1 PARA COMEÇAR...
Se a publicação de Becos da Memória levou 20 anos para acontecer, o processo de escrita do livro foi rápido, muito rápido. Em poucos meses, minha memória ficcionalizou lembranças e esquecimentos de experiências que minha família e eu tínhamos vivido, um dia. Tenho dito que Becos da memória é uma criação que pode ser lida como ficções da memória. E, como a memória esquece, surge a necessidade da invenção (EVARISTO, 2017, p. 10).
Iniciamos com Conceição Evaristo, lembrando que memória e ficção caminham juntas, assim como lembrança e esquecimento. Fazemo-nos humanos em terreno fértil, movediço e de incertezas, acontecimentos nos deslocam em encontros, desencontros e experiências. Palavras nossas e palavras outras são produzidas, partilhadas. Nesses movimentos, guardamos, lembramos, esquecemos de miudezas, cacos materiais, imagéticos e simbólicos da história que dizem da vida, da formação e da profissão docente. Nos movimentos cotidianos e intersubjetivos, observamos uma multiplicidade de experiências, memórias e narrativas. As experiências, na força do que nos desloca, trazem lembranças e esquecimentos, reelaborados pela narrativa, enquanto processo laborioso de produção de intrigas, enredos (RICOEUR, 2014) que dizem de nós, das relações com os muitos outros, com a cultura e com os modos de habitar a Terra.
Como professoras-pesquisadoras-narradoras, trabalhamos com a formação humana e docente, nas áreas da saúde e da educação, tomando memórias e narrativas como caminhos de pesquisaformação1 nos/dos/com os cotidianos, reafirmando a formação inicial, como espaçotempo de produção de conhecimentos pedagógicos por professoras-pesquisadoras2. O presente artigo tem, assim, como objetivo discutir esses enredamentos, com destaque para a escrita considerada companheira ao longo da trajetória de heteroautoecoformação3 (PINEAU, 2010) profissional docente, como movimento de socialização do conhecimento pedagógico produzido nos cotidianos escolares.
São perceptíveis, na formação universitária docente, atravessamentos entre ensino, pesquisa e extensão, em uma compreensão alargada da docência, em que imagens de mestres instruídos, sábios e técnicos foram abrindo fissuras para desejos outros da docência como acontecimento (GERALDI, 2015), como experiência (BENJAMIN, 1993; LARROSA, 2002). Nela, os saberesfazeres são tramados ao longo da vida, em idas e voltas, na errância como viagem (KOHAN, 2019), escapando aos estabelecidos. Aí, talvez, os binarismos se esfacelem, pois estar sendo professora implica, rizomaticamente, ciência, técnica, teoria, prática, experiência, sentido ou, tomando para nós o título de Obras Escolhidas I, de Walter Benjamin (1993), uma composição de “magias e técnicas, artes e políticas”. Vida, formação inicial e continuada de professoras-pesquisadoras-narradoras que, nos cotidianos, tecem histórias e produzem, a partir de dentro (NÓVOA, 2019), a profissão.
Com muitos e muitos outros seguimos, em brechas instituintes (LINHARES, 2007), com táticas de um fazerdizersentir (CERTEAU, 2014), tanto na formação inicial quanto na escola. Movimentos que tomam os cotidianos como espaçostempos de vida que pulsam, prenhes de experiências, reflexões e conhecimentos pedagógicos. A docência como acontecimento, experiência e errância afirma-se como uma profissão de quem pesquisa, narra e partilha, coletivamente, conhecimentos pedagógicos produzidos todos os dias nas relações com crianças, jovens, adultos e idosos, com a natureza e com a cultura. Assim, a escrita, segundo Oliveira (2020), coloca-se como uma companheira! Companheira em múltiplos movimentos de bio grafar por meio de memoriais, diários, narrativas pedagógicas e tantos outros.
Neste artigo, tecemos nossa conversa compartilhando reflexões teoricometodológicas e narrando nossas experiências de formação inicial de professoras, em universidades públicas brasileiras, considerando o espaçotempo de memórias, narrativas e escrita.
2 PESQUISAS NOS/DOS/COM OS COTIDIANOS ESCOLARES, PESQUISAFORMAÇÃO E MODOS OUTROS DE PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO PEDAGÓGICO
A trajetória da formação docente no Brasil dá a ver/sentir projetos em disputa, marcados por binarismos entre ciência/técnica, teoria/prática, experiência/sentido (LARROSA, 2002). Se fizermos uma foto panorâmica dos caminhos percorridos pelo campo da educação, veremos cenários complexos.
A constituição do curso de Pedagogia, na primeira metade do século XX, trouxe um generalismo esvaziado de sentidos e de relações com a prática educativa, somando-se às demais licenciaturas, na clássica separação entre três anos de formação geral e um ano de estudos didáticos, no modelo chamado 3+1. Esse modelo é problematizado por Saviani (2009), por ser marcado pela contraposição entre os conteúdos culturais-cognitivos e os conteúdos pedagógico-didáticos.
A década de 1970 trouxe a hegemonia da técnica sobre a vida nos processos sociais e educativos, reverberando na organização do curso em habilitações fragmentadas. Felizmente, nos movimentos tensos da história, docentes organizados em associações as mais diversas lutaram por décadas na defesa da formação universitária para os anos iniciais do ensino fundamental, tendo como desdobramento a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 e, posteriormente, as Diretrizes Curriculares para o Curso de Pedagogia de 2006, que dialogam com os princípios defendidos pelos movimentos dos educadores. Nesse contexto, acompanhamos intensos debates; foi um tempo de muitos encontros e trabalho coletivo na reorganização dos cursos.
Na esteira de movimentos de consolidação democrática, foram tecidas novas Diretrizes Curriculares, publicadas em 2015, articulando de maneira indissociável formação inicial e continuada de professores, em dimensões éticas, estéticas e políticas. A caminhada sócio-histórica da formação e da profissão, as lutas empreendidas e a legislação, em um contexto de governos populares no Brasil, abriram caminhos para a defesa e afirmação da formação superior de professores, em uma indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, nas diversas áreas de atuação do pedagogo, tornando-se, portanto, a pesquisa como constitutiva da formação do professor e foco do presente artigo.
No entanto, a caminhada da formação e da profissão não tem sido nada fácil. As agruras do passado de nosso país vêm e vão, tensionando nossos movimentos de pesquisa, docência e formação. Passamos alguns anos conversando com jovens em formação sobre políticas de conhecimento marcadas pela imposição, autoritarismo, tecnicismo de décadas passadas, de tempos de ditadura cívico-militar. Nossas práticas pedagógicas buscaram superar essas políticas, formando professores para um projeto democrático de escola e de sociedade, mas elas insistem em retornar, expressas em currículos centralizados, sistemas apostilados, acompanhados da intensificação e precarização do trabalho docente.
Nesse cenário de neotecnicismo, entram em cena as Diretrizes de 2019 que buscam atrelar a formação docente estritamente à Base Nacional Curricular, sem ampliar e aprofundar reflexões que são fundamentais para a formação de professores. Para os cursos de Pedagogia, elas propõem o retorno a uma formação fragmentada em habilitações, comprometendo projetos de formação em movimento nos cotidianos dos cursos de Pedagogia, especialmente das universidades públicas.
Seguimos, entretanto, contrapondo-nos a esse contexto, em diversos movimentos coletivos pelo Brasil, especialmente pela atuação combativa da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE). Nos cotidianos dos cursos, resistimos, afirmando uma formação ampla para a docência, a pesquisa e a gestão. Entretanto, quais sentidos perspectivamos para a pesquisa na profissão docente e na formação?
Em nosso trabalho, trazemos as contribuições dos estudos nos/dos/com os cotidianos escolares e da pesquisa-formação ou pesquisaformação. Na década de 1980, professoras-pesquisadoras de diversas regiões do Brasil, com trajetórias especialmente marcadas pela atuação na educação básica, vivenciaram nas universidades movimentos instituintes de afirmação de uma pesquisa feita com os cotidianos da vida e da profissão, das escolas. Referimo-nos a Regina Leite Garcia, Nilda Alves, Célia Linhares, Corinta Geraldi e Maria Helena Menna Barreto Abrahão e tantas outras intelectuais públicas. Com elas fomos desafiadas a fazer pesquisa no chão da vida, da escola e da universidade. Em produções do início dos anos 2000, Alves e Garcia (2001) tematizaram organizações curriculares pautadas por clássicos pilares da modernidade: a pedagogização do conhecimento, com interdição de outros conhecimentos, do corpo, das artes, dos saberes populares, a grupalização, com a criação de “grupos genéricos”, hierarquização e centralização.
Assim, o conhecimento das classes populares, construído no cotidiano de suas vidas, vai sendo negado na escola, como o “não-saber”, embora esteja lá e apareça por impertinência, o tempo todo. Alguns autores começaram a dar atenção a esse conflito velado de saberes e foram observando que, ao lado do currículo oficial existe outro que não se quer ver/ouvir/tocar/sentir, composto por tudo aquilo que não foi selecionado, normalizado, hierarquizado, centralizado, ou seja, o tudo mais - o “currículo negado” (ALVES; GARCIA, 2001, p. 92).
Movimentos do chão da escola e dos espaçostempos de formação docente, inicial e continuada; currículos negados na escola e que, na universidade, são também “sequestrados”. Os estudos nos/dos/com os cotidianos escolares afirmam esses “não-saberes”, presentes de forma impertinente nas brechas, fazendo emergir experiências instituintes. Nas ações, no pensamento e na obra de Célia Linhares, encontramos a defesa das experiências instituintespresentes nas escolas públicas brasileiras. Em tempos de alarde e maximização de discursos que operam no sentido de pauperizar a vida e as práticas cotidianas do público, Linhares (2007) nos convida a uma pesquisa que dá a ver/sentir as potências, táticas e inéditos viáveis transgressores dos cotidianos da vida e da formação. Uma pesquisa, assim, encarnada na vida, que reconhece os saberes produzidos pelas professoras e professores.
Duhalde (2012) tece um panorama sobre os movimentos e assunção dos saberes docentes em experiências alternativas de formação, por meio do trabalho em redes e coletivos de educadores na América-Latina:
No contexto histórico conhecido como ‘os anos 90’, marcado pela aplicação de políticas neoliberais na economia e neoconservadoras no político, também se desenvolve um conjunto de experiências pedagógicas alternativas, a partir das quais os educadores e educadoras da América Latina desenvolveram diversas estratégias de vinculação e comunicação entre pares (DUHALDE; 2012, p. 165, tradução nossa).
Nesse cenário, constituem-se redes de docentes com a “intenção de intercambiar e compartilhar os conhecimentos produzidos desde a escola” (DUHALDE, 2012, p. 165), reconstruindo formas de organização coletiva. Nessas redes, movimentos instituintes de formação são tecidos, tomando como princípios a horizontalidade, a igualdade, o respeito à diversidade e a inclusão, cujo horizonte é a escola como espaçotempo de produção do conhecimento pedagógico e da formação, deslocando centralizações, hierarquias e abrindo caminho para
[...] pesquisas que investem na conversa entre a universidade e a escola básica e no princípio epistêmico, teórico e político de que ambas ensinam e aprendem uma com a outra. Pesquisas que elegem como foco e método de investigação as narrativas - orais, escritas e/ou imagéticas - de docentes, estudantes e crianças (SAMPAIO, 2021, p. 218).
No contexto francófono, as abordagens de investigação-formação (JOSSO, 2010; PINEAU, 2020) também contribuem para, a partir da pesquisa-ação, instaurar compreensões outras da produção do conhecimento em educação, pelos atravessamentos indissociáveis entre pesquisar-formar, que temos assumido como pesquisaformação (BRAGANÇA, 2021). Nessa abordagem ético-metodológica, “cada etapa da pesquisa é uma experiência a ser elaborada para quem nela estiver empenhado possa participar de uma reflexão teórica sobre a formação e os processos por meio dos quais ela se dá a conhecer” (JOSSO, 2004, p. 113). O pesquisador-formador não se distancia do estudo para tentar controlar e explicar os fenômenos; pelo contrário, aproxima-se dele para construir e reconstruir sentidos da experiência, formar-se e transformar-se no processo de investigar (PERRELLI et al., 2013, p. 280).
No contexto da formação inicial, a pesquisaformação se dá em uma trama de relações pedagógicas tecidas com estudantes que cursam as disciplinas. Compreendemos que, assim, constituímos com eles e elas um grupo disposto a aprender e a ensinar de maneira conjunta e dialogada. Somos professoras-narradoras-investigadoras que, apesar de responsáveis pela mediação do processo, consideramos que os educandos são estudantes-narradores-investigadores de seu próprio processo formativo. Esses estudantes já passaram muitos anos na escola convivendo com colegas e professores e continuam em relações pedagógicas com outros docentes e estudantes de seu curso, ou mesmo retornando à educação básica na condição de estagiários ou já professores em instituições educativas. Tais relações habitam as experiências de formação desses estudantes e são fortemente trazidas às cenas do diálogo com o outro (PRADO, 2018) nas narrativas produzidas por eles.
Essa forma de compreender a produção das narrativas no contexto da formação inicial docente justifica-se pelo potencial que o desenvolvimento de pesquisas centradas em narrativas (auto)biográficas evidenciou, no campo educacional, de promover processos de formação4. Essa dimensão da formação está vinculada tanto aos resultados (ao conhecimento produzido pelas pesquisas) quanto ao processo mesmo de narrar, em que o movimento de pensar narrativamente “tende a ser instituinte de novas formas de ser e de estar no mundo” (BRAGANÇA, 2012, p. 88). Como afirma Passeggi (2011, p. 147), um dos princípios fundadores das escritas de si como prática de formação é “a dimensão autopoiética da reflexão biográfica. Ao narrar sua própria história, a pessoa procura dar sentido às suas experiências e, nesse percurso, constrói outra representação de si: reinventa-se”.
No caso particular de pesquisas que envolvem a formação, inicial ou continuada, de professoras e professores, esta é também potencializada pelas oportunidades de reflexão pedagógica5 que ela pode viabilizar por meio do diálogo entre os participantes da pesquisa. Como afirma Dávila (2014, p. 34, tradução nossa), “no caso dos educadores, a reflexão pedagógica é um eixo fundamental de sua tarefa, na medida em que permite que se explorem de maneira consciente as suas ações e que pode gerar uma nova compreensão sobre a relação pedagógica e uma possível intervenção transformadora”.
Nesse sentido, compreendemos a formação docente como tempo e espaço de reflexão coletiva, como vivência construída no seio de uma educação problematizadora, educação que é práxis (FREIRE, 2005), construída em meio a relações dialógicas entre educandos, educadores e o mundo. Nos termos de autores contemporâneos que pensam a experiência, a reflexão pedagógica pode ser entendida como “um pensar pedagógico situado no coração e no nível da experiência” (CONTRERAS DOMINGO; PÉREZ DE LARA; FERRÉ, 2013a, p. 17, tradução nossa) e como uma “vivência reflexiva”, que revela uma atitude de abertura para a experiência, para “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (LARROSA, 2002, p. 21) e, por isso mesmo, nos (trans)forma.
Voltando ao questionamento sobre sentidos que movimentamos para a pesquisa na profissão e na formação, assumimos que a formação inicial de professoras e professores no curso de Pedagogia se dá no contexto de uma “casa comum” (NÓVOA, 2019), de espaçostempos compartilhados de prática social e entre universidades e escolas. No momento que atravessamos, particularmente no Brasil, reafirmar docentes como intelectuais críticos e reflexivos aponta para o compromisso politicoepistêmico com um projeto de sociedade democrática, plural e inclusiva, com um “conhecimento prudente para uma vida decente” (SANTOS, 2006).
3 A “ESCRITA COMO COMPANHEIRA”6: DIÁRIOS E NARRATIVAS PEDAGÓGICAS NA FORMAÇÃO INICIAL DOCENTE
Como professoras-pesquisadoras temos vivido os deslocamentos anteriormente apresentados na produção do conhecimento e na formação de modos diversos, em cursos das áreas da saúde e da educação, em universidades públicas do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Minas Gerais. Unidas por sentidos epistemopolíticos de abordagens narrativas e (auto)biográficas, valorizamos o desenvolvimento profissional que se dá nos atravessamentos da prática social, profissional e formativa. No presente texto, destacamos, nomeadamente, a formação de professoras e professores em um curso de Pedagogia de uma universidade pública paulista no contexto de dois componentes curriculares: o estágio supervisionado dos anos iniciais do ensino fundamental e uma disciplina eletiva. Em ambas, a formação da professora-pesquisadora-narradora é tematizada na companhia das narrativas escritas por meio de diários e narrativas pedagógicas.
A proposta dos estágios supervisionados dos anos iniciais do ensino fundamental configura-se
[...] por meio dos componentes curriculares Prática de Ensino e Estágio Supervisionado nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental (EP376) e Estágio Supervisionado II - Anos Iniciais do Ensino Fundamental (EP911), ofertados para turmas dos períodos diurno e noturno. A carga horária dedicada ao campo de estágio é de 30 horas no primeiro semestre (EP376) e 60 horas no segundo (EP911), e o trabalho desenvolvido na escola se assenta na compreensão de que o estudante de Pedagogia é um professor/a-pedagogo/a-pesquisador/a em formação. Nesse sentido, o estágio tem como marca o movimento reflexivo sobre a prática escolar, consistindo em um campo de pesquisa e de (trans)formação. [...]
Desenvolvemos uma proposta de ensino-pesquisa-extensão, envolvendo um trabalho articulado entre a escola básica e a Faculdade de Educação. Das escolas visitadas, quatro (duas da rede estadual de ensino e duas da rede municipal) mostraram-se receptivas e abertas ao convite. Para além de receberem um grupo de estudantes para estágio, a proposta envolvia estar mais próximos do cotidiano escolar e das professoras por meio da realização de encontros nas reuniões de trabalho coletivo das professoras na escola, contando também com a participação dos estagiários nesses encontros ao longo do semestre. O objetivo central da proposta tematiza a reflexão sobre a prática pedagógica, em uma formação (com)partilhada e foi sistematizada por meio do oferecimento do Curso de Extensão “Narrativas docentes: organização do trabalho pedagógico - múltiplos olhares”, cujas atividades incluíram a presença em reuniões nas escolas, a participação das professoras em nossos grupos de pesquisa e um encontro final realizado nas dependências da Faculdade de Educação da Unicamp (BRAGANÇA; VARANI; PRADO; RINK, 2021, p. 62-63).
Nesse contexto, estudantes em formação inicial são convidadas à escrita de diários e narrativas pedagógicas como registro dos conhecimentos pedagógicos produzidos nos cotidianos da prática docente. Referenciados nos estudos de Lourau (1988), Remi Hess (1988), Zabalza (1994), Lejeune (2008) e Barbier (2002), os diários entram como registros livres quanto ao formato e à periodicidade da escrita. São bem-vindos poemas, imagens, esquemas e outros, pois o diário é do diarista (PEZZATO, 2021). Consiste, assim, em uma fonte narrativa aberta às múltiplas linguagens, à qual as estudantes recorrem para a escrita de suas narrativas.
A disciplina eletiva “Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas: produção coletiva de estudantes do curso de Pedagogia”7 consiste em uma experiência de pesquisaformação mais recente na mesma instituição, ofertada pela primeira vez no 1.º semestre de 2022, na qual a produção coletiva das narrativas pedagógicas é considerada um processo investigativo das experiências de formação de estudantes e professoras. As aulas foram encontros que ocorreram nas noites de terça-feira, com uma carga horária total de 60 horas. No conjunto de atividades realizadas, a leitura, a escrita, a edição e a publicização de narrativas pedagógicas foram pensadas como quatro dimensões integradas da experiência coletiva de produzir narrativas.
A seguir, continuamos refletindo sobre as singularidades dos dispositivos de produção escrita aqui partilhados: os diários e as narrativas pedagógicas.
3.1 Diário como dispositivo de produção escrita na pesquisaformação
O trabalho com diários em pesquisa e processos formativos vincula-se a diferentes campos de conhecimento e abordagens teoricometodológicas. Quando o diário é colocado em funcionamento, ou seja, nos momentos de registro da narrativa do vivido nos processos de pesquisaformação, ele opera como um dispositivo de produção escrita, uma “máquina” no sentido de produzir efeitos heterogêneos nos diaristas, assim como nos leitores e leitoras desses registros. O diário constitui-se, portanto, como dispositivo pedagógico com potencial de articular diferentes saberes, de fazer ver, pensar e escrever o vivido no processo formativo e gerar possibilidades de experiências, mobilizando, muitas vezes, estranhamentos, dúvidas, alegrias, tristezas, marcas no vivernarrarformar.
A escrita diarística tem o potencial de provocar deslocamentos. Quando, ao ler o que foi escrito, o narrador se depara com o que até então não tinha se dado conta, tem o ensejo de parar para pensar e sentir sobre e com o vivido, numa relação de continuidade com as circunstâncias. Uma escrita sobre o que nos acontece pode criar oportunidades para organizar as ideias e percepções e nos fazer entrar em contato com nossas fragilidades, nossos limites, “como uma experiência modificadora de si [...]” (DIAS, 2016, p. 115). Como também demarca Castro (2016, p. 47) numa experiência com diários de estudantes num curso de Pedagogia, “a experiência de escrita do diário é capaz de desprender as estudantes de si mesmas”.
Para Lejeune (2008, p. 14), “o diário é primeiramente uma prática [...] e o diarista não domina a conclusão do que está escrevendo”, no sentido de ser uma escrita fragmentada em vários registros ao longo do tempo, os quais muitas vezes trazem repetições de fatos que vão se acumulando e deixando “rastros” da vida de seu autor, pois compreende que “o diário é um método de trabalho” (LEJEUNE, 2008, p. 264). Sendo assim, a proposta de trabalhar com diários em processos de pesquisaformação é um convite a narrar sua história de formação, seu percurso formativo construído cotidianamente. A escrita, nesse contexto, não é vista como um produto que se entrega ao final de um curso, mas sim como “um ato”, uma sequência de narrativas que possuem interrupções e continuidades, podendo reinventar-se ao longo do tempo.
Encontramos muitas adjetivações ou, como dizia Lourau (1993, p.82), “variações” para os diários: de campo, íntimo, de pesquisa, institucional, formativo, de viagem, cartográfico, filosófico, de itinerância, entre outros. Nas disciplinas de estágio, conforme anteriormente mencionado, as estudantes são convidadas à escrita do “diário de itinerância”. Com palavras “clínicas, filosóficas e poéticas”, elas escrevem, desenham, dialogam e refletem com os cotidianos, as crianças, as professoras. Barbier (2002) propõe três etapas do trabalho com diário: o rascunho, o comentado e o elaborado. Incentivamos que, ao longo de todo o semestre, escrevam em formato rascunho, posicionem-se de forma livre, como autoras, em uma escrita que inclui ou transborda para desenhos, colagens, poemas e diálogo com autores estudados. Em dois outros momentos do semestre, o diário coloca-se como fonte à qual recorrem para a escrita elaborada de narrativas pedagógicas que são posteriormente compartilhadas com a turma. Em aulas dedicadas à partilha, levam as narrativas impressas, as quais são lidas e comentadas em pequenos grupos, tomando como inspiração a Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas (SUÁREZ, 2009; 2016).
Assim, o diário pode ocupar diferentes espaços no percurso formativo. No contexto da disciplina eletiva “Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas: produção coletiva de estudantes do curso de Pedagogia”, o diário constituiu-se como o lugar em que as memórias das professoras foram escritas e guardadas, protegidas do esquecimento, para compor a narrativa das vivências pedagógicas com os estudantes. Inspiradas em Lourau (1993, p. 77), trabalhamos com o Diário de Pesquisa para possibilitar um registro da cotidianidade da vivência no processo de pesquisar e “produzir um conhecimento sobre a temporalidade da pesquisa”.
3.2 Narrativas pedagógicas no contexto da Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas
As narrativas pedagógicas são textos de diferentes gêneros (cartas, memoriais, depoimentos, relatos de experiência, diários etc.) escritos por profissionais da educação, com o intuito de refletir e dialogar com seus pares a respeito de suas experiências, leituras, investigações e práticas pedagógicas (PRADO, 2013). Elas costumam ser escritas de modo pessoal, contando histórias que esses profissionais vivenciam em seus lugares de trabalho e/ou formação. Para pensá-las no contexto de nossa pesquisaformação, inspiramo-nos nos trabalhos desenvolvidos pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada (GEPEC) da Universidade Estadual de Campinas.
A experiência com o Grupo de Terça do GEPEC tem me ajudado a compreender como as narrativas ocupam um lugar privilegiado para que nós, professoras da educação básica, possamos relatar nossas experiências com todas as nuances e singularidades que são próprias dos nossos cotidianos escolares. Quando escrevemos uma narrativa, contamos uma história e tudo o que colocamos no texto está a serviço de reconstruir seus acontecimentos e torná-la compreensível para a leitora (e para nós mesmas, pois a história vai ganhando forma no próprio processo de escrevê-la. Se nossa leitora é uma colega professora, interessa contar a ela o que e como as coisas aconteceram, quais eram as nossas intenções, se consultamos algum texto ou material, se nosso trabalho teve alguns frutos... Mas não apenas isso (e não necessariamente nessa ordem). Outras dimensões da experiência podem ser trazidas ao texto: Como nos sentimos? Que expectativas ou dúvidas tínhamos? O que ou quem nos inspirou ou motivou? Que condições tivemos para realizar nosso trabalho? Recebemos ajuda de alguém? Alguém ou algo nos atrapalhou? O que essa experiência pedagógica nos ensinou ou nos fez pensar? Houve algo que nos surpreendeu? Houve tensões, vazios, frustrações? Nossos/as alunos/as disseram ou perguntaram algo que nos marcou? Imaginamos fazer diferente da próxima vez? É nosso desejo que haja uma próxima vez? Esses são apenas alguns exemplos de perguntas que podemos nos fazer enquanto escrevemos, a depender do tipo de história que contamos e do modo como nós mesmas a experienciamos (Diário de Pesquisa, Juliana Faria, 2022).
No caso da disciplina eletiva que ofertamos, exploramos um tipo específico de narrativa pedagógica: os “relatos de experiência pedagógica” produzidos por meio da Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas (DNEP), um dispositivo desenvolvido por pesquisadores e pesquisadoras do grupo Memoria Docente y Documentación Pedagógica da Universidad de Buenos Aires (Argentina). De acordo com Suárez (2008, p. 103), professores, pesquisadores e outros sujeitos do campo educativo envolvidos nessa modalidade investigativa elaboram relatos de experiências pedagógicas que são colaborativamente partilhados, de modo a “desenvolver e pôr à prova novas formas de nomear e considerar, em termos pedagógicos, o que acontece nos mundos escolares e o que acontece aos atores educativos quando os fazem e neles transitam”. As técnicas e as estratégias utilizadas pela equipe de investigadores-coordenadores de todo o processo são informadas por princípios e procedimentos teórico-metodológicos da etnografia da educação, da pesquisa-ação-participativa e da investigação (auto)biográfica e narrativa (SUÁREZ, 2016).
Há um intenso trabalho de “edição pedagógica” (DÁVILA, 2014) dos relatos, desde sua primeira versão até uma versão que, atendendo a critérios de validação acordados pelo grupo participante, poderá se tornar pública em seções de leitura comentada, eventos das secretarias de educação ou das universidades, periódicos, programas de rádio, livros etc. À medida que escrevem distintas versões para seus relatos, os participantes os leem e recebem comentários de seus pares, mediante conversas que mobilizam reflexões sobre o cotidiano escolar, explorando a interpretação dos sentidos que se produzem em seus contextos de trabalho e potencializando a elaboração de novos sentidos e diferentes formas de dizer e escrever o que se passa e o que lhes passa na escola. A narrativa funciona, nesse contexto, como mediação na complexa relação entre a pesquisa em educação e a formação docente, promovendo uma vinculação mais horizontal e comunicativa entre a universidade e a escola, uma vez que possibilita a construção de trajetos de formação orientados por práticas de produção colaborativa de conhecimentos (SUÁREZ, 2009).
Em minhas experiências com esse dispositivo, pude perceber o quanto os atos de ler, escrever, editar pedagogicamente e tornar públicos os relatos de experiência pedagógica eram organicamente integrados, de modo que, em distintos momentos do dispositivo, essas ações se ampliavam e se aprofundavam. Por sua natureza de investigação-ação-formação, o próprio dispositivo viabilizava momentos de análise e reflexão sobre os exercícios narrativos que fazíamos, até que pudéssemos tornar públicas nossas narrativas. Havia, pois, para além do relato da experiência pedagógica, uma análise metanarrativa do processo formativo vivenciado por nós. Outro nível de metarreflexão ocorria sobre o próprio processo de “edição pedagógica” dos relatos, em que realizávamos certas operações sobre os textos. Essas operações estavam relacionadas ao trabalho hermenêutico que fazíamos para pensar nossos mundos educativos e, ao mesmo tempo, respeitavam a liberdade de escolha de cada participante. Como autoras de nossos textos, éramos convidadas a tomar decisões a respeito de que operações realizaríamos sobre o texto, o que envolvia não apenas a dimensão pedagógica, como questões de estilo, de gosto pessoal. Tais operações referiam-se a “o que agregar ou expandir ou amplificar; o que excluir, inibir ou retirar, o que mudar, permutar, alterar ou modificar ao longo das versões do relato de experiência pedagógica” (DÁVILA, 2014, p. 66, tradução nossa) (Diário de pesquisa, Juliana Faria, 2017).
Pensando a leitura, a escrita, a edição e a publicização de narrativas pedagógicas como quatro dimensões integradas da experiência coletiva de produzir narrativas (viabilizada por meio de exercícios do narrar e da investigação e reflexão pedagógicas que eles promovem), os encontros da disciplina viabilizaram que os participantes pudessem ler as narrativas uns dos outros (e narrativas de outros), escrever sobre si, para e com seus pares, conversar e refletir pedagogicamente acerca das narrativas e editar pedagogicamente os textos, de modo a expandir e aprofundar os sentidos de suas experiências pedagógicas a cada nova versão. Além disso, no segundo semestre, após o término da disciplina, seguimos em contato com o grupo desenvolvendo estratégias de publicização das narrativas, construindo com os participantes os critérios de validação e seleção das narrativas a serem publicizadas, em um e-book a ser lançado em 2023.
Compreendemos que os relatos produzidos no contexto do dispositivo da DNEP podem ser caracterizados como um tipo de narrativa pedagógica escrita por profissionais da educação, no diálogo e para o diálogo entre pares, em um processo que constrói conhecimento para o campo da educação de um modo que focalize a experiência e o saber da experiência docente, situado em determinadas condições de produção coletiva essenciais para que o trabalho possa acontecer.
No entanto, os trabalhos do GEPEC e do grupo Memoria Docente Y Documentación Pedagógica voltam-se para a produção dessas narrativas fundamentalmente em processos de formação continuada de professores, uma vez que consideram o saber da experiência docente. O desenvolvimento da disciplina levou-nos a indagar: será que estudantes que estão se formando para a docência podem participar do debate público da educação por meio da escrita de narrativas pedagógicas? Como? Haveria maiores ou menores dificuldades no processo de produção dessas narrativas? Que condições de formação seriam necessárias para viabilizar um processo coletivo como o que se institui pela DNEP? Qual seria a natureza das narrativas produzidas por esses estudantes?
As interpretações a serem produzidas como resultado dessa pesquisaformação desenvolvida com os estudantes na disciplina eletiva certamente nos auxiliarão a refletir sobre as questões levantadas, indicando o potencial das narrativas pedagógicas em contexto de formação inicial docente e, inclusive, inspirando o trabalho de escrita, comentários partilhados e edição, no contexto dos estágios supervisionados.
4 REFLEXÕES (IN)CONCLUSIVAS
De acordo com Delory-Momberger (2012), na modernidade avançada, as construções biográficas não aparecem apenas como uma aposta de realização pessoal, mas constituem simultaneamente uma aposta social e política. De fato, no mundo contemporâneo, para além do contexto acadêmico, podemos observar uma explosão de “narrativas de si” participando das interações sociais, da comunicação, das disputas políticas e ideológicas. Narrar o vivido e expressar-se, individual ou coletivamente, tornou-se quase um imperativo de nossa existência. Os movimentos (e as redes) sociais expõem, compartilham, contrapõem e disputam narrativas de variados tipos, manifestando as lutas que se fazem no campo discursivo e na práxis social.
No entanto, quando estamos diante de uma tela ou de uma folha de papel, seja para narrar uma experiência pedagógica, seja para escrever qualquer tipo de texto que envolve a docência, a pesquisa e a formação, é muito comum que algo bloqueie nossa escrita. Nessa situação, podemos sentir incapacidade (pensar que “não sabemos escrever”) ou desvalorizar nossa experiência e nossas reflexões (sentindo que “não temos algo importante a dizer”). Diante do desconforto causado por esse “bloqueio”, desistimos de escrever ou insistimos em buscar “o que dizer” por meio da palavra dos outros, procurando refúgio nas ideias de outros autores e tornando o texto tão impessoal que não se pode reconhecer experiência alguma em seu conteúdo. Há ainda aquelas situações em que escrevemos algo mais parecido com um relatório do que com um relato, recorrendo a um estilo de escrita que é muito comum em documentos exigidos no trabalho cotidiano das escolas e cuja existência apresenta-se-nos, muitas vezes, sem sentido.
Essa situação não é diferente para os estudantes da graduação que aspiram exercer a docência. Lidando intensamente com esses estudantes ao longo de nossas trajetórias (FARIA, 2018; PEZZATO et al., 2020; BRAGANÇA, 2021), percebemos que algo no modo como aprenderam a escrever textos, na escola e na universidade, faz com que eles se sintam intimidados quando são convidados a escrever textos acadêmicos e desconsertados ou embaraçados com a possibilidade de que uma narrativa de suas experiências formativas possa ser publicizada ou transformada em um texto acadêmico. Além disso, embora haja grande produção acadêmica envolvendo o uso de narrativas na formação docente, esses estudantes parecem desconhecer o potencial formativo das narrativas e o quanto elas podem estar relacionadas a um tipo de investigação que indaga as experiências pedagógicas dos mundos escolar e acadêmico. Em alguns casos, é possível flagrar uma desvalorização desse tipo de texto, evidenciada em questionamentos como: “Por que tenho que escrever sobre as minhas experiências? Não seria melhor estudar artigos sobre a docência? O que a escrita narrativa tem a ver com a minha preparação para ensinar melhor?”.
Este texto buscou apresentar as potencialidades ou possibilidades da escrita como dispositivo de pesquisaformação, na formação inicial docente. Consideramos que os caminhos trilhados e partilhados aqui poderão contribuir para ações futuras de ensino, pesquisa e/ou extensão. Tal como afirma Josso (2004, p. 144), entendemos que a articulação entre pesquisa e formação, formação e pesquisa pode ser vista como “uma das formas possíveis de inovação pedagógica” e, nomeadamente, espera-se que seu benefício para a sociedade seja contribuir com deslocamentos epistemopolíticos reivindicados por tantas e tantos que nos antecederam, bem como para compor um repertório de possibilidades narrativas que fomentem o desenvolvimento e aprimoramento de propostas de formação inicial de professores, elaboradas no diálogo entre a formação e a pesquisa, entre as universidades e as escolas de educação básica.