo muito pouco para a necessidade daquela mulher. Aí pensei assim: o dia que eu tiver um poder na minha mão, eu vou ver se coloco isso em prática. E não é, minhas queridas, que o dia chegou? Eu tinha sido vereadora, tinha sido deputada, tinha feito toda essa luta em defesa dos direitos das mulheres, mas chegou o dia que Lídice da Mata foi eleita Prefeita de Salvador19. Sempre é assim, todo Prefeito homem, a esposa atua como uma assessora especial. Então, como Lídice era mulher e éramos muito companheiras de luta, ela disse assim: “Amabília eu venho aqui lhe fazer um convite e não quero que você o rejeite, porque eu preciso muito de você. Eu quero que você seja minha assessora, para ser presidente da Instituição que tem o nome de Liga de Assistência e Reintegração (LAR), mas que faz um trabalho muito assistencialista, muito clientelista, eu quero que você dê outro olhar para esse trabalho, que mude a forma desse trabalho acontecer”. Eu parei e disse: “Lídice, eu lhe dou essa resposta depois, eu lhe peço dois ou três dias”. Nesses dois ou três dias eu pensei assim: meu Deus do céu como é que uma mulher é Prefeita e as outras mulheres não ajudam a desempenhar a sua função, isso não é justo. Então fui trabalhar com Lídice, para essa coisa de transformar aquela Instituição em algo mais democrático e menos clientelista. A primeira coisa que eu fiz foi reunir a equipe que estava lá e realizar um seminário para buscar, discutir e encontrar qual a missão daquela Instituição. Todo mundo dando opinião. Foi um trabalho muito bom, muito bonito e terminamos descobrindo a missão porque colocamos os defeitos e o que poderia surgir de bom. Encontramos a missão de que a Instituição não tinha que ser clientelista, tinha que estar voltada para a educação. Tinha que estar voltada para a profissionalização da mulher e lutar também pela implantação de creche nos bairros populares. Antes da nossa chegada, existia uma tal de Feira do Cacareco. Eu disse: “O que é isso gente, Feira do Cacareco? É pedir coisa velha nas casas, coisas que as pessoas não querem, e botar na rua para as pessoas pobres comprarem?” Eu digo: “O quê? Vender porcaria para gente pobre? Não! O pobre tem que ganhar seu dinheiro e comprar o que ele quiser, não é assim que nós vamos trabalhar!”. E aí mudamos completamente essa filosofia. Acabei com a Feira do Cacareco. Foi aí que surgiu a ideia de ampliar um pouco mais, porque ficou na minha cabeça aquela coisa, “eu só vou ter minha libertação, Dona Amabília, no dia que eu tiver meu dinheiro na minha mão, uma profissão para eu ganhar meu dinheiro para eu não precisar pedir nada ao meu marido”. Aquilo ficou na minha cabeça... Um dia, meu colega que era secretário de Assistência Social, descobriu lá nos papéis dele, lá nas gavetas, que tinha uma escritura de um local que tinha sido uma creche. A creche estava lá toda abandonada, toda depredada. Ele foi lá visitar, e disse: “não quero mexer com isso não, eu já sei a quem vou entregar”. Assim, mandou me entregar a escritura da creche depredada, toda depredada, mas muito bom prédio, bem construído. Quando olhei para creche, disse: “Nossa senhora, caiu do céu”. Fomos em uma pequena comissão falar com a Prefeita e seu secretário, mas eles disseram: “Amabília, a Prefeitura está numa situação tão difícil, tão difícil, que a gente não pode lhe dizer que vai poder ajudar nesse projeto”. Mas já estava com o projeto pronto; mostrei o projeto, mas eles não tinham dinheiro. Fiquei assim um pouco decepcionada, mas falei para minhas colegas: “Nós vamos fazer, vamos fazer o Centro de Profissionalização da Mulher. Não vamos nos desgostar não. Agora na primeira Feira do fim do ano, vamos jogar duro, vamos ganhar dinheiro. Agora tudo que se fizer lá dentro da Instituição, biscoito, pão... até uma fábrica de picolé”. Fomos ganhando dinheiro e arrumando, pedindo doação de azulejo, disso e daquilo... Em dezembro, inauguramos o Centro de Profissionalização da Mulher com doze oficinas profissionalizantes, até oficina de informática. Nós ganhamos porque as pessoas acreditavam no que a gente fazia; se a pessoa fala a verdade, as outras pessoas acreditam. As mulheres daquela região ficaram numa felicidade! Para elas foi a coisa melhor que poderia ter acontecido. Profissionalizamos cerca de oito mil mulheres. E ganhou muita notoriedade, vivia nos jornais, pois é isso o que vai dar a independência da mulher. O Centro de Profissionalização da Mulher foi uma coisa que me encantou muito.

Estou lembrando aqui de outras duas coisas importantes. Quando eu estava na Assembleia Legislativa, a Constituição Cidadã foi 1988. Então, tínhamos fundado a Casa da Mulher Baiana e a primeira proposta que surgiu foi lutar pela aposentadoria da dona de casa. Essa proposta não foi da nossa Instituição, ela foi de uma companheira que até hoje batalha, ela é mineira. Fizemos tudo direitinho, papel timbrado da Assembleia Legislativa com autorização e tal. Tomamos setenta mil assinaturas de dona de casa, de mulheres. Mas não era assinatura qualquer não. Tinha título de eleitor, tinha RG e levamos pra Brasília. A Assembleia Legislativa nos ofereceu o ônibus e fomos. As quarenta e cinco mulheres, a lotação do ônibus, e fomos entregar ao Doutor Ulysses Guimarães a proposta da aposentadoria da dona de casa que queríamos que fosse inserida na Constituição brasileira. Ele nos recebeu galhardamente no seu gabinete, deu muita risada e disse assim: “Ah, então Dona Mora, que era esposa, também vai para poder se aposentar?”. Eu que estava representando, falava pela turma, disse: “Olha, Doutor Ulysses, eu já disse a nossas companheiras que nós não podemos ser imediatistas, que eu acho que o mal da gente é ser imediatista e querer pensar uma coisa hoje que amanhã já está acontecendo. É um processo, isto é um processo. Nós vamos continuar trabalhando, nós vamos continuar nossa luta, nós queremos que fique nas recomendações finais, se não puder entrar em lugar nenhum, que fique nas recomendações finais. Nós queremos é o direito da dona de casa contribuir para Assistência Social, contribuir para o INPS, contribuir para ela se aposentar”. Então, o tempo foi passando, foi passando, até que chegou aposentadoria, o direito da dona de casa de contribuir para se aposentar. Achei isso uma coisa muito boa! As de Minas Gerais também foram e conseguiram essa vitória com a gente!

Tem tanta conquista pra contar, por exemplo, a luta pelo direito do consumidor. Ah, mas tem outra coisa muito melhor. Essa é de mulher. É o seguinte, há muitos anos houve uma moça que trabalhava na Polícia Civil e era prima de um governador. Ela conseguiu um pequeno Batalhão de Polícia Feminina. Mas só trabalhava internamente. Então, aproveitei que o Waldir Pires era o governador da Bahia, era tanto meu correligionário como era meu amigo e fiz uma indicação. A indicação não tem a força do projeto de lei, mas ela tem a força porque ela é votada em Plenário. Fiz a indicação ao governador da Bahia, autorizando o Comandante-Geral da Polícia Militar a instalar o Batalhão de Polícia Feminina do Estado da Bahia. Não demorou muito e foi aberta inscrição para mulher poder ser da Polícia Feminina. Até hoje está aí, o Batalhão de Polícia Feminina com toda galhardia. Aqui temos até a Ronda Maria da Penha com prestígio enorme. Têm os carros que fazem a ronda para pegar os violentos, os que fazem violência contra as mulheres e tem o telefone. Então, essa foi boa. Se eu tivesse ficado naquela Assembleia, acho que eu tinha feito mais coisa.

Ah, a maior glória para terminar minha dança foi fazer parte da Comissão Estadual da Verdade do Estado da Bahia. Levantar, com outros companheiros, todas as atrocidades que foram praticadas pelos militares durante a Ditadura, levantamos tudo para ser encaminhado ao relatório nacional, no tempo em que a Dilma era Presidente da República...

Entrevistadores: Amabília, estamos absolutamente agradecidos e agradecidas. É uma delícia ouvir você. Gostaríamos de falar muitas coisas para você, porém o tempo é curto para uma vida tão rica. Mas uma delas não podemos deixar de dizer: sua ação tem mãos femininas, ela é delicada, é do miúdo, com a fortaleza que é necessária. São soluções que vêm de saberes da vida feminina. E isso nos toca profundamente. A dignidade com que você vai contando cada uma das coisas mostra essas mãos delicadas. Você transmite alegria, porque a alegria liberta, alegria é possibilitadora e a senhora manteve isso. E nos deu hoje uma imensa alegria. Muito obrigada!

Amabília: Eu que agradeço vocês terem ficado tanto tempo escutando. E quero dizer só uma coisa, que sempre digo brincando: pensavam que essas mulheres só prestavam para ficar no pé do fogão, no tanque lavando roupa? Quando essas mulheres tiverem oportunidade vão mostrar do que são capazes de fazer. Elas estão aí, vão passo a passo ganhando seus espaços. Nós vamos chegar lá e vamos ganhar os nossos espaços iguaizinhos, sem briga, só com a nossa persistência, com a nossa competência.

REFERÊNCIAS

CESAR, Elieser. Contreiras, camarada engenheiro: uma história de luta e coerência. Salvador: Caros Amigos, 2009. [ Links ]

PONCE, Branca Jurema. O currículo e seus desafios na escola pública brasileira: em busca da justiça curricular. Currículo Sem Fronteiras, v. 18, n. 3, p. 785-800, set./dez. 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.curriculosemfronteiras.org/vol18iss3articles/ponce.pdf . Acesso em: 30 nov. 2022. [ Links ]

PONCE, Branca Jurema; ARAÚJO, Wesley Batista. A justiça curricular em tempos de implementação da BNCC e desprezo pelo PNE (2014 - 2024). Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 17, p. 1045-1074, 2019. Disponível em: Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum/article/view/44998/30034 . Acesso em: 30 nov. 2022. [ Links ]

ROCHA, João Augusto de Lima. Breve história de Anísio Teixeira: desmontada a farsa da queda no fosso do elevador. Salvador: EDUFA, 2019. [ Links ]

SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. [ Links ]

SOUZA, Silvana Oliveira. Amabília Almeida, mulher e política: uma feminista baiana nos redutos do poder. Salvador: Alba, 2019. [ Links ]

NOTAS:

1 A sociologia das emergências, segundo Santos (2020), é um dos instrumentos principais das epistemologias do Sul, que objetiva a produção e a validação de conhecimentos ancorados em experiências de resistência de todos os grupos sociais que têm sido sistematicamente vítimas da injustiça, da opressão e da destruição causadas pelo capitalismo, colonialismo e patriarcado.

2 O Centro Integrado de Educação Popular Carneiro Ribeiro foi concebido por Anísio Teixeira, em 1950, para introduzir o ideal da escola em tempo integral na Bahia. Esse conjunto educacional incluía a Escola Parque, além de quatro escolas classes (ROCHA, 2019).

3 A Constituição do Estado da Bahia foi promulgada em 1989. Maiores informações em http://www.legislabahia.ba.gov.br/documentos/constituicao-do-estado-da-bahia-de-05-de-outubro-de-1989. Acesso em: 30 nov. 2022.

44 A Comissão Estadual da Verdade do Governo do Estado da Bahia foi criada em 2012 com a finalidade de auxiliar a Comissão Nacional da Verdade a examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas na ditadura militar, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica no Estado da Bahia e contribuir para a promoção da reconciliação nacional. Maiores informações em http://www.atom.fpc.ba.gov.br/index.php/comissao-estadual-da-verdade-2. Acesso em: 30 nov. 2022.

5 O Diploma Bertha Lutz, concedido pelo Senado Federal, é um reconhecimento dedicado a pessoas que tenham contribuído para a defesa dos direitos da mulher e para as questões do gênero no Brasil. Amabília Almeida recebeu a premiação no ano de 2013. Maiores informações em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/conselhos/-/conselho/cdbl/agraciados/0. Acesso em: 30 nov. 2022.

6 A convite do governador da Bahia Otávio Mangabeira, Anísio Teixeira ocupou a Secretaria de Educação e Saúde do Estado da Bahia de 1947 a 1951 (ROCHA, 2019).

7 A partir de 1954, Anísio Teixeira assumiu os cargos de secretário geral da CAPES e diretor do Inep, permanecendo até 1964 (ROCHA, 2019).

8 Luiz Contreiras foi um dos principais líderes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na Bahia. Militante histórico do partido, participou ativamente das principais lutas políticas do povo brasileiro no final dos anos 1940 até os seus 93 anos. Pela sua militância foi preso três vezes. A prisão mais dramática ocorreu em meados dos anos 1970, quando, por meio da Operação Radar, a ditadura militar o prendeu, torturou-o com choques elétricos e espancamentos violentos, causando-lhe costelas quebradas e ferimentos profundos (CESAR, 2009).

9 O Movimento Feminista Socialista é produto das articulações das lutas feministas e socialistas pela emancipação das relações humanas, tendo como objetivo a conquista da igualdade na diversidade (SOUZA, 2019).

10 A Associação Feminina da Bahia surgiu no final da década de 1940 envolvida nas lutas pela campanha da paz no País e tinha um forte vínculo com o PCB, no qual as mulheres podiam atuar na luta social. A Associação prestava um grande serviço social à população dos bairros mais carentes de Salvador (SOUZA, 2019).

11 Durante a década de 1950, as associações docentes estaduais começaram a se organizar em âmbito nacional por meio de Congressos Nacionais de Professores Primários, o que representou um importante espaço de discussão para os docentes desse nível, bem como um espaço de luta de diversas entidades para um estabelecimento de um modelo associativo nacional, o qual começa a se configurar desde o primeiro congresso realizado na Bahia em 1953 (SOUZA, 2019).

12 Entre as recomendações do I Congresso Nacional de Professores Primários encontravam-se várias reivindicações, entre elas a defesa do piso salarial do magistério em todo o Brasil de três mil cruzeiros. Esse parece ser um indício significativo das repercussões da tese de Amabília apresentada no Congresso. Afinal, tratava-se de uma proposta de não apenas solucionar os problemas da educação pública, mas também de proporcionar aos professores uma carreira digna, valorizada e que fizesse jus ao trabalho desenvolvido (SOUZA, 2019).

13 No dia 2 de abril de 1964, o governador Lomento Júnior comunicou pessoalmente ao povo baiano pela televisão seu apoio à “Revolução”. O Golpe de 64 acelerou transformações na dinâmica do poder no estado da Bahia desenvolvido (SOUZA, 2019).

14 A Escola Experimental, localizada no bairro da Vila Laura, em Salvador, com mais de 50 anos de existência, possui atuação de destaque na cidade como uma instituição com prática libertadora e aberta às inovações educacionais (SOUZA, 2019). Foi uma escola que acolheu os filhos e netos dos perseguidos políticos pela ditadura militar, como a família Marighella.

15 Amabília Almeida apresentou na Câmara de Vereadores de Salvador um projeto para formar uma comissão de Defesa do Consumidor. Esse projeto foi aprovado e a comissão entrou em funcionamento em 1983 (SOUZA, 2019).

16 Anísio Teixeira foi Inspetor-Geral de Ensino na Bahia, nomeado pelo governador Francisco Marques Miguel Calmon, em 1924 (ROCHA, 2019).

17 Em 1931, Anísio Teixeira foi para o Rio de Janeiro onde assumiu a direção da Educação do Distrito Federal, na gestão do Prefeito Pedro Ernesto (ROCHA, 2019).

18 De 1936 a 1945, Anísio Teixeira dedicou-se à vida empresarial na Bahia, por estar impedido de atuar na área da educação pública em razão da ditadura do Estado Novo (ROCHA, 2019).

19 Lídice da Mata foi prefeita de Salvador de 1993 a 1996. Maiores informações em https://www.camara.leg.br/deputados/139285/biografia.

Recebido: 18 de Outubro de 2022; Aceito: 16 de Novembro de 2022

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