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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub 13-Nov-2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e61607 

Dossiê Temático: “Currículo e tecnologias redes, territórios e diversidades”

Governamentalidade Algorítmica e Saberes Docentes: 1 da Transcrição à Transcriação Didática Digital no Ensino Universitário em Período Pandêmico

Algorithmic Governmentality and Teaching Knowledge: from Transcription to Digital Didactic Transcreation in University Teaching in a Pandemic Period

Gubernamentalidad Algorítmica y Saberes Docentes: de la Transcripción a la Transcreación Didáctica Digital en la Docencia Universitaria en Época de Pandemia

Rafaela Esteves Godinho LEALi 
http://orcid.org/0000-0002-1410-6645

Maria Carolina da Silva CALDEIRAii 
http://orcid.org/0000-0003-0668-1989

i Doutoranda do Programa de Pós-Graduação: Conhecimento e Inclusão da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pedagoga da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: rafaelegodinho@yahoo.com.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-1410-6645.

ii Doutora em educação pela FaE/UFMG. Pós-doutoranda no Proped/UERJ. Professora do Centro Pedagógico da UFMG e do Programa de Pós-Graduação em educação: conhecimento e inclusão social. E-mail: mariacarolinasilva@hotmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-0668-1989.


Resumo

Este artigo objetiva analisar como se formou um saber docente específico durante o Ensino Remoto Emergencial a fim de entender o funcionamento da governamentalidade algorítmica na docência universitária. Utilizaram-se como referencial teórico-metodológico os conceitos de poder, saber e governo na perspectiva foucaultiana e como instrumento de coleta de dados, entrevistas com docentes universitários. Argumenta-se que a formação do saber experiencial tecnodidático teve como condições de emergência: bloqueios na produção do saber da prática docente; disponibilização da posição mestre ignorante; funcionamento dos mecanismos de transposição didática e de transcriação didática digitais. Tais condições normalizaram a utilização das plataformas digitais no ensino, atendendo às urgências da governamentalidade algorítmica na fabricação de uma Educação orientada a Dados.

Palavras-chave: governamentalidade algorítmica; docência do ensino superior; inteligência artificial; saberes docentes; pandemia

Abstract

This paper's objective is to analyze how specific teaching knowledge came about during the Emergency Distance Teaching period to understand the functioning of algorithmic governability in university teaching. The concepts of power, knowledge and government, in their Foulcatian perspective, as theoretica-methodology references and interviews with professors being used as a data collecting source. It is argued that the creation of techno-didactic experience due to these circumstances resulted in the prevention of production of teaching knowledge; allowing the creation of the ignorant master; the functioning of the mechanisms of didactic transposition and digital didactic transcription. Such conditions made the use of digital platforms common in teaching, as answers to the urgency of algorithmic governability for the creation of a Data-oriented Education.

Keywords: algorithmic governmentality; higher education teaching; artificial intelligence; teaching knowledge; pandemic

Resumen

Este artículo pretende analizar cómo se formó un saber docente específico durante la Enseñanza Remota de Emergencia para comprender el funcionamiento de la gubernamentalidad algorítmica en la docencia universitaria. Utiliza como marco teórico-metodológico los conceptos de poder, saber y gobierno en la perspectiva foucaultiana y instrumento de recolección de datos fueron entrevistas a docentes universitarios. Sostiene que la formación del saber experiencial tecnodidáctico tuvo como condiciones de emergencia: bloqueos en la producción de conocimiento de la práctica docente; disponibilidad de la posición de maestro ignorante; funcionamiento de los mecanismos de transposición didáctica y transcreación didáctica digital. Tales condiciones normalizaron el uso de plataformas digitales en la enseñanza, atendiendo a las urgencias de la gubernamentalidad algorítmica en la fabricación de una Educación orientada a Datos.

Palabras clave: gubernamentalidad algorítmica; enseñanza superior; inteligencia artificial; enseñanza del conocimiento; pandemia

1 INTRODUÇÃO

No momento histórico atual, governado pelo digital, as práticas de ensino na docência universitária mobilizam saberes diversos que entram em disputas específicas para provocarem determinados efeitos na docência. O conjunto de elementos do saber docente para ensinar é produzido e circula em torno de relações de poder que operam processos de hierarquização, divisão, competição, composição, integração, afastamento, subordinação e coordenação entre eles. O poder é entendido nas teorias pós-críticas como microfísico, uma vez que ele “não tem mais um único centro, como o Estado, por exemplo. Ele está espalhado por toda a rede social” (Silva, 2013, p. 148). Nas teorias pós-críticas, considera-se que o currículo é concebido em meio às relações de poder e saber. O saber não é exterior ao poder, ao contrário, está imbricado ao poder (Foucault, 2014c). Nessa perspectiva, todo currículo pressupõe uma organização do saber. Assim, os/as docentes universitários/as, no processo de ensino, criam currículos na medida em que organizam e produzem saberes, inserem-se em relações de poder e ocupam posições de sujeito em determinado tempo histórico.

Em 2020, o mundo se deparou com a pandemia de Covid-19, quando foi preciso manter o distanciamento social como forma de dirimir a disseminação do vírus causador da doença. Nesse período, a educação superior foi convocada a ingressar no Ensino Remoto Emergencial desenvolvido em plataformas digitais2. Esse acontecimento deslocou o ensino presencial para o ensino digital ou on-line, incidindo nos tempos de ensino-aprendizagem que passaram a ser síncronos e/ou assíncronos3. Os espaços físicos institucionais foram transferidos para as plataformas digitais e os corpos físicos dos/as estudantes e docentes foram transpostos para o digital. As plataformas assumiram, portanto, uma centralidade nos processos de ensino-aprendizagem, os quais passaram a acontecer nos espaços, nos tempos e com corpos digitais.

Essas plataformas funcionam por meio de algoritmos que consistem em “uma sequência de instruções que informa ao computador o que ele deve fazer” (Domingos, 2017, p. 24). Para esse autor, “vivemos na era dos algoritmos, porque ele integra tudo o que fazemos no mundo atualmente. Eles estão nos celulares, laptops, carros, casas, utensílios domésticos, instituições bancárias, aeronaves, fábricas, comércio etc.” (Domingos, 2017, p. 24). Assim, é possível afirmar que vivemos no tempo de uma “governamentalidade algorítmica”, termo cunhado por Rouvroy e Berns. Rouvroy (2021, p. 17), em uma entrevista realizada pela Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, afirma que “a governamentalidade algorítmica é a hipótese de um governo do mundo social que se baseia no processamento algorítmico de grandes volumes de dados [big data]”. Articulando essa concepção à perspectiva foucaultiana, a governamentalidade algorítmica é entendida como uma forma de governar todos/as por meio de cálculos, análises, procedimentos e táticas a fim de atingir a população (Foucault, 2014b, p. 429), realizados por meio das informações produzidas e repassadas aos sistemas computacionais pelos humanos. É importante salientar que há escolhas humanas nos tipos de dados coletados, na produção e no processamento algoritmo.

A governamentalidade algorítmica atuou no ensino universitário de forma intensiva com a implantação do Ensino Remoto Emergencial, pois a maior parte do processo de ensino-aprendizagem foi transferida para as plataformas digitais. Para o funcionamento desse tipo de governo no ensino, o poder algoritmo opera, de maneira específica, na digitalização dos corpos, objetos e saberes a fim de transformá-los em dados e, assim, fabricar sujeitos, currículos e pensamentos algoritmizados. O poder algoritmo operou na relação entre os saberes que constituíram a docência universitária incitando a articulação, o distanciamento e a fabricação de saberes, no sentido de atender às urgências da governamentalidade algorítmica em gerar um grande volume de dados e normalizar a utilização das plataformas digitais no ensino universitário.

Tendo em vista esse contexto, o objetivo deste artigo consiste em analisar como se formou um saber específico na docência universitária durante a experiência do Ensino Remoto Emergencial, desenvolvido em plataformas digitais no período de pandemia de Covid-19 nos anos de 2020 e 2021, a fim de entender o funcionamento da governamentalidade algorítmica no ensino universitário. Argumenta-se que a formação do saber experiencial tecnodidático na docência universitária no período do Ensino Remoto Emergencial foi forjada no exercício do poder algoritmo, com as seguintes condições de emergência: bloqueio dos procedimentos de produção do saber da prática docente presencial; disponibilização da posição mestre ignorante; funcionamento do mecanismo de transposição didática digital e do mecanismo de transcriação didática digital no ensino em plataformas digitais. Tais condições atuaram na formação do saber experiencial tecnodidático necessário à instauração de novas formas de regularidade ao normalizar a utilização das plataformas digitais no ensino universitário, atendendo, assim, às urgências da governamentalidade algorítmica em produzir um grande volume de dados a fim de fabricar uma Educação orientada a Dados.

Adotaram-se como referencial teórico-metodológico os conceitos de poder, saber, governo e governamentalidade, tal como desenvolvidos pelo filósofo Michel Foucault. Para compreender como esse saber foi constituído, utilizaram-se a entrevista como instrumento metodológico e elementos da análise de discurso foucaultiana para analisar as informações produzidas. Foram realizadas entrevistas com três professores/as de uma instituição universitária brasileira que vivenciaram o Ensino Remoto Emergencial no período entre 2020 e 2021. Para o desenvolvimento do argumento, este artigo está organizado em seções, em que a primeira está voltada ao referencial teórico-metodológico. A segunda seção discute o bloqueio dos procedimentos de produção do saber da prática docente. A terceira seção analisa a demanda pela posição mestre ignorante na governamentalidade algorítmica e a quarta busca compreender o s mecanismos de transposição e transcriação didáticas digitais na formação do saber experiencial tecnodidático. Por último, apresentam-se as considerações finais do artigo.

2 REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO

O poder é entendido, a partir da perspectiva teórica foucaultiana, como “a multiplicidade de correlações de forças” (Foucault, 2015b, p. 100). Para Foucault (2015b, p. 101), “o poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares”. O poder “se exerce a partir de inúmeros pontos em meio a relações desiguais e móveis” (Foucault, 2015b, p. 102). Ele não é uma instituição nem uma estrutura, é “o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada” (Foucault, 2015b, p. 101).

Ao operar com a noção de poder foucaultiana para analisar o contexto atual, pode-se afirmar que o poder exercido pelos algoritmos computacionais está em toda parte, ao governarem os seres humanos, dirigindo suas condutas e as das coisas na produção de uma sociedade altamente tecnológica. A sociedade contemporânea é marcada pela integração de plataformas e aplicativos digitais na realização de atividades cotidianas como comprar, vender, estudar, trabalhar, alimentar, deslocar, aprender, consultar, planejar etc. Os algoritmos estão presentes nas atividades diárias dos sujeitos, em conexão com a internet, nos softwares, nos aplicativos, nas plataformas, nos smartphones, nas smart Tvs, nos smartwacht, nos tablets e em todos os dispositivos que utilizam o processamento de dados. Dessa forma, os algoritmos estão em situação estratégica na fabricação da sociedade algoritmizada.

Com a crescente demanda por utilização de plataformas e aplicativos digitais na educação, de forma intensiva no período de pandemia, é possível considerar que se vive um tempo em que os algoritmos parecem governar o ensino. A noção de governo é desenvolvida por Foucault em suas aulas no final da década de 1970 e nas aulas de 1980, em que ele amplia sua perspectiva analítica a fim de enfatizar a ideia de que poder e saber são produtivos. Ele entende a noção de governo como “mecanismos e procedimentos destinados a conduzir os homens, a dirigir a conduta dos homens, a conduzir a conduta dos homens” (Foucault, 2014a, p. 13). Segundo Doneda e Almeida (2016), “os algoritmos embarcados em sistemas e dispositivos eletrônicos são incumbidos cada vez mais de decisões, avaliações e análises que têm impactos concretos em nossas vidas”. Em outras palavras, o poder algoritmo, ao atuar na tomada de decisões e realização de análises e de avaliações, orienta os indivíduos por meio dos dados e conduz as ações e os pensamentos humanos, governando-os.

De acordo com Berns (2021, p. 8), “uma nova estratégia de governo é colocada em funcionamento por meio de complexos algoritmos, que cada vez mais direcionam nossas condutas”. Para o autor, essa nova forma de governo está baseada “na extração automatizada de dados (dataveillance) que são processados, filtrados e correlacionados (datamining) de modo a permitir a elaboração algorítmica de perfis (pro-filing), capazes de antecipar comportamentos e agir sobre as ações futuras” (Berns, 2021, p. 8). Esse é o modo de funcionamento das grandes plataformas educacionais - big techs - conhecidas pelo acrônimo Gafam (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft). Elas extraem os dados dos/as usuários/as, processam, filtram e criam perfis a fim de prever o comportamento das pessoas.

Os algoritmos de machine learning (aprendizado de máquina) reconhecem padrões a partir de uma grande quantidade de dados. Logo, entende-se a necessidade das plataformas, aplicativos e redes sociais digitais coletarem grande volume de dados. De acordo com Filatro (2021, p. 9), “na educação, as ações dos alunos e docentes geram uma infinidade de dados educacionais (frequência, participação, interação, produção etc.), os quais, quando registrados digitalmente, podem alimentar desde o planejamento de ações didáticas específicas até avaliações”. Com a expansão da educação on-line, “os dados adquirem um significado completamente novo, influenciando a maneira como os alunos aprendem, como os professores ensinam” (Filatro, 2021, p.16). Dessa forma, o governo algorítmico pode engendrar uma Educação orientada a Dados que, com base em um grande volume de dados educacionais, consegue vigiar e conduzir as ações dos sujeitos por meio de plataformas e aplicativos educacionais, ao ser acionado um tipo específico de poder: o poder algoritmo.

O saber é entendido aqui, a partir da perspectiva do filósofo Foucault (2015a, p. 219-220), como “aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva que se encontra assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não status de científico”. Nessa perspectiva, determinado saber vai ou não adquirir status científico dependendo das relações de forças que atuam em sua produção. Esses objetos constitutivos de um domínio do saber referem-se ao conjunto de conhecimentos, condutas, singularidades, práticas, experiências de que se pode falar em determinado discurso.

Para a análise realizada neste artigo, foi importante mapear os saberes presentes nos discursos pedagógicos da didática, os quais compreendem um reservatório de saberes, que são classificados como: saberes disciplinares, saberes curriculares, saberes das ciências da educação, saberes da tradição pedagógica, saberes experienciais e saberes da ação pedagógica (Gauthier et al., 2013). Para Gauthier et al. (2013, p. 29), o saber disciplinar refere-se aos “saberes produzidos pelos pesquisadores e cientistas nas diversas disciplinas científicas”. Nessa perspectiva, “ensinar exige um conhecimento do conteúdo a ser transmitido, visto que, evidentemente, não se pode ensinar algo cujo conteúdo não se domina” (Gauthier et al., 2013, p. 29). O saber disciplinar adquiriu privilégio em relação aos demais saberes na docência universitária, uma vez que esta se estabeleceu a partir dos campos científicos e profissionais docentes (Cunha, 2010, p. 59-60).

Outro saber desse conjunto consiste no saber curricular, ou seja, no saber relacionado ao conhecimento do programa do curso. Esse saber curricular foi coordenado pelo saber profissional no ensino universitário, visto que prevaleceu o entendimento de que “são os médicos que podem definir currículos de medicina, assim como, os economistas o farão para os cursos de economia, os arquitetos para a arquitetura e etc.” (Cunha, 2010, p. 26). Por sua vez, o saber das ciências da educação refere-se aos conhecimentos científicos da educação e do ensino adquiridos em curso de formação docente. Trata-se de um saber profissional específico da docência. No entanto, na docência do ensino superior, “a ideia de que quem sabe fazer sabe ensinar deu sustentação à lógica do recrutamento dos docentes da educação superior” (Cunha, 2010, p. 26). Por essa razão, muitos/as professores/as não receberam formação para exercer as atividades de ensino na educação superior, em virtude de uma desvalorização dos saberes das ciências da educação na docência universitária. Assim, esse saber foi desqualificado no repertório de saberes para atuação na docência do ensino superior.

Nesse repertório, conta-se também com o saber da tradição pedagógica4 que, segundo Gauthier et al. (2013, p. 32), foi instalado a partir do século XVII em que “o mestre deixa de dar aulas no singular, isto é, de ensinar recebendo os alunos um por um em seu escritório. A partir de então, ele passa a praticar muito mais o ensino simultâneo, dirigindo-se a todos os alunos ao mesmo tempo”. A docência universitária foi estabelecida baseada nesses saberes das tradições pedagógicas a partir dos saberes profissionais e científicos (Cunha, 2010). Para Gauthier et al. (2013, p. 32), o saber da tradição pedagógica “será adaptado e modificado pelo saber experiencial, e, principalmente, validado ou não pelo saber da ação pedagógica”. Sendo assim, o saber experiencial parte da constituição da própria experiência de ensino de cada docente (Gauthier et al., 2013, p. 32). O saber da ação pedagógica, por seu turno, trata-se do “saber experiencial dos professores a partir do momento em que se torna público e que é testado pelas pesquisas realizadas em sala de aula” (Gauthier et al., 2013, p. 33).

Com o objetivo de analisar como se formou um saber específico na docência universitária durante a experiência do Ensino Remoto Emergencial a fim de entender o funcionamento da governamentalidade algorítmica no ensino universitário, realizaram-se entrevistas com três professores/as das grandes áreas do conhecimento - Engenharias, Ciências da Saúde e Linguística, Letras e Artes - de uma instituição universitária pública brasileira. As entrevistas são entendidas na perspectiva metodológica adotada na pesquisa como eventos discursivos complexos produzidos não somente pela “dupla entrevistador/entrevistado, mas também pelas imagens, representações, expectativas que circulam - de parte a parte - no momento e situação de realização das mesmas e, posteriormente, de sua escuta e análise” (Silveira, 2007, p. 118). A entrevista “permite ao/a narrador/a a elaboração de imagens de si, do outro e do mundo e a atribuição de significados às suas experiências, constituindo-se como forma discursiva privilegiada para a compreensão das interpretações dos sujeitos sobre si mesmos, numa possível invenção de si” (Teixeira, 2006). Considerando-se que a entrevista é uma situação discursiva, nela estão implicadas relações de poder, emoções, sentimentos (Teixeira, 2006). A entrevista auxilia na compreensão da produção de saberes e subjetividades docentes ao buscar “as regularidades narrativas sobre as aulas, alunos/as, trabalho docente, enfim as ‘redes de coerência’” (Silveira, 2007, p. 136).

As entrevistas realizadas com os/as professores/as foram gravadas e transcritas e utilizados alguns elementos inspirados na análise do discurso foucaultiana com o intuito de: identificar os saberes incitados e bloqueados por meio do governo algoritmo cuja atuação foi intensificada pelo uso das plataformas na pandemia; compreender os mecanismos, técnicas e táticas acionados pelo poder algoritmo durante esse processo; analisar as posições de sujeito demandadas; e as possibilidades de criação e resistência que emergiram nesse contexto.

Na análise das entrevistas, buscou-se compreender a mecânica do poder, como ele é exercido concretamente e em detalhe, “com sua especificidade, com suas técnicas e táticas” (Foucault, 2014b, p. 42). Para tanto, foi “preciso se livrar do sujeito constituinte, livrar-se do próprio sujeito, isto é, chegar a uma análise que possa dar conta da constituição do sujeito na trama histórica” (Foucault, 2014b, p. 43). Nessa perspectiva, torna-se importante analisar quais procedimentos, técnicas e mecanismos operados pelo poder algoritmo atuaram na formação de um saber que fez funcionar a governamentalidade na educação. Essas foram as ferramentas de análise utilizadas nas entrevistas realizadas com os/as professores/as universitários/as no segundo semestre de 2022, que tiveram em média duração de uma hora e meia. Inicia-se a apresentação dessas análises na próxima seção em que se busca compreender o bloqueio dos procedimentos operados pelo poder algoritmo na formação do saber experiencial tecnodidático na docência universitária.

3 PODER-CORPO: BLOQUEIO DOS PROCEDIMENTOS DE PRODUÇÃO DO SABER DA PRÁTICA DOCENTE

Os saberes disciplinares ou científicos e os saberes da prática de ensino dos/as professores/as universitários/as foram historicamente legitimados e privilegiados no repertório de saberes da docência universitária. Até pouco tempo, de acordo com Cunha (2010, p. 59-60), “percebia-se a docência universitária, exclusivamente, estabelecida a partir de saberes dos campos profissionais e científicos dos professores que, baseados nas representações tradicionais de suas trajetórias, enquanto estudantes, forjavam o seu modo de ensinar”. Nesse sentido, a docência universitária foi produzida em meio aos saberes das práticas de ensino que se desenvolveram preponderantemente na modalidade de ensino presencial.

Tal modalidade de ensino tem o corpo físico discente como objeto central na constituição do saber da prática docente. O corpo, entendido aqui em sua materialidade orgânica que configura o ser humano com suas funções fisiológicas e psicológicas, fornece informações ao/à professor/a para que ele/a exerça suas atividades e desenvolva saberes em seu cotidiano de trabalho. O/A docente atua no ensino dependendo dessas evidências corporais. Dito de outro modo, o/a professor/a realiza suas escolhas didático-metodológicas, intervém, avalia e acompanha a aprendizagem, ou seja, conduz sua prática a partir das informações extraídas pelo seu olhar sobre os corpos físicos dos/as alunos/as. Trata-se de um “saber-fazer depois de ter visto” (Foucault, 2020, p. 89). Logo, os movimentos, os gestos e as atitudes dos discentes são elementos privilegiados na fabricação do saber da prática de ensino e o corpo discente, uma marca constitutiva na fabricação do saber da prática docente no ensino universitário presencial. Entende-se que essa produção foi assegurada por meio do funcionamento de três procedimentos: da observação dos discentes; da interação instantânea; e da relação docente-discente no ensino presencial.

Contudo, no período em que vigorou o Ensino Remoto Emergencial, muitos/as professores/as universitários/as demonstravam sua insatisfação com os processos de ensino em plataformas digitais, em especial por não conseguirem ver, olhar, observar, interagir, relacionar-se com os/as estudantes em razão da ausência física deles/as nas aulas on-line. Os/As docentes pareciam sentir falta da interação com os corpos físicos desses sujeitos. É possível questionar: por que tanto incômodo? Esse incômodo pode ter sido provocado justamente pelo bloqueio dos procedimentos de constituição do saber prático do/a professor/a na docência universitária, uma vez que o corpo físico discente é necessário à produção e ao funcionamento desse saber historicamente legitimado na docência universitária.

Nossa, eu não consigo ficar naquela tela, olhando só para mim e sem saber o que as pessoas estão sentindo na hora que eu falo. Eu preciso ver se está fazendo assim, ou está fazendo assim, se está balançando a cabeça com sim ou com não, se está franzindo a testa ou se está com celular nem olhando para mim, nem prestando atenção. Então, eu, realmente, assim, o remoto me exauriu…. (Trecho da entrevista 27.09.2022 - Ciências da Saúde).

Uma professora universitária da área da saúde apresenta seu desconforto no Ensino Remoto Emergencial, como é possível notar no trecho da entrevista supra. Nesse excerto, a professora afirma que precisa “ver” a movimentação dos corpos dos/as estudantes “se está fazendo assim”; “se está balançando a cabeça”; “se está franzindo a testa”; ou com o “celular nem olhando para mim”. Os corpos dos/as estudantes parecem fornecer informações para a atividade cotidiana da docência, ou seja, a professora precisa “ver” para agir e conduzir sua ação de ensino. É possível notar o procedimento da observação dos discentes em funcionamento. A movimentação dos corpos discentes fornece informações aos/às docentes acerca do nível de atenção dos estudantes que podem, por exemplo, “nem [estar] prestando atenção”. Portanto, é preciso “olhar para saber” (Foucault, 2020, p. 92). É por meio do exercício do olhar e da observação que os/as professores/as podem alterar, manter ou ignorar tais informações na condução de suas ações de ensino. O efeito operado por esse procedimento consiste na constituição de um saber relacionado ao modo de intervenção do/a professor/a em sua prática de ensino. Dessa maneira, o corpo discente torna-se necessário ao funcionamento e produção do saber docente.

Contudo, há um bloqueio operado pelo poder algoritmo no funcionamento desse procedimento com a utilização de plataformas digitais, em que o/a docente não consegue mais observar os corpos discentes. Nota-se o poder algoritmo operando na digitalização dos corpos. O poder é entendido em sua produtividade, pois ele “produz realidade; produz campos de objetos e rituais de verdade” (Foucault, 2014c, p. 189). Nessa perspectiva, o poder algoritmo produz corpos digitais. Há uma descorporificação no ensino digital, engendrando um incômodo nos/as professores/as, conforme trecho do relato da entrevista anterior: “eu não consigo ficar naquela tela, olhando só para mim”. O procedimento de observar os/as discentes, frequentemente, não era possível no ensino remoto, porque eles/as podiam fechar as câmeras. O poder algoritmo possibilita condições aos/às discentes de não dar visibilidade de seus corpos aos/às professores/as. Esse bloqueio tem efeito no tipo de conduta docente e na constituição de seu saber prático, uma vez que os/as professores/as não conseguem mais desenvolver o procedimento de observação dos corpos da mesma forma que faziam no ensino presencial. Isso pode ter produzido uma insatisfação e um cansaço do ensino em plataformas digitais, conforme o relato da professora: “o remoto me exauriu”.

Outro procedimento operado sobre o corpo do/a discente na fabricação do saber da prática docente é a interação instantânea . Trata-se da interação entre os corpos dos/as professores/as e dos/as estudantes, considerada como “olho no olho”, ou melhor, o corpo do/a docente em comunicação instantânea com os corpos dos/as estudantes. Nos discursos pedagógicos contemporâneos da prática educativa, a comunicação “olho no olho” pode ser identificada como interação (Tardif, 2014, p. 165). Para esse autor, a interação refere-se a “toda forma de atividade na qual seres humanos agem em função uns dos outros. Falamos de interação quando os seres humanos orientam seus comportamentos em função dos comportamentos dos outros” (Tardif, 2014, p. 166). Nessa perspectiva, o/a docente age e se comporta em função das reações instantâneas dos/as corpos discentes. Para tanto, ele/a precisa dos corpos físicos dos/as estudante para analisar suas ações, comportamentos e atitudes a fim de agir em função delas no sentido de promover a aprendizagem estudantil. Dessa forma, o procedimento da interação instantânea atua na relação entre os corpos docentes e discentes.

Essa relação entre os corpos físicos de docentes e discentes é delimitada pelo poder algoritmo no ensino em plataformas digitais, conforme se pode observar no excerto da entrevista com o/a professor/a de Artes:

[...] vê o estudante, a estudante através da tela é muito diferente de ver a pessoa. Uma coisa, assim, que para mim era muito difícil, mas eu fui aprendendo a lidar com isso. Eu gosto de conversar olhando para as pessoas. Eu dou aula olhando, né, para mim esse olhar é fundamental, olho para aquele, para aquele, que que tá… na tela não tem como você fazer isso. Então, se eu estou conversando com as pessoas, eu estou olhando para a câmera, porque, aí, a outra pessoa que está lá, ela tá vendo que eu estou vendo, entre aspas, que estou vendo-a, mas, na verdade, eu não vejo na telinha aqui. Quando ela tá falando, eu tiro o olho da câmera e olho para ela, né. Mas eu gosto de falar e ver a reação dela, mas isso na tela não tem jeito, sabe, mesmo tendo uma visão periférica, a reação, sabe, isso diz tudo, diz muita coisa. Então, essa coisa de enfrentar a luzinha azul, eu falei, não, tem que aprender a olhar isso aqui. [...] Então, é isso aí que eu tenho que fazer isso, eu falar olhando para cá, mas isso é duro (Trecho da entrevista 17.10.2022 - Linguística, Letras e Artes).

De acordo com este trecho da entrevista - “eu gosto de falar e ver a reação dela, mas isso na tela não tem jeito, sabe…” -, pode-se notar que há uma delimitação no exercício do olhar docente que incide na interação entre os corpos de professores/as e estudantes no ensino em plataformas digitais, pois o docente se comunica olhando para a câmera, e não para a turma de estudantes, o que dificulta observar a reação de cada um/a deles/as simultaneamente. Para ver a reação de cada um/a quando o professor está falando, ele precisa tirar o olho da câmera e olhar para o aluno/a. Para esse docente, falar e, ao mesmo tempo, ver a reação dos/as discentes não é possível na tela. Dessa forma, o poder algoritmo, ao atuar na digitalização dos corpos, dificulta a interação simultânea entre docentes e discentes nas plataformas digitais.

Para Foucault (2014b, p. 235), a materialidade do poder se exerce sobre o corpo dos indivíduos, porquanto opera sobre suas condutas. Esse exercício do poder ao delimitar a interação entre as pessoas nas plataformas digitais tem como efeito o entendimento de que “vê o estudante, a estudante através da tela é muito diferente de ver a pessoa”. Isso porque na tela, em especial em aulas síncronas, não é possível ver, agrupar ou classificar os comportamentos, as condutas, as ações e as reações dos/as discentes de forma momentânea a fim de constituir o saber da prática. Entende-se prática aqui a partir da perspectiva foucaultiana como “empirismo controlador saber fazer depois de ter visto” (Foucault, 2020, p. 89).

Portanto, o procedimento da interação instantânea parece ter ficado bloqueado no ensino em plataformas digitais, uma vez que a descorporificação delimitou a interação entre professores/as e estudantes/as no Ensino Remoto Emergencial. O poder algoritmo atua dificultando o procedimento de interação instantânea, haja vista que nas aulas síncronas os/as discentes, frequentemente, não abriam câmeras e a comunicação era realizada pelo chat. Nos casos em que todos/as estudantes abriam as câmeras, havia um impedimento técnico-operacional das plataformas, pois o/a docente ficava atento, por exemplo, à tela de projeção dos slides, o que o impedia de visualizar a imagem dos corpos dos/as estudantes e até mesmo o chat. Nessas situações, o/a discente que necessitasse intervir teria que acionar o microfone. Assim, é possível perceber algumas barreiras no funcionamento do procedimento de interação instantânea operado pelo poder algoritmo, cujo efeito é o bloqueio na fabricação do saber da prática de ensino.

Esse “olho no olho”, além de favorecer a interação e a comunicação entre os corpos docentes e discentes na constituição do saber docente, atua na constituição da relação docente-discente5, como se pode observar no excerto a seguir: “Às vezes, o olho no olho indica a subjetividade, a postura corporal do aluno. Indica muito mais do que apenas um acerto e erro de um algoritmo. Entende?” (Trecho da entrevista 23.09.2022 - Engenharias).

Nota-se, a partir do termo “a postura corporal”, a necessidade que o/a docente tem da presença do corpo discente a fim de estabelecer uma relação por meio da “subjetividade”, ou seja, da dimensão afetiva, sentimental e emocional do/a aluno/a. Trata-se do procedimento da relação docente-discente que atua na produção do saber da prática docente presencial. Os gestos, os movimentos, os comportamentos, os ruídos emitidos, as conversas e as atitudes corporais dos/as discentes evidenciam sinais de afetos, dificuldades, atenção, interesse, motivação, engajamento etc. deles nas aulas presenciais. Esses elementos funcionam como orientadores para os/as professores/as conhecerem os níveis de aprendizagem discente, sendo importantes para o exercício da docência. O/A professor/a precisa de evidências para conduzir suas ações de ensino e formar seu saber prático. O discurso pedagógico acerca da teoria da prática educativa ratifica essa dimensão subjetiva ao salientar que, “quando se ensina, certos alunos parecem simpáticos, outros não. Com certos grupos, tudo caminha perfeitamente bem; com outros, tudo fica bloqueado” (Tardif, 2014, p. 130). Para esse autor, “uma boa parte do trabalho docente é de cunho afetivo, emocional” (Tardif, 2014, p. 130). Essa dimensão da subjetividade, mencionada pelo professor de engenharia, aproxima-se, então, do discurso científico da Pedagogia ao produzir como verdade educacional que o trabalho docente é baseado “em emoções, em afeto, na capacidade não somente de pensar nos alunos, mas igualmente de perceber e de sentir suas emoções, seus temores, suas alegrias, seus próprios bloqueios afetivos (Tardif, 2014, p. 130). Por conseguinte, a presença corporal discente torna-se fundamental ao funcionamento do procedimento da relação docente-discente operada na produção do saber da prática de ensino presencial.

O ensino remoto, ao ser implementado de modo emergencial, fez com que os/as docentes utilizassem os recursos digitais acessíveis a eles/as no período de isolamento social, ou seja, plataformas digitais presentes no mercado, sejam elas de código aberto, privadas ou públicas. Nesse sentido, os processos de ensino-aprendizagem foram moldados em função das ferramentas tecnológicas presentes, o que em muitos casos pode ter limitado a percepção dos/as docentes com relação aos corpos dos/as discentes, dos quais se obtinham informações e conhecimentos acerca de suas emoções, afetos e sentimentos. Nesse caso, o poder algoritmo opera no bloqueio do procedimento relação docente-discente ao digitalizar os corpos, restringindo a visibilidade do corpo estudantil ao/à professor/a, e vice-versa, limitando a relação entre ambos. Nessa perspectiva, “o poder penetrou no corpo, encontra-se exposto no próprio corpo” (Foucault, 2014b, p. 235). Logo, a produção e o funcionamento do saber prático docente ficaram restritos às funcionalidades disponíveis nas plataformas, o que delimitou os conhecimentos dos/as professores/as acerca da subjetividade discente, tendo como efeito o bloqueio do procedimento relação docente-discente.

Nota-se, portanto, que o poder algoritmo operou no bloqueio dos procedimentos de observação dos discentes, da interação instantânea e da relação docente-discente que até, então, haviam assegurado e, para além disso, eram constitutivos do saber da prática docente no ensino presencial da universidade. O corpo, ao tornar-se alvo do poder algoritmo, submete-se a outras formas de saber na docência universitária. A descorporificação produziu inquietações, desconfortos e exaustão nos/as docentes no Ensino Remoto Emergencial, visto que somente os saberes da prática educativa não conseguiam mais responder sozinhos às urgências da governamentalidade algorítmica de ensinar em plataformas digitais. Logo, a docência universitária é convocada a viver experiências educativas no Ensino Remoto Emergencial na posição do não-saber com relação às tecnologias digitais na educação. Assim, essa racionalidade governamental disponibilizou a posição mestre ignorante no sentido de incitar a formação de outro tipo de saber docente necessário no ensino digital: o saber tecnodidático. Para tanto, na próxima seção, discute-se acerca da demanda da posição mestre ignorante na governamentalidade algorítmica.

4 ENSINO EM PLATAFORMAS DIGITAIS: A DISPONIBILIZAÇÃO DA POSIÇÃO MESTRE IGNORANTE NA GOVERNAMENTALIDADE ALGORÍTMICA

Há uma regularidade histórica na constituição dos saberes para atuação no ensino nas universidades brasileiras, visto que foi demandado dos/as professores/as “um conhecimento do campo científico de sua área, alicerçado nos rigores da ciência e um exercício profissional que legitime esse saber no espaço da prática” (Cunha, 2010, p. 28). Em outras palavras, “o elemento fundamental do ensino, nessa perspectiva, é a lógica organizacional do conteúdo” (Cunha, 2010, p. 32). Desse modo, “a função docente resume-se em ensinar um corpo de conhecimentos estabelecidos e legitimados pela ciência e cultura, especialmente pelo valor intrínseco que os mesmos representam” (Cunha, 2010, p. 31-32).

Os saberes científicos da área de conhecimento e os saberes da prática docente tiveram na trama histórica da universidade brasileira legitimidade e coordenaram os demais saberes na constituição da docência universitária. No entanto, com o estabelecimento do Ensino Remoto Emergencial, houve uma descontinuidade na regularidade da formação dos saberes docentes, uma vez que o poder algoritmo acionou uma nova ordem na relação entre os saberes e a articulação com saberes não constituídos anteriormente no ensino universitário a fim de atender à convocação de ensinar em plataformas digitais. É possível observar essa descontinuidade histórica no trecho da entrevista com um professor da área de humanas:

Aí, quando a gente se depara com a pandemia que não tem a possibilidade de dar aula diretamente, assim, no mundo da informática que é o negócio das redes sociais do Meet, do Zoom, do Windows, qual do Windows? Do Teams. Nossa, olha, vai ser complicado, porque é um troço totalmente desconhecido, né, do meu ponto de vista é até renegado de alguma forma, porque é questão de opção. Mas a gente não teve outra opção. Então, esse problema de não ter uma formação na área de informática de uma forma mais contundente e do interesse também, porque não era do meu interesse saber… (Trecho da entrevista 17.10.2022 - Linguística, Letras e Artes).

No excerto supra, é possível perceber que, para o professor, a pandemia provocou um deslocamento, pois ele relata: “não tem a possibilidade de dar aula diretamente”, o que altera o espaço em que as aulas seriam ministradas, ou seja, nas plataformas digitais (Meet, Zoom, Teams etc.). Então, ele se depara com aquilo que não sabe e afirma: “vai ser complicado, porque é um troço totalmente desconhecido”, “mas a gente não teve outra opção”. Parece haver nesse momento uma descontinuidade histórica, uma vez que a pandemia de Covid-19 coloca em circulação o imperativo6 das plataformas digitais no sentido de expandir a educação digital, sem que necessariamente professores/as e estudantes/as tivessem acesso e conhecimento dessas plataformas ou até mesmo interesse na produção de saberes tecnológicos digitais.

Na perspectiva foucaultiana, a descontinuidade se refere ao “instante de funcionamento irregular de uma causalidade circular” (Foucault, 2015a, p. 10). Isso porque, “no campo da Educação, o que é normal e regular é, por exemplo, que milhares de professores se dirijam todos os dias a milhares de alunos sentados em fileiras” (Tardif, 2014, p. 168). Em outras palavras, trata-se de um ensino marcado por saberes da prática educativa presencial e de uma tradição pedagógica. Nesse sentido, “sabe-se que a transição do ambiente presencial para o on-line não decorre de forma fácil e imediata, mormente para os docentes habituados à pedagogia da transmissão e práticas docentes consolidadas com base na oratória e na presencialidade” (Vieira; Pedro, 2021, p. 2). É nesse instante que a docência universitária é convocada pelo poder algoritmo a assumir a posição de mestre ignorante, uma vez que os saberes científicos da área de conhecimento, o saber da prática docente e das tradições pedagógicas não conseguem responder sozinhos à urgência de ensinar em plataformas digitais. Isso produziu uma oscilação no funcionamento regular dos saberes docentes, haja vista que os/as professores/as foram convocados a viver uma experiência-limite na prática educativa nesse tempo histórico.

Aí, na reunião lá dos professores, das professoras, eu falei assim: olha, gente, no primeiro dia de aula, eu falo assim, gente, eu não sei o que vai dar não, eu não sei o que é. Aí, uma professora: não, mas você tem que saber. Eu não, eu não sei. Se numa aula, assim, presencial eu não sei, porque cada turma é uma turma, no virtual eu vou saber muito menos… (o professor sorri), né, porque tem um aprendizado de vários processos ali, várias nuances que eu não sei o que é (Trecho da entrevista 17.10.2022 - Linguística, Letras e Artes).

Nesse trecho da entrevista, o docente afirma: “se numa aula, assim, presencial eu não sei, porque cada turma é uma turma, no virtual eu vou saber muito menos…”. Nesse relato é possível notar que o professor assume o lugar do “não-saber” para ensinar em plataformas digitais. Há uma disponibilização da posição de sujeito, operada pelo poder algoritmo, denominada neste artigo como mestre ignorante. Essa nomeação foi inspirada na obra Mestre ignorante, de Jacques Rancière, em que ele desenvolve seus argumentos em torno de cinco lições sobre a emancipação intelectual. Para Rancière (2022, p. 11), “não há ignorante que não saiba uma infinidade de coisas, e é sobre este saber, sobre esta capacidade e ato que todo ensino deve se fundar”. Nessa perspectiva, essa posição de sujeito mestre ignorante refere-se à ignorância de forma relativizada, visto que todo ignorante sabe diversas coisas, e nem o/a estudante, tampouco o mestre sabem de tudo. O poder algoritmo incita os/as docentes a assumirem a posição mestre ignorante a fim de produzirem saberes experienciais relacionados às plataformas digitais no ensino e, consequentemente, elevar o número de usuários delas, possibilitando que mais dados sejam extraídos pelas empresas que gerenciam essas ferramentas digitais.

Para Foucault (2015a, p. 141), o sujeito discursivo consiste em “uma posição que pode ser ocupada, sob certas condições, por indivíduos indiferentes”. Entende-se que essa posição mestre ignorante foi incitada na governamentalidade algorítmica a fim de que o saber tecnológico digital instrumentalizado tivesse condições de emergir de forma abrangente e imperativa na docência universitária, em uma posição privilegiada de coordenação em relação aos demais saberes docentes. Isso porque o saber tecnológico digital foi historicamente, até o período anterior à pandemia, secundarizado na docência do ensino superior, visto que ele era subordinado ao saber da prática e ao saber científico na docência no ensino presencial.

Com o ensino em plataformas digitais, o poder algoritmo atuou na captura até mesmo dos/das docentes que não tinham interesse em conhecer acerca das tecnologias digitais, constituindo um imperativo no ensino em período de pandemia de Covid-19. Para tanto, torna-se necessário naturalizar a ignorância deles/as com relação às tecnologias digitais, incitando-os/as à exposição ao “não-saber” na fabricação da posição mestre ignorante, conforme se pode observar no trecho da entrevista com uma docente da área de saúde:

[...] eu [me] lembro de um professor do Teatro que chegou uma vez e ele imitando essa situação nossa, assim, eu vou fazer uma, eu vou começar errado de propósito, então, ele colocou a câmera filmando só daqui para baixo... (a entrevistada sorri), falando coisa errada, a gente ria tanto. E, ele falando assim, e a gente se expor um pouco a esse ridículo a esse não-saber, sair desse pedestal, eu tenho que saber tudo para ensinar. Eu não tenho que saber tudo para eu ensinar. Eu posso estar aqui aprendendo com meus alunos, porque, às vezes, essas coisas digitais, quantas vezes no meio da aula a gente pedia socorro, não estou conseguindo projetar. Vocês me ajudam? Onde eu clico? Onde eu vou? Isso humanizava muito a relação, assim (Trecho da entrevista 27.09.2022 - Ciências da Saúde).

No relato da professora - “a gente se expor um pouco a esse ridículo, a esse não-saber, sair desse pedestal, eu tenho que saber tudo para ensinar” -, é possível notar a estratégia de naturalização da ignorância docente acerca das tecnologias no ensino, em que se faz circular a ideia de que o/a professor/a não precisa saber tudo e que ele/a pode estabelecer uma relação de igualdade com os/as estudantes no que se refere ao aprender com eles/as sobre “coisas digitais”. Esse tipo de estratégia fez-se necessário para que o ensino remoto pudesse ser implementado imediatamente e, por conseguinte, de forma “emergencial”, visto que a justificativa circulante era a de que não havia tempo para planejar com os/as docentes um ensino on-line sistematizado.

A primeira coisa que eu falei com os alunos e as alunas: eu não entendo quase nada disso, nós vamos trabalhar e vocês vão me ensinar e aquilo que eu sei vou passar para vocês. Se não fossem esses estudantes, eu estaria perdido, porque eles me ajudaram muito, tiveram paciência, sabe, assim, colaboração (Trecho da entrevista 17.10.2022 - Linguística, Letras e Artes).

Ademais, outra ideia era a de que a relação docente-discente poderia ser mais colaborativa se os/as docentes assumissem essa ignorância a respeito dos conhecimentos e saberes digitais e aprendessem com os/as estudantes. Na entrevista com um professor da área de Linguística, Letras e Artes, ele expôs aos/às discentes sua ignorância dos saberes tecnológicos digitais, dizendo contar com eles/as para aprenderem juntos de forma colaborativa. Trata-se da constituição da relação discente-docente atuando na constituição da posição mestre ignorante. Portanto, a posição mestre ignorante, ao ser disponibilizada na governamentalidade algorítmica, possibilitou que os/as professores/as vivessem experiências7 no ensino digital que antes da pandemia de Covid-19 não se imaginava, visto que eles/as não tiveram possibilidades de escolha entre o ensino presencial e o remoto emergencial com o funcionamento do imperativo das plataformas digitais. Divulgou-se que era preciso ocupar o lugar do “não-saber” a fim de naturalizar a ignorância docente com relação aos saberes e conhecimentos digitais e, assim, tornar possível a formação do saber experiencial tecnodidático na docência universitária no período do ensino remoto. O saber tecnodidático foi formado por dois mecanismos operados pelo poder algorítmico: a transposição e a transcriação didáticas digitais, as quais serão analisadas na próxima seção.

5 TRANSPOSIÇÃO E TRANSCRIAÇÃO DIDÁTICAS DIGITAIS: SABER EXPERIENCIAL TECNODIDÁTICO NA GOVERNAMENTALIDADE ALGORÍTMICA

O deslocamento do ensino presencial para o Ensino Remoto Emergencial deu condições para a emergência de um saber experiencial tecnodidático, visto que grande parte dos/as professores/as universitários/as ainda não havia tido a experiência de ensinar on-line. Na obra O nascimento da clínica, Foucault trata da constituição da experiência clínica. Para o autor, nessa obra, a experiência seria uma leitura particular da realidade que está no nível da percepção e da memória. Por essa razão, ela pertenceria à ordem do exemplo, uma vez que ela não existia antes, porém permanecerá existindo após a vivência. Os/As docentes produziram um saber particular por meio de suas percepções e memórias acerca dessa vivência no ensino remoto, constituindo o saber experiencial. Com o bloqueio dos procedimentos de produção do saber da prática docente no ensino presencial e a disponibilização da posição mestre ignorante, foi possível observar, com base nas entrevistas, mecanismos operados pelo poder algoritmo na produção de práticas didáticas no ensino remoto a fim atender às urgências da governamentalidade algorítmica na formação do saber experiencial tecnodidático. Dois mecanismos atuaram na constituição de experiências de ensino em plataformas digitais: mecanismo de transposição didática digital e mecanismo de transcriação didática digital .

O mecanismo de transposição didática digital consistiu na transferência das aulas desenvolvidas no ensino presencial para as plataformas digitais. Etimologicamente, o termo transpor vem do latim “trans”, que significa através, e “positio”, de colocação e situação. Tem como prefixo o verbo “transpor”, cujos sinônimos são transportar, transferir e transplantar. Este último refere-se a arrancar algo de um lugar para outro ou substituir uma coisa por outra que foi retirada (Cunha, 2010). Nesse sentido, o mecanismo de transposição didática atuou na constituição do saber experiencial tecnodidático na docência universitária, visto que arrancou o modo de ensinar realizado no ensino presencial para o on-line, ou seja, substituiu o ensino presencial, impossibilitado pela pandemia de Covid-9, para o ensino em plataformas.

De acordo com Mattar (2022, p. 1), as aulas migraram para as plataformas de webconferência como Teams, Zoom, Meet, e “muitos professores reproduziram suas aulas nesses ambientes, e os alunos começaram a frequentar as mesmas aulas, só que agora não mais em salas de aula, mas em suas próprias casas”. Nota-se que o mecanismo de transposição didática digital funcionou por meio da utilização de plataformas que favoreciam as aulas síncronas, porquanto o método de ensino expositivo pode ser transferido do presencial para aulas síncronas em plataformas de maneira rápida e menos complicada, ao não demandar maior interação com os demais saberes docentes para ensinar on-line. Dessa forma, os saberes produzidos pela docência acerca das aulas expositivas com ênfase na transmissão de conteúdo praticado no presencial podem ser reproduzidos no formato síncrono em plataformas digitais. É possível notar, portanto, uma digitalização do saber docente operado pelo poder algoritmo.

Observou-se no tópico anterior que há limitações relacionadas ao funcionamento do saber docente no ensino digital, contudo, quando o objetivo didático parece restrito a repassar o conhecimento, esse mecanismo de transposição didática digital funcionou no Ensino Remoto Emergencial, como se pode observar no trecho da entrevista a seguir:

Então, foram duas experiências diferentes, então, o que eu percebi. A [nome da disciplina] é uma disciplina de 15 horas só e ela é originalmente a distância. A gente fazia uma conferência presencial e depois a gente colocava no Moodle outras conferências virtuais e fazia é, usava aqueles recursos do Moodle de seminário, de troca, porque eu parei de dar [nome da disciplina]. Então, foi uma mudança relativamente simples de só a gente pegou essa parte presencial colocou no Teams e fizemos é, síncrona, né (Trecho da entrevista 27.09.2022 - Ciências da Saúde).

É possível observar, a partir desse excerto, que uma mesma professora obteve experiências distintas em sua prática de ensino on-line, ao afirmar que “foram duas experiências diferentes”. A entrevistada aponta que “foi uma mudança relativamente simples de só a gente pegou essa parte presencial colocou no Teams e fizemos é, síncrona, né”. Nota-se que as aulas presenciais de uma disciplina que já contava com carga horária a distância foram transferidas para a plataforma Teams como aula síncrona. Dessa maneira, o mecanismo de transposição didática digital utilizou em sua operação as aulas síncronas a fim de transferir aulas expositivas com ênfase no conteúdo para as plataformas digitais. Esse mecanismo do poder algoritmo na educação demanda da docência saberes tecnológicos relacionados ao conhecimento instrumental do funcionamento de algumas plataformas como Teams, Meet e Zoom. Vale salientar que essas plataformas são privadas. Tal mecanismo parece não atuar na convocação, articulação e confronto com outros saberes do reservatório de saberes docentes.

Consequentemente, o mecanismo de transposição didática disponibiliza a posição professor/a conferencista, pois tanto no ensino presencial quanto no on-line o sujeito docente precisa dos saberes da área de conhecimento para ensinar. Contudo, o ensino digital aciona a articulação com saberes tecnológicos, em especial o conhecimento instrumental de algumas plataformas digitais. Essa posição tem como marca característica pouca interação com os saberes didáticos em virtude da restrição na utilização de métodos de ensino diversificados. No entanto, ela atende à urgência em normalizar a utilização de plataformas digitais no ensino para o funcionamento da governamentalidade algorítmica em atender à urgência de transformação do modelo educacional para uma Educação orientada a Dados. Portanto, “o normal se estabelece como princípio” (Foucault, 2014c, p. 180) na expansão das plataformas digitais na educação a partir da formação do saber experiencial tecnodidático docente capaz de fazer funcionar e assegurar a governamentalidade algorítmica no ensino.

Por sua vez, o mecanismo de transcriação didática parece possibilitar a emergência do saber experiencial tecnodidático exigido na governamentalidade algorítmica no sentido de também normalizar a utilização de plataformas digitais. O termo “transcriação” remete às traduções didáticas da diferença (Corazza, 2015). Para esse autor, se existe alguma possibilidade de didática na filosofia da diferença, é porque há “experimentação de pensamento” (2015, p. 107), em que se pode falar de uma didática da tradução. Esta implica a noção de recriar e menos de transportar e transpor (Corazza, 2015, p. 108). Nessa perspectiva, a didática da diferença “que especifica o seu sentido, pela tradução, nos leva a entender o processo criador em educação, mediante a reformulação da própria didática: em termos não mais de normatividade, mas de transcriação do pensamento filosófico, artístico e científico” (Corazza, 2015, p. 109).

Foi possível observar nas entrevistas realizadas que o mecanismo de transcriação incitou a criação didática no ensino em plataformas digitais, pois existiram experiências educativas em que docentes não somente transpuseram aulas expositivas presenciais em aulas síncronas, mas também inventaram modos de ensinar, ou seja, outras possibilidades didáticas nas plataformas digitais. Entende-se a “Didática como resultante dos atos de criação pedagógica; e, ao mesmo tempo, como o meio em que a própria Pedagogia funciona, ao atualizar-se em currículo” (Corazza, 2013, p. 186). A didática da diferença rompe com o já estabelecido no ensino e cria outros sentidos, formas e linguagens. No caso do ensino em plataformas digitais, houve a tradução de um modo de ensinar no presencial para a linguagem do digital, implicando uma criação por meio da experimentação didática. Para Corazza (2015, p. 117), “traduzir é inventar”. É possível observar no trecho da entrevista a seguir que, a partir da experimentação, foram derivadas criações didáticas no ensino digital:

Geralmente, eu peço para fazerem uma cena, usando voz, usando texto, né. Então, eles fizeram vídeos, partindo disso, com experimentação sonora. Então, teve exemplos, assim, superlegais. Então, funcionou nesse aspecto. É a mesma coisa? Não, é outra coisa. É outra coisa, sabe. Mas tocou nos temas é… essenciais da disciplina, por exemplo, né, com todas as distorções, porque quando você trabalha com música, eu trabalho com música também, por essas plataformas não tem como você fazer alguma coisa simultaneamente, por causa do delay. Então você... oh...oh... o outro... não tem jeito de fazer simultaneamente e vai ser muito difícil, porque se isso fosse fácil a televisão já fazia isso. É impossível, acho tecnicamente. Acho que é quase impossível, então, a gente teve que inventar coisas para soar de uma forma legal (Trecho da entrevista 17.10.2022 - Linguística, Letras e Artes).

Em aula no ensino remoto, o docente solicita que os estudantes façam uma cena, utilizando voz e texto. Eles/as produziram vídeos por meio de experimentações sonoras. De acordo com o docente, a atividade didática funcionou bem, mas não é a mesma coisa do presencial. Para o professor, é outra coisa, pois há “distorções”, uma vez que o ensino da música requer realização de sons simultâneos, o que não é possível no ensino on-line em razão do delay8. Consequentemente, há uma impossibilidade técnica de elaborar essa cena no vídeo exatamente como seria no ensino presencial. Pode-se pensar que houve uma possibilidade de tradução didática, visto que “tocou nos temas é… essenciais da disciplina, por exemplo, né”. Entretanto, houve distorções e “a gente teve que inventar coisas para soar de uma forma legal”. Corazza (2015, p. 113) afirma que “é justamente desses procedimentos tradutórios singulares que deriva o novo”. Puderam-se observar, desse modo, criações didáticas no ensino em plataformas digitais como verificado na experimentação sonora apresentada no relato do docente da área de humanas. Dessa maneira, o mecanismo de transcriação didática digital operou na articulação dos saberes didáticos com os saberes tecnológicos digitais na ressignificação ou criação de métodos de ensino adaptados pedagogicamente nas plataformas digitais, exigindo, assim, conhecimentos do campo teórico e prático da didática e do campo tecnológico digital.

Essa articulação entre saberes teve como efeito a formação do saber experiencial tecnodidático. A noção de saber experiencial remete à ideia de “experiência integrada no nível da percepção, da memória e da repetição, isto é, no nível do exemplo” (Foucault, 2020, p. 89). Nesse sentido, a experiência vivenciada no Ensino Remoto Emergencial produziu percepções e memórias na docência universitária que funcionaram como exemplo na expansão e normalização da utilização de plataformas digitais no ensino. O saber da experiência fabricado no ensino remoto transformou a relação e a ordem com os demais saberes docentes. Assim, a formação do saber experiencial tecnodidático articulou os saberes tecnológicos com os saberes didáticos ao saber da experiência constituída no Ensino Remoto Emergencial. Essa composição de saberes atuou na reorganização hierárquica dos saberes da docência que tinham privilegiadamente o saber científico e da prática de ensino como fundadores da docência universitária. Com a formação do saber experiencial tecnodidático tornou-se possível a instauração de novas regularidades no ensino que possam atender à urgência em transformar o modelo educacional para o ensino híbrido com uso de plataformas digitais e, assim, propiciar fissuras nos currículos universitários.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, buscou-se compreender como se formou um saber específico na docência universitária durante a experiência do Ensino Remoto Emergencial, desenvolvido em plataformas digitais no período de pandemia de Covid-19 nos anos de 2020 e 2021 a fim de entender o funcionamento da governamentalidade algorítmica no ensino universitário. Essa racionalidade de governo foi operada pelo poder algoritmo com o imperativo das plataformas digitais no ensino. Observou-se que os saberes da prática educativa não conseguiram responder sozinhos às urgências da governamentalidade algorítmica de ensinar em plataformas digitais, visto que houve uma descorporificação dos sujeitos da educação no ensino on-line. Sem essa corporeidade no ensino digital, o poder algoritmo operou no bloqueio dos procedimentos de observação dos discentes, da interação instantânea e da relação docente-discente que até, então, haviam assegurado e, para além disso, eram constitutivos do saber da prática docente no ensino presencial universitário. Ao operar esse bloqueio, a governamentalidade algorítmica disponibiliza a posição mestre ignorante a fim de naturalizar o não-saber docente com relação às tecnologias digitais e, por conseguinte, facilitar a experiência do Ensino Remoto Emergencial, tendo como efeito a emergência do saber experiencial tecnodidático.

A análise das entrevistas permitiu perceber que o saber experiencial tecnodidático emerge tendo como sustentação os mecanismos de transposição e transcriação didáticas digitais acionados pelo poder algorítmico. Esses mecanismos asseguraram o funcionamento da governamentalidade algorítmica na educação, à medida que favoreceram a normalização do uso das plataformas digitais no ensino na educação superior universitária. Portanto, o imperativo das plataformas digitais no ensino remoto atendeu à urgência em produzir dados da educação por meio das grandes plataformas - big techs - a fim de transformar o modelo educacional de tecnologias analógicas para a Educação orientada a Dados. Essa operação forjou o saber experiencial tecnodidático que visa assegurar e atuar na manutenção e funcionamento da Educação orientada a Dados.

Por fim, foi possível observar com o mecanismo da transcriação didática digital que há possibilidades de escapes. E que o “Professor é um agente de fluxos da invenção” (Corazza, 2013, p. 191). Nesse sentido, enfatiza-se a importância de entender o funcionamento do poder algoritmo para criar e inventar currículos que potencializem a imaginação, a criticidade, a criatividade das pessoas a fim de produzir sujeitos que saibam lutar no processo de algoritmização dos currículos, das ações, dos pensamentos e da vida humana.

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NOTAS:

1 Este artigo trata-se de resultados da pesquisa de doutorado Governamentalidade algorítmica na docência do ensino superior: subjetividades e saberes docentes em uma universidade pública brasileira, desenvolvida na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.

2 De acordo com a Resolução do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da instituição de ensino em que se entrevistaram os/as docentes, entende-se por Ensino Remoto Emergencial o “regime de ensino adotado temporariamente para desenvolver as atividades acadêmicas curriculares com mediação pedagógica assentada nas tecnologias digitais de informação e comunicação, possibilitando a interação estudante-docente-conhecimento”. Essa resolução regulamentou o Ensino Remoto Emergencial com o objetivo de substituir temporariamente as aulas presenciais de atividades acadêmicas curriculares teóricas, práticas ou teórico-práticas, em caráter de excepcionalidade, por atividades em plataformas digitais durante período de pandemia da doença de Covid-19. As plataformas digitais recomendadas aos docentes entrevistados/as pela instituição foi a Microsoft Teams para realização, em especial, das atividades síncronas e para as atividades assíncronas, o Moodle. Assim, a Microsoft é considerada uma das grandes empresas de tecnologia Big Techs que extrai dados dos usuários e o Moodle é um software aberto instalado na própria instituição.

3 Atividades síncronas são aquelas em que as pessoas precisam estar conectadas ao mesmo espaço de tempo na plataforma para se comunicarem e interagirem de maneira simultânea (Filatro, 2008, p. 121). Atividades assíncronas são aquelas em que as pessoas não precisam estar simultaneamente conectadas no mesmo espaço de tempo na plataforma para se comunicarem (Filatro, 2008, p. 121).

4 O saber tradicional, neste artigo, refere-se às ações de ensino que ocorrem simultaneamente com todos os/as alunos/as na modalidade presencial.

5 Neste artigo, damos ênfase à relação docente-discente. Isso ocorre não para excluir o sentido contrário da relação discente-docente, mas por uma opção de recorte para os limites de um artigo. Estamos desenvolvendo essa análise na pesquisa que dá base a este texto e esperamos publicá-los posteriormente. Todavia, para este texto, o objetivo foi focar a relação docente-discente.

6 Imperativo refere-se a algo que se tornou necessário, bom em si mesmo e naturalizado na sociedade em um dado momento histórico. Foi o caso das plataformas digitais no período do Ensino Remoto Emergencial. Foucault faz a análise dos imperativos de saúde, político e de moralidade na obra Vigiar e punir: nascimento da prisão (Foucault, 2014c, p. 169).

7 Algumas dessas experiências serão analisadas no próximo tópico deste artigo “Transposição e transcriação didáticas digitais: saber experiencial tecnodidático na governamentalidade algorítmica”.

8 “Esta palavra oriunda da língua inglesa e agregada ao português costuma ser empregada para se referir aos retardos de sinais, principalmente no atraso de som nas transmissões via satélite.” Disponível em: https://www.significados.com.br/delay/. Acesso em: 27 fev. 2023.

Recebido: 10 de Abril de 2023; Aceito: 01 de Agosto de 2023; Publicado: 30 de Setembro de 2023

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