Alinhada com sua política editorial, a Revista e-Curriculum apresenta ao público um dossiê temático intitulado Currículo e tecnologias: redes, territórios e diversidades , que congrega um conjunto de vinte e sete artigos reveladores da diversidade reinante no tratamento de um tema que se tornou o centro das preocupações de gestores, educadores e pesquisadores a partir do período pandêmico da Covid-19 causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, quando emergiram experiências educacionais dramáticas e novas questões de investigação.
A crise gerada por essa realidade insólita foi agravada no Brasil pelos avanços das contrarreformas implantadas pelo governo federal com o intuito de destruir os sustentáculos basilares da política educacional vigente, provocando marcas inolvidáveis nas práticas escolares e no pensamento educacional. Torna-se, assim, evidente a pertinência de disseminar resultados de estudos e promover o debate consistente sobre o currículo em suas prescrições e vivências no cotidiano em associação com as tecnologias, as aprendizagens, a formação de professores e a prática pedagógica enfatizada em diferentes investigações pautadas por fundamentos teóricos e metodologias diversificadas.
Não podemos olvidar o legado da pandemia! Somos impelidos a esquadrinhar as redes, os territórios e as diversidades instituídos com a mediação das tecnologias, em especial as digitais de informação e comunicação, nas políticas públicas, nos projetos e nas práticas educacionais.
É nosso mister reconhecer as abordagens adotadas, conscientes do recrudescimento de concepções salvacionistas inspiradas na ideia de que a adoção de inovação tecnológica e a instrumentalização do ensino, intensificadas pela globalização, garantem a inovação educacional, em contraposição às propostas educacionais fundadas no diálogo, no respeito à multiplicidade de culturas, linguagens, letramentos, identidades e experiências de professores e estudantes em uma perspectiva de educação humanista, que visa o bem-estar e o bem viver com dignidade. Por conseguinte, tratar da educação e do currículo requer considerá-los em sua complexidade e múltiplas dimensões implícitas em contextos marcados pela diversidade de culturas, desde as ancestrais até a cultura digital.
A compreensão da urgência de lançar luzes sobre as redes constituídas, a expansão de territórios para além dos espaços e tempos convencionais, e sobre as diversidades evidenciadas na última década, ressaltadas e amplificadas pela pandemia, despertou o interesse de autores nacionais e internacionais que submeteram seus trabalhos ao escrutínio de pareceristas para compor este dossiê. A conscientização da premência do tema adotado ajuda a entender o elevado afluxo de submissões de artigos científicos e ensaios críticos qualificados para publicação neste dossiê, que demandou imensos esforços de pareceristas e da equipe editorial, bem como levou os organizadores deste a adotar critérios de seleção com base na distribuição dos artigos aprovados pelos diferentes países de origem dos autores, diversificadas regiões do Brasil, diversidade temática e institucional.
Os artigos deste dossiê oferecem uma ampla visão da diversidade prevalente nos artigos de abordagem teórica ou estudos que tratam de revisão de literatura, construções conceituais, métodos e resultados de investigações, análise de experiências ou de políticas, agrupados em torno de temáticas acerca de currículo, redes e territórios, com subgrupos relacionados ao contexto investigado. Há artigos que acoplam dois ou mais desses temas e, por razão da organização linear do texto, são apresentados no tema considerado mais atinente.
Os três primeiros artigos são de natureza teórica.
O primeiro, de autoria de Lhays Marinho da Conceição Ferreira e Rita de Cássia Prazeres Frangella e de, ambas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), apresenta um texto intitulado “Deu match: currículo e tecnologia em tempos de ‘precisão e clareza’”, que analisa a relação entre tecnologia, currículo, conhecimento, a partir do Guia de Implementação de Estratégias de Aprendizagem Remota, produzido pelo Centro de Inovação para a Educação Brasileira (Cieb), concluindo que essa relação acaba por reduzir a educação ao ensino e a tecnologia a meio, e que esse sentido se adensou no contexto pandêmico, com o atrelamento do currículo unificado e prescritivo ao conhecimento científico unívoco, numa tentativa de conter a produção de sentidos. Entendem as autoras que há necessidade de reativar outros sentidos para as relações entre tecnologia, currículo e conhecimento, recuperando a dimensão discursiva dessa produção.
O segundo texto, de Ana Maria Hessel, Lucila Pesce e Adriana Rocha Bruno, pesquisadoras com afiliação institucional, respectivamente, à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e à Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), apresenta um ensaio intitulado “Paulo Freire e cultura digital: contribuições para as docências decoloniais e os processos (trans)formativos”. Versam, portanto, sobre a relação entre a proposta educacional freiriana, cultura digital e decolonialidade. As autoras fundamentaram-se em teóricos que estudam os limites e as possibilidades da cultura digital nas práticas sociais contemporâneas, entendendo que as mídias digitais têm sido perversamente cooptadas pelo ideário neoliberal, mas que a cultura digital carrega consigo uma potência para enfrentar o recrudescimento de posições reacionárias desse ideário. Concluem que a tríade conceitual tem pujança para construir processos transformativos e práticas sociais emancipadoras, solidárias, voltadas ao desenvolvimento da consciência socioambiental. A tessitura teórica desenvolvida é relevante diante do recrudescimento do colonialismo embalado pela instrumentalização do ensino, da privatização, da plataformização e da algoritmização da educação.
O terceiro artigo é de autoria de Daiana Steyer, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Patrícia Scherer Bassani, da Universidade Feevale, e Patrícia Alejandra Behar, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), intitulado “Pistas para um modelo pedagógico para Educação OnLife com foco no Personal Learning Environment”. Com abordagem qualitativa e eminentemente teórica, as autoras buscaram identificar aproximações entre as perspectivas da Educação OnLife e Personal Learning Environment (PLE) que possibilitem a proposição de um Modelo Pedagógico para práticas educacionais mediadas por tecnologia. Apresentam como resultado três possibilidades: aprendizagem mediada pela agência no ambiente pessoal do aprendiz; aprendizagem inventiva; e aprendizagem ocorrida durante a interação social e tecnológica. Os resultados permitiram ampliar o aspecto metodológico de Modelos Pedagógicos para práticas que incorporem as tecnologias. O modelo concebido se mostra alinhado com a integração de tecnologias na atividade do aprendiz por meio de processos de interação e criação, sugerindo uma perspectiva de currículo que é reconstruído na prática pedagógica.
São quatorze artigos que tratam do tema currículo. Sete deles, apresentados a seguir, versam sobre o currículo no nível da Educação Básica.
O primeiro desses textos, de autoria de Hugo Souza Garcia Ramos e de Geide Rosa Coelho, ambos da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), é intitulado “Tecnologias e políticas curriculares da Educação Básica: uma análise arqueológica do discurso”. Os autores, utilizando a análise de discurso como método de pesquisa, descrevem de que modo se constrói um discurso sobre as tecnologias, nas políticas curriculares da educação básica, mapeando as diferentes concepções de tecnologia. Na análise dos resultados do mapeamento, os autores não identificaram uma sequência linear de concepções nas políticas curriculares, concluindo que há um discurso híbrido no que diz respeito às concepções, ou seja, uma hibridização de tendências teóricas distintas.
O texto seguinte, o segundo dessa temática, é de autoria de Éverton Vasconcelos de Almeida e de Roseli Zen Cerny, ambos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), intitula-se “Integração de TDIC ao currículo: as perspectivas de tecnologia presentes nos documentos oficiais da política de Santa Catarina”. No artigo, os autores analisam documentos oficiais para identificar constâncias, descontinuidades e particularidades de concepções relacionadas à integração das tecnologias digitais ao currículo. Na análise efetuada, demonstram que o tema tecnologias sempre esteve presente nos textos curriculares, inicialmente nas entrelinhas e crescendo de importância no decorrer do tempo, evidenciando o predomínio da perspectiva substantivista ao abordar a integração das tecnologias ao currículo. O terceiro texto relativo a currículo é de autoria de Luane da Silva Gomes Almeida,
Barbra Sabota e Olira Saraiva Rodrigues, pesquisadoras da Universidade Estadual de Goiás (UEG), e tem por título “O letramento multimodal na aprendizagem do gênero crônica: uma possibilidade de mediação pedagógica”. No texto, as autoras discutem a produção textual multimodal do gênero crônica, em uma perspectiva de multiletramentos, considerando o potencial da mediação pedagógica interposta pelas tecnologias digitais na aprendizagem. Para o efeito, realizaram um estudo a partir da produção de crônicas por alunos do nono ano do Ensino Fundamental de uma escola pública em Brasília, durante o período de ensino remoto emergencial instalado pela pandemia Covid-19, concluindo que as novas práticas sociais determinaram diferentes formas de se expressar e comunicar, pressupondo um currículo com práticas de uso da língua mais contextualizado e dialógico.
O quarto texto, de autoria de Silvana Donadio Vilela Lemos, do Centro Universitário Senac, e de José Armando Valente, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), tem o seguinte título: “Estudo da cultura maker na escola”. Os autores consideram que a Educação Maker nas escolas pode impulsionar a transformação do trabalho pedagógico pela inversão do modelo de ensinar e aprender. Chegam a essa conclusão após discutirem as contribuições de seis atividades maker para a formação dos alunos de uma escola pública de Educação Básica. Consideram haver evidências na pesquisa de que os alunos, em colaboração com colegas e seus professores, protagonizaram a produção de três protótipos de projetos sustentáveis, com a utilização de materiais recicláveis, o reuso de objetos e o emprego de tecnologias digitais. Desse modo, existe o desafio de articular os estudos curriculares com as atividades maker.
O quinto texto é de autoria de Maria de Jesus Ferreira César de Albuquerque, da Universidade Federal do Amapá (Unifap), e de Elizângela Farias de Oliveira, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), intitulado “Tutoria pedagógica e currículo: intervenção e possibilidades de mentoria no tempo dos sujeitos”. Com a pesquisa, as autoras visam discorrer e refletir sobre a experiência de intervenção da tutoria pedagógica no tempo dos sujeitos, decorrente de uma formação de coordenadores de desenho curricular realizada em modelo remoto sincrônico com situações de aprendizagens híbridas e tutoria pedagógica on- line. Os participantes da pesquisa foram profissionais da educação das modalidades da educação básica e da educação profissional, aos quais foram aplicados questionários com perguntas abertas e fechadas, cujos depoimentos subsidiaram a estrutura e a análise de dados. Como resultados, os autores enfatizam a importância de desenvolver a intervenção pedagógica no tempo de aprendizagem dos sujeitos e o desdobramento de uma mentoria pedagógica sob a perspectiva de práticas contemporâneas.
O sexto texto, que enfatiza o currículo na Educação Básica, de autoria de Allyson Carvalho de Araújo e Everton Cavalcante, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), tem por título “A aproximação de professores de Educação Física com mídia e tecnologia e seus reflexos com relação à pandemia de Covid-19”. O artigo relata e identifica as formas pelas quais o tema de mídia e tecnologia foi abordado por um grupo de professores de Educação Física escolar da cidade do Natal (RN), procurando compreender como tais elementos reverberaram durante o período de ensino remoto emergencial decorrente da pandemia de Covid-19. Os resultados da pesquisa qualitativa, com base em análise de documentos curriculares relacionados à Educação Física e entrevistas realizadas com professores dessa área curricular, apontam para uma gradativa aproximação dos professores com o tema da mídia e tecnologia, bastante aprofundado a partir da vivência na pandemia. A continuidade desse estudo poderá revelar se esse tema se manteve presente nas atividades de Educação Física escolar após a pandemia.
O sétimo artigo da temática currículo está centrado no Ensino Médio integrado à formação profissionalizante. O texto, de autoria de Elaine Márcia Souza Rosa, Elizângela de Souza Bernaldino, Clarides Henrich de Barba e Berenice Perpétua Simão, quatro pesquisadores com afiliação institucional à Universidade Federal de Rondônia (Unir). Tendo por título “As TICs na Educação Ambiental de estudantes da Educação Profissional e Tecnológica em Rondônia”, as autoras analisam o processo formativo em Educação Ambiental (EA) de estudantes dos cursos técnicos integrados ao ensino médio do Instituto Federal de Rondônia (Ifro), em tempos de pandemia, a partir da perspectiva curricular e do uso das TIC. Na análise dos dados, resultantes da aplicação de questionários e da realização de encontros dialógicos com os estudantes participantes da pesquisa, constatam que a EA, nas matrizes curriculares dos cursos técnicos do Ifro, perpassa a transversalidade e que o uso das TIC no processo formativo favoreceu o desenvolvimento do ensino e da aprendizagem perante a pandemia da Covid-19.
A temática do currículo é objeto de estudos em seis textos que versam sobre o ensino superior.
O primeiro desses textos, oitavo da temática currículo, é de autoria de Natana Lopes Pereira e Márcio Vieira de Souza, ambos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tem por título “Ecologia das mídias e a plataformização: desafio curricular no ensino híbrido”. No texto, os autores abordam os desafios curriculares na integração do ensino híbrido na educação superior a partir do cenário de plataformização da sociedade, considerando a perspectiva teórica da ecologia das mídias. Por meio da realização de uma pesquisa-ação em uma disciplina do ensino superior, com coleta de dados ocorrida por meio da observação participante, revisão bibliográfica e acesso aos materiais e plataformas utilizadas, os autores constataram que a inovação dos modelos educacionais exige um currículo que possibilite adaptações em seus elementos.
O nono texto da temática currículo, de autoria de Klalter Bez Fontana e de Dulce Márcia Cruz, pesquisadores da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), tem por título “Letramento midiático no currículo da Pedagogia e nas experiências docentes durante a pandemia da Covid-19”. Os autores apresentam o recorte de uma pesquisa de doutorado que buscou identificar os elementos da formação para as mídias na grade curricular de três cursos de Pedagogia em duas universidades públicas localizadas no estado de Santa Catarina. As análises foram sustentadas pelos estudos da mídia-educação, letramento midiático e identidade docente. Os resultados apontam que as mídias ainda não constituem um eixo importante na formação inicial dos pedagogos e, apesar de o currículo dos cursos contemplar disciplinas sobre mídias, essas disciplinas encontram-se isoladas. Os estudos acerca da temática mostram que a formação para as mídias requer transversalidade e contextualização com o lócus de atuação do pedagogo.
O décimo texto, de autoria de Ana Patricia Sá Martins, Letícia Aparecida Nunes Moraes e Tatiana da Silva Pereira, pesquisadoras da Universidade Estadual de Maranhão (UEMA), tem como título “Ensino remoto emergencial e tecnologias digitais: tessituras curriculares no processo de (trans)formação de professores”. O artigo, com pesquisa realizada no contexto da pandemia de Covid-19, tem como objetivo averiguar as percepções dos licenciandos do curso de Letras, da UEMA, quanto à sua aprendizagem no ensino remoto. Efetuando uma análise das diretrizes curriculares implementadas no contexto pandêmico pela universidade e dos discursos dos licenciandos, as autoras consideram que houve significativas mudanças nas perspectivas didáticas prescritas pela instituição, ao fornecer orientações ao corpo acadêmico quanto às adaptações nas práticas de ensino e aprendizagem. Ademais, os estudantes fazem valorações positivas no que tange aos usos das tecnologias digitais como instrumentos de ensino e aprendizagem, a serem utilizados para além do ensino remoto emergencial.
O décimo primeiro artigo, de Isabel Dans Álvarez de Sotomayor, da Universidade de Santiago de Compostela (USC), localizada na Galiza, Espanha, tem o seguinte título: “Geração Z: tecnologia e currículo nos futuros professores”. A autora considera que a Geração Z (jovens nascidos no início do século XXI) integra hoje a população estudantil das universidades, sendo jovens que usam a tecnologia desde a infância em suas vidas diárias. Por conseguinte, desde 2020, uma mudança digital deve afetar os futuros professores em sua competência de ensino digital, pois fazem parte dessa geração Z. Em sua pesquisa, a autora estudou esse fenômeno da educação digital com um grupo de estudantes universitários do primeiro ano do curso de Educação Infantil em formação inicial, revelando que o uso das tecnologias ainda é maioritariamente para o lazer e são as competências técnicas que produzem maior insegurança, havendo necessidade de apoiar o desenvolvimento profissional dos professores de todas as áreas.
O décimo segundo texto, de autoria de Carlos Alberto Lima de Oliveira Pádua, Antonia Dalva França-Carvalho e Joaquim Luis Medeiros Alcoforado, os dois primeiros da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e o terceiro da Universidade de Coimbra (UC), Portugal, é intitulado “Educação a Distância: processo de ruptura tecnológica e social na formação de professores”. Os autores têm por objetivo refletir sobre a viabilidade do acompanhamento da qualidade da Educação a Distância (EaD), cuja ascensão no Brasil, principalmente na atualidade, tem possibilitado de forma quantitativa o processo formativo de professores. Para o efeito, realizaram uma análise bibliográfica de estudos de diversos de autores que relacionam a EaD como ruptura tecnológica e social, apontando os resultados para a necessidade de investimentos estruturais perante a realidade do cidadão brasileiro, bem como de práticas diferenciadas que possam efetivar a aprendizagem reflexiva dos estudantes de cursos de licenciaturas.
O décimo terceiro artigo da temática currículo, “Competências TPACK de docentes que publicam WebQuest”, é de autoria de Fabiana dos Santos Matos Eugênio Cunha e Antonio Casero Martínez, a primeira autora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e o segundo da Universidade das Ilhas Baleares (UIB), localizada em Palma de Maiorca, Espanha. A pesquisa é de natureza exploratória com dois questionários aplicados a trezentos e dez docentes brasileiros: um sobre conhecimentos TPACK (Tecnologia, Pedagogia e Conhecimento) e outro sobre prática docente, cujo objetivo consistiu em avaliar a autopercepção docente sobre os seus conhecimentos TPACK para desvelar os elementos que contribuem (ou limitam) o desenvolvimento de atividades com WebQuest. Na análise dos resultados, os autores verificaram que os docentes, no geral, apresentam percepções elevadas sobre seus conhecimentos TPACK, existindo diferenças quanto ao gênero e ao nível acadêmico dos docentes participantes na pesquisa.
O décimo quarto artigo da temática currículo aborda a educação de jovens e adultos (EJA), cujas autoras são Jarina Rodrigues Fernandes, Mariah Cruz de Souza Tronco e Marcela Fontão Nogueira, as três da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e tem como título “Tecnologias e Currículo da EJA no Brasil em tempos de pandemia: para que, para quem?”. As autoras realizam um ensaio no qual discutem como as tecnologias analógicas e digitais estiveram presentes em propostas curriculares da EJA no cenário da pandemia no Brasil. Com referencial teórico ancorado em construtos freireanos (apreender a realidade, situações-limite, ação-reflexão-ação e construção de inéditos viáveis), o estudo identifica quatro papéis desempenhados pelas tecnologias: para estabelecer contato com os educandos; para criar ou fortalecer redes de colaboração entre educadores e educandos; para promover práticas pedagógicas via ensino remoto emergencial; e para implementar a modalidade via educação a distância, tendo em vista seu alinhamento à Base Nacional Comum Curricular e ao Novo Ensino Médio.
São dez artigos que tratam de temáticas relacionadas à rede, ambiente virtual, ambiente pessoal de aprendizagem, cultura digital e temas correlatos. Nessa tônica, os artigos inter- relacionam estudos teóricos com análises de distintos contextos de investigação, da educação básica, superior ou da EJA.
Seguem cinco artigos que tratam da educação básica, dos quais três tecem críticas similares às explicitadas em artigos anteriores, especialmente aqueles que enfatizam o ensino médio, cuja proposta curricular tem sido foco de análises contundentes da parte de educadores, gestores e pesquisadores.
O primeiro artigo do conjunto que aborda temas relacionados às redes e ambientes virtuais tem como título “A Seduc/RS na Apropriação das TDIC no Ensino Médio: o que a análise das notícias institucionais revela?”, produzido por Brenda Jover, Maria Beatriz Luce, Matheus Saraiva e Ângela Both Chagas, todos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O texto em questão apresenta a análise de 93 notícias do site da Secretaria da Educação do Rio Grande do Sul (Seduc-RS), publicadas entre 2020 e 2022, a fim de caracterizar os atores envolvidos na apropriação das TDIC por professores e estudantes de Ensino Médio, a partir das relações propiciadas pela Seduc-RS. O estudo identificou o privilégio dado pelo governo estadual aos grupos empresariais privados, em detrimento de sujeitos das comunidades escolares, para implantação das TDIC na rede pública, destacando a apropriação do espaço público pelo privado, por meio de ações de ensino a distância e privatização.
No segundo artigo desse conjunto, as autoras Hellen Gregol Araújo e Alice Casimiro Lopes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), apresentam o texto intitulado “Ações de redes políticas na pandemia: defendendo a aprendizagem e apagando contextos”, com os resultados de uma investigação sobre a disseminação de planos de aula e propostas curriculares por instituições privadas e filantrópicas durante o período da pandemia de Covid-
19. Para tal, a investigação analisou os discursos das redes políticas formadas pelas instituições, encontrados em lives, eventos por videoconferência, cursos e publicações on-line, realizados no período de 2020 a 2022, identificando a ênfase dada à aprendizagem mediatizada pelas tecnologias, com o ofuscamento do possível cenário de horror gerado pela perda de conhecimento/aprendizado em razão do fechamento das escolas na pandemia. Este artigo reitera a ocupação da educação pública por outros setores por meio da oferta de materiais para a reprodução pelo professor despojado do agir/pensar sobre a própria prática.
O terceiro artigo intitulado “A reforma do Ensino Médio e a plataformização da educação: expansão da privatização e padronização dos processos pedagógicos”, de Renata Peres Barbosa, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e Natalia Alves, da Universidade de Lisboa (UL), apresenta, a partir de uma análise bibliográfica e documental acerca dos pressupostos políticos e pedagógicos quanto ao processo de plataformização da educação, intensificada com a implementação da reforma do Ensino Médio, os possíveis efeitos impostos à organização do trabalho pedagógico, ao currículo e ao trabalho docente. A análise dos recursos e plataformas digitais adotados pelo estado do Paraná permitiu vislumbrar uma janela de oportunidades para a expansão de novos nichos de mercado e espaços de privatização, bem como de padronização dos currículos e dos processos pedagógicos. A análise encetada a respeito da plataformização da educação coaduna-se com as críticas de outros artigos deste dossiê.
O quarto texto, de autoria de Telma Brito Rocha e Cleyton Brandão, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e Leny Mara Souza, da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), apresentam o estudo “Fake news e currículo: percepções dos professores de Língua Portuguesa do Território de Identidade Vale do Jiquiriçá/Bahia”, no qual analisaram a compreensão sobre fake news dos professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Educação do Vale do Jiquiriçá/Bahia. Fazendo uso de uma abordagem qualitativa e quantitativa e tendo como instrumento de coleta de dados um questionário misto on-line, os autores identificaram entendimentos equivocados acerca das fake news e da utilização de meios limitantes das estratégias para checagem dos fatos, bem como êxitos importantes na abordagem curricular. Esses resultados mostram a relevância de investir na formação de professores voltada à apropriação crítica de tecnologias, aplicativos e interfaces.
O quinto artigo, com foco na contribuição do Projeto Connect ao Novo Ensino Médio em uma escola estadual, as autoras Sueli Perazzoli Trindade, Patrícia Lupion Torres e Raquel Pasternak Glitz Kowalski, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), tratam do “Novo Ensino Médio: os conteúdos científicos em rede nos processos de ensino e aprendizagem no projeto Connect”. A pesquisa, abrangendo professores e estudantes do Novo Ensino Médio em uma escola estadual, revelou que é importante repensar as práticas pedagógicas com conteúdos e ações científicas, de forma significativa e inovadora, articuladas com as redes e com as áreas do conhecimento relevantes à realidade dos estudantes. A nosso ver, esse exercício potencializa a visão crítica e cientificamente referenciada dos desafios do mundo real, podendo despertar a consciência sobre a importância do engajamento do estudante para fortalecer a participação da sociedade na resolução de seus problemas e desafios.
Um conjunto de quatro artigos contextualiza no ensino superior os estudos acerca das redes e dos ambientes virtuais.
No sexto artigo, Rafaela Esteves Godinho Leal e Maria Carolina da Silva Caldeira, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apresentam o texto “Governamentalidade algorítmica e saberes docentes: da transcrição à transcriação didática digital no ensino universitário em período pandêmico”, que analisa como se formou um saber docente específico (saber tecnodidático) durante o Ensino Remoto Emergencial, tendo como condições de emergência: bloqueios na produção do saber da prática docente; disponibilização da posição mestre ignorante; funcionamento dos mecanismos de transposição didática e de transcriação didática digitais. As análises revelam que o saber tecnodidático foi fruto da utilização das plataformas digitais no ensino, atendendo às urgências da governamentalidade algorítmica em produzir grande volume de dados na fabricação de uma educação orientada a dados. Tais resultados se coadunam com os elementos revelados em vários artigos deste dossiê a respeito da educação básica.
O sétimo texto, intitulado “Os contextos regionais e internacionais e o ensino de história na Amazônia mediados pelas redes sociodigitais”, a partir de dados de pesquisa realizada com 38 estudantes da disciplina Educação, Mídias e Tecnologias Digitais, da Licenciatura em História do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará, tem como autores Andrea Lilian Marques da Costa, Fernando José de Almeida e Breno Rodrigo de Oliveira Alencar, o primeiro e terceiro autores do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA) e o segundo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). O objetivo foi analisar uma experiência que propiciou construir desenhos de soluções tecnológicas para uso em sala de aula de modo a apoiar a formação profissional dos estudantes com a mediação de tecnologias digitais no estudo de questões sociais. As análises permitiram constatar a importância de se trabalhar de forma híbrida considerando o contexto territorial e social em que se desenvolve a vida dos estudantes. Os estudos revelaram a percepção dos problemas locais e a capacidade de uso coerente das TDIC no processo de aprendizagem e em práticas pedagógicas consistentes.
No oitavo artigo, “Aprendizagem em equipamentos computacionais de baixo custo em cursos de graduação: percepção dos estudantes em aulas remotas”, os autores Carlos Eduardo de Barros Paes e Karlene do Socorro da Rocha Campo, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), focalizam a primeira etapa de um estudo mais amplo, que visa contribuir para ampliar a inclusão digital no contexto educacional para além do acesso aos equipamentos e recursos tecnológicos, abarcando a construção de conhecimentos pelos discentes. A pesquisa qualiquantitiva apoia-se na importância dos instrumentos na relação entre homem e realidade em estudos sobre tecnologias digitais na educação e sobre educação equitativa, para analisar o uso técnico e pedagógico do Raspberry Pi e do smartphone em atividades remotas com graduandos e revela a potencialidade do uso do Raspberry Pi e do Smartphone na motivação para a aprendizagem em diferentes componentes curriculares dos cursos. Vale destacar a relevância da associação entre as tecnologias e os fundamentos educacionais que orientam seus usos em distintos campos de formação profissional.
No nono texto acerca de um estudo realizado em uma disciplina denominada Contextos contemporâneos e demandas populares do programa de pós-graduação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, as autoras Tatiana Stofella Sodré Rossini e Edméa Oliveira dos Santos, ambas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRJ), e Maristela Midlej Silva de Araújo Veloso, da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), discorrem sobre “A educação online na formação do pesquisador na pós-graduação stricto sensu: uma experiência com a produção de vídeos-pesquisa”. A partir da discussão sobre a importância da educação on-line e a compreensão das múltiplas linguagens na formação de pesquisadores na docência on-line, as autoras identificam o desenho didático interativo articulado aos dispositivos portfólio e vídeo- pesquisa para a formação do pesquisador na cibercultura. Ressaltam, assim, a intrínseca relação entre pesquisa, formação e ação e respectivos registros.
Por fim, um texto do dossiê adentra no tema dos territórios na EJA. O artigo de autoria de Flávia Andréa dos Santos e Sérgio Paulino Abranches, ambos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), intitula-se “As Tecnologias Digitais Móveis na EJA: territórios em movimento e a multiterritorialidade”. Os autores analisam a questão do encontro entre os territórios das Tecnologias Digitais Móveis com a EJA, os significados que margeiam esse encontro e como os sentidos de desterritorialização, reterritorialização e multiterritorialidade se inserem no diálogo. Utilizando-se de entrevistas realizadas com treze professores que lecionam nos Módulos I, II e III da EJA, os autores concluem que a multiterritorialidade perpassa pelas implicações atribuídas pelos professores ao uso das Tecnologias Digitais Móveis na EJA e pelo sentido de pertencimento construído. O artigo evidencia a essencialidade do diálogo e do papel do professor para a atribuição de significados e sentidos à multiterritorialidade presente na realidade dos estudantes de EJA.
Uma visão panorâmica dos vinte e sete artigos deste dossiê permite compreender a forte ênfase atribuída ao currículo em sua concepção e constituição. No conjunto dos vinte e sete artigos prepondera o tratamento das políticas públicas, associado com as orientações oficiais para o desenvolvimento do currículo no período da pandemia, em distintos níveis e modalidades de ensino. Temáticas acerca da cultura digital e das redes também se mostram recorrentes; já o território é tema abordado em um único artigo.
No conjunto do dossiê, a educação formal é a opção prevalente em contextos da educação básica (12 artigos) e da educação superior (10 artigos), com dois artigos a respeito da educação de jovens e adultos. Outros três artigos discorrem sobre estudos teóricos. Nota-se, também, a prevalência de artigos em coautoria entre pesquisadores de distintas instituições.
Os artigos sugerem que a pandemia induziu uma maior aproximação dos professores e dos pesquisadores/autores com as mídias e tecnologias muito além do que ocorria em suas práticas sociais anteriores. Entretanto, fica evidente o quanto uma mudança nas práticas não se sustenta sem a reconfiguração do currículo e sem ações voltadas para o desenvolvimento profissional docente orientado pela reflexão sobre o cotidiano de vivências e práticas dos professores e pela compreensão do que significa ensinar, aprender e desenvolver o currículo com a mediação de tecnologias.
A integração das tecnologias digitais de informação e comunicação nas práticas educativas, embasada por concepções educacionais emancipatórias, concretiza-se por meio de um processo de apropriação pedagógica dessas tecnologias, de modo a propiciar a superação da visão do instrumentalismo acrítico. Contudo, como salientado por alguns artigos deste fascículo, é preciso estar atento ao processo de adoção, algumas vezes imposta, de plataformas, algoritmos, aplicativos e recursos sem criticidade de modo a evitar a apropriação do espaço público pelo privado e a tecnologização da educação. O humano deve preponderar sobre a tecnologia e a técnica.
No conjunto de artigos, nota-se pouca ênfase atribuída à educação na pós-pandemia, tema fulcral diante da necessidade de compreender as experiências educacionais e curriculares após o retorno às atividades presenciais nas instituições, com as cicatrizes latentes que marcam a vida de cada pessoa em razão do vivido no período pandêmico da Covid-19. É necessário investigar as experiências exitosas e os desacertos desse período, que pode fornecer referências relevantes para o enfrentamento de outras crises e para um novo projeto de educação voltada ao ser mais humano.
A constituição do dossiê temático Currículo e tecnologias: redes, territórios e diversidades, propõe-se a contribuir para o adensamento do conhecimento acerca dos temas tratados, o desenvolvimento de novas investigações e práticas, o diálogo entre pares, oferecendo subsídios para expandir o olhar sobre temáticas candentes da educação e do currículo, especialmente com a mediação de tecnologias, digitais e analógicas.
É importante destacar que um dos critérios para inclusão dos artigos neste dossiê foi a diversidade de países e de estados do Brasil e, consequentemente, de universidades. Em razão da grande quantidade de textos aprovados (49) em criteriosa avaliação por revisores, de um total de 85 textos submetidos, outros textos aprovados serão publicados na demanda contínua da Revista e-Curriculum.
Os textos estão a dispor dos leitores que farão suas análises, num diálogo interpessoal com as narrativas expressas, buscando também inspiração para suas práticas educativas e novas investigação em torno de currículo e TDIC.
Esperamos que o conjunto destes textos possam despertar reflexões, diálogos e novos estudos que permitam consolidar as aprendizagens e identificar os legados decorrentes desse período desolador na direção de contribuir com a construção de uma educação crítica, solidária e socialmente comprometida com a edificação de uma sociedade próspera, inclusiva e venturosa.
Como organizadores do dossiê, agradecemos imensamente a receptividade dos pesquisadores/autores que participaram desse relevante processo de disseminação do conhecimento, dedicando-se a sistematizar seus estudos, produzir artigos em consonância com as políticas da Revista e-Curriculum e com o tema do presente dossiê, atender às recomendações dos avaliadores, colaborar com o processo de revisão e, finalmente, divulgar esta produção em suas redes! Agradecemos especialmente aos editores e à equipe técnica da revista que não mediram esforços para levar avante a produção de um dossiê de tal pujança. Desejamos que os leitores possam usufruir dessa organização e sistematização e tenham uma agradável e propositiva leitura!