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Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub Nov 13, 2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e61626 

Dossiê Temático: “Currículo e tecnologias redes, territórios e diversidades”

Tecnologias e Políticas Curriculares da Educação Básica: uma Análise Arqueológica do Discurso

Technologies and Curricular Policies in Basic Education: an Archaeological Discourse Analysis

Tecnologías y Políticas Curriculares de la Educación Básica: un Análisis Arqueológico del Discurso

Hugo Souza Garcia RAMOSi 
http://orcid.org/0000-0002-8341-9784

Geide Rosa COELHOii 
http://orcid.org/0000-0001-5358-9742

i Doutor em Educação. Pedagogo. E-mail: hugo-sgramos@hotmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-8341-9784.

ii Doutor em Educação. Professor da Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil. E-mail: geidecoelho@gmail.com - ORCID iD: http://orcid.org/0000-0001-5358-9742.


Resumo

Este artigo objetiva descrever de que modo se constrói um discurso sobre as tecnologias, nas políticas curriculares da educação básica, mapeando as diferentes concepções de tecnologia que se encontram presentes. Como pressuposto teórico, é abordada a perspectiva contemporânea da filosofia da tecnologia, a partir da categorização apresentada pelo filósofo Andrew Feenberg. Na pesquisa, foi utilizada a Análise do Discurso (AD) como método de pesquisa e os procedimentos foram orientados pela base epistemológica da teoria foucaultiana do discurso. Com relação aos resultados, não foi identificada uma sequência linear de concepções, ao longo das décadas, nas políticas curriculares. Conclui-se, na realidade, que há um discurso híbrido no que diz respeito às concepções, ou seja, uma hibridização de tendências teóricas distintas.

Palavras-chave: currículos; políticas; tecnologias

Abstract

This article aims to describe how a discourse on technologies is constructed in the curriculum policies of basic education, mapping the different conceptions of technology that are present. As a theoretical assumption, the contemporary perspective of Philosophy of Technology is addressed, based on the categorization presented by the philosopher Andrew Feenberg. In the research, Discourse Analysis (DA) was used as a research method and the procedures were guided by the epistemological basis of Foucault's theory of discourse. Regarding the results, a linear sequence of conceptions was not identified over the decades in curriculum policies. It is concluded, in fact, that there is a hybrid discourse regarding conceptions, that is, a hybridization of distinct theoretical trends.

Keywords: curriculum; policies; technologies

Resumen

Este artículo tiene como objetivo describir cómo se construye un discurso sobre las tecnologías en las políticas curriculares de la educación básica, mapeando las diferentes concepciones de tecnología que están presentes. Como supuesto teórico, se aborda la perspectiva contemporánea de la Filosofía de la tecnología, a partir de la categorización presentada por el filósofo Andrew Feenberg. En la investigación se utilizó el Análisis del Discurso (AD) como método de investigación y los procedimientos fueron orientados por la base epistemológica de la teoría foucaultiana del discurso. En cuanto a los resultados, no se identificó una secuencia lineal de concepciones a lo largo de las décadas en las políticas curriculares. En realidad, se concluye que hay un discurso híbrido en lo que respecta a las concepciones, es decir, una hibridación de tendencias teóricas distintas.

Palabras clave: currículos; políticas; tecnologías

1 INTRODUÇÃO

Vivemos em um tempo profundamente marcado pelas tecnologias e pelos artefatos digitais. Isso se deu em virtude de uma série de mudanças experimentadas pela sociedade contemporânea em que as tecnologias se impuseram como um elemento cada vez mais importante nos modos de viver, pensar, comunicar e educar, sobretudo com as experiências no período pandêmico. Podemos dizer que a constituição de nossa subjetividade está intimamente vinculada às tecnologias que nos rodeiam.

Nesse contexto, é possível observar, desde a década de 1980, o surgimento de várias ações governamentais voltadas às políticas de incorporação das tecnologias nas escolas, por meio de programas e projetos, como o Programa Nacional de Tecnologia Educacional (Proinfo), Programa Banda Larga nas Escolas (PBLE), Programa Um Computador por Aluno (Prouca), entre outros. Além disso, houve uma intensificação da produção curricular sobre os usos das tecnologias, inclusive no âmbito das políticas de currículo.

A incorporação das tecnologias nas políticas educativas e curriculares evidencia um espaço de luta, negociações e contradições, no qual o papel das tecnologias é significado, negociado, disputado e ressignificado (Heinsfeld; Pischetola, 2019). É um lugar de poder. Como resultado dessa complexidade, surgem diversas perspectivas sobre os usos das tecnologias nos currículos. Nesse sentido, existem muitos pesquisadores estudando a temática das tecnologias, com destaque para a formação de professores, educação a distância e usos pedagógicos dos artefatos digitais (Sossai; Grimm; Loureiro, 2016). Por outro lado, existe uma carência relacionada às políticas educativas.

Ancorados em um enfoque discursivo e pós-estrutural, buscamos nos situar em um espaço-tempo em que abandonamos a lógica representacional e as estruturas, ou seja, entendemos que a linguagem, em vez de representar o mundo, nomeando o que existe, ela o constrói. A ideia de estrutura é substituída pela noção de discurso. No entanto, a noção de discurso é ampliada principalmente com as contribuições de Foucault (2008), em que discurso não é sinônimo de linguagem, mas de prática discursiva. Conceber o discurso como prática discursiva significa defini-lo como “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa” (Foucault, 2008, p. 136). A partir dessa perspectiva, entendemos, assim, as políticas curriculares como discursos (Ball, 1993) e o currículo como prática discursiva e de significação (Lopes; Macedo, 2011).

Traçado esse panorama, propomo-nos a descrever de que modo se constrói um discurso sobre as tecnologias, nas políticas curriculares, mapeando as diferentes concepções de tecnologia que se encontram presentes. Para tanto, trouxemos a teorização de Feenberg (2003; 2015) como pano de fundo, bem como alguns autores da Teoria Pós-Crítica.

2 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

Para problematizar as diferentes concepções de tecnologia, aproximamo-nos de uma perspectiva contemporânea da filosofia da tecnologia, a partir da categorização apresentada pelo filósofo Feenberg (2003; 2015). Para o autor, podemos localizar as concepções de tecnologia em quatro principais teorias: instrumental, determinista, substancialista e crítica. Ao final, ampliamos a categorização proposta pelo autor trazendo a Teoria Pós-Crítica.

No instrumentalismo, como o próprio nome já demonstra, a tecnologia ganha um caráter estritamente instrumental. A tecnologia “é simplesmente uma ferramenta ou instrumento da espécie humana com o qual nós satisfazemos nossas necessidades” (Feenberg, 2003, p. 6). Com essa visão, emergem duas características específicas sobre ela. A primeira é isenta de valores, ou seja, “ela não tem qualquer preferência entre os vários usos possíveis a que possa ser empregada” (Feenberg, 2003, p. 6). É vista como um produto espontâneo que surgiu em nossa civilização e que a maioria das pessoas incorpora seus usos sem realizar nenhuma análise prévia. Nesse sentido, a tecnologia é vista como neutra. A segunda característica da tecnologia nessa concepção considera-a como humanamente controlável.

Pelo viés do determinismo, coloca-se como crença que a força motriz da história é o avanço tecnológico. Uma teoria que tem inspiração no marxismo e se encontra bem presente nas Ciências Sociais. Diversamente do instrumentalismo, no ideário determinista, a tecnologia não pode ser controlada pela humanidade, pelo contrário, é a tecnologia que controla os humanos. Em outras palavras, ela é vista como autônoma.

Os deterministas tecnológicos usualmente argumentam que a tecnologia emprega o avanço do conhecimento do mundo natural para satisfazer características universais da natureza humana, tais como as necessidades e faculdades básicas. [...] Não depende de nós adaptar a tecnologia a nossos caprichos, mas, pelo contrário, nós devemos adaptarmo-nos à tecnologia como expressão mais significativa de nossa humanidade (Feenberg, 2003, p. 7).

Nosso autor traz-nos à luz a fragilidade dessa teoria dizendo que sempre há escolhas e alternativas, que nunca temos somente um caminho determinado. Nas duas primeiras categorias abordadas, as tecnologias são vistas como neutras em si mesmas. Diferentemente, o substantivismo vai se preocupar e argumentar sobre o valor socialmente atribuído para determinada tecnologia, isto é, confere valores substantivos à tecnologia. Logo, ela não pode mais ser utilizada de forma isenta e Feenberg (2003, p. 9) nos adverte que

Se a tecnologia incorpora um valor substantivo, não é meramente instrumental e não pode ser usada segundo diferentes propósitos de indivíduos ou sociedades com ideias diferentes do bem. O uso da tecnologia para esse ou aquele propósito seria uma escolha de valor específica em si mesma, e não só uma forma mais eficiente de compreender um valor preexistente de algum tipo.

Nesse sentido, a tecnologia traz em si mesma certos valores, quer dizer, os valores que as tecnologias carregam são genéricos e representados a partir de abstrações, como eficiência e controle. Expliquemos melhor: se considerarmos que as decisões tecnológicas são adotadas em função da eficiência e controle, logo, uma sociedade que segue um caminho perante o desenvolvimento tecnológico traz consigo valores pontuais, que orientam um tipo específico de sociedade, tendo os fins ligados sempre aos meios. Por exemplo, um contexto no qual a posse de armas para civis é liberada cria um modelo de sociedade diferente daquele em que civis não podem adquirir armas.

Com a teoria crítica é possível começar a visualizar uma maior liberdade. Feenberg (2003; 2015) afirma que existe a crença de ser possível algum tipo de controle humano sobre a tecnologia, mas alerta que não será por meio do controle instrumental. Outra questão que também emerge é a crença que está carregada de valores inerentes. A teoria crítica, desse modo, acaba compartilhando características tanto do instrumentalismo quanto do substantivismo e se opondo ao determinismo.

De acordo com essa concepção, os valores contidos na tecnologia são socialmente específicos, não podendo ser representados e, assim, pertencer a qualquer tipo de sociedade. Existe aqui uma diferença no modo pelo qual o substantivismo enxerga os valores das tecnologias. A tecnologia “não molda só um modo de vida, mas muitos possíveis estilos diferentes de vida, cada um dos quais reflete escolhas diferentes de objetivos e extensões diferentes da mediação tecnológica” (Feenberg, 2003, p. 10). Nesse sentido, compreendemos que os valores carregados pelas tecnologias são determinados socialmente, ou seja, as tecnologias são “como estruturas de estilos de vida”.

Avançando um pouco mais nessa discussão, adentramos nas teorias pós-críticas que ampliam o que as teorias anteriores nos ensinaram, ao mesmo tempo que inserem novas questões. Compreender a concepção de tecnologia pelo viés dessa teoria exige primeiro situá-la no novo paradigma tecnológico que floresceu e difundiu-se no final do século XX. Para entender as proporções dessa revolução, Castells (2000) compara esse paradigma com a revolução industrial do século XVIII e afirma que o cerne da transformação referiu-se às tecnologias da informação, processamento e comunicação. Consequentemente, passamos a viver em um mundo digital.

As transformações vividas com essa “revolução” atingiram os planos dos corpos, da subjetivação e do virtual. São outras dimensões que emergem imbricadas à tecnologia. Fizeram surgir, como apontam Fonseca, Costa e Kirst (2008), novas forças escondidas nas virtualidades das tecnologias, possibilitando sua utilização como veículos produtores de sentido e sensibilidade.

Embora as teorias críticas sustentassem a tecnologia como estruturas de estilos de vidas, elas ainda mantinham relação com valores. São os valores trazidos pelas tecnologias que atuariam na moldagem de diferentes tipos de vidas. As teorias pós-críticas, por sua vez, partem de uma concepção de que as tecnologias são um vetor especial de um processo peculiar de subjetivação que tem modificado os modos de experimentação de si e do mundo (Fonseca; Costa; Kirst, 2008). Segundo Guattari (1992), as tecnologias podem ser o suporte para uma subjetividade modular.

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICO-ARQUEOLÓGICOS

Na pesquisa, utilizamos a Análise do Discurso (AD) como método de pesquisa e esclarecemos que abordamos a AD a partir do pensamento de Michel Foucault, que elabora suas reflexões por uma perspectiva pós-estruturalista. Precisamos elucidar, de imediato, que o autor propôs uma análise discursiva por meio da construção de seu método arqueológico. Por essa razão, denominaremos AD como Análise Arqueológica do Discurso (AAD). Apresentamos, a seguir, os procedimentos (método) que nos orientaram na análise do discurso das políticas curriculares sobre as tecnologias.

Quadro 1 Procedimentos metodológicos para análise arqueológica do discurso 

ETAPAS MOVIMENTOS PROCEDIMENTOS
1.ª ETAPA Mapeamento dos documentos Identificar, selecionar e organizar o corpus de documentos das políticas curriculares.
2.ª ETAPA Escavação do discurso Leitura sistemática de todo o material mapeado; levantamento e seleção dos enunciados em meio a sua dispersividade.
3.ª ETAPA Análise dos enunciados Analisar os enunciados buscando construir unidades, conjuntos e séries; realizar comparações e relações entre eles procurando identificar as regularidades presentes.
4.ª ETAPA Descrição das regularidades Descrever as regras que permitiram o aparecimento da ordem discursiva.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Na primeira fase, nosso objetivo foi identificar, selecionar e organizar o corpus de documentos, que são os textos das políticas curriculares, os quais permitiram realizar nossa análise. Afinal, o discurso não opera em um vazio existencial. O enunciado tem uma existência material, que pode se expressar em documentos, sendo este um dos lugares possíveis de presença efetiva dos discursos. Vale lembrar que não é o documento o objeto propriamente dito de nossa análise e descrição, mas a formação discursiva, que se faz presente, e suas regras que são mobilizadas.

A segunda fase foi o momento de escavação do discurso. Partimos primeiro para a leitura sistemática de todo o conjunto de documentos, a qual não visa estudá-los prestando atenção nas interpretações e nas relações significante-significado, mas levantar os enunciados organizados. Tentamos, como Foucault, ficar na instância do próprio discurso. O sentido foi tratado como fenômeno: fazendo a descrição intrínseca dos documentos, como ensina a AAD. Todo o ordenamento das palavras e das coisas, do nosso corpus, toda a suposta harmonização que muitas vezes ele apresenta, precisam ser devolvidos à sua qualidade de dispersividade e de multiplicidade. Assumir o discurso como acontecimento enunciativo.

A terceira fase demandou de nós pesquisadores-arqueólogos diferentes procedimentos. Inicialmente, as enunciaçãoes foram dispostas lado a lado, comparando-as, procurando estabelecer relações de semelhança, de vizinhança, de afastamento e de diferença entre elas. O objetivo foi construir unidades enunciativas provisórias, de tal forma que apareçam em sua função enunciativa. Todo esse processo de organização-desorganização-reorganização está relacionado com a identificação das regularidades presentes nas dispersões dos documentos, quer dizer, identificar ordem no aparente caos do discurso. Ao final, na quarta etapa, descrevemos as regras que permitiram o aparecimento da ordem discursiva, ou seja, da formação do discurso das políticas curriculares sobre as tecnologias.

Por último, utilizamos como documentos, exclusivamente, os textos das políticas curriculares nacionais para a educação básica. Selecionamos sete políticas em decorrência de suas relevâncias e especificidades no cenário das políticas nacionais do Ministério da Educação (MEC), a saber: Parâmetros Curriculares Nacionais - Primeiro e Segundo Ciclos do Ensino Fundamental (1997); Parâmetros Curriculares Nacionais - Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental (1998b); Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2000b); PCN+ Ensino Médio; Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006); Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Básica (2013) e Base Nacional Comum Curricular (2018). Estabelecemos um critério de inclusão: as políticas pós-Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional (LDB) dentro do recorte temporal do período de 1996 até 2018.

4 AS CONCEPÇÕES DE TECNOLOGIAS NAS POLÍTICAS CURRICULARES

Em alguns trechos das políticas curriculares, foi possível identificar o uso das tecnologias como um recurso didático para ser incorporado à ação pedagógica do professor. “A tecnologia deve ser utilizada na escola para ampliar as opções de ação didática [...]” (Brasil, 1998b). Destacam que “é preciso também melhorar as condições físicas das escolas, dotando-as de recursos didáticos e ampliando as possibilidades de uso das tecnologias da comunicação e da informação” (Brasil, 1998). Além disso, questionam que “há computadores nas escolas, ligados ou não à internet, mas não são integralmente aproveitados no processo de ensino e aprendizagem” (Brasil, 2002).

Assim, a tônica encontra-se na utilização das tecnologias como uma ferramenta/recurso no processo de ensino e aprendizagem das diferentes disciplinas: “a informática e outras mídias eletrônicas constituem ferramentas auxiliares especialmente úteis quanto ao ensino de língua estrangeira e devem ser utilizadas como mais um recurso auxiliar ao aprendizado” (Brasil, 2002).

Podemos afirmar, na companhia de Heinsfeld e Pischetola (2019), que, embora houvesse um receio de as tecnologias serem utilizadas como recurso didático, elas foram apenas um apêndice ou algo tangencial ao currículo, em que a grande preocupação residia em equipar as escolas sem que se questionasse o uso desses equipamentos. Em outros momentos das políticas, encontramos novamente o destaque na ênfase da tecnologia como recurso didático:

O fato de, neste final de século, estar emergindo um conhecimento por simulação, típico da cultura informática, faz com que o computador seja também visto como um recurso didático cada dia mais indispensável. Ele é apontado como um instrumento que traz versáteis possibilidades ao processo de ensino e aprendizagem de Matemática, seja pela sua destacada presença na sociedade moderna, seja pelas possibilidades de sua aplicação nesse processo. O computador pode ser usado como elemento de apoio para o ensino (banco de dados, elementos visuais), mas também como fonte de aprendizagem e como ferramenta para o desenvolvimento de habilidades (Brasil, 1997).

Uma primeira proposta para a inserção dos conceitos relacionados às novas tecnologias em diferentes situações de aprendizagem deve constar dos momentos formais de planejamento do projeto pedagógico da escola, em que o uso das tecnologias, em especial o computador, deve ser pensado como um instrumento do processo de ensino e aprendizagem (Brasil, 2002).

A utilização de materiais diversificados como jornais, revistas, folhetos, propagandas, computadores, calculadoras, filmes, faz o aluno sentir-se inserido no mundo à sua volta. É indiscutível a necessidade crescente do uso de computadores pelos alunos como instrumento de aprendizagem escolar, para que possam estar atualizados em relação às novas tecnologias da informação e se instrumentalizarem para as demandas sociais presentes e futuras (Brasil, 1997).

É importante contemplar uma formação escolar nesses dois sentidos, ou seja, a Matemática como ferramenta para entender a tecnologia, e a tecnologia como ferramenta para entender a Matemática. Considerando a Matemática para a Tecnologia, deve-se pensar na formação que capacita para o uso de calculadoras e planilhas eletrônicas, dois instrumentos de trabalho bastante corriqueiros nos dias de hoje (Brasil, 2006).

As tecnologias da informação e comunicação constituem uma parte de um contínuo desenvolvimento de tecnologias, a começar pelo giz e os livros, todos podendo apoiar e enriquecer as aprendizagens. Como qualquer ferramenta, devem ser usadas e adaptadas para servir a fins educacionais e como tecnologia assistiva; desenvolvidas de forma a possibilitar que a interatividade virtual se desenvolva de modo mais intenso, inclusive na produção de linguagens. Assim, a infraestrutura tecnológica, como apoio pedagógico às atividades escolares, deve também garantir acesso dos estudantes à biblioteca, ao rádio, à televisão, à internet aberta às possibilidades da convergência digital (Brasil, 2013).

Nesse caso, o recurso tecnológico é usado como um meio didático no processo de ensino-aprendizagem. Mediante o uso das tecnologias da comunicação é possível problematizar os conteúdos específicos de Geografia. Por meio da televisão e do videocassete é possível propor: 1) Estudos comparativos sobre diferentes paisagens, relações do homem com a natureza etc. [...] (Brasil, 1998b).

O computador é, ao mesmo tempo, uma ferramenta e um instrumento de mediação (Brasil, 1998a).

Investigar situações-problema e avaliar aplicações do conhecimento científico e tecnológico e suas implicações no mundo, utilizando procedimentos e linguagens próprios das Ciências da Natureza, para propor soluções que considerem demandas locais, regionais e/ou globais, e comunicar suas descobertas e conclusões a públicos variados, em diversos contextos e por meio de diferentes mídias e tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) (Brasil, 2018).

Os trechos selecionados e destacados nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Básica (DCNs), Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCNs) e Base Nacional Comum Curricular (BNCC) parecem-nos remeter a uma concepção essencialmente instrumental da tecnologia, na qual, como proposto por Feenberg (2003; 2015), entende-se que a partir do simples uso instrumental, ferramental desses artefatos, é possível alcançar infindáveis objetivos, satisfazendo as necessidades percebidas, não sendo necessárias análises mais complexas acerca de seus contextos de uso ou mesmo sobre os reflexos sociais desses usos.

Nessa direção, em uma concepção técnica de currículo, as tecnologias são utilizadas como instrumentos de trabalho do professor, tendo seus usos resumidos a finalidades projetivas ou ilustrativas. Podemos ir além, pois a visão que se tem da tecnologia é tecnicista, de um instrumento usado como recurso didático, remetendo a uma suposta neutralidade e objetividade. Em outras palavras, é adotada como outro meio de “entregar a informação ao aluno”. Não se mudam as práticas curriculares, incorporam-se a elas as tecnologias.

Outra questão que merece ser analisada com cuidado é a compreensão da tecnologia apenas como um meio. Consideramos que a tecnologia precisa ser entendida em sua multiplicidade, como um campo diversificado de diferentes formas de saber/poder e implicada na constituição de formas bem particulares de conhecimento e verdade. Nesse sentido, reduzir a tecnologia como um meio mostra-se limitador dentro das potencialidades que podem se abrir com seus usos nos cotidianos das escolas.

Investigar situações-problema e avaliar aplicações do conhecimento científico e tecnológico e suas implicações no mundo, utilizando procedimentos e linguagens próprios das Ciências da Natureza, para propor soluções que considerem demandas locais, regionais e/ou globais, e comunicar suas descobertas e conclusões a públicos variados, em diversos contextos e por meio de diferentes mídias e tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) (Brasil, 2018).

Comunicar, para públicos variados, em diversos contextos, resultados de análises, pesquisas e/ou experimentos, elaborando e/ou interpretando textos, gráficos tabelas, símbolos, códigos, sistemas de classificação e equações, por meio de diferentes linguagens, mídias, tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC), de modo a participar e/ou promover debates em torno de temas científicos e/ou tecnológicos de relevância sociocultural e ambiental (Brasil, 2018).

Além disso, defendemos que as práticas curriculares com as tecnologias possuem, ao mesmo tempo, duas faces: uma material e outra abstrata. Quando estamos nos referindo à dimensão material: é a manifestação da tecnologia como instrumento/ferramenta que pode assumir diferentes usos em sua relação com os currículos. Quanto à dimensão abstrata: são as práticas de significação - os processos simbólicos - que, por meio da linguagem, da imagem, do som, de gestos, produzem conhecimento sobre o mundo e sobre nós mesmos (Simon, 2013). Portanto, a noção de tecnologia deixa de ser apenas um meio para ser ampliada incluindo “a produção daquilo que é conhecível” (Simon, 2013, p. 70) e significado nas relações sociais.

Encontramos também nessa direção, tanto no documento dos parâmetros curriculares nacionais quanto nos PCN+, uma ampliação, sob uma lente crítica, das tecnologias para além da interface material/instrumental, buscando visualizá-las a partir das práticas sociais dentro de um contexto significativo e o que trazem, como ideologias e relações de poder.

Não se trata, porém, de tomar os meios como eventuais recursos didáticos para o trabalho pedagógico, mas de considerar as práticas sociais nas quais estejam inseridos para:

• conhecer a linguagem videotecnológica própria desse meio;

• analisar criticamente os conteúdos das mensagens, identificando valores e conotações que veiculam;

• fortalecer a capacidade crítica dos receptores, avaliando as mensagens;

• produzir mensagens próprias, interagindo com os meios (Brasil, 1998a, p. 89).

Nesse particular, compete à escola trabalhar com a tecnologia não apenas como um artefato técnico, mas como uma construção social, dialética em sua própria natureza. Essa concepção permite, nas palavras de Antonio Flávio B. Moreira, que “a entrada da tecnologia no currículo escolar transcenda uma mera instrumentalização do aluno para com ela lidar” (Brasil, 2002).

Identificamos também, ao longo dos textos dos documentos dos PCNs e PCN+, uma tendência recorrente a encarar o acesso aos equipamentos digitais como condição única e suficiente para garantir certos avanços desejados na educação, em especial o ensino:

A incorporação das inovações tecnológicas só tem sentido se contribuir para a melhoria da qualidade do ensino. A simples presença de novas tecnologias na escola não é, por si só, garantia de maior qualidade na educação, pois a aparente modernidade pode mascarar um ensino tradicional baseado na recepção e na memorização de informações (Brasil, 1998a).

Por outro lado, também é fato que o acesso a calculadoras, computadores e outros elementos tecnológicos já é uma realidade para parte significativa da população.

Estudos e experiências evidenciam que a calculadora é um instrumento que pode contribuir para a melhoria do ensino da Matemática. A justificativa para essa visão é o fato de que ela pode ser usada como um instrumento motivador na realização de tarefas exploratórias e de investigação (Brasil, 1997).

Diante do exposto, questionamos: o que seria uma melhor qualidade de ensino? Em que sentido? Melhoria para quem? Quais interesses estão implícitos? Além desses pontos, ainda encontramos a crença nas tecnologias para possibilitar uma inovação para os processos de ensino e aprendizagem, bem como para a construção de uma nova relação professor-aluno e com o conhecimento.

Primeiro, afirmam que a “utilização de novas mídias e tecnologias educacionais, como processo de dinamização dos ambientes de aprendizagem” (Brasil, 2013). Destacam ainda que a tecnologia “é um instrumento de mediação na medida em que possibilita o estabelecimento de novas relações para a construção do conhecimento e novas formas de atividade mental” (Brasil, 1998a). Além disso, faz-se necessário “reconhecer a Informática como ferramenta para novas estratégias de aprendizagem, capaz de contribuir de forma significativa para o processo de construção do conhecimento, nas diversas áreas” (Brasil, 2000a, p. 64).

Questionamos quais estudos comprovam e sustentam esse discurso dos benefícios do uso das tecnologias na aprendizagem, conforme é afirmado nos documentos analisados. Encontramos na literatura pesquisas (Correa e Castro, 2011; Oliveira, 2011; Tosta; Oliveira, 2001) que sustentam justamente o contrário. Precisamos ficar atentos aos interesses articulados a essas políticas. Apontamos para a existência de um consenso em torno da ideia de que, com o uso das tecnologias, é possível superar as práticas tradicionais e trazer inovação, motivação, atenção e outros ideias que podemos observar a seguir:

A presença de aparato tecnológico na sala de aula não garante mudanças na forma de ensinar e aprender. A tecnologia deve servir para enriquecer o ambiente educacional, propiciando a construção de conhecimentos por meio de uma atuação ativa, crítica e criativa por parte de alunos e professores (Brasil, 1998a).

A tecnologia eletrônica - televisão, videocassete, máquina de calcular, gravador e computador - pode ser utilizada para gerar situações de aprendizagem com maior qualidade, ou seja, para criar ambientes de aprendizagem em que a problematização, a atividade reflexiva, atitude crítica, capacidade decisória e a autonomia sejam privilegiados (Brasil, 1998a).

A motivação é outra idéia bastante associada ao uso de tecnologias. Sem dúvida, os alunos ficam muito motivados quando utilizam recursos tecnológicos nas situações de aprendizagem, pois introduzem novas possibilidades na atividade de ensino (Brasil, 1998a).

[...] favorece a interação com uma grande quantidade de informações, que se apresentam de maneira atrativa (diferentes notações simbólicas, gráficas, lingüísticas, sonoras etc.) (Brasil, 1998b).

As experiências escolares com o computador também têm mostrado que seu uso efetivo pode levar ao estabelecimento de uma nova relação professor-aluno, marcada por uma maior proximidade, interação e colaboração. Isso define uma nova visão do professor, que longe de considerar-se um profissional pronto, ao final de sua formação acadêmica, tem de continuar em formação permanente ao longo de sua vida profissional (Brasil, 1998b).

[...] utilizar ferramentas e tecnologias educacionais inovadoras, atualizadas, alinhadas com o mundo do trabalho e de forma contextualizada ao longo do processo educacional, visando ao aprimoramento dos processos de ensino e aprendizagem (Brasil, 2013).

Observamos no texto dos documentos do PCNs e DCNs uma visão instrumental que ganhou bastante evidência nas políticas analisadas, nas quais há a crença de que basta a incorporação das tecnologias digitais de maneira ferramental para alcançar melhorias nos processos de ensino e de aprendizagem. Isso nos remete também às nuances da pedagogia tradicional, originária no século XIX, cuja característica principal é a preocupação com a produtividade e o desenvolvimento, refletindo o modelo econômico dominante contemporâneo da industrialização e ao taylorismo (Silva, 2011).

Logo, é possível perceber nos documentos das políticas uma constante interpretação da tecnologia como uma entidade neutra, imbuída fundamentalmente da ideia de eficiência, havendo uma separação entre os meios (suas formas de utilização) e os fins (os resultados desses usos). Assim, opera-se com uma relação de causa e consequência, criando-se uma ilusão do processo de incorporação das tecnologias e acreditando que será suficiente para dar conta de problemas importantes da educação. É uma bela contradição que camufla a possibilidade real de transformação do que poderia ocorrer, de fato, nas práticas curriculares. No entanto, ao contrário, os discursos preferem continuar na crença de que basta utilizar uma ferramenta (tecnologia) para produzir mudanças e “inovação”. Para Basso (2009), além do uso das tecnologias nos currículos, é necessário conseguir alterar conjuntamente os velhos mecanismos das práticas disciplinadoras e analógicas presentes na educação.

Ao descrever a relação da tecnologia no que tange a valores mais democráticos, ao acesso e ao direito, temos as seguintes descrições nos documentos das políticas:

Ao mesmo tempo que a tecnologia contribui para aproximar as diferentes culturas, aumentando as possibilidades de comunicação, ela também gera a centralização na produção do conhecimento e do capital, pois o acesso ao mundo da tecnologia e informação ainda é restrito a uma parcela da população planetária. Há uma grande distância entre os indivíduos que dominam a tecnologia, os que são apenas consumidores e os que não têm condições nem de consumir, pois não têm acesso às novas tecnologias da informação e comunicação (Brasil, 1998a).

Mesmo o mundo estando interconectado, não há uma unificação econômica e cultural e muito menos igualdade no acesso aos recursos tecnológicos. É um fato incontestável a desigualdade na distribuição e domínio dos recursos tecnológicos, tanto no nosso país como em outros (BRASIL, 1998a).

A mais nova das linguagens, a Informática, faz parte do cotidiano e do mundo do trabalho. Vive-se o mundo da parabólica, dos sistemas digitais, dos satélites, da telecomunicação. Conviver com todas as possibilidades que a tecnologia oferece é mais que uma necessidade, é um direito social (Brasil, 2000c).

Contudo, também é imprescindível que a escola compreenda e incorpore mais as novas linguagens e seus modos de funcionamento, desvendando possibilidades de comunicação (e também de manipulação), e que eduque para usos mais democráticos das tecnologias e para uma participação mais consciente na cultura digital (Brasil, 2018).

Novos desafios se colocam, pois, para a escola, que também cumpre um papel importante de inclusão digital dos alunos. Ela precisa valer-se desses recursos e, na medida de suas possibilidades, submetê-los aos seus propósitos educativos (Brasil, 2013).

Ao afirmar o uso das tecnologias como carregadas de dinâmicas de poder e hegemonia da sociedade capitalista, incide-se em uma concepção crítica, conforme a proposta teórica de Feenberg (2003). Concordamos que os usos das tecnologias não podem ser concebidos de forma ingênua, sendo necessário o professor saber o seguinte: “de quando entrar na sala de aula estará ali por sábias e prudentes razões políticas, econômicas e educacionais e não porque os grupos de poder desejam [novamente] redefinir os objetivos da educação de acordo com os seus interesses” (Apple, 1987, p. 12).

Vale sublinhar que vários organismos internacionais, como o Banco Mundial, Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI) e Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), elaboraram documentos e políticas que disputam pela hegemonização de sentidos sobre os usos das tecnologias, na educação e nos currículos.

A revolução tecnológica, por sua vez, cria novas formas de socialização, processos de produção e, até mesmo, novas definições de identidade individual e coletiva. Diante desse mundo globalizado, que apresenta múltiplos desafios para o homem, a educação surge como uma utopia necessária indispensável à humanidade na sua construção da paz, da liberdade e da justiça social. Deve ser encarada, conforme o Relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, da Unesco, “entre outros caminhos e para além deles, como uma via que conduz a um desenvolvimento mais harmonioso, mais autêntico, de modo a fazer recuar a pobreza, a exclusão social, as incompreensões, as opressões e as guerras” (Brasil, 2000a).

É importante destacar, tendo em vista tais reflexões, as considerações oriundas da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, incorporadas nas determinações da Lei n.º 9.394/96:

a) a educação deve cumprir um triplo papel: econômico, científico e cultural;

b) a educação deve ser estruturada em quatro alicerces: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver e aprender a ser (Brasil, 2000c).

Importa compreender, como proclama a teorização crítica, que os usos das tecnologias nos currículos não são ações neutras e desinteressadas, mas atendem aos interesses de grupos que detêm o poder econômico.

Vale mencionar as novas formas de manifestações de poder nas relações sociais, mediadas pelas tecnologias da informação, sobretudo por plataformas e algoritmos. Essa nova realidade social, que conta com interações por meio de mídias e dispositivos digitais conectados, é nomeada de diferentes maneiras como “capitalismo de vigilância” (Vianna; Meneghetti; Peinado, 2022). O capitalismo de vigilância representa um sistema composto por organizações como Facebook, Amazon, Google, Microsoft e Apple, e, com a pandemia da Covid-19, tais empresas vêm obtendo números cada vez mais elevados de usuários, alcançando resultados financeiros elevados.

A tecnologia não pode ser vista como um instrumento neutro, pois “carrega valores antidemocráticos provenientes da sua vinculação com o capitalismo. Os valores e interesses das classes dominantes estão imbricados no próprio desenho dos procedimentos e máquinas, bem como nas decisões que os originam e mantêm” (Feenberg, 2015, p. 153). Indiscutivelmente, as tecnologias são atravessadas, constituídas e instituídas por múltiplas relações de poder que intencionam a produção de certos tipos de subjetividades.

Nesse sentido, não é mais possível naturalizar a tecnologia como agente, autônomo ou não, de mudança social. Na perspectiva crítica, surge uma crença de ser possível algum tipo de controle humano e de que os usos da tecnologia seriam frutos do contexto e das interpretações subjetivas dos atores sociais:

Os conhecimentos envolvidos na área, por seu caráter intrinsecamente humanista, agem no sentido de despir as novas tecnologias de sua aparente artificialidade e distanciamento diante do humano. Evitam-se, com isso, os riscos de uma naturalização das tecnologias e promove-se a culturalização de sua compreensão. E, desta forma, assegura-se um papel novo para a aprendizagem em Ciências Humanas na escola básica: o de humanizar o uso das novas tecnologias, recolocando o homem no centro dos processos produtivos e sociais (Brasil, 2000b).

No que diz respeito à tecnologia da informação, deve-se enfatizar que dados e informações não são o conhecimento. A confusão entre os dois conceitos pode induzir o usuário a ver essa tecnologia como neutra e objetiva, pois sua configuração específica, sua história ainda recente e sua utilização social podem mascarar os elementos subjetivos e ideológicos presentes na construção mediada do conhecimento (Brasil, 2002, p. 52).

Art. 28. A utilização qualificada das tecnologias e conteúdos das mídias como recurso aliado ao desenvolvimento do currículo contribui para o importante papel que tem a escola como ambiente de inclusão digital e de utilização crítica das tecnologias da informação e comunicação, requerendo o aporte dos sistemas de ensino no que se refere à:

I - provisão de recursos midiáticos atualizados e em número suficiente para o atendimento aos alunos;

II - adequada formação do professor e demais profissionais da escola (Brasil, 2013, p. 136).

Em suma, não podemos deixar de questionar o que há de crítico nas tecnologias e em seus diferentes usos determinados e praticados nos currículos. De acordo com Paraskeva e Oliveira (2008), faz-se necessário trabalhar na prática pedagógica com os alunos diferentes aspectos: filosóficos, políticos, econômicos, culturais, que perpassam os artefatos tecnológicos e promovem posições de sujeito.

Por último, identificamos quatro trechos nas políticas que, em certo nível, apontam para a concepção da teoria pós-crítica, trazendo uma ligação entre arte e tecnologia, destacando seu potencial poético e criativo. Além de localizarem a dimensão da experiência e cultura humana com as tecnologias, é possível observar:

O objetivo da inclusão da informática como componente curricular da área de Linguagens, Códigos e Tecnologias é permitir o acesso a todos os que desejam torná-la um elemento de sua cultura, assim como aqueles para os quais a abordagem puramente técnica parece insuficiente para o entendimento de seus mecanismos profundos (Brasil, 2000b, p. 58).

As tecnologias da comunicação, além de serem veículos de informações, possibilitam novas formas de ordenação da experiência humana, com múltiplos reflexos, particularmente na cognição e na atuação humana sobre o meio e sobre si mesmo (Brasil, 1998b, p. 135).

Arte e tecnologia: criação de novas poéticas que articulam imagens, sons, animações e possibilitam um novo tipo de interatividade, decorrente não só da codificação da linguagem digital (de base matemática) como também das tecnologias que suportam e veiculam essa linguagem (os multimídias). Videoclipes, trabalhos artísticos em CD-ROM, instalações com dispositivos interativos, digitalizações são, entre outros, exemplos dessa interação (Brasil, 2002, p. 184).

Trata-se aqui de integrar à arte o uso das novas tecnologias da comunicação e de informação (NTCI), analisando as possibilidades de criação, apreciação e documentação que os novos meios oferecem. Para isso, cabe estimular o aluno a refletir sobre a produção de poéticas que se valem de meios como rádio, vídeo, gravador, instrumentos acústicos, eletrônicos, filmadoras, telas informáticas, assim como outras tecnologias integrantes das artes visuais, audiovisuais, música, dança e teatro (Brasil, 2002, p. 187).

Nesse momento, as políticas dos PCNs e PCN+ adentram na era das tecnologias do virtual (Parente, 1993), em que o âmago está em trazer a dimensão da criação presente nelas. Nas palavras de Plaza (1993), é fazer surgirem novas forças escondidas nas virtualidades das tecnologias, o que significa “explorar o campo dos possíveis, e isso é extrair o sensível do inteligível, o icônico (virtual) do simbólico, o tecno-poético do tecno-lógico” (Plaza, 1993, p. 87). As tecnologias, assim, ganham a possibilidade de serem veículos produtores de subjetividade.

Nesse sentido, a ligação da tecnologia com a arte nos dá acesso ao mundo do campo coletivo de forças (em devir), em vez de formas e representações. Promove-nos uma experiência do fora que possibilita o surgimento de uma nova maneira de nos relacionarmos com a realidade, abrindo outras possibilidades de vida e de mundos. São movimentos e fluxos que impulsionam ações e pensamentos, os quais são engendrados nos cotidianos em suas múltiplas possibilidades.

Trabalhar com o virtual é estabelecer relação com a criação. É fazer surgir o novo ou, ainda, emergirem outras formas de vida. Para Deleuze (1988, p. 342), “no virtual, a diferença e a repetição fundam o movimento da atualização, da diferenciação como criação, substituindo, assim, a identidade e a semelhança do possível, que só inspiram um pseudomovimento [...]”. Compreendemos, desse modo, que a criação de “uma vida” só ocorre pela diferenciação do virtual, de algo que ainda não tem forma.

É importante lembrar que os indivíduos podem viver a subjetividade tanto em uma relação de alienação quanto de opressão, na qual se submetem à subjetividade da forma como a recebem (Guattari; Rolnik, 1986). Por outro lado, é possível viver a subjetividade em uma relação de expressão e criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo o que Guattari e Rolnik (1986) chamam de singularização. O que caracteriza para esses autores um processo de singularização é que os sujeitos construam seus próprios tipos de referências para que não fiquem

[...] na posição constante de dependência, em relação ao poder global, em nível econômico, em nível de saber, em nível técnico, em nível das segregações, dos tipos de prestígios que são difundidos. A partir do momento em que os grupos adquirem essa liberdade de viver seus processos, eles passam a ter uma capacidade de ler sua própria situação e aquilo que se passam em torno deles (Guattari; Rolnik, 1986, p. 55).

Assim sendo, apostamos que as práticas curriculares, na medida em que fazem uso das tecnologias, precisam ter o cuidado de caminhar em uma direção que questione essa política do desejo em que reduz a subjetividade a uma constante dependência em relação a modelos totalizantes e homogeneizantes. O que se faz necessário é trabalhar em uma perspectiva pós-crítica implicada no restabelecimento de um tipo de existência que tenha a vida como potência de diferenciação e invenção, uma micropolítica ativa do desejo (Rolnik, 2018). Nessa micropolítica, as ações do desejo, para a autora, consistem em atos de criação que se inscrevem nos territórios existenciais estabelecidos e suas respectivas cartografias.

5 CONCLUSÕES

Nas concepções de tecnologias presentes nas políticas curriculares, identificamos algumas tendências, recorrências e lacunas. Com relação às recorrências, há uma grande preocupação em defender: a) o uso das tecnologias como recurso didático; b) a tecnologia como um meio; c) as tecnologias a partir das práticas sociais imbricadas a ideologias e relações de poder; d) o uso das tecnologias para melhorias na qualidade do ensino e aprendizagem; e) a superação de práticas tradicionais com uso das tecnologias; f) a relação da tecnologia e suas implicações com valores democráticos; g) a ligação entre arte e tecnologia.

No que concerne às tendências de concepções de tecnologia, observamos que há uma parte significativa de enunciados que remetem a uma concepção essencialmente instrumental da tecnologia, o que coloca limites às potencialidades que são possíveis com os usos das tecnologias nos cotidianos escolares, além de não valorizar as demais concepções e suas questões que trazem juntamente.

No tocante às lacunas, chamou-nos a atenção o baixo quantitativo de enunciados, ao longo de 30 anos, nas políticas de currículo que apontam para uma concepção de tecnologia a partir da teoria pós-crítica. Isso nos mostrou estritamente uma relação entre a formação e qual tipo de sujeito se almeja: sujeição x criação. Trabalhar com as tecnologias a partir dessa concepção é apostar na criação, no novo, com a possibilidade de surgimento de novas maneiras de nos relacionarmos com a vida e com o mundo. O virtual são movimentos e fluxos que impulsionam ações e pensamentos. Vale lembrar que as políticas de currículo visam orientar determinados desenvolvimentos simbólicos, obter consenso para uma dada ordem e/ou alcançar uma transformação social almejada, de acordo com Lopes (2005).

Outro dado importante é que não identificamos uma sequência linear ao longo das décadas nas políticas curriculares. Concluímos, na realidade, que há um discurso híbrido no que diz respeito às concepções, ou seja, uma hibridização de tendências teóricas distintas. Com Lopes (2005) destacamos que as construções híbridas não podem ser entendidas pelo princípio da contradição, pois não se trata de elementos contraditórios em que um não existe sem o outro, tampouco podem ser explicados apenas por distinções e oposições. São discursos ambíguos. Portanto, compreendemos o aparecimento desses múltiplos discursos sobre as tecnologias, em outras palavras, pelas diferentes interconexões estabelecidas entre as várias concepções.

Por último, nossa aposta está em uma maior presença da concepção pós-crítica de tecnologia nos currículos, tendo em vista que as transformações tecnológicas nos conduziram a uma tendência à homogeneização universalizante e reducionista da subjetividade (Guattari, 1992). Diante do exposto, quando se trabalha com a criação de novas poéticas com os alunos nas escolas, insere-se a possibilidade de produzir pequenas fissuras nesse paradigma, uma vez que a virtualização dissolve as esferas instituídas, desterritorializando identidades e desprendendo-as do tempo cronológico.

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Recebido: 10 de Abril de 2023; Aceito: 18 de Agosto de 2023; Publicado: 30 de Setembro de 2023

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