SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.21Reflexionando sobre Posibilidades de Investigación-formación en el Curso de Pedagogía: Diarios y Narrativas PedagógicasDesafíos Iniciales y Formas Para Aprender a Ser Docente Universitario: ¿Qué Cuentan los Memoriales Académicos? índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub 30-Jun-2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e59682 

Dossiê ABdC: Narrativas, conversas e as múltiplas grafias de vida...

Aprendizagens Narrativas na Tessitura de Outros Currículos Possíveis com Professoras/es Iniciantes:1Movimentos de uma Pesquisaformação

Narrative Learning in the Fabric of Other Possible Curricula with Beginning Teachers: Movements of a Research-Training

El Aprendizaje Narrativo en la Trama de Otros Currículos Posibles con Docentes Principiantes: Movimientos de una Formación-Investigación

Joelson de Sousa MORAISi 
http://orcid.org/0000-0003-1893-1316

1 Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor Adjunto I da Universidade Federal do Maranhão (UFMA)/Campus Codó. Pesquisador do Grupo Interinstitucional de Pesquisaformação Polifonia (UNICAMP/UERJ) que faz parte do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada (GEPEC)/UNICAMP e Grupo de Pesquisa Vozes da Educação (FFP/UERJ). Integrante também do Grupo de Pesquisas Interdisciplinares: Educação, Saúde e Sociedade (UEMA). E-mail: joelson.morais@ufma.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-1893-1316


Resumo

O estudo em pauta buscou indagar: como professoras/es iniciantes aprendem e tecem outros currículos possíveis no processo de constituição da docência nos movimentos de uma pesquisaformação? Tem como objetivo: compreender os processos de aprendizagem da docência e tessituras curriculares em narrativas de pesquisaformação com professoras/es iniciantes. A base teoricaepistemológica contou com: Josso (2010), Goodson (2019), Ricoeur (2010), Certeau (2012), entre outros. Trata-se de uma pesquisaformação realizada com quatro professoras/es iniciantes de Caxias-MA e usou os dispositivos metodológicos: diário de pesquisa, escrita narrativa, conversas e imersão no cotidiano escolar. Os resultados mostram a potência criativa e criadora da pesquisa com as/os professoras/es iniciantes tecendo outros currículos, conhecimentos e aprendizagens, engendrando, assim, novos estados de ser, pensar e narrar do sujeito.

Palavras-chave: currículo; narrativas (auto)biográficas; pesquisaformação; professoras/es iniciantes

Abstract

The study in question sought to ask: how do beginning teachers learn and weave other possible curricula in the process of constituting teaching in the movements of research-training? Its objective is: to understand the teaching learning processes and curricular textures in research-training narratives with beginning teachers. The theoretical-epistemological basis included: Josso (2010), Goodson (2019), Ricoeur (2010), Certeau (2012), and others. It is a research-training carried out with four beginning teachers from Caxias-MA and used the methodological devices: research diary, narrative writing, conversations and immersion in school daily life. The results show the creative and creative power of research with beginning teachers weaving other curricula, knowledge and learning, thus engendering new states of being, thinking and narrating the subject.

Keywords: curriculum; (auto)biographical narratives; research-training; beginner teachers

Resumen

El estudio en cuestión buscó preguntarse: ¿cómo aprenden los docentes principiantes y tejen otros currículos posibles en el proceso de constitución de la docencia en los movimientos de investigación-formación? Su objetivo es: comprender los procesos de enseñanza aprendizaje y texturas curriculares en narrativas de investigación-formación con docentes principiantes. La base teórico-epistemológica incluyó: Josso (2010), Goodson (2019), Ricoeur (2010), Certeau (2012), entre otros. Es una investigación-formación realizada con cuatro docentes principiantes de Caxias-MA y utilizó los dispositivos metodológicos: diario de investigación, escritura narrativa, conversaciones e inmersión en el cotidiano escolar. Los resultados muestran el poder creativo y creador de la investigación con docentes principiantes tejiendo otros currículos, saberes y aprendizajes, engendrando así nuevos estados de ser, pensar y narrar el sujeto.

Palabras clave: currículo; narrativas (auto)biográficas; investigación-formación; profesores principiantes

1 INTRODUÇÃO

Em uma sociedade em transformações, que a todo tempo é atravessada por deslocamentos diversos, o tema da aprendizagem, formação e construção de currículos outros possíveis é cada vez mais emergente, sobretudo tratando-se da educação de adultos, com especial relevo para a profissão docente, em diálogo com as escolas.

A presente pesquisa foi tecida nesse movimento, de pensar e situar as necessidades formativas de docentes em início de carreira, como um devir, ou seja, como um processo em permanente construção em um contexto multifacetado e de incertezas que foram gerando profundas provocações que me impulsionaram a trazer as ideias aqui presentes.

Nesse sentido, as reflexões deste estudo são oriundas de uma pesquisaformação2 narrativa (auto)biográfica3 desenvolvida em nível de doutorado em educação, de que participaram quatro professoras/es iniciantes no período da pandemia, entre os anos de 2019 a 20224.

A questão problematizadora do estudo busca indagar: como professoras/es iniciantes aprendem e tecem outros currículos possíveis no processo de constituição da docência nos movimentos de uma pesquisaformação?

Os objetivos delineados neste trabalho buscam: compreender os processos de aprendizagem da docência e tessituras curriculares em narrativas de pesquisaformação com professoras/es iniciantes, além de refletir como se tecem outros currículos possíveis na aprendizagem narrativa e construção de conhecimentos com docentes em início de carreira.

Optar pelo uso das narrativas (auto)biográficas como perspectiva epistemopolítica, teórica e metodológica configura-se pelo seu poder de formação, transformação e emancipação que efetua nos sujeitos, operada pela reflexividade e tomada de consciência na atividade de narrar, vendo-se nesse processo e criando uma historicidade que traz marcas, identificações consigo, para si e com o outro em múltiplos espaçostempos da existência e afetações plausíveis e significativas as mais variadas e plurais possíveis.

Trata-se de um voltar para si, tomando consciência dos percursos existenciais, formativos e de aprendizagens pelos quais o sujeito teceu, capaz de conseguir aliar, em múltiplos sentidos, as transformações operadas: desde um viés político, como psicológico, sociocultural, pessoal e de outros âmbitos.

Diante do exposto e buscando situar a formação permanente do professorado, convém salientar que esta abordagem promove uma dimensão transformadora, em uma tríade: conhecimento, aprendizagem e formação, os quais se entrelaçam e permitem o que Josso (2010, p. 86) reflete como um “autoconhecimento [que] poderá inaugurar a emergência de um eu mais consciente e perspicaz para orientar o futuro da sua realização e reexaminar, na sua caminhada, os pressupostos das suas opções”.

A base teoricaepistemológica pauta-se pela corrente de Histórias de vida em formação e demais perspectivas no âmbito da abordagem da pesquisa narrativa, entretecendo-se com a área do currículo e da formação docente à luz de: Josso (2010), Goodson (2019), Ricoeur (2010), Certeau (2012), entre outros.

Neste texto, reflito a concepção de “currículo como aprendizado narrativo” na perspectiva de Goodson (2019) e de “currículo como criação cotidiana” à luz de Oliveira (2012), os quais se enlaçam e compõem o modo de produção de conhecimentos contra-hegemônicos, que são plurais e se tecem por um viés democrático, criativo e emancipatório.

Cabe, então, trazer o conceito de currículo que adoto neste texto e com o qual compreendo que o currículo é como aprendizado narrativo, que está “[...] presente na elaboração e manutenção continuada de uma narrativa de vida ou de identidade” (GOODSON, 2019, p. 282). E o currículo como criação cotidiana consiste em “[...] tecer redes das quais fazem parte diferentes conhecimentos anteriores, práticas, experiências, percepções, inserções que constituem os sujeitos e circunstâncias sociais” (OLIVEIRA, 2012, p. 70).

É nesse processo de pensar a criação curricular e conceitual como uma tessitura em composição em contraposição ao dado, fechado e imperscrutável que situo a reflexão deste texto, no sentido de pensar filosoficamente a construção do conhecimento científico e a aprendizagem da docência no âmbito da abordagem da pesquisaformação narrativa (auto)biográfica, dialogando com um campo de possibilidades, fazendo brotar outros tantos conceitos e currículos, como enredando-se em perspectivas outras teoricometodológicas e epistemológicas como uma ciência outra emergente. São essas discussões que proponho realizar nas linhas a seguir.

2 DAS ARTES DE SABERFAZER PESQUISAFORMAÇÃO: CAMINHOS METODOLÓGICOS

O estudo em pauta foi desenvolvido como uma pesquisaformação narrativa (auto)biográfica em educação entre os anos de 2019 a 2022. Contou com a participação de quatro professoras/es iniciantes, atuantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental, em duas escolas da rede pública municipal de Caxias-MA5.

Todas/os as/os docentes, participantes da pesquisa, possuem formação inicial em Pedagogia e três delas/es são do sexo feminino e se encontravam atuando há dois anos no magistério da Educação Básica, enquanto o outro professor é do sexo masculino e estava na condição de pesquisador do estudo.

Os postulados da pesquisaformação neste texto estão pautados pela corrente de Histórias de vida em formação, que surgiu nos inícios da década de 1980, com a abordagem e uso metodológico de histórias de vida e narrativas (auto)biográficas na formação de adultos, com as contribuições de seus idealizadores Pierre Dominicé, Marie-Christine Josso, Matthias Finger, na Universidade de Genebra (Suíça) e com Gaston Pineau, na Universidade de Montreal (Canadá) (JOSSO, 2010).

A concepção de pesquisaformação neste texto está subjacente a um processo pelo qual os sujeitos envolvidos na trama (pesquisadores/as e participantes da pesquisa) acabam (re)criando currículos, espaçostempos, experiências e aprendizagens em partilha no decurso da pesquisa. Esse movimento não se dá somente na tessitura de conhecimentos e saberes, mas também de sensibilidades, emoções e descobertas várias de si, impulsionadas por todo um conjunto de elementos que esses modos de pesquisa desabrocham.

Tal concepção está em consonância, principalmente, com os princípios de Josso (2010), a qual me acompanha em estudos, pesquisas e experiências ao longo do tempo. Recorro a ela, que me faz refletir o seguinte:

Qualificamos esse cenário como “pesquisa-formação” porque a atividade de pesquisa contribui para a formação dos participantes no plano das aprendizagens reflexivas e interpretativas e toma lugar em seu percurso de vida, como um momento de questionamento retroativo e prospectivo sobre seu(s) projeto(s) de vida e sua(s) demanda(s) de formação atual (JOSSO, 2010, p. 71).

A pesquisaformação é um dispositivo potencial que vem transformando os modos de fazer pesquisa e se formar, simultaneamente, com o uso das narrativas (auto)biográficas, trazendo o sujeito para o centro do debate e das discussões.

Desse modo, fazer pesquisaformação é fazer arte que se compõe como práticas instituintes que não têm um modo de fazer a priori, delimitando um lugar e um roteiro a ser seguido, mas uma composição engenhosa, criativa e inventiva, na qual se tece em um devir à luz das “táticas desviacionistas [que] não obedecem à lei do lugar” (CERTEAU, 2012, p. 87).

No âmbito da pesquisaformação narrativa (auto)biográfica em educação que venho desenvolvendo, da qual resultou minha pesquisa de doutorado em educação (MORAIS, 2022) e neste texto primo por uma corrente de pensamento epistemopolítica que foi se compondo no tecido reflexivo e compreensível de meu pensamento e na construção - de forma plural, híbrida e complexa - de saberes e conhecimentos científicos tramados pelas experiências formativas e profissionais no decurso da existência.

Por essa razão, vida pessoal não se separa da vida profissional, formativa, acadêmica, cultural e de várias outras dimensões. Daí fazer sentido a proposta da pesquisaformação, uma vez que o sujeito vai tecendo outros tantos de si pela narração em um processo de interpretação e reflexividade, fazendo emergir outros currículos possíveis na atividade de narrar.

Os dispositivos metodológicos utilizados durante a pesquisa foram: diário de pesquisa, escrita narrativa, conversas e imersão no cotidiano escolar6 das/os professoras/es iniciantes.

Com os deslocamentos e atravessamentos gerados pela pandemia de Covid-19 no mundo, impactando diretamente o Brasil em março de 2020, redirecionei e fiz novas escolhas quanto aos dispositivos metodológicos da pesquisa, passando a utilizar como recursos: WhatsApp e a Plataforma do Google Meet para registrar e narrar os caminhos da pesquisa, tecendo, assim, outros currículos e conhecimentos possíveis.

Tais registros e gravações das conversas nesses dispositivos metodológicos foram depois transcritos para o computador e selecionadas algumas narrativas que pudessem compor o texto de tese doutoral (MORAIS, 2022), e aqui trago algumas reflexões desse movimento.

Para o processo de compreensão e interpretação das narrativas das/os professoras/es iniciantes participantes da pesquisa, primei pelo uso da hermenêutica da narratividade e temporalidade à luz de Ricoeur (2010). Segundo esse autor, “é tarefa da hermenêutica reconstruir o conjunto das operações pelas quais uma obra se destaca do fundo opaco do viver, do agir e do sofrer para ser dada por um autor a um leitor que a recebe e assim muda seu agir” (RICOEUR, 2010, p. 94-95).

No contexto da hermenêutica de Ricoeur (2010), reflito que os processos de compreensão e interpretação do narrado operam uma transformação que situa o narrador, o contexto e a circunstância vivenciada pela experiência capaz de dar legitimidade a um acontecimento e a construção de saberes e conhecimentos que, anteriores à atividade de narrar, poderiam não existir. É uma trama operada pela linguagem no conjunto de uma filosofia reflexiva do sujeito.

3 TESSITURAS CURRICULARES NUMA CONVERSAÇÃO NA APRENDIZAGEM DA PROFISSÃO DOCENTE

Muito do que narraram as/os professoras/es iniciantes é fruto de suas implicações e atravessamentos que, vez por outra, aconteciam em seu cotidiano e que, durante processos de conversa, iam partilhando. Narravam o que mais lhes parecia significativo e que as/os tocou de algum modo durante suas experiências na escola, sobretudo na sala de aula e com as crianças, com os pais das crianças, com os acontecimentos que iam surgindo em seu cotidiano profissional. Enfim, múltiplas aprendizagens narrativas, conforme evidenciam as narrativas de uma conversa que tive com a professora Fernanda pelo WhatsApp, explicitada a seguir:

Joelson: Fernanda querida. Boa tarde. Como vai?

Fernanda: Boa noite. Desculpa a demora para responder. Ando muito ocupada, agora estou trabalhando no matutino e vespertino.

Joelson: Nossa. E aí, como anda sua vida, a sua prática, formação etc.?

Fernanda: A vida graças a Deus, estou bem. As aulas continuamos em meio a muitos desafios. Porém, tentando reinventar a cada dia.

Joelson: Hum, interessante... Vamos marcar pra conversar algum dia dessa semana? É possível pra você?

Fernanda: Sim. Muitas tarefas, cobranças etc. vida de professor. Na minha humilde opinião, deveríamos receber o melhor salário. Por vários motivos. Estou trabalhando agora os três turnos e aos finais de semana.

Joelson: Nossa. Sério???

Fernanda: Sim. Têm alguns pais que por algum motivo, é... não participam da aula, ou não fazem a atividade no horário determinado, aí às vezes mandam mensagem 10:00h, 11:00h da noite, e aí a gente termina às vezes respondendo, né? E final de semana porque como a gente tá trabalhando dessa forma aí a gente tem que organizar o material, pelo menos eu tenho que fazer isso, né? Eu organizo o meu material todinho, vou fazer as atividades, faço um cronograma de atividades, pra na segunda-feira eu estar enviando essas atividades para os alunos, aí algumas disciplinas que não têm o livro didático, a gente tem que procurar algumas atividades na internet referente a alguns conteúdos que a gente trabalha, e aí se torna muito mais difícil, entendeu? E como eu estava trabalhando só lá no Lourdes Feitosa [escola] tudo bem, eu não me preocupava tanto porque dava pra eu fazer no contraturno, aí eu organizava tudo. Agora como eu falei pra você que eu estou trabalhando em outra escola, aí as atividades dobraram, então a responsabilidade é maior, não que quando eu estava em uma só escola era menor, é porque eu digo assim porque o trabalho aumentou e aí fica muito mais atarefado, é muita coisa e também muita cobrança, principalmente alguns pais que nem acompanham os seus filhos às vezes ficam cobrando, é complicado, tá complicado...

Joelson: Fernanda querida adorei você mandar o áudio, fiquei muito contente viu? Realmente, é... são múltiplas experiências que às vezes a gente vai pensando e refletindo o quanto isso vai se transformando ao longo do tempo. E interessante como você consegue perceber essas mudanças, né? principalmente nesse novo contexto aí de ser professora, é... [pausa] numa situação da qual você nem havia pensado, né? Nem havia se programado e não imaginaria que estaria nessas novas experiências, e agora três turnos. Nossa... me conta mais um pouco sobre isso se você puder! Fica bem puxado, né? Como é que você se vê diante disso? Muito legal, gostei muito dessa experiência, fiquei muito curioso agora, no sentido de aprendizado, sabe? No sentido de eu ver como é que você se sente diante dessas novas mudanças, justamente agora em período de pandemia assumindo novas responsabilidades e se vendo como professora nessa nova conjuntura de trabalhar, de ensinar, enfim, de educar (Conversa de Joelson com Fernanda, 1.º set. 2020).

Em vista da valorização das experiências profissionais das professoras e da consolidação de aprendizagens e de um campo de saberes relacionados ao ofício docente, reforço que, infelizmente, para ter uma vida melhor e digna, o/a professor/a, geralmente, assume duas ou mais funções, o que, embora lhe traga inúmeras aprendizagens, redobra os esforços de trabalho.

A implicação subjacente à narrativa da docente Fernanda é exatamente essa: a intensificação do trabalho docente. É o que tem mobilizado muitos esforços por ela, e que perpassa toda a sua narrativa expressa anteriormente.

Sobre essa implicação, é conveniente elucidar uma pesquisa realizada por Oliveira (2020), mostrando que a intensificação do trabalho docente nesse período da pandemia tem levado em consideração alguns fatores intervenientes nesse processo, que tem constituído de sobrecarga de trabalho para as/os professoras/es.

Alguns dos fatores apontados pela autora dessa intensificação do trabalho docente podem ser ressaltados: o fato de uma formação insuficiente para o uso das tecnologias educacionais e os ambientes virtuais de aprendizagem; a falta de suporte para eles no período em que as aulas estavam suspensas; e o fato de as/os docentes estarem realizando as aulas remotas por conta própria, sem orientações para tal. Esses elementos vêm ampliando as horas de planejamento e a organização das atividades e/ou aulas, intensificando sua jornada de trabalho, contudo ampliando e trazendo tensões, desgastes e conflitos diversos, o que não é saudável para o/a professor/a, muito menos para os/as alunos/as e os processos educativos e pedagógicos desenvolvidos nesse contexto de incertezas (OLIVEIRA, 2020).

No entanto, convém elucidar que não existem contextos lineares nem turmas homogêneas, e as situações enfrentadas são fruto das condições sociopolíticas, históricas, econômicas e sociais de que fazem parte a escola e seu entorno, as/os docentes, a própria cultura específica da instituição, a realidade dos/as alunos/as e a cidade em suas diferentes perspectivas que atravessam esses contextos e se reverberam na sala de aula e no trabalho das/os professoras/es iniciantes.

A comprovação de tal realidade foi corroborada pela professora Ana Patrícia, já em outros momentos, fazendo uma comparação do ano anterior (2019) com o ano em que se encontrava durante a conversa (2020). Revelou, assim, em sua narrativa a situação em que se achava no momento e que não condizia com as mesmas dificuldades de outrora, ou seja: “Mas como eu te falei, eu tô aqui é no céu, porque no ano passado eu passei aperreio, eu tô gostando agora [da turma em que está sendo professora]...” (Narrativa da professora Ana Patrícia, 3 mar. 2020).

Revela-se, assim, por meio dessa narrativa, certo alívio, que foi consubstanciado com gestos e comportamentos de tranquilidade (respirando fundo e dando ênfase em seu olhar fixo para mim durante esse narrar), contando que a turma que se encontra sob sua responsabilidade como docente, no ano de 2020, apesar das dificuldades que tem, não se compara com a anterior. No entanto, vale ressaltar que, no momento em que narrou essa experiência, estava iniciando o ano letivo com uma turma somente sua, aspecto esse que não ocorrera no ano anterior, daí as especificidades relativas a um maior envolvimento e modos de se debruçar sobre a realização e organização do trabalho pedagógico, uma vez que tem mais tempo com as crianças e passou a entender seus perfis, dificuldades e histórias de vida, entre outros aspectos importantes.

Ainda que as ideais da professora Ana Patrícia concebe talvez estejam em conformidade com um modelo preestabelecido e de comportamentos desejados, acreditando em uma homogeneidade que não existe no cotidiano escolar, pois a pluralidade de culturas e mundos se cruza nesse espaçotempo formativo, justamente por assim se apresentarem têm muito mais possibilidades de riquezas que podem contribuir na formação e na aprendizagem da docente, tratando-se, por exemplo, da relação com os pequenos e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento do trabalho pedagógico com toda a sua carga de complexidade, subjetividade e acontecimentos que possam emergir nesse contexto.

Esse fato de idealizar uma sala de aula em conformidade com o que se deseja parece ser um aspecto que acompanha professoras/es iniciantes em suas representações, valores e expectativas. Isso tem estreita relação com o que Morgado (2011) enfatiza acerca de alguns impactos que enfrentam as docentes em seu trabalho cotidiano entremeadas por uma reflexão e prática curricular, isto é, de que:

[...] um dos problemas que continua a afectar a vida das escolas, e consequentemente a organização e os modos de trabalho docente que vai concretizarem, bem como a própria formação de professores, tem a ver com a persistência de uma lógica profissional norteada por princípios de homogeneidade, conformismo e segmentação, e que tem concorrido para perpetuar a tendência de transmissão de saberes, a fidelidade às normas oficiais e ao currículo prescrito e o trabalho individual dos docentes (MORGADO, 2011, p. 80, grifos meus).

Infelizmente, são aspectos que, possivelmente, a docente pode ter percebido, como representação, em virtude da formação que teve, e mesmo quando foi aluna no processo de escolarização, da qual pode se lembrar, tratando-se de um modelo de classe e de alunos, de uma ideia de currículo homogêneo e linear com experiências e conhecimentos que se adéquam sempre às diretrizes preconizadas pelas normas escolares e do que possa ser empreendido nas regras e regimentos estabelecidos pela professora, em suma, de um currículo prescritivo. Isso sem levar em conta que os tempos e os espaços formativos e da experiência são outros, bem como o currículo e a escola atendem e se desenvolvem por meio de outras diretrizes, finalidades e objetivos.

Ressalto ainda que os/as alunos/as são outros, a série em que está atuando a docente também é uma nova experiência e as condições propiciadas e as experiências tecidas apresentam outras configurações, desfechos e acontecimentos. Diante desses fatos, convém recuperar as implicações que o conceito de experiência possibilita nos movimentos de tecer sua prática pedagógica e de tecer-se nas dinâmicas pelas quais vão produzindo as/os professoras/es iniciantes. Logo:

[...] a experiência é sempre experiência de alguém ou, dito de outro modo, que a experiência é, para cada um, a sua, que cada um faz ou padece sua própria experiência, e isso de um modo único, singular, particular, próprio.

[...] De fato, na experiência, o sujeito faz a experiência de algo, mas, sobretudo, faz a experiência de sua própria transformação. Daí que a experiência me forma e me transforma (LARROSA, 2011, p. 7).

Pela experiência da história narrativa enunciada pela professora iniciante Ana Patrícia, anteriormente, compreendo ainda que tem relação com a “dialética da expectativa, da memória e da atenção” discorrida por Ricoeur (2010). Assim, buscando situar as ideias desse autor no contexto de vida e aprendizagem profissional da docente, percebo que os processos formativos se entrelaçam nos contextos experienciais da professora, ao pensar como poderá agir e se organizar quanto a seu planejamento para desenvolver sua prática pedagógica (expectativa), às marcas da temporalidade narrativa em que são reveladas na história de vida e acerca da profissão (memória) e dos acontecimentos que enfrenta cotidianamente para que possa direcionar suas ações, procurando evitar possíveis lacunas e atravessamentos que põem em xeque os aspectos qualitativos do trabalho docente (atenção).

A narrativa de outra professora iniciante (que já trouxe conversas anteriormente neste texto, em outra narração), Fernanda Prudêncio, tem outro teor, Até porque as experiências diferenciam-se de uma docente para outra, tanto em postura quanto nos aspectos de enfrentamento que tem com as crianças e a gestão de sua turma. Outros aspectos que distinguem o ser professor/a, o saber e fazer professoral condizem com as políticas desenvolvidas pela equipe de gestão da escola, que lhe dá certa liberdade para exercer seus saberes e práticas, para tecer outros currículos possíveis, como tenho percebido no cotidiano do trabalho desenvolvido pela docente Fernanda.

Nesse aspecto, faz sentido invocar a literatura acerca dos múltiplos desafios enfrentados no início da docência, que se constitui de uma diversidade de experiências, estados de ser e modos de situar no início da profissão professor/a, ou seja:

[...] a iniciação ao ensino é o período de tempo que abarca os primeiros anos, nos quais os professores fazem a transição de estudantes para professores. É um período de tensões e aprendizados intensivos em contextos geralmente desconhecidos, e durante o qual os professores principiantes devem adquirir conhecimentos profissionais além de conseguirem manter um certo equilíbrio pessoal (MARCELO GARCIA, 1999, p. 113).

Algumas de suas narrativas, em um diálogo mais amplo direcionado a toda a turma, e que também foi corroborado pela professora Fernanda em conversas pessoalmente comigo, durante o processo de pesquisaformação, mostram sua preocupação com a organização do trabalho pedagógico e a construção de um campo profissional que possa deixar bem definido quais os papéis de cada um (alunos e professora) naquele contexto institucional, como evidencia em sua narrativa compartilhada com as crianças na sala de aula:

Eu gosto do meu trabalho, de ser professora. Às vezes sou chata, mas eu falo com bravura porque gosto de vocês e quero que sejam os melhores, por isso eu cobro, mas faço o meu trabalho com amor (Narrativa da professora Fernanda Prudêncio, 2 mar. 2020).

Essa narrativa foi pronunciada em um momento em que a professora Fernanda estava trabalhando os conteúdos da área de Ensino Religioso, abordando o conteúdo sobre “Valores” na formação dos pequeninos e colocou como direcionamento para que as crianças pudessem fazer a atividade: “Citem 05 coisas que deixam vocês felizes, e 05 coisas que deixam infelizes”. Logo em seguida, quando alguns participaram, interpelaram a professora sobre o que a deixava feliz, e ela assim se posicionou, situação que a pegou de surpresa a fez falar o que lhe veio à mente, sem muito tempo para pensar, mas de modo muito implicado e envolvente, como demonstrado em sua narrativa.

A problematização e reflexões outras geradas por essa atividade mediada pela docente deixaram as crianças estimuladas e esse debate foi conduzido a outro conteúdo, induzido por uma das crianças, levando as outras a se moverem e se voltarem para o tema Por que vida de criança é fácil? Por que vida de criança é difícil?

Tal questão foi disparadora e se caracterizou como uma motivação a mais, levando a um nível maior de envolvimento e movimentação pelas crianças, despertando seus interesses e participação de todas no assunto e, é claro, da professora, que foi conduzida a outra extremidade de discussão, reflexão e desdobramentos da aula, mostrando uma constante curiosidade que estava contribuindo com sua aprendizagem ali naquele contexto, como chegou a relatar em outras conversas posteriores ao momento. No diário consegui enxergar isto, da seguinte forma:

A proposta da atividade, percebo ainda que gerou um eixo de dimensão dialógica e problematizadora, pois, curiosamente, nos tomou e nos envolveu, sintomaticamente, e de modo muito implicado, tanto é que fomos levados por um movimento espontâneo, participativo e produtivo (Narrativa do diário de pesquisa: Aula da professora Fernanda Prudêncio, 2 mar. 2020).

Com base nas experiências tecidas, percebo que, em uma aula, não acontece apenas o programado e os conteúdos não são somente aqueles explícitos no currículo prescrito e planejado a priori, mas há atravessamentos que, justamente por assim acontecer, criam uma zona de oscilação e deslocamento do ensinado que leva a tantas outras aprendizagens, tanto para a professora iniciante quanto para os alunos. Isso é potente e transformador, porquanto tira, muitas vezes, da zona de conforto toda a aula, mobilizando alunos/as e professor/a a ressignificarem seus entendimentos, reflexões, e a instituírem outros saberes e fazeres no cotidiano da prática pedagógica que está sendo tecida por múltiplos fios no trabalho docente.

Pensando com Certeau (2012), os alunos da docente, como um grupo, fizeram emergir outras práticas cotidianas, no contexto da cultura escolar, e acabaram levando a professora, coletivamente com as crianças, a “multiplicar as astúcias que permitem ou refreiam uma circulação numa rede de poderes” (CERTEAU, 2012, p. 65). Logo, a professora usou de táticas para além do que estava sendo conduzido curricularmente, passando de um saber que atende à lógica do planejamento e do projeto pedagógico da escola - rompendo com o linear e comum - e dando lugar ao surgimento de uma aula que fluiu e foi potencializada por interesses, motivações e saberes experienciais e de mundo de todos os que fizeram esse cotidiano pulsar, resultando em novas e outras tantas aprendizagens para alunos, professora e para mim.

Convém elucidar, portanto, com base na experiência vivida pela professora iniciante Fernanda Prudêncio, acerca de outras perspectivas de conceber o ensino e (re)aprender possibilidades didáticas da aula, criando um saber curricular que foi permitido graças às suas interações com seus alunos.

É acerca desse aspecto que as/os professoras/es iniciantes vão construindo outros tantos saberes e fazeres que condizem com o seu contexto e que respondem aos anseios e necessidades da cultura escolar e, mais especificamente, da realidade da sala de aula. No sentido do que Goodson (2019) chama de aprendizado narrativo, é operado nos processos de tessitura de uma narrativa ou história de vida que constitui inúmeras reflexões, valores, crenças e saberes de mundo, dos contextos pessoais, sociais, políticos e culturais dos quais fazem parte as/os docentes em suas tramas e fios cotidianos.

Desse modo, reafirmo a potência da aprendizagem narrativa pelo fato de que “[...] a emergência e a consolidação de práticas curriculares voltadas para a aprendizagem narrativa, que ao romper com as estórias e firmar as histórias, estabelecem os processos colaborativos como eixo de uma educação estética apoiada numa cultura ética” (GOODSON; PETRUCCI-ROSA, 2020, p. 103). No transcurso das aulas, como foi um conteúdo que despertou as crianças, a professora e a mim, pois todos começaram a disparar narrativas do que lhes moviam, compreendiam e faziam parte do universo de vida e existencial, percebo as contribuições que as crianças davam à aprendizagem profissional da docente.

Assim, pude notar que as crianças se tornam um grupo de sujeitos que ensinam muito e contribuem para a aprendizagem profissional da professora iniciante, pois vivem em outra geração que lida com mudanças contemporâneas, muitas das quais aprendidas e compartilhadas por meio do mundo tecnológico, muitas vezes mais rapidamente que a docente. Esse fato, consubstanciado pela experiência das crianças em narrar a prática de jogos virtuais estrangeiros que possuem uma linguagem em inglês e que os/as alunos/as conseguiam pronunciar corretamente o nome do jogo, com seus princípios e suas táticas utilizadas, forneceu outras aprendizagens para a docente, que não sabia do que se tratava, mas que fez uma transposição didática do assunto e adequação ao conteúdo para exemplificar o que estava ensinando.

Uma experiência que se mostrou bastante pertinente e interrompeu novamente a condução e desenvolvimento das atividades pedagógicas pela professora Fernanda Prudêncio diz respeito ao nível de agitação da turma, quando, em determinado momento, percebeu que as crianças estavam se dispersando para conversarem, atrapalhando, portanto, a aula. A professora retrucou e repreendeu a turma, conforme enunciado a seguir:

Agora eu vou mudar a metodologia, vou passar a escrever um monte de atividades aqui no quadro pra vocês [e foi apontando num movimento com a mãos para o quadro de uma extremidade a outra] porque não respeitam o colega quando está falando e não escutam, porque é tão bom dialogar (Narrativa da professora Fernanda Prudêncio, 2 mar. 2020).

Parece que a professora iniciante conseguiu aprender alguns macetes da profissão que fazem com que as atividades possam fluir no contexto de uma sala de aula. Então, escrever muito no quadro ou trazer várias atividades faz com que as crianças participem das atividades propostas e busquem não atrapalhar o andamento do que possa ser desenvolvido pela docente.

Vale ainda reforçar que a atividade proposta pela docente7 parecia ter despertado o desejo e a motivação da professora, potencializada pelas reflexões que estavam sendo produzidas pelos diálogos dos/as pequeninos/as, uma vez que isso estava se mostrando como um dispositivo potente de formação e aprendizagem da profissão.

Além do mais, tal experiência permitiu compartilhar saberes de mundo e reflexões das crianças, que mostravam vários indícios de compreensão e reorganização dos saberes e fazeres da prática pedagógica da professora iniciante, como demonstrou essa contribuição vinda das crianças e partilhou em suas narrativas em conversas comigo, além de evidenciar também no plano de sua prática, ao desenvolver a aula no momento.

A aula da professora Fernanda foi me revelando outros modos como se produz conhecimento, sua legitimidade e o que conta ou não como saber na sociedade ao longo de seus itinerários trilhados, visto que múltiplas identidades, culturas e modos outros de compreender e interpretar o mundo, a ciência e as relações homem/natureza/sociedade foram se descortinando e viabilizando outras possibilidades concretas de responder a realidade multifacetada em que está imersa socioculturalmente (SANTOS, 2010).

Outro contexto de aprendizagem profissional da docência nas histórias narradas pela professora iniciante Ana Patrícia revelou as contribuições que os materiais didáticos que seu filho utilizou, quando estava cursando a série em que está atuando, podem lhe trazer no momento atual de sua prática pedagógica. Assim narra a docente:

Esse conteúdo aqui eu não vi quando eu estudava, eu estou pegando do livro do meu filho pra ensinar esses conteúdos aqui na turma, porque está bem mais organizado e estruturado, pois eles [os alunos] não receberam ainda o livro didático (Narrativa da professora Ana Patrícia, 3 mar. 2020).

A aprendizagem de outros conteúdos e fontes para ensinar sua turma foi, portanto, o que a despertou para buscar os livros didáticos que seu filho já não usa mais, pois encontra-se em anos mais à frente no desenvolvimento acadêmico-escolar. Mediante a narrativa de Ana Patrícia, percebo que se faz presente outra implicação na prática pedagógica da professora iniciante e que precisa ser problematizada: o saber fazer docente atrelado ao livro didático.

Diante da diversidade e pluralismo teórico e metodológico na educação acerca das práticas de ensino, não poderia a docente se utilizar das experiências, conteúdos e histórias que se pautam primeiramente pela própria realidade das crianças em suas narrativas do cotidiano, vida e cultura, para depois articular-se com outros dispositivos hegemônicos do currículo escolar?

Parece ser a supremacia do currículo escolar caracterizada mais por prescrição do que como criação ou narração de histórias como possibilidades de construção de saberes e conhecimentos na educação escolar, que pudessem ser legítimos e contribuir para a aprendizagem dos sujeitos. Sua narrativa confirma isso e esta pode ser também recorrente nas enunciações de muitas/os professoras/es iniciantes e experientes, tendo em vista ser uma questão influenciada pelo processo de formação inicial da docente e fruto da própria dinâmica com que é configurada na escola, circulada nas mídias e na sociedade em discursos dominantes do modelo de educação cobrada pelos sistemas educacionais, colocando o livro didático como única alternativa significativa para guiar a didática das/os professoras/es na educação escolar.

Sobre essas implicações do currículo escolar em que o livro didático representa um maior significado nas práticas pedagógicas do processo de ensino e aprendizagem, apresento uma crítica relevante esboçada por Goodson (2019, p. 90), situando que:

[...] Experimentações contemporâneas com a aprendizagem baseada em investigação buscam engajar o aprendiz em um processo formativo de formulação e solução de problemas, mas necessariamente faz isso em um contexto no qual a metáfora dominante é o currículo como prescrição - e não do currículo como narrativa -, no qual o processo de aprendizagem é predeterminado pelo currículo e pelos requisitos de avaliações e o conhecimento é pré-embalado em áreas disciplinares particulares, ou disciplinas.

A professora narrou essa experiência em conversas comigo pelo fato de ter pontuado as dificuldades de aprendizagem que, segundo a docente, atrasavam o desenvolvimento dos/as alunos/as em outros conteúdos que poderiam ser ensinados no 5.º ano, mas que não tinham condições pelo perfil e nível de aprendizagem em que se encontravam as crianças. Então, ela reforçou que havia conteúdos de anos anteriores que ainda estava trabalhando com sua turma para que as crianças pudessem conseguir compreender e, assim, aprender os conteúdos mais complexos posteriormente.

Nesse sentido, o peso da didática para a/o professor/a iniciante era algo que incomodava frequentemente a professora iniciante Ana Patrícia, deixando bem explícitas em suas narrativas as questões importantes de desenvolver seu trabalho pedagógico e a organização da aula de forma que o ensino e a aprendizagem acontecessem.

Cabe evidenciar a narrativa de outra docente que expõe uma relevante reflexão sobre currículo, a da professora Arikelma, de uma conversa com a gestora da escola em que trabalha, cobrando suas ações diante da pandemia para apresentar um relatório à SEMECT8 do que está sendo feito pelas/os professoras/es da instituição. E a docente buscou formas de fazer suas atividades com as crianças:

- Arikelma: Pois é, a gente não tava fazendo rotina; o nosso plano anual a gente não tinha feito ainda, e agora quando começou a partir de agosto elas pediram [as gestoras da escola]. Falaram que queriam nossas rotinas, eu até tava fazendo na semana passada; pediram nossos planos anuais, [nessa hora a docente pega os planos e me mostra], esse aqui olha, do terceiro e do quarto bimestre, não sei se tu tá vendo direitinho...

- Joelson: Ah, lembro. Eu sei...

- Arikelma: Eles pediram o plano anual de todas as matérias, pra gente entregar. “Gente, mas o que a gente vai colocar nesses planos anuais?”. A gente não tá dando assunto, não é? Mas elas [as gestoras]: “não, mas coloca pelo menos alguma coisa aí, porque a Secretaria [de educação] tá é cobrando isso da gente, coloca pra gente entregar pra eles”. “Não, pois tá bom, tudo bem”. Plano anual e PEGE9 também.

Diante da conversa narrativa, provoco uma reflexão acerca do papel das rotinas na organização do trabalho pedagógico das/os professoras/es iniciantes. Seria, portanto, a rotina uma construção curricular, um modo de planejar, organizar e guiar sistematicamente a prática dos/as professores/as no processo de ensino e aprendizagem? As rotinas significariam a representação e o desenvolvimento qualitativo das aprendizagens discentes ou não? As rotinas seriam, de fato, norteadoras do trabalho docente e representariam seu conteúdo e forma?

Acerca desses questionamentos tenho algumas dúvidas e concepções. Uma delas é que rotinas podem representar um curso de uma caminhada no que diz respeito ao trabalho docente, mas não da forma como tem sido empreendida a todo custo como um cumprimento de um dever e obrigação, e não como um planejar, desenvolver e orientar o/a próprio/a professor/a com os saberes, tempo que empreende e as concepções, objetivos e propósitos que almeja, com a devida autonomia inerente a seu ofício. Reflito que “as rotinas, que são fenômenos fundamentais no ensino, permitem dar uma boa ideia daquilo que chamamos de consciência prática. O que é uma rotina? Agir é agir no tempo, com o tempo: a ação se insere, portanto, numa duração” (TARDIF, 2012, p. 215).

E é essa duração no tempo, capaz de refletir as nuances, os deslocamentos e as ressignificações percebidas e mediatizadas pelo/a professor/a, que faz a diferença em matéria de aprendizagem, de (re)criação curricular e formação para si e para seus alunos em situações didáticas e metodológicas mobilizadas em sua prática educativa.

Pela narrativa, é notório o esforço da docente Arikelma em mobilizar outras tantas práticas, saberes curriculares e metodologias para que as crianças não fiquem ociosas e sem fazer nada. Empreende um esforço a mais, pois a professora foi buscar alternativas que pudessem ser (re)inventadas remotamente, trazendo as crianças para participarem e aprenderem.

Reforço, assim, a criatividade da docente que, mesmo diante de um cenário conturbado como o da pandemia, constituído de incertezas da vida, dos impactos emocionais gerados e das dificuldades da aprendizagem da profissão, uma vez que é professora iniciante, consegue mobilizar outros tantos saberes curriculares e práticas remotamente, que ainda são compartilhados e bem aceitos e elogiados por outros/as docentes da escola.

Essa experiência de reaprender a ser professora na pandemia mostra o quão significativa foi a atuação dos/as professores/as nesse período, dando continuidade ao papel de ensinar/educar na escola, mesmo que remotamente. Isso mostra que esses/as profissionais não recuaram de suas funções diante da complexidade e gravidade enfrentadas pela crise sanitária. Mais uma vez, é válido ressaltar a plausível contribuição dos/as docentes, mesmo não tendo o prestígio social e cultural que deveriam ter, que é significativa a valorização profissional pela qual a categoria vem lutando há muito tempo para melhores condições de trabalho, aprendizagem e formação.

Em suma, penso que são fundamentais as narrativas das/os professoras/es iniciantes que se articulam em suas múltiplas experiências e que fazem parte da prática pedagógica mediatizados pelos processos formativos de aprender e ensinar e de tecer outros tantos saberes e saberesfazeres curriculares, criativos e engenhosos relacionados a suas aprendizagens, as quais são transformadoras e potencialmente significativas para a vida, a formação e a profissão.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o desenvolvimento da pesquisa, percebo nas narrativas a emergência de múltiplos espaçostempos para os/as professores/as refletirem sobre os acontecimentos tecidos em seu cotidiano e que servem de subsídios para repensar sua postura, suas aprendizagens e necessidades de construção de outros tantos saberes curriculares, dispositivos metodológicos e fazeres que poderão ser desenvolvidos em momentos futuros de sua prática pedagógica.

Muito significativo é esse modo de fazer pesquisaformação, com tanta potência, como pude perceber, o que mostra a possibilidade criativa e criadora de outros currículos, meios e estilos de produção de narrativas, configurando-se, assim, as redes sociais e quaisquer outros dispositivos cibernéticos como um espaço outro que vem sinalizando possibilidades formativas de construção de conhecimento e transformação dos sujeitos, na tessitura de suas histórias, na exercitação de suas memórias e na consequente transformação das consciências em contextos diversos e altamente importantes para a formação.

O presente estudo me levou a pensar o quão sensível e implicado é fazer pesquisaformação, engendrando outros estados de ser, pensar e narrar do sujeito em determinada temporalidade que se revela tangível para o narrador e significativa para quem participa do processo, dando legitimidade a saberes e conhecimentos tecidos axiologicamente por quem desbrava outros horizontes e possibilidades e é desbravado por outras práticas, sentidos e contextos ainda não habitados e experienciados, como foi o caso da narração de histórias, memórias e narrativas das/os professoras/es iniciantes.

Com relação aos contextos de formação em que foi possível tecer as experiências formadoras, de construção de currículos, conhecimentos e de tessituras de outras tantas aprendizagens, o desenvolvimento dessa pesquisaformação narrativa (auto)biográfica em educação apontou para: as mídias; a escola; a sala de aula; as tecnologias educacionais; as redes sociais; e as plataformas digitais na cibercultura, entre outros.

Sobre as aprendizagens narrativas presentes nas trajetórias de iniciação à docência de professores/as iniciantes, cabe destacar que um conjunto significativo dessas experiências emergiu durante o estudo, por exemplo: 1) os desafios da prática docente; 2) a intensificação do trabalho docente; 3) o saber fazer docente atrelado ao livro didático; 4) os desafios e lições da pandemia, entre outros.

Não restam dúvidas de que as experiências dessa pesquisa trouxeram uma pluralidade de aprendizagens do ser, fazer-se e tornar-se professor/a iniciante em um contexto de adversidades e incertezas da profissão, da didática e da organização do trabalho pedagógico, bem como nos modos de construção do saber e saberfazer curricular para demandas e necessidades que emergiram e em muitas das quais não se sentiam preparadas/os.

Nesse sentido, o trabalho em pauta defende e mostra a pertinência dos estudos sobre currículo com o entrelaçamento na abordagem narrativa (auto)biográfica, sinalizando para potentes e transformadoras contribuições que poderá trazer à formação de professores/as de diferentes etapas, níveis e modalidades de ensino, como uma possibilidade de construção de outros mundos possíveis e uma educação plural, democrática e emancipatória.

REFERÊNCIAS

ALVES, Nilda. Sobre movimentos das pesquisas nos/dos/com os cotidianos. Teias, Rio de Janeiro, ano 4, n. 7-8, p. 1-8, jan./dez. 2003. Disponível em: Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistateias/article/view/23967/16939 . Acesso em: 14 out. 2022. [ Links ]

BRAGANÇA, Inês Ferreira de Souza. Pesquisaformação narrativa (auto)biográfica: trajetórias e tessituras teórico-metodológicas. In: ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto; CUNHA, Jorge Luiz da; BÔAS, Lúcia Villas (Orgs.). Pesquisa narrativa (auto)biográfica: diálogos epistêmico-metodológicos. Curitiba: CRV, 2018. p. 65-81. [ Links ]

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. 19. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. [ Links ]

GOODSON, Ivor F. Currículo, narrativa pessoal e futuro social. Campinas: Unicamp, 2019. [ Links ]

GOODSON, Ivor F.; PETRUCCI-ROSA, Maria Inês. “Oi Iv, como vai? Boa sorte na escola!”: notas (auto)biográficas constitutivas da história de vida de um educador. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 5, n. 13, p. 91-104, jan./abr. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.uneb.br/index.php/rbpab/article/view/7506/pdf . Acesso em: 15 out. 2022. [ Links ]

JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. 2. ed. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010. [ Links ]

LARROSA, Jorge. Experiência e alteridade em educação. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 19, n. 2, p. 4-27, jul./dez. 2011. Disponível em: Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/article/view/2444 . Acesso em: 16 out. 2022. [ Links ]

MARCELO GARCIA, Carlos. Formação de professores: para uma mudança educativa. Porto: Porto, 1999. [ Links ]

MORAIS, Joelson de Sousa. Fios e tramas em contextos de pesquisaformação e suas implicações na tessitura narrativa de professores/as iniciantes. 2022. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2022. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/1237977 . Acesso em: 10 mar. 2023. [ Links ]

MORGADO, José Carlos. Identidade e profissionalidade docente: sentidos e (im)possibilidades. Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v. 19, n. 73, p. 793-812, out./dez. 2011. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/ensaio/a/FGxQczxQYCJvQfyLdvGfTRc/?format=pdf&lang=pt . Acesso em: 15 out. 2022. [ Links ]

OLIVEIRA, Dalila Andrade. Condições de trabalho docente e a defesa da escola pública: fragilidades evidenciadas pela pandemia. Revista USP, São Paulo, n. 127, p. 27-40, out./nov./dez. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/180037/166654 . Acesso em: 15 out. 2022. [ Links ]

OLIVEIRA, Inês Barbosa de. O currículo como criação cotidiana. Petrópolis: DP et alii; Rio de Janeiro: FAPERJ, 2012. [ Links ]

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. [ Links ]

SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010. [ Links ]

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. [ Links ]

NOTAS:

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- (CAPES)/Brasil - Código de Financiamento 001.

2 Vale ressaltar que o uso do termo pesquisaformação junto em itálico deve-se a uma escolha política e teoricaepistemológica de escrita na abordagem narrativa que adotei, fundamentado pela corrente dos estudos nos/dos/com os cotidianos, no qual tem Alves (2003) como inspiração e fundadora desse movimento na década de 1980, pautada pelos fundamentos nos estudos de Certeau (2012). O sentido da junção de duas ou mais palavras é uma forma de tecer outros tantos conhecimentos e saberes científicos como (re)criação de outras compreensões e lógicas possíveis, para além de uma ciência hegemônica e newtoniana-cartesiana. Essa e outras palavras aparecem nesse texto com esse sentido.

3 Adotei essa expressão pesquisaformação narrativa (auto)biográfica a partir dos fundamentos de Bragança (2018), que me ajuda a refletir na potência da criação de palavras outras como limiares e alegorias abertas, em que fazem emergir outros sentidos e singularidades que marcam e afetam os sujeitos no âmbito dessa abordagem de pesquisa.

4 Embora o curso do doutorado tenha iniciado no ano de 2019, a pesquisa, propriamente, começou somente no ano de 2020 com as conversas e registros narrativos com as/os professoras/es iniciantes e, nesse contexto, instalou-se a pandemia de Covid-19. Esse aspecto será discutido na próxima seção.

5 O desenvolvimento da pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP), CAAE: 35270620.4.0000.8142, na Faculdade de Educação (FE) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) onde o curso de doutoramento em educação foi realizado.

6 Essa imersão no cotidiano escolar só foi possível no período anterior à pandemia, que aconteceu no ano de 2019 e início de 2020. A partir de então, as atividades foram paralisadas no mundo e, no Brasil, em março de 2020, o confinamento se estabeleceu, razão pela qual houve um deslocamento em que mudei os dispositivos metodológicos para que a pesquisa acontecesse e fosse desenvolvida.

7 Atividade que estava acontecendo na aula acerca das provocações colocadas pelas crianças sobre o que as deixava felizes ou infelizes, e o que era coisa de criança ou não, mencionada anteriormente.

8 Secretaria Municipal de Educação, Ciência e Tecnologia de Caxias (SEMECT).

9 Programa Estatístico e Gestor Escolar (PEGE) é uma plataforma digital ofertada e disponibilizada pela Secretaria Municipal de Educação de Caxias, para que gestores/as escolares, professores/as, alunos/as e pais de alunos/as postem atividades, registro de aulas, notas, preenchimento de diário etc., e acompanhem durante o processo educacional.

Recebido: 20 de Outubro de 2022; Aceito: 10 de Janeiro de 2023; Publicado: 30 de Março de 2023

Creative Commons License Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional que permite o uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a obra original seja devidamente citada.