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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub 30-Jun-2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e59664 

Dossiê ABdC: Narrativas, conversas e as múltiplas grafias de vida...

A vida grafada nas asas invisíveis da docência: memória, afetos e experiências formativas na produção de currículos

Life written on the invisible wings of teaching: memories, affections and formative experiences in the production of curricula

La vida escrita en las alas invisibles de la docencia: recuerdos, afectos y experiencias formativas en la producción de currículos

Sabrina Mendonça FERREIRAi 
http://orcid.org/0000-0001-5679-9956

Tânia da Costa GOUVÊAii 
http://orcid.org/0000-0002-0828-7873

i Doutora em Educação (2022) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestra em Cognição e Linguagem (2013) e Licenciada em Pedagogia (2011) pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Professora de disciplinas pedagógicas nas Licenciaturas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense) Campus Centro/RJ. E-mail: smendonca@iff.edu.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-5679-9956

ii Mestra em Educação pelo Programa de Pós-graduação: Processos Formativos e Desigualdades Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ/FFP (2019). Professora Inspetora Escolar na SEEDUC/RJ e na Secretaria Municipal de Educação de Maricá. E-mail: gouveat23@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-0828-7873


Resumo

O artigo coloca-se epistemologicamente em defesa do campo das pesquisas com os cotidianos e tem por objetivo desinvisibilizar possibilidades formativas em produções curriculares de múltiplas grafias que se entrelaçam em vidas por meio de narrativas em conversas entre docentes na vivência da escola básica pública. As pesquisas apontam para a potência dos encontros (GARCIA, 2015) como lugar de produção e sinalizam pistas na ampliação de sentidos que circulam diferentemente em duas instituições educacionais do estado do Rio de Janeiro, mostrando a complexidade envolvida em compreensões da profissão docente. O uso de narrativas de experiências como metodologia mobilizou memórias e afetos e ampliou possibilidades de significação no enfrentamento de desigualdades, no fortalecimento político e autoral docente e no reconhecimento da importância da produção curricular nos cotidianos docentes.

Palavras-chave: docência; grafias; cotidianos; produções curriculares

Abstract

The article epistemologically stands in defense of the field of research with everyday life and aims to deinvisibilize formative possibilities in curricular productions of multiple writings that intertwine in lives through narratives woven in conversations between teachers, in the public basic school experience. Both researches point to the power of meetings (GARCIA, 2015) as a place of production and point to clues in the expansion of meanings that circulate differently in two educational institutions in the state of Rio de Janeiro, showing the complexity involved in understanding the teaching profession. The use of narratives of experiences as a methodology mobilized memories and affections and expanded possibilities of meaning in the face of inequalities, in the political and authorial strengthening of teachers and in the recognition of the importance of curricular production in teachers' everyday lives in schools.

Keywords: teacher education; writings; everyday life in schools; curricular productions

Resumen

El artículo es epistemológicamente en defensa del campo de investigación con la cotidianidad y pretende invisibilizar posibilidades formativas en producciones curriculares de múltiples ortografías que se entrelazan en vidas a través de narrativas en conversaciones entre docentes en la experiencia de la escuela básica pública. Investigaciones apuntan al poder de los encuentros (GARCIA, 2015) como lugar de producción y apuntan pistas en la expansión de significados que circulan de manera diferente en dos instituciones educativas del estado de Río de Janeiro, mostrando la complejidad involucrada en la comprensión de la profesión docente. El uso de narrativas de experiencias como metodología movilizó memorias y afectos y amplió posibilidades de sentido frente a las desigualdades, en el fortalecimiento político y autoral de los docentes y en el reconocimiento de la importancia de la producción curricular en el cotidiano docente.

Palabras clave: formación del profesorado; escritos; la vida cotidiana en las escuelas; producciones curriculares

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo apresenta duas pesquisas cujas problematizações envolvem a formação docente e a produção curricular sob a perspectiva teórico-epistemológica do campo com os cotidianos (ALVES, 2008). Mais do que articular as pesquisas, este artigo se coloca em defesa desse campo quando confronta e interroga a epistemologia dominante e seu modo de operar ao apresentar outras grafias de produção como processo autoral e emancipatório da docência por meio de encontros (GARCIA, 2015) instituintes. Ao problematizar a episteme que governa a razão científica (SANTOS, 2010) na defesa de uma outra, que mobilize experiências como alternativas emancipatórias, sinalizamos pistas daquilo que compõe culturalmente as práticas cotidianas, dando-lhes forma ou desforma. Como percurso metodológico, nossas pesquisas fazem uso de narrativas e conversas em encontros (GARCIA, 2015), entendendo estes como espaçostempos1 de afirmação docente. Quando criamos esses espaços de afirmação, estamos argumentando a favor da autoria docente nos processos formativos e curriculares anunciando nossa posição político-epistemológica em prol de justiça cognitiva e social (SANTOS, 2010).

Movendo-se entre vidas e grafias, envolvendo conversas e narrativas docentes, o artigo visa mostrar a amplitude dos acontecimentos cotidianos, que, mesmo invisibilizados por uma razão indolente (SANTOS, 2010), desenham asas poderosas que, entre um voo e outro, no impulso do vento e do pensamento, ativam possibilidades de uma vida prudente na luta por uma vida mais decente na docência.

Dessa maneira, as narrativas sobre as quais nos debruçamos e trazemos para dialogar enquanto experiências provocam fluxos de pensamentos entre acontecimentos cotidianos e noções de autores do campo como Garcia (2015), Oliveira (2013), Alves (2003) e Santos (2002), entre outros, de modo a potencializar e ampliar possibilidades outras de significação em prol do fortalecimento político e autoral docente e na produção e reconhecimento de fazeressaberes cotidianos como modo de enfrentamento das desigualdades produzidas quando do epistemicídio (SANTOS, 2014) de experiências como saberes e de espaçostempos e sujeitos de produção.

São narrativas de pesquisas que expressam diferentes experiências coletivas de docência em formação e produção, mas que se aproximam, pela defesa do campo, de uma docência autoral, e pela emancipação coletiva movidas em encontros que impulsionam nossas asas desejosas por voos cada vez mais inventivos e ousados.

2 O VOO ENCANTADO DA “MARIA POUSA”: ENTRE MEMÓRIAS E PRODUÇÕES CURRICULARES DOCENTES

[...] Perdoai.

Mas eu preciso ser Outros.

Eu penso renovar o homem usando borboletas...

Manoel de Barros

A necessidade do poeta traduz a urgência do mundo - uma urgência de renovação e de grafias encantadas para compor a vida. Viver cada passo, no compasso delicado e inocente que só os poetas, os músicos e as crianças podem expressar. Se borboletas podem renovar o homem, poderiam suas primas mariposas polinizar experiências outras nos coletivos humanos como alternativas emancipatórias em docência, pensamos.

Assim, essa história começa com a sedução da flor ao atrair para seu néctar a nossa “Maria pousa”.

Sabe professora, eu tive dificuldade para mostrar o que é inseto... Eles não têm noção... aí eu tive que arrumar um jeito para explicar... Como tudo era bicho na minha infância, aproveitei a ideia. Mas o encanto deles foi com a mariposa mesmo. Eles até falaram “Maria pousa” (Prof.ª Naiana).

Quem é nossa “Maria pousa”? Quem foi seduzido pelo néctar da flor? Poderíamos dizer: foram as crianças encantadas pela nova descoberta ou foi a professora quem ficou deslumbrada com a própria experimentação?

Esse trecho faz parte de um diálogo em que docentes da educação infantil, com a orientação pedagógica, pensando o desenvolver de um projeto pedagógico da escola, procuraram partilhar experiências e dificuldades por meio de narrativas, em encontros dialógicos.

As pesquisas, fundamentadas na abordagem dos campos com os cotidianos, pensam e defendem os encontros, como afirma Garcia (2015), não só como percurso metodológico, mas também como processo formativo. Citando a autora, podemos dizer que encontros são:

[...] espaçotempos privilegiados e singulares para pensarmos sobre processos formativos e nossa forma de pesquisá-los. [...] [provoca] desestabilizações e deslocamentos... [...] cria espaços para a produção de outros-novos saberes... e favorece o fortalecimento político dos professores e das escolas em uma produção mais solidárias dos saberes com os quais os professores produzem os currículos e as escolas cotidianamente (GARCIA, 2015, p. 3-4).

Essa noção da autora, tecida com os estudos desse campo e pensada como defesa de um processo alternativo de criações cotidianas da docência, nos moveu nos entrelaçamentos de experiências diversas entre saberes, fazeres, memórias e afetos que envolviam as histórias singulares de cada uma de nós ao longo das pesquisas e para além delas.

Interessa ressaltar que a questão dos afetos para alguns de nós, cotidianistas, tem uma perspectiva diferenciada e referenciada em Spinoza (2009). Aqui é considerado o nexo entre corpo e alma de modo a garantir a existência, segundo as palavras do filósofo. Diríamos, resumidamente, que os afetos, especificamente a alegria, são potências produzidas em bons encontros, manifestando-se na vida corporal e psíquica dos indivíduos por meio de ações e ideias como forma de conhecer. Assim, para nós, cotidianistas, não há como dissociar afecções de intelecto, já que essa é uma relação natural; ou seja, lhe é própria como engrenagem que movimenta a vida.

Na ebulição das produções curriculares e de uma formação docente aquecida por diálogos horizontais (SANTOS, 2002) que os coletivos puderam proporcionar, foi perceptível o emergir, nas palavras do poeta, de uma Outra Naiana ou Outras tantas docentes que, como ela, inventam modos de contar e viver a vida a cada dia nas escolas.

A proposta de uma das pesquisas foi a de interrogar como movimentos de formação coletivos que têm por base diálogos entre professoras e suas práticas cotidianas contribuem na produção de saberes e práticas curriculares - sobretudo para perceber e problematizar visões hegemônicas presentes nas práticas.

Provocar certos deslocamentos por meio dos diálogos entre narrativas era o principal objetivo da referida pesquisa; porém não seria possível precisar o que aconteceria. O fato é que estávamos ali, em nossos encontros dialógicos, para discutir e narrar nossas experiências e dificuldades enquanto docentes, partilhando e nos fortalecendo como grupo, enquanto coletivo instituinte.

A questão do diálogo na pesquisa é pensada pelo social e pela alteridade-intersubjetividade fundamentada em Bakhtin (2011), já que compreende a expressão, enquanto ato comunicativo, como atividade mental contextualizada que gera posições responsivas de compreensão e enunciação, seja por meio de objeções, concordâncias, participação ou resistências (BAKHTIN; 2011, 2014). Os conflitos, nesse caso, tornam-se promissores, pois ampliam as possibilidades de debates na medida em que consideram a natureza polissêmica e polifônica (GARCIA; OLIVEIRA, 2016) do campo e dos acontecimentos em fluxo.

A história da “Maria pousa” foi, de certo modo, revolucionária, uma vez que não só movimentou nossas conversas, mas também agitou memórias, mobilizou afetos e provocou certas artes(anias) nas crianças e nas docentes pela perspectiva de uma visita inusitada de “Maria pousa”.

- Eu tava em Gaviões quando achei a mariposa. Por aqui não tinha e como fez parte da minha infância achei legal trazer. As crianças achavam que era borboleta... e para explicar que não era?! Ah! Aí, eu tive que dizer que ela não era porque só voava à noite, mas que era prima da borboleta! E aí foi a farra! As crianças eufóricas disseram: A “Maria pousa” veio visitar sua prima! (Prof.ª Naiana).

- Que legal! Eu não pensaria na Mariposa como prima da borboleta! Vou pensar mais nessas possibilidades! Talvez até trabalhar com nome e sobrenome... “Maria Pousa...” quem sabe... (Prof.ª Fabiana).

Assim, ao longo de alguns dos nossos encontros, os assuntos sempre rodopiavam em torno dos insetos - ora para contar a euforia das crianças com a novidade e o desenrolar dessa história, ora com nosso entusiasmo para abraçar a ideia da professora e movimentar as salas com o encantamento das crianças pelos novos amiguinhos miudinhos que passaram a possuir nome, sobrenome e família. Passaram os bichinhos a serem (des)conhecidos apenas por insetos.

Curiosamente, a descoberta e a euforia das crianças se assemelhavam à nova descoberta e à euforia da professora Naiana. Afirma-se isso não só pelo acompanhamento da história e da narrativa dessa docente com esse grupo e antes dele, mas também pela percepção das fases de metamorfose que acabaram por fortalecê-la como docente.

Os sentidos culturalmente atribuídos às mariposas podem ser variados: desde uma vinculação com bruxaria e morte a renascimento e sonhos. Alguns estudos na área da Zoologia Cultural sinalizam que o modo pelo qual percebemos determinados organismos pode reforçar uma ideia distorcida destes, o que pode impedir que percebamos suas potencialidades para os ecossistemas. Fazendo uma analogia, algumas questões para pensar: como no caso das mariposas, que percepções temos tido da docência? Temos distorcido ou afirmado a imagem desses profissionais? Que afetos são mobilizados primeiro quando pensamos a respeito? Como podemos fortalecer essa imagem?

Nessa discussão, defendemos e afirmamos como posicionamento político e epistemológico os princípios do campo em que pesquisamos em nossa vinculação de defesa pela abordagem das pesquisas com os cotidianos. Por isso, faz-se importante explicitar o modo pelo qual esses princípios vêm ao encontro da história de “Maria pousa”.

Como também acontece com as mariposas quando associadas ao saber feminino das bruxas, a ideia de docência traz, pelo discurso hegemônico, certa conotação negativa - desqualifica saberes que emergem da prática da docência (grupo majoritariamente feminino), considerando-o como um não saber ou um saber inferiorizado.

Conforme afirma Santos (2010), a razão como discurso científico se impõe como verdade para dominar, regular e manipular, disseminando e incorporando práticas que passam a caracterizar um modo de ser e fazer enquanto padrão a ser seguido. Qualquer outro modo se caracterizaria como desvio. Podemos identificar a influência desse pensamento na história quando da caça às bruxas, transferindo essa relação nos tempos atuais a insetos que possam representar o misticismo destas. Mais especificamente, também podemos relacionar essa influência com as questões da docência, das escolas, quando trazemos para esse campo os discursos científicos que engessam, por meio de propostas políticas, formas de pensar, atribuindo ideias de uma escola pública sempre em crise, à míngua, lugar de alunos fracassados, de professores incapacitados.

No entanto, quando interrogamos os nossos cotidianos escolares na iminência da produção curricular e da formação docente - isto é, quando consideramos nossas ações e nossas experiências como percursos inventivos e formativos -, é possível não só romper com determinadas concepções de docência como argumentar, para além da razão, que produzimos conhecimentos nos fluxos dos acontecimentos que se fermentam entre dobras de fazeres, saberes e afetos.

Como nos dizem Alves (2003) e Oliveira (2016), a circularidade entre culturas movimenta práticas e teorias em diferentes espaçostempos, conforme vão sendo apropriados e modificados pelos sujeitos. Isso, por si só, inviabiliza qualquer estruturação da prática e teoria como coisas estanques, mas como algo que é, e por elas são constituídas como teoriapraticateoria.

A busca por compreender como criamos conhecimento nos cotidianos escolares conduziu as autoras e outras tantas do campo a compreender a inseparabilidade do termo, tendo em vista que esses são movimentos sincrônicos e misturam agir, dizer, criar, lembrar, sentir... (ALVES, 2003, p. 2).

Ainda seguindo essa reflexão sobre nossas pesquisas e nosso posicionamento epistemológico, reforçamos o argumento da autora com a compreensão que Oliveira (2013, p. 376) nos apresenta:

É importante marcar a opção epistemológica pela ideia de que não há prática que não integre uma escolha política e que não há política que não se expresse por meio de práticas e que por elas não seja influenciada. Ou seja, o tema das políticas educacionais e das práticas cotidianas fica mais bem expresso como “políticaspráticas educacionais cotidianas”, sem separação, sem a pressuposição de que são coisas diferentes.

Tendo a indissociabilidade entre os termos prática, política e teoria por meio da argumentação das autoras mencionadas como um dos princípios do campo, pensamos que as narrativas que nos trouxeram memórias e afetos de infância da professora e seus saberes advindos da formação e experiência pelo uso da linguagem lúdica, além do desejo por explorar novas vivências de valores e possibilidades para se compor elos familiares, permitiram que a professora Naiana pudesse inventar um mundo outro; um mundo onde seus alunos e suas parceiras de trabalho pudessem, com ela e para além dela, cocriar novas relações envolvendo insetos e a nossa personagem “Maria pousa”, como podemos acompanhar nessa exposição de diálogo:

[...] A gente (turma) trabalhou a abelha. Aqui na escola tem tido muitas. Aconteceu que na hora do lanche o dedinho de uma das crianças foi picado e aí todos eles ficaram curiosos. [...] Queria trabalhar a ideia de união, mas não consegui associar com as abelhas... Rafael, disse: “- Ah, tia! É doçura!” e todos concordaram... Tentei dizer que doçura não era valor, que deveria ser amizade..., mas não deu muito certo, eles não conseguiram entender... Todos queriam insistir na doçura. [...] Como as abelhas fazem mel e mel é doce, então era doçura. Senti muita dificuldade porque não consegui ver doçura como um valor (Prof.ª Fabiana).

- Mas amizade também tem doçura... às vezes a gente não diz que uma pessoa pode ser doce? (Prof.ª Sueli)

- Ah, isso é verdade! (Prof.ª Fabiana).

- Na próxima, pergunta a eles como uma pessoa poderia ser doce se ela não faz mel como as abelhas. (OP)

- Posso tentar lhe ajudar com isso... (Prof.ª Sueli).

Por essas trocas em diálogo, as professoras tentaram, em conjunto, encontrar uma saída para a dificuldade de sua colega de trabalho, fazendo certas aproximações entre o valor da amizade e a doçura do mel das abelhas, apesar da picada inicial que envolvia a proposta. Curiosamente, a própria professora vivia, naquele instante, a doçura da amizade entre iguais como valor inestimável pelo compartilhamento de ideias, de saberes, de afetos.

Como afirmam os estudos com os cotidianos, o processo social é um círculo produtivo ininterrupto (OLIVEIRA, 2013, p. 379) que entrelaça aspectos sociais, culturais, afetivos e políticos quando se pensa a dimensão das práticas educativas na perspectiva de uma educação pluralista e democrática.

Se o processo educativo se configura também como processo sociocultural, sua órbita possui também natureza produtiva. Isso significa igualmente dizer que os cotidianos escolares têm potencial de produção ininterrupto e que seus praticantespensantes (OLIVEIRA, 2016) criam currículos à medida que se formam no processo de viver experiências coletivas de invenção. Quando não se considera tal produção, o que acontece é o apagamento da potencialidade desse espaçotempo e do reconhecimento desses praticantes como produtores de fazeressaberes. Ou seja, o que acontece é a desvalorização de seus conhecimentos e de suas produções, considerando-as sempre como algo menor e inferior.

Sou de família de professoras. Minha mãe, tia e avó foram professoras. Quando fiz o concurso, fiz porque me identificava com elas. Minhas lembranças de infância sempre envolvem a escola. Lembro de ajudar minha avó que me deu aula na escola construída pelo meu avô; lembro de brincar de escolinhas com meus amigos e assim ajudá-los a passar de ano... São lembranças bem fortes e que me marcaram. Mas, ao ingressar na rede por concurso, fui trabalhar na creche e lá pensei em abandonar a educação devido a alguns contratempos na escola, mas acabei optando por pedir remanejamento. Hoje, estou aqui e na escola que minha mãe deu aula. Estou feliz, me encontrei e consegui entrar na faculdade de Pedagogia (Prof.ª Naiana).

Como narrar é “dar forma às experiências, a partir do que nelas nos provoca a contar” (GARCIA; GOUVÊA, 2018, p. 39), a breve narrativa da história de vida de Naiana aponta pistas para pensar o movimento de produção ininterrupto dos processos sociais e educacionais sinalizados anteriormente, pois são processos que movimentam o curso de uma vida a partir de outras vidas, enredando afetos, memórias, costumes, hábitos, brincadeiras, amizade e desvelo como processo de autoidentificação, a partir do qual ela passa a se ver como docente.

O pensamento de abandonar a profissão se deu quando não se sentiu acolhida, tendo seu trabalho questionado por uma suposta “falta de controle de turma”. Seria a tristeza como afecção negativa, que, segundo Spinoza (2009), produzida por forças externas, causam apatia. A rotina da outra escola não possibilitava os encontros entre as docentes, tampouco o contato para a partilha de experiências entre elas, pois estavam restritas às ações em sala de aula. Ao trocar de escola e passar a fazer parte dos nossos encontros dialógicos e formativos, a professora pôde se ressignificar e criar; aprender com seus pares e a turma. Ressalta-se que esses encontros aconteceram por insistência e resistência do coletivo da escola, apesar da existência da Lei nº 11.738/08.

Assim, diante das questões suscitadas anteriormente sobre a docência quando da analogia com a mariposa e os diálogos produzidos nas narrativas da professora Naiana com seus pares, além do mergulho (ALVES, 2003) nos cotidianos escolares e da conexão aos princípios que sustentam as pesquisas do campo com os cotidianos, afirma-se que é possível perceber com todos os sentidos (ALVES, 2003) a potência criadora do cotidiano escolar e da docência quando são visibilizados seus fazeressaberes em nível singular e coletivo por meio de encontros.

A experiência singular da professora Naiana corrobora com essa argumentação, tendo em vista suas memórias afetivas. Ela, como “Maria pousa”, poliniza não só o coletivo docente nos encontros como as crianças de sua turma, ao movimentar a curiosidade por determinados “bichinhos” da sua infância e as relações familiares que são extremamente fortes em suas narrativas. É notório também o quanto a euforia constituída pela ânima das crianças também potencializa as criações de Naiana ao ser fecundada por esse pólen. Ambas se beneficiam a partir dessa interação, desse encontro - seja como coletivo ou como singularidades. Para melhor compreender as argumentações em defesa de uma outra percepção da escola e da docência como perspectiva epistemológica, a noção de ânima aqui mencionada, com base nos estudos do campo com os cotidianos, manifesta, segundos os autores, a energia que põe a vida em movimento (GARCIA; RODRIGUES, 2017, p. 130). Como pulsão de vida nutre, à semelhança do néctar das flores, ações, pensamentos e emoções de nossas várias “Maria pousas”.

A exemplo da mariposa que enrola sua língua em forma de espiral e desenrola quando absorve o néctar da planta levando seu pólen, à docência pode fecundar os desejos por aprender, polinizando pares e crianças com a ânima que provoca descobertas, criações potencializadas em encontros.

Apesar de estarmos entranhados numa complexa teia que tece o nosso contexto sociocultural e educacional, cientes de que estes nem sempre consideram as possibilidades e as potencialidades das produções cotidianas das pessoas das e nas escolas por circunscrevê-las a representações demeritórias, ainda assim é possível afirmar que esses são lugares de criação quando se opera com encontros como propôs Garcia (2015). Assim, pesquisar o campo educacional como espaçotempo de produção e tomar as pessoas que ali estão como agentes dessa produção amplia nossas possibilidades investigativas e fortalece cada vez mais a nossa autoria, abrindo fendas no tecido das representações prescritivas de docência, às quais nos opomos veementemente.

3 A DIMENSÃO DO AFETO NOS ENCONTROS: ESPAÇOS DE PRODUÇÃO CURRICULAR NA FORMAÇÃO DOCENTE

A semelhança da “Maria pousa” que mostra em narrativa a potência dos encontros na perspectiva de reafirmar os princípios políticos-epistemológicos do campo de pesquisa com os cotidianos, a experiência que venho aqui narrar, não só reafirma como fortalece os encontros como espaçotempo de produção; entendendo este como lugar impetuoso, fronteiriço e indefinido por negociações de traduções culturais e enunciações, que, ao entrarem na roda, provocam posicionamentos e movimentam a produção do diferente, fazendo o possível emergir como irrupção (FRANGELLA et al., 2019).

Assim, a partir da mobilização produzida por encontros formativos caracterizados na experiência anteriormente narrada da “Maria pousa” , busquei igualmente, no âmbito do meu doutoramento, destacar a dimensão do afeto presente nos processos de produção curricular na formação docente, considerando as políticas e as salas de aula como lugares (entendido, a partir de Certeau (1994), lugar como espaço praticado pelas pessoas, sempre em movimento) dessa produção e defendendo a criação de espaçotempo curricular narrativo como propício à circulação de afetos nesse âmbito.

Destacamos, enquanto campo, que o uso do termo “afeto” não faz aqui referência à “vida afetiva” ou algo que o valha, mas como ideia de uma afecção do corpo, tal como em Spinoza, teórico de referência no grupo de pesquisa mencionado, para quem toda afecção de nosso corpo aumenta ou reduz nossa potência de agir - compreensão tomada por Garcia quando, ampliando a noção de encontro, ressalta, no âmbito dos processos formativos docentes, que, como nossas paixões funcionam como forças que mobilizam transformações sociais, a alegria produzida num bom encontro potencializa nossa vontade de agir, nesses termos.

A ênfase de que “os encontros pesquisados e desenvolvidos na pesquisa como ações formativas viabilizam ouvir e discutir diferentes perspectivas quanto às práticas docentes e à produção dos currículos” (GARCIA, 2015, p. 4) mobiliza que não só nomeemos nosso “estar junto” na formação por encontros, mas que busquemos ambientá-los enquanto bons encontros, fazendo jus ao fato de que esses encontros podem se mostrar “como meio favorável para desestabilizar representações de docência e escola hegemônicas e possibilitar a produção de novas compreensões” (GARCIA, 2015, p. 4), como mostramos e defendemos neste artigo por meio das narrativas de experiências em encontros de ambas pesquisas.

Essas compreensões ajudam a compor o desenho que vem sendo utilizado em Projeto de Pesquisa2, o qual tem como principal objetivo criar espaço curricular de compartilhamento de conhecimento (o mais importante dos afetos, para Spinoza) com licenciandas em um Instituto Federal localizado no estado do Rio de Janeiro, com relação às diferentes possibilidades de produção de registros narrativos escritos, enquanto produção curricular, nos cotidianos da formação docente.

Parto do princípio de que as oficinas, bricolagem de oficinas, oficinagens, constituem recursos pedagógicos; dispositivos possíveis de produção de subjetividade na formação de si e do mundo, compreendendo as grafias produzidas formativamente nesses encontros como registros de linguagem que emergem da mobilização reflexiva e ativa nas diversas relações e condições envolvidas com a escolha de estarmos nos tornando professoras.

Nos encontros das oficinas, compreende-se a importância da dimensão dos afetos em espaços de produção curricular narrativa na formação docente. Neles, fazemos circular singularmente noções entendidas como importantes, na aposta de diálogos compartilhados coletivamente para pensarmos tanto enfrentamentos no campo da Educação em tempos de incertezas, quanto a produção de conhecimentos no âmbito da formação de professoras. Isso tem possibilitado colocar em relevo discussões, debates e questões educacionais concernentes aos currículos e à produção de outras escritas (e mesmo para além da linguagem escrita), bem como condições para emergências de experiências estéticas nos processos formativos e de produção de subjetividades docentes, como nos mostram as narrativas orais, escritas, imagéticas:

[...] Talvez não consiga expressar em palavras o “atravessamento” que foi ocasionado. Eu sei que respirei aliviada. Aliviada porque havia encontrado um ambiente com pessoas que têm a mesma demanda que eu, as mesmas dúvidas e questionamentos. [...] Foi um processo difícil, até que entendi que o aperfeiçoamento viria aos poucos... A escrita tinha formas, fórmulas, regras, das quais eu não dominava. Escrever doía, literalmente doía... percebi que havia tempos que não produzia uma escrita “não acadêmica”. E foi muito bom voltar a escrever... Sabe quando a gente encontra um amigo de longa data? Então, foi esse o sentimento. Refletindo sobre minha escrita, consegui analisar a prática. Nos relatos que postei, explano minha preocupação com o exercício da docência com enfoque na escrita dos alunos. A oficina tem me ensinado muito sobre respeitar a escrita [...], tenho aprendido a entender a escrita do discente. Por que o aluno possui dificuldade em escrever? De onde vem essa resistência? Como posso fazer para ajudá-lo nesse processo? Essas são algumas indagações que comecei a levantar nos encontros. E acredito que vou sempre carregá-las. Mas isso é um ponto positivo, estranho seria se eu não questionasse. Uma prática docente que se intitula como “completa/finalizada” não tem espaço para conversa, troca e aprendizado. Dito isso, penso que estou sendo uma docente reflexiva em formação. O curso despertou em mim a necessidade de olhar para “dentro” dessa escrita, e analisar quais atravessamentos são possibilitados por ela. Agradeço imensamente por todo aprendizado e troca. (Mirella Caetano - licencianda de Letras do IFFluminense).

Tanto a escrita quanto a imagem reforçam os argumentos defendidos quando pensamos encontros como modos de produzir afetamentos e conhecimento. Diferentemente de descrever, operamos com a ideia de que nossas experiências são mantidas vivas, uma vida-em-escrita e inscrita no entrelaçamento dialógico com outras vidas.

Reivindicando o afeto como dimensão a ser considerada na produção das políticas curriculares em sua condição constitutiva, Borges e Lopes (2021) apresentam implicações teórico-estratégicas a partir da incorporação da perspectiva discursiva de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe e operam com as lógicas do social e do político e a fantasmática, seguindo a argumentação de Jason Glynos e David Howarth, autores da Escola de Essex que “reiteram as práticas articulatórias como capazes de colocar em marcha uma gramática de noções e lógicas” (BORGES; LOPES, 2021, p. 18).

Nesse texto, as autoras destacam inicialmente o quanto o pensamento cartesiano e suas reverberações, que se esquivaram “da ideia de que as paixões ‘afetam’ os corpos”, têm criado constrangimentos para as pesquisas em currículo, uma vez que somos convocadas a responder ao enquadramento de uma “concepção de mundo que opera com excessivo ordenamento, normatividade, disciplina, controle, hierarquia, decomposição, atomização, homogeneidade, com vistas a produzir universais”. Não obstante isso, “também respondemos a uma concepção de sujeito enredado em sua essência, centrado, racional e polarizado” (BORGES; LOPES, 2021, p. 2).

Considerando também pertinente a recuperação de Spinoza como teórico emblemático, as autoras procuram enunciar a “pretensão de nos afastar daquelas concepções apoiadas nas filosofias do sujeito que operam com a dualidade corpo-alma e se apoiam no pressuposto de uma separação entre razões e paixões” (BORGES; LOPES, 2021, p. 3) e, como outros curriculistas, questionam o cientificismo, rejeitando “a ideia de a racionalidade científica ser capaz de elucidar a experiência da realidade” (BORGES; LOPES, 2021, p. 6).

Após aprofundamento em uma abordagem que interliga as lógicas sociais, políticas e fantasmáticas a partir de Glynos e Howarth (2007), e considerando o negligenciamento do afeto em nossas pesquisas, as autoras, buscando compreender o motivo e o modo como determinadas práticas discursivas “grudam”, apontam como profícuo explorarmos “a lógica fantasmática nas investigações discursivas das políticas curriculares, tanto conceptualmente quanto empiricamente” e, com isso, enfatizam: o investimento afetivo como “o que alimenta os processos de identificação e o que possibilita a fixação discursiva” (BORGES; LOPES, 2021, p. 17); os afetos, como importantes para a política e a importância de “investirmos em narrar os constrangimentos que nos mobilizam ou nos paralisam”, concluindo que:

Tal ênfase se assenta na condição da fantasia ser um suporte da realidade exercendo uma dupla tarefa: a de tamponar a falta constitutiva do Outro e o de se colocar como aquilo que vai recuperar o gozo (desde sempre perdido). Qualquer prática discursiva, qualquer fixação de sentidos passa pelo investimento afetivo que sempre constitui os caminhos discursivos. Isso se dá tanto individualmente quanto coletivamente, assim como por vias objetivas/subjetivas, mais explícitas ou não. O caminho nunca é direto, as relações não são causais como o pensamento cartesiano nos ensinou (BORGES; LOPES, 2021, p. 18).

Quando destaca regulação e escape para pensar currículo e docência, Lemos (2019), após afirmar a indissociabilidade de didática e currículo na ação docente, é enfático ao afirmar que esta não existe “sem os corpos de carne e osso” (p. 42). O autor, que entende imprevisto ou imprevisibilidade como marca de produção curricular, posiciona-se no contexto do pós-estruturalismo, “em que a subjetividade configura-se como hibridação”. Para ele, “os documentos regulatórios, assim como os planejamentos escolares; ambos padecem do mesmo problema: o exercício do pensamento na ausência dos corpos” (LEMOS, 2019, p. 43).

O autor apresenta como questões de fundo para pensar a problemática em questão: a ideia do professor como problema numa constituição do real que independe de políticas de governo; o econômico como processo regulatório (no apontamento da necessidade de pensarmos para além do econômico, considerando relações entre ciência, poder e ideologia) e, por fim, a criatividade e a imprevisibilidade como ponto de interseção entre autonomia e heteronomia.

É no aprofundamento desse último tópico em que o autor (LEMOS, 2019, p. 51) destaca o que pode acontecer “no ponto de contato entre a adesão à norma (heteronomia) e a abertura para o criativo (autonomia) ”. Considerando a experiência da sala de aula como experiência estética, Lemos (LEMOS, 2019, p. 51) diz:

O jogo do confronto entre os corpos de carne e osso, portanto sensível, antepõe os âmbitos de realidade que operam a produção simbólica. Os corpos (humanos?) também não são meros objetos, mas plasmas simbólicos de âmbitos de realidade; portanto, cada corpo é para o outro uma heteronomia, o que suscita a necessidade de autonomia por parte do próprio. Este parece ser o jogo entre a autonomia e a heteronomia capaz de fugir ao econômico e de abrir-se ao criativo, em que o “criativo” consiste em crer na possibilidade da construção simbólica a partir, e não apesar da própria heteronomia.

Para o autor (LEMOS, 2019, p. 52), o referido jogo “só se revolve na adesão à heteronomia como pressuposto da autonomia”, e essa adesão não passaria pelo racional. “É preciso acolher o ‘outro’ como companheiro de jogo”, na compreensão de que é possível ser autônomo em meio ao heterônomo.

O autor coloca que, diferentemente do planejamento do futuro, o encontro, o confronto dos corpos de carne e osso, é da ordem do êxtase e do estético - ressaltando a importância da experiência estética, sensível para concluir com uma importante sinalização relacionada ao texto anteriormente destacado neste trabalho:

Tomamos como indicativo a possibilidade de a heteronomia e autonomia não serem contrapostos, mas copartícipes na constituição do real. A heteronomia como abertura para autonomia, entendida como criatividade. Entretanto, essa possibilidade nos colocava fora de uma tradição secular que a modernidade nos legou: a racionalidade. A interseção entre a heteronomia e a autonomia só se dá no âmbito do estético, dos corpos em confronto, ou seja, em meio à imprevisibilidade, antítese da economia. Por isso, os marcos regulatórios e os planejamentos não só fracassam como adoecem, porque nos dão a ilusão de um real verdadeiro que não nos inclui (LEMOS, 2019, p. 54).

É apostando, como o autor, na abertura ao jogo com o outro, na possibilidade inventiva suscitada pelo encontro, que se vem buscando consolidar as Oficinas de Escritas Docendo (FERREIRA, 2019, 2022) como espaçotempo de exercício da racionalidade estético-expressiva (SANTOS, 2011).

Boaventura (SANTOS, 2011, p. 75) explicou que “as representações que a modernidade deixou até agora mais inacabadas e abertas são, no domínio da regulação, o princípio da comunidade e, no domínio da emancipação, a racionalidade estético-expressiva”. O autor diz que, assim como a racionalidade estético-expressiva resistiu melhor à cooptação, o princípio da comunidade resiste, mas paga com sua marginalização e seu esquecimento pela ciência. Para esse autor, o caráter inacabado da racionalidade estético-expressiva reside nos conceitos de prazer, noção de autor e artefactualidade discursiva, e, articuladamente ao defendido anteriormente por Lemos (2019), a racionalidade estético-expressiva tem mais condições de unir o que a racionalidade científica separou.

Se o caráter corpóreo do conhecimento nos coloca muitos desafios, “as lutas continuam abrindo caminhos, muitas vezes, sobre as ruínas de lutas passadas” (SANTOS, 2019, p. 139). Valorizando narrativas concretas de professoras em formação, buscamos que consigamos, juntas, aquecer a razão, corazonar - conceito usado por povos indígenas da região andina da América Latina próximo a sentirpensar, apropriado por Santos (2019) quando, parafraseando Spinoza, diz que “a alegria é a emoção que faz crescer o desejo de persistir, tanto individual como coletivamente”, considerando ainda:

O caráter corpóreo do conhecimento que mobiliza os indivíduos lutadores implica que o conhecimento nunca é mobilizado apenas com base em razões, conceitos, pensamentos, análises ou argumentos. Por mais importantes que possam ser para formular os termos da luta e os meios de levar a cabo, por si mesmos não se tornam ação, especialmente se essa ação implica risco existencial, a não ser que estejam impregnados de emoções, afetos e sentimentos [...]. O compromisso ativo ocorre sempre em contextos afetivos [...] (SANTOS, 2019, p. 149).

Deste modo, quando decidimos produzir nossos dados a partir de encontros em formas de oficinas mobilizando conversas, buscamos alimentar um círculo virtuoso em que pessoas passam a conhecer-se na interação com os outros e o meio, produzindo diferença na ação em benefício da emancipação coletiva (SANTOS, 2010) e de um comum, quando da produção de uma escuta sensível, de modo próximo como escreveu Kramer (2014, p. 51-52):

Graças à escuta pode haver diálogo [...], presença, encontro, vínculo, formas de relação que caracterizam a vida em comunidade. [...]. Uma educação humana, com presença, vínculo e escuta, requer tempo e espaço para narrativas de crianças, jovens e adultos (alunos, pais ou profissionais). Isso exige acolher e dar atenção aos que envelhecem com saúde, doença, memória ou esquecimento. O reconhecimento do que nos deram e ensinaram pode mobilizar nossos conhecimentos, afetos e agir ético, pode nos ajudar a resistir aos contextos mais duros e a responder de forma responsável, com dignidade e alegria.

Kramer corrobora com nosso entendimento sobre os afetos ao destacar o papel da escuta como prerrogativa dos nossos encontros. Mas é com Santos (2002) que estamos a aprender a proposição da atenuação na discrepância entre a concepção do futuro da sociedade e a concepção do futuro dos indivíduos a partir de procedimentos da sociologia das ausências, da sociologia das emergências e do trabalho de tradução.

Nesse sentido, cabe questionarmos quando há produção de não existências pensando que a sociologia das ausências se move no campo das experiências sociais e quando pode haver amplificação simbólica de pistas e sinais pensando que a sociologia das emergências se move no campo das expectativas sociais. É a partir dessa tentativa de expandir o presente e contrair o futuro que argumentamos que é possível, em âmbito pedagógico, visibilizar, mobilizar e contribuir para a circulação de escritas que possam expressar diferentes experiências com as palavras, em contribuição a desenhos curriculares mais plurais, justos e sensíveis nos processos formativos universitários docentes, em que a escuta se faça presente na produção da escrita.

Eu daria aula hoje, aí não vou dar mais porque eu acabei trocando o horário pra participar do nosso encontro... ficaria tarde. Mas por que estou gravando esse áudio? Pra te agradecer. A ideia desse projeto, eu não sei nem o que dizer, mas eu queria te agradecer. Esse projeto, neh, o Escritas Docendo, ele não é, não foi um projeto de produção de texto. Foi um projeto que promoveu encontros. Que promoveu também encontros de si e isso é tão difícil, neh? Ainda mais em contexto pandêmico, ainda mais no momento que a gente tá vivendo. E é muito louco... eu ia falar sobre isso, mas eu não consegui na hora. O projeto conseguiu despertar em todo mundo um sentimento de grupalidade mesmo com cada um escrevendo no seu quadrado, em muitas aspas. [...] (Jeniffer Tavares, concluinte do Curso de Letras do IFFluminense).

Sensibilizada pela narrativa audível de Jeniffer, após o encerramento do nosso último encontro nomeado de “Fechabrimento”, em que foi possível pensar os sentidos do que estávamos produzindo enquanto experiência coletiva, afirmo com veemência que escritas não hegemônicas estão sendo produzidas nos processos formativos docentes cotidianos e são as asas invisíveis de nossa autoria. É profícuo investir na possibilidade de pensarmos e praticarmos grafias de vida no coletivo da oficinagem - como vem sendo nomeado o trabalho com oficinas de escritas na formação docente no âmbito do Projeto de Pesquisa.

No referido projeto, compreende-se como contínuas e processuais a nossa relação com a escrita, a produção da nossa formação docente e a emancipação social, permeada sempre por uma escuta sensível e afetuosa. Para marcar a articulação geral de caráter processual dessas relações, foi inventado o termo docendo para fazer referência às escritas das licenciandas e ao tecido desses sentidos grafados, por vezes invisíveis, que se (re)fazem permanentemente.

Com essa percepção, afirma-se que as escritas docendo são produzidas cotidianamente ao longo das licenciaturas, quando muda nossa relação com a escrita por exigência do uso da escrita acadêmica, quando frequentemente dá-se a percepção de que o que escrevemos e como nos relacionamos com isso têm efeitos sobre como nossos alunos podem se relacionar com seus mundos escritos e vice-versa. É também quando ganha relevância o caráter público do que escrevemos em função da nossa atuação docente.

Grafias que vão docendo; Maria pousas que vão se reinventando nos cotidianos escolares e da formação docente, considerando uma produção curricular diferenciada, que permite reivindicarmos afeto como dimensão a ser considerada na produção das políticas curriculares em sua constituição.

4 CONCLUSÃO

Os acontecimentos narrados neste artigo fizeram parte de pesquisas constituídas a partir de um campo que tem por princípio político e epistemológico investigar e afirmar a existência de produção curricular nos cotidianos das escolas e da formação docente. As investigações realizadas constataram ambos os processos como movimentos indissociáveis relacionados aos percursos de vida das pessoas que habitam esses espaçostempos, misturando memórias, afetos, saberes, dizeres, ações e reflexões em composições inventivas por meio de encontros.

A partir de nossas experiências, afirmamos, a cada dia, a autoria docente na composição dos currículos e das formações quando, em coletivos, percebemos o seu poder emancipador. Apesar de as escolas estarem imersas em contextos socioculturais complexos, é possível, como afirma Oliveira (2013), identificarmos o dinamismo de suas produções. Identificamos a possibilidade de rompermos com referenciais de docência e de escola que caracterizam o pensamento hegemônico, em virtude da dinamicidade dessas produções cotidianas principalmente quanto à docência e às escolas - sempre em diálogo, escuta sensível e convivência.

Pensar o dia a dia das escolas e das licenciaturas, a partir do contato com o campo dos estudos com os cotidianos e com a atenção voltada para possíveis contribuições para a formação de professores, a partir do que investimentos em determinados tipos de grafias, mobiliza e vem significando dobras, camadas de questões impossíveis de serem respondidas individualmente. Foi compartilhando impressões coletivamente que compreendemos a “(...) urgência e a indissociabilidade dos conhecimentos que produzimos e das ações efetivas que esses conhecimentos podem corroborar junto aos processos formativos” (GARCIA, 2014, p. 88), e daí a proposição de ações e pesquisas preocupadas com professoras em suas-nossas relações cotidianas, com aberturas de espaços de não sufocamento de fluxos de pensamentos singulares e coletivos, com o que pode acontecer em termos de experiências educativas em processos formativos e o que podem outros modos de grafar docências que desinvisibilizam voos.

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NOTAS:

1 Os neologismos unidos grafados em itálico apresentam-se como recursos utilizados nas pesquisas nosdoscom os cotidianos, propostos por Alves (2001, 2008) como modo de romper com as dicotomias do pensamento moderno e como possibilidade de produzir novos sentidos para aquilo que fomos levados a perceber de maneira fragmentada. Em especial, espaçotempo é uma aglutinação cara ao campo, tendo em vista que Nilda Alves destaca, desde 2001, que os cotidianos são espaçostempos de grande diversidade e precisam ser entendidos também como sendo “[...] de prazer, inteligência, imaginação, memória e solidariedade” (2001, p. 16).

2 Projeto aprovado pelo Processo de Seleção de Projetos de Pesquisa e de estudantes bolsistas de iniciação científica (PIBIC-IFF) e de Pesquisa (PESQ-12) do Instituto Federal Fluminense Edital (143/2020), pela Resolução CONSUP 27/2020 aos 27/02/2021.

Recebido: 20 de Outubro de 2022; Aceito: 14 de Dezembro de 2022; Publicado: 30 de Março de 2023

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