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Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub June 30, 2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e59644 

Dossiê ABdC: Narrativas, conversas e as múltiplas grafias de vida...

Fazer Sentir. Testemunho de uma Transformação da Sensação. (Modos de Interrogar nossas Práticas Educativas e Pedagógicas)1

To Make Feeling. Testimony of a Transformation of Sensation. (Ways of Questioning our Educational and Pedagogical Practices)

Hacer Sentir. Testimonio de una Transformación de la Sensación. (Modos de Interrogar nuestras Prácticas Educativas y Pedagógicas)

Adrián CANGIi 
http://orcid.org/0000-0002-0755-6699

Michele Fernandes GONÇALVESii 
http://orcid.org/0000-0001-6146-8764

i Doutor em Filosofia e Letras pela Universidade de São Paulo - USP - e em Sociologia pela Universidade de Belgrano - UB. Pós doutor em Filosofia e Letras pela USP. Professor e pesquisador da Universidade de Buenos Aires - UBA -, Universidade Nacional de La Plata - UNLP - e Universidade Nacional de Avellaneda - UNDAV. Diretor do Mestrado em Estéticas Contemporâneas Latino-americanas da UNDAV e do Centro de Estéticas e Políticas Contemporâneas Latino-americanas da UNDAV. E-mail: adriancangi@hotmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-0755-6699

ii Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Professora do Departamento de Estudos Especializados em Educação - EED - da UFSC. Tradutora deste artigo. E-mail: mi.fernandes.goncalves@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-6146-8764


Resumo

Este ensaio problematiza as potências do “fazer sentir” para o campo dos estudos curriculares, apostando nas fábulas e no pensamento de Gilles Deleuze a respeito das metamorfoses para provocar deslocamentos e gestar intensidades, vibrações e tensões. As fábulas expõem os problemas da biosfera como matéria viva e em constante transformação, mostrando-nos que educar significa metamorfosear-se e imitar a força vital do que sobrevive. Como grafias de vidas singulares, elas se tornam possibilidades de reconhecimento dos corpos e suas feridas historicamente abertas, materializando-se, aqui, nos testemunhos de três crianças mortas que nos ajudam a refletir sobre a crise da razão moderna e a urgência do fim da crítica negativa em favor da abertura, na educação, aos pluralismos existenciais capazes de dar vazão a um novo modo e uma nova maneira das pedagogias.

Palavras-chave: fazer sentir; fábulas; pluralismos existenciais; intensidades; educação

Abstract

This essay works on the powers of “making people feel” for the field of curricular studies, betting on the fables and on the Gilles Deleuze’s metamorphoses thinking to provoke displacements and generate intensities, vibrations, and tensions. The fables expose the problems of the biosphere as the living matter in constant transformation, showing that educating means to constantly change and imitate the vital force of what survives. As writing pieces of singular lives, they become possibilities for recognizing bodies and their historically open wounds and are herein materialized by the testimonies of three dead children that help us to reflect on the crisis of modern rationality and the urgency of the criticism negative end in favor of the education opening to existential pluralisms capable of giving birth to a new mode and way of pedagogies.

Keywords: making feel; fables; existential pluralisms; intensities; education

Resumen

Este ensayo problematiza las potencias del “hacer sentir” para el campo de los estudios curriculares, apostando por las fábulas y el pensamiento de Gilles Deleuze sobre las metamorfosis para provocar desplazamientos y generar intensidades. Las fábulas exponen los problemas de la biosfera como materia viva y en constante transformación, mostrándonos que educar significa metamorfosearse e imitar la fuerza vital de lo que sobrevive. Como grafías de vidas singulares, se convierten en posibilidades de reconocimiento de los cuerpos y sus heridas históricamente abiertas, materializándose en este texto en los testimonios de tres niños muertos que nos ayudan a reflexionar respecto a la crisis de la razón moderna y a la urgencia del fin de la crítica negativa en favor de una abertura, a los pluralismos existenciales capaces de producir un nuevo modo y una nueva manera de las pedagogías.

Palabras clave: hacer sentir; fábulas; pluralismos existenciales; intensidades; educación

1 INSTABILIDADE PERPÉTUA

1.1 Sentir

Sabemos que o vivo está “aí” - no pagus -, ou na singularidade do lugar onde buscamos nossas pegadas. O verbo grego noein, traduzido como pensar, significa primeiramente “cheirar”, “farejar”. Pensar é cheirar, farejar a coisa que surge do ar circundante. O animal territorial que somos cheira e ao mesmo tempo fareja as pistas e os vestígios de um sabor-saber típico dos indícios primitivos, dos gostos adquiridos nos rituais cotidianos, das habituais crenças ocultas de seu habitat. Homero medita sobre um cachorro. Os sinais ou vestígios do vivente foram chamados de sémata, em grego, e indicam os excrementos dos animais perseguidos, logo as marcas de seu caminho e, finalmente, os astros que marcam sua jornada. Parmênides antecipou a palavra latina sideral ao perceber o peso dos signos do cosmos nas trajetórias dos viventes. Pensar é ler um caminho pelo olfato em um ambiente sideral, e essa é uma condição das espécies de predadores das que somos descendentes. A presa engolida não é contemplada sem uma agressão simultânea. A contemplação - em grego, theorein - indica a visão dos restos mortais por um predador saciado. Aquele que conhece o pagus se reconhece como rastreador de sensações e vestígios. A noesis, ou o ato de pensar farejando “o sideral”, indica algo que é próprio, ao mesmo tempo que indaga “o próprio”.

Mais do que nunca, hoje sabemos que o sentido e a sensação não têm nada de especificamente humano e que o mundo começa como um evento de incalculável e imprevisível anomalia. A sensação não é aquilo que transforma um animal em algo humano; pelo contrário, é a faculdade pela qual todo vivente se torna sensível e “forçado a sentir”. Tanto a vida animal como a vida sensível, em todas as suas formas, são uma abertura ao sintiendum ou iuxta própria principia, à existência própria do sensível - uma noção que engloba todas as expressões irregulares do sentir, bem como certa capacidade singular de se vincular a esse sentir. Não conhecemos nenhuma modalidade de viventes que não explorem a terra ou se expandam segundo contingências inventivas de incalculável raridade. Os viventes prometem uma metamorfose constante e uma transformação cósmica vital. Perguntamo-nos por que os caçadores nos polos Ártico e Antártico são devedores da Ursa Maior, uma das constelações que circundam a Estrela Polar, efeito da rotação do planeta durante a noite, sem se esconder no horizonte2. Sob essas estrelas os ursos vagam, observando suas presas e seus preciosos alimentos em vastos circuitos territoriais. Os caçadores os imitam, porque sempre os admiraram, a ponto de deles apreenderem o conhecimento da sobrevivência nesses circuitos de luzes polares entre a terra e o céu. A esses poderes de observação, imitação e contração perceptiva e afetiva se chamou, e até hoje os chamamos, “educação integral para a vida” ou “contração da existência própria do sensível”.

Há milênios imitamos os ursos em seus movimentos territoriais e contraímos a tática dos lobos em suas práticas políticas e pedagógicas. De vez em quando, há um encontro inesperado entre mundos que somente se tocam em um ponto da experiência - foi o que ocorreu no Norte Subártico entre Nastassja Martin e um urso, enquanto a antropóloga francesa trabalhava com o grupo de povos indígenas Even, nas florestas siberianas3. Em 25 de agosto de 2015, um urso e uma mulher se encontram na fronteira entre dois mundos, onde o mito toca a realidade e o sonho humano se encarna no atual4 de uma batalha. A antropóloga sobrevive e narra o evento no livro Coere aux fauves, de 2019. A cena nos é contemporânea, mas poderia ter acontecido há mil anos - a aprendizagem humana ainda resulta muito frágil para o conhecimento dos limiares “entre mundos”. Seus efeitos só podem ser elaborados pela sobrevivência na coleção de fábulas nas quais acreditamos como pedagogia necessária para a vida. Nossa fraqueza para com o conhecimento desses limiares, os limites entre a luz e a sombra dos acontecimentos, deve-se à configuração moderna do sentir possibilitada pela entronização de um sujeito autônomo das coisas. Descartes, Hobbes e Malebranche são responsáveis por uma epistemologia que pensa ser suficiente a existência do homem para explicar o próprio pertencimento como funcionamento da sensação, uma vez que produzem um pensamento em que as imagens do mundo não são mais que uma redução antropológica e psicológica. Nosso fracasso educacional, portanto, encontra-se na gênese da modernidade colonial. Qualquer indagação dos modos de existência sensível das imagens do pensamento5 reduz-se a um sensível “em si” e “para si”; sensível que carece de qualquer existência na configuração cooperativa das relações políticas das “energéticas do mundo”.

Apesar da separação moderna entre a epistemologia e a arquitetura energética do tecido da vida, um princípio fabulador atravessa o “fazer sentir” como um sedimento entre o Oriente e o Ocidente. Depois de Tito Livio, continuamos a repetir - através das fábulas de La Fontaine e dos romances de Kipling - o Panchatantra6 como o saber de nossas tradições cósmicas, vegetais, animais e minerais, e de seus métodos educativos. As fábulas expõem os problemas da biosfera como matéria viva, a arquitetura cooperativa dos seres vivos, as metamorfoses dos viventes nas quais nenhuma matéria viva mantém sua forma. Essas fábulas transformaram-se em um breviário celeste, florestal, animal e mineral que convive com as Metamorfosis de Ovídio. Por elas aprendemos que educar significa transformar-se, imitando a força vital de tudo aquilo, flexível, que sobrevive. Transformar-se e se pensar, construindo-se, na nossa época, do reconhecimento do corpo e dos corpos - é nesse processo que aprendemos que tanto o tecido vivente quanto o cérebro preservam testemunhos ancestrais recolhidos pelas fábulas. Nelas o corpo pensa segundo suas dobras, membranas e órgãos, em uma ontogênese flexível, anômala e inventiva. Essa emergência fundamental pode ser pensada como o fim da crítica negativa7 em favor das metamorfoses da crisálida8. Fazer sentir essas metamorfoses, bem como os pluralismos existenciais possíveis diante de uma era de catástrofes, mudanças ambientais e explosões tecnológicas sem fim: essa é a tarefa de um novo modo e de uma nova maneira das pedagogias, capazes de fazer com que algo de fato exista, resistindo cooperativamente aos fins de um mundo - um mundo que, exatamente por esse fim, é ainda e sempre um mundo porvir.

1.2 Pluralismo

Como poucos escritores e críticos, Sollers (2001) soube dramatizar, em Éloge de l’Infini, as encruzilhadas e os gestos de leitura de nosso tempo. Ou bem o intelectual é um fator de contaminação e mistura, ou bem um engenheiro de almas. Daí emergem todas as lógicas de ensino atuais, bem como os modos das pedagogias que nos constituem como matrizes perceptivas e afetivas. No momento presente do espaço público, o automatismo da técnica é uma forma de integração em direção a uma monotonia imóvel dominada pelos “novos pensadores” que operam a monstruosidade chamada “opinião pública”, nascida no século XVIII e constituída por gramáticas de poder e procedimentos retóricos projetados para gerar o senso comum através de uma moralidade articulada. A sociedade testemunha um tipo de intelectual que renuncia à promessa de aventura fora das disciplinas ou da tal “opinião pública”, colocando-se sob o princípio da utilidade em um dócil agrupamento de opiniões morais e sentidos comuns. Esses sentidos constituem o maior risco da educação: a falta de um conhecimento situado da linguagem como reserva de invenção a partir dos “dêiticos” (lá, isso, agora) e das “preposições” (sobre, sob, por, através/por meio de, entre, no interior de, em meio a, afora etc.). Entre dêiticos e preposições, a língua declina como princípio de experimentação dos corpos, base fundadora do que há milênios entendemos como educação, escrita em nossas membranas e cartografada em nossa pele.

O filósofo italiano Paolo Virno afirma, no ensaio L’idea di mondo. Intelleto pubblico e uso de la vita, que o pensamento do “uso” é um pensamento preposicional, pois apresenta uma realidade empírica do contato e uma contrafigura politeísta das misturas. A “mistura” é o primeiro passo para um pluralismo didático situado no “aqui” e “agora”, enquanto o “uso” é o nome comum das preposições (linguísticas) na medida em que elas expressam o funcionamento tátil e prático destacado de um conteúdo semântico autônomo, nele introduzindo a variação do vivo por declinação ou inflexão do “toque” sobre as coisas. Quem “toca” quando “usa” é, ao mesmo tempo, tocado pelo que toca. Em outras palavras, sempre se encontra em uma linguagem preposicional, no “entre” das coisas. A filosofia explorou pouco e insuficientemente o mundo das preposições. Ela se deteve no “sobre” da transcendência, no “sob” da substância, no “dentro” da imanência9. A contemporaneidade abordou o “com” das comunicações e do contrato (social), o “através ou por meio de” da tradução, o “por” dos trajetos e passagens, o “no interior de” dos modos parasitas, o “afora” do desapego. Filósofos contemporâneos como Simondon (2004) e Virno (2015), Serres (2012, 2015) e Deleuze (1993, 2018) detêm-se de diferentes maneiras no “entre” das interferências. As interferências são os intervalos ou limiares de velocidades e lentidões em que se experimentam as tensões de duração dos ritmos vitais que nos constituem.

De todas as preposições, o “entre” põe em jogo o uso da vida no limiar entre sujeito e objeto, entre singular e comum. Os diferentes modos do materialismo contemporâneo elaboram a relação entre vida e linguagem em um pensamento em que o uso possibilita um umbral de “apropriação” e “atrito” ou “roçamento”. Por apropriação e “roçamento”, o uso supõe um “desapego de si” quando nos dispomos em aderência a um ambiente com a pretensão de controlar as pulsões, uma vez que a existência em ato é igualmente familiar e estranha. O vivente que executa tarefas na vida e, nesse ato, torna a própria vida possível, realiza uma “experiência da experiência” que não o distingue totalmente de um animal linguístico inexperiente que avança pelo tato no sensível. “Ir ao toque” - tatear o que não se vê, avançar com o corpo, em detrimento do cérebro - é dito no senso comum para falar de um ser inexperiente, marcado pela inércia parcial e lançado na incerteza, investigando o caráter infantil do tempo perdido do jogo, que retorna transformado no tempo recuperado dos usos táteis vitais. Usos que comprometem desde sempre a mediação entre o saber e o prazer. Inexperiente é o animal linguístico que não cessa de usar a vida com familiaridade e distância, com momentos de coincidência e outros de divergência entre “o que faz” e o “uso que se dá a si”. Não há toque no uso sem que existam também técnica e instituição, porque o hábito que tece a vida não é desprovido de um esquema de repetições e diferenças ligado a uma gramática de poder. Gramática que temos que interpelar continuamente nos modos educativos e didáticos do “fazer sentir”, porque se converte em uma via de mão única para a sensação vital e para a imagem do pensamento do sintiendum, o “ser sentido”, em latim.

Ao tocar, é-se tocado “entre hábitos”, e no uso do toque nos conduzimos ao “nós”, um pronome entre o singular e o comum, entre o pré-individual e o individuado, no qual, entrelaçado a técnicas e regras, impõe-se o que Virno (2015) denomina como o “eu usamos” ou o “nós usa” - a figura retórica paradoxal do “singular comum (ou plural)” e do “comum (ou plural) singular”. O ato de usar e a coisa “usável” entrelaçam-se no “nós”, embora sempre existam, no limite, o “desuso” e o “abuso” que compõem o funcionamento vital e a formação sempre renovada de uma nova gramática do hábito. Somente as retóricas inventivas de figuras transformadoras servem aos espaços do sensível como elo entre os viventes. A vida consumida em seu excesso entre o paladar e o tato é um “bem” que se destrói no momento em que é “gozado”. Em outras palavras, o abuso da vida consome-se justamente onde a máxima potência atua. Essa precisão ética se sustenta em uma ontologia na qual “tocar” não é “ver”. Ver indica cálculo e conceito, distância e síntese projetiva. Tocar expressa conjunção e sensação, proximidade e síntese entre heterogêneos. Ao tocar, algo irrompe entre o singular e o comum, entre a ação que desliza pelas pontas dos dedos e a tradição distanciada de um reconhecimento desinteressado do olhar. Onde há uso por apropriação e “roçamento” existe limiar de misturas e, portanto, um paradoxo lógico-retórico entre sujeito e objeto. Paradoxo que podemos chamar de “lógica da sensação”.

A coisa ou o utensílio voltam-se, no uso, sobre o vivente, transformando seus modos tanto quanto o vão e irresponsável direito de propriedade. Nisso consiste o paradoxo do “singular comum” e do “comum singular”, cujo movimento afirma um “eu somos” ou um “nós sou” que está na base das trocas educativas e pedagógicas há milênios. “Por”, “com”, “em”, “entre” são “entrelugares” que marcam o uso da vida como sintiendum (simultaneidade de ideia e realidade empírica). Mostram o que pressiona e ao que se incumbe o “uso de si”, da própria existência sensível como pressuposto e pilar de todos os usos, como algo que está à mão e pelo qual se é tocado no exato momento em que se toca a existência. As fábulas são criadoras de figuras com “morais da história” precisas, nas quais se expõem os elos flexíveis da linguagem e se “joga” a vida que declina na matéria, entre dêiticos e preposições. O filósofo francês Michel Serres, em Petite Poucette, soube definir o problema de nossos tempos atuais como o da experimentação e orientação da sensação e do sentido diante do esmaecimento das referências, bem como do aumento das patologias da divisão produzidas, em nosso presente, pelos conhecimentos da automação técnica. As turbulências erráticas das circulações culturais propensas às misturas entre filosofia e literatura, bem como entre ciências sociais e artes, constituem intersecções mais próximas dos paradoxos do que das “utilidades”. Insiste aí uma lógica da sensação necessária para recuperar o corpo sensível na compressão-compreensão10 das imagens problemáticas do pensamento. As aprendizagens do presente giram em torno dessa flexibilidade poética “entre” o vivente “aqui” e “agora”. Educar por paradoxos e fábulas significa abrir-se ao instável, irresoluto e inesperado como modo de gestação de intensidades, vibrações e tensões. Esse modo está longe das gramáticas do poder que constroem sistemas, lógicas formais e gestões governamentais. Nos paradoxos e nas fábulas repousa um saber flexível dos corpos e dos umbrais que aprendem pela experimentação, pelas metamorfoses e pelos caminhos por ambos traçados.

Compreendemos em Les existences moindres, de Lapoujade (2017), que não há “Ser” sem “maneiras de ser”, e que o Ser não pode ser acessado a não ser pelas maneiras como ele “acontece”. A arte do Ser é a infinita variedade de suas maneiras de acontecer, ou de seus modos de existir11. Um modo é um gesto, assim como o é uma pedagogia. Cada existência procede de um gesto que instaura e compõe e que é imanente à própria existência de um corpo singular. O modo delimita uma potência de existir, enquanto a maneira revela suas formas, linhas e curvaturas singulares, as quais testemunharão uma arte de viver. Esses modos, quando atingem sua potência máxima, são a militância da exceção, a construção afirmativa de uma singularidade. Do encontro entre Nastassja Martin e o urso polar, na fronteira entre dois mundos, aprendemos no “agora” o “aqui” e o “entrelugar”. Algo nos modos e maneiras de aprender insiste, existe e reside aberto à cooperação, sem subestimar, em suas formas, os pluralismos da vida.

1.3 Crítica

Para abrir a cooperação sem subestimar os pluralismos da vida em seus modos é preciso transformar as maneiras da crítica em “encontros do aprender”. No “Fragmento teológico-político”, de La dialéctica en suspense. Fragmentos sobre historia, Benjamin (1996) discute criticamente a ordem do profano para apontar que este é o território tanto da felicidade quanto do declínio, do prazer e do perecer. O homem e a mulher individuais, como outros modos de vida, percorrem o caminho do sofrimento ou, como diria Samuel Beckett, vão “rumo ao pior”. Na eternidade da decadência da vida profana, a crítica não apenas desmonta o que existe, mas também integra uma restituição de caráter espiritual. Benjamin sustenta que para realizar essa “restituição” é preciso considerar o messiânico, ou o acontecimento de ruptura da continuidade que atravessa o fenecimento da natureza histórica e política. A teocracia e seus sacerdotes não têm nenhum sentido político para Benjamin, apenas religioso, e nessa direção reside o julgamento da dinâmica da história material12. Essas palavras de Benjamin ressoam como um eco distante em Deleuze (1993), quando o autor menciona, em Critique et clinique, que, ao romper com a tradição judaico-cristã, Espinosa dirige a crítica e forma quatro discípulos que seguem-na propagando e sofrendo as agruras de serem julgados por isso: Nietzsche, Lawrence, Kafka e Artaud. O filósofo francês explora duas genealogias do Ocidente, a de Kant e a de Espinosa, as quais afetaram os modos potenciais de leitura e experimentação das maneiras de ensinar da escrita e da crítica, bem como dos modos pedagógicos. Se por um lado ainda valorizamos a tradição kantiana, mesmo em vista do “tribunal subjetivo” que ela fabrica na produção do conhecimento, bem como dos problemas que o “imperativo categórico” arrasta na história, por outro, interessamo-nos mais pela construção espinosista e sua “crítica construtiva”, sustentada nos afetos e suas composições. Em que consiste essa crítica? Em primeiro lugar, em “fazer existir” qualquer novo modo de existência experimental e vital, atitude esta que se torna, para nós, uma condição de possibilidade da educação, tanto em seus modos como em suas maneiras didáticas. Deleuze afirma que nem sempre o julgamento produz a existência, mas, sim, impede a chegada “de qualquer novo modo de existir”. Por essa razão, o autor entende que o segredo é “fazer existir, não julgar”, de tal forma que, em detrimento do julgamento dos outros existentes, tenhamos apenas que “sentir se eles nos convêm ou não”, se nos dão força ou nos reduzem em nossa capacidade de agir expressiva e relacionalmente.

O problema colocado por Espinosa em Ética passa pelo amor ou pelo ódio, e não pelo julgamento; passa pelos afetos primeiros, que aumentam ou não nossa potência de ação, jamais por um tribunal de juízo que encerra existências e declara guerra aos atos de invenção. Lidamos, em qualquer ato de invenção, com “compostos de potência”, sendo a potência uma especificidade das forças como centro de mutação. O problema da potência não passa pelo justo ou injusto, mas pelo que resiste inventando-se e transformando-se. Isso nos obriga a ir além de uma crítica subjetiva dos produtos da “bela arte”, como em Kant, quem apenas confirma que “o belo” é o que se gosta universalmente e sem conceito - ou seja, o que se gosta é o senso comum e a moralidade de um tempo histórico que se tornou a espessura de uma cultura. Obriga-nos a ir além para promover, como em Espinosa, a indagação na descrição singular de um processo pelo qual uma força se enriquece ao se somar a um composto de potência. A crítica de Espinosa difere da de Kant, uma vez que se trata de libertar um composto de potência oprimido que transformaria todo ato de invenção em uma experimentação que resiste, sobretudo, à morte material e simbólica, e o faz resistindo em nome de uma vida ofendida. Em que se sustenta a crítica, então, nessa tradição? Nietzsche soube ver no julgamento e em sua doutrina uma dívida infinita e impagável com a divindade. Lawrence descreve o cristianismo como o único destino do poder de julgar. Kafka considera os efeitos da dívida infinita na aparente absolvição e no adiamento ilimitado da sentença. Artaud declara guerra ao julgamento de Deus. Deleuze (1993) confirma que, para todos eles, a lógica do julgamento se confunde com a psicologia do sacerdote, de querer julgar e “ter que” julgar. Nietzsche acredita em uma justiça que liberta o corpo, Lawrence denuncia a pretensão de julgar a vida em nome de valores superiores e Kafka apresenta uma luta contínua contra uma justiça legitimada pelo confinamento, enquanto Artaud perturba o julgamento através do sistema dos afetos e da crueldade. Trata-se, para todos eles, de liberar a vida a partir do corpo e os compostos de potência expressiva que dele emergem. O amor e o ódio seriam os únicos centros de afetos; tudo se tornaria um problema de composição e afetação, não de julgamento. A resistência começa aí.

1.4 Resistência

Toda a questão da técnica, das “tecnologias de si” à “universalização do conhecimento técnico como conquista do mundo”, gira em torno da longa história da colonização dos corpos. A engenharia social reúne como prática a fabricação dos corpos no “plano” do Ocidente-Democrata-Capitalista-Colonial. Esse plano foi sustentado por uma tecnificação como essência da linguagem e do político, até se tornar um realismo lógico que funciona executando-se no automatismo contemporâneo. “Plano” não é mera retórica, mas uma forma de intervir na história traçando a esteira de uma doutrina e um álibi simultâneo, através de uma gramática articulada do poder que provém da mesma engenharia social especializada há muito em “humanismos abstratos”. Diante dessa engenharia social, só parece possível um ato de resistência crítico e inventivo que abra espaço para uma educação flexível e afetada por paradoxos lógicos que obriguem a pensar, e por fabulações de metamorfoses poéticas que forcem a sentir. A noção de resistência é complexa e, como todos os conceitos, possui componentes diversos: preferir não fazer algo, preferir fazer algo, libertar uma vida ofendida, desmantelar analítica e produtivamente o dispositivo de realização de algo, fabricar um armário vazio para tornar possíveis todas as variações que advenham da sensação e do sentido. A resistência não acontece sem uma oscilação entre o “preferir não fazer” e o “preferir fazer” algo que esvazie o sentido comum e produza uma liberação que fabrique um modo possível e porvir. O que se esvazia é a imagem dogmática do pensamento no limite do possível. O que se libera é a imagem problemática do pensamento no limiar de uma vida humilhada, por meio da precariedade esquecida de um confim. Conhecemos bem a aliança entre o ato de produção poética e a resistência. Quem produz poéticas abre-se ao acontecimento porque acredita no “hay-se-dá” 13, e aí operam tanto a sensação quanto o sentido. Não apenas se opõe ao poder e à separação em qualquer de suas formas vitais e empírico-subjetivas, mas também tenta libertar algo aprisionado ou ofendido, algo negado ou velado nas práticas vitais. Liberar uma potência de vida ofendida pela dor supõe trazer à presença histórica um “povo que falta”, e não apenas uma rebelião da imagem do pensamento sem ancoragem ética e política.

No ato de produção poética provocado pelo “hay-se-dá” da ética e da política, conectam-se o acontecimento, o sintoma e a resistência, atravessando a imagem contemporânea do pensamento. A potência em jogo, nesse ato poético, contém “em si” uma íntima e irredutível resistência, porque atua como crítica instantânea contra o impulso cego do “fazer”, também porque abre outros ritmos possíveis de “afetos” e “perceptos” no mundo dos “agenciamentos”. Só o acontecimento que irrompe na história e o sintoma como dinâmica das pulsações estruturais permite estabelecer “o poder de fazer” presente no “poder de não fazer”, a realização do abster-se de algo quando se aspira a uma “democracia extrema” que parece o único modo de liberar as vidas ofendidas. O ato de produção poética dos paradoxos e das fábulas é o que nos confronta a pensar nos intervalos e umbrais como forma de “cheirar” e “farejar” o que emerge do ar circundante. Agora entendemos o encontro entre “reinos” que se dá sempre em um ponto único e específico das trajetórias de cada movimento singular. Nastassja Martin aos poucos conhecia o território dos Even, que desde sempre conviveram com os ursos na fronteira entre mundos, no “aqui” de um território e no “entrelugar” de contato entre “reinos”. O animal territorial que somos “cheira” e “fareja” os rastros e as pegadas como signos que indicam os excrementos dos animais perseguidos, logo as marcas de seu caminho e, finalmente, os astros que marcam sua jornada. A fronteira entre dois mundos foi aberta, e aprendemos no “agora”, no “aqui” e no “entrelugar”. O urso desfigurou o rosto da mulher e arrancou parte de seu maxilar inferior. A mulher feriu o urso com uma piqueta de gelo. Em um instante, mito e história se cruzaram. Uma vida ferida tornou-se nosso conhecimento mais preciso a respeito dos limiares, dos umbrais “entre mundos”, como forma de compreender uma “história natural” ou uma “natureza histórica”. Somente o acontecimento que irrompe na história e o sintoma como dinâmica das pulsações estruturais dotam-nos de ensinamento, a partir de um “agenciamento” ou relação incompreensíveis, porém possíveis, entre reinos de animais territoriais.

Fora da normatividade vital, a anomalia é definida como uma característica da variação individual que revela a indiscernibilidade dos umbrais, ou seja, a primazia epistemológica “entre reinos” em um ponto de contato. A variação imanente e concreta no encontro entre a antropóloga e o urso é uma exceção singular que pode ser fabulada por “sobrevivência”. Nada “anormal” aconteceu, mas uma relação entre desiguais foi produzida. E qualquer desigualdade é grosseira e irregular, inédita e original. O encontro narrado é um caso de diferenciação única em que a mescla entre heterogêneos designa o próprio desigual. O anômalo abre um limiar que nos permite perceber afetações de posição “em relação” a uma multiplicidade de relações. O urso é tão anômalo quanto a antropóloga no momento do encontro, ambos são estranhos entre si porque carecem de regras e expressam o desigual - abrindo a possibilidade da metamorfose no limiar entre dois animais sobreviventes e feridos. O resultado é uma fábula ainda mais próxima e singular, que expressa o ilusório das espécies e a abertura “entre reinos”. As espécies sempre escondem histórias de horror no encontro com outras, mas sobretudo no contato consigo mesmas.

2 SABEDORIA DO NUNCA

2.1 Testemunho

A noite que foi assolada pelo terror só se resolve com o testemunho da dor. Talvez esse seja o problema medular do século que nos precedeu, e hoje resta a tarefa de fazer aparecerem os restos devastados desse sujeito-população, misturados à nossa experiência sensível. Roberto Echavarren insiste nesse problema crucial em Autocracy and testimony, livro ainda inédito no qual ele insiste em entrevistar alguns sobreviventes “de nossos tempos” e reconstruir suas memórias. O poeta e historiador transforma em ato a escrita, expondo-se ao risco necessário de quem entende a urgência de invocar um século herdado. O testemunho é, para o nosso tempo, o vórtice de uma verdade trágica sempre pendente do “humanismo” antropológico. Constitui algo mais que uma presença colocada como um “olho que viu o invisível” ou como um “ouvido que escutou um murmúrio ininteligível”. Expõe a violência como presença sobre um corpo; corpo que aparece para perfurar qualquer visível e qualquer audível dos dispositivos de saber e de poder. O poder das gramáticas é essa “fera”, esse “urso” que as figuras de dor do testemunho podem evocar. Como romper a moldura da ferida, o terror e a repetição em que cada gesto executado já está narrado de antemão? Como desarmar o peso opaco e assustador de uma educação que fecha todas as aberturas e de pedagogias em que não há vidas inaugurais? Trata-se de evocar o vórtice do abismo chamado “humanismo” e suas inseparáveis “representações” do terror, para melhor compreender a imagem dogmática do pensamento humano diante da imagem problemática da vida que golpeia suas fronteiras. Por trás desse livro insiste um diário pessoal de Echavarren (2011) - Las noches rusas. Materia y memoria -, contendo entrevistas com sobreviventes do cerco de Leningrado e combatentes da Segunda Guerra Mundial; também uma perspectiva crítica do autor sobre o totalitarismo - El Estado de derecho. Foucault frente a Marx y el marxismo (ECHAVARREN, 2020). O poeta sabe evocar os rasgos da carne, enquanto o historiador revela as tramas do dispositivo letal; rasgos essenciais para encenar a ausência na história, traços de uma práxis que imprime sangue à memória comum. Não há modos de ensino nem maneiras (ou práticas) pedagógicas sem que se traga à tona a memória da ferida que nos constitui, para enfrentá-la, conjurá-la e deslocá-la na esteira dos dispositivos de saber e de poder dos imperativos gramaticais que nos configuram como “matrizes semióticas perceptivas e afetivas”. O gesto comum do vivente humano tem sido um princípio de depredação, extração e “desocultamento” da terra e de tudo quanto nos é possível extrair dela. Seu telos final é o esgotamento de qualquer presença existente. Restam apenas os corpos feridos das testemunhas, essenciais para compreender a dor e o horror que nos configuram.

“Testemunha” não é apenas o sujeito da experiência individual, senão aquele que revela o comum e o irresoluto. O significado de “atestar” ou do “falar da testemunha” provém de um verbo transitivo próximo a uma ferida, o qual a ação promete preencher até certo ponto14. No íntimo desse verbo, uma palavra ainda mais velha (testa) aponta a dureza que abriga, em um espaço a ser eternamente preenchido, as experiências comuns de horror e dor. Perguntamo-nos como “fazer sentir” em nosso século, mesmo sob os efeitos de uma ferida sempre aberta para a memória comum: a ferida de todos os regimes totalitários e coloniais que pesam sobre nossos modos de “educar” e de “transmitir”, sobre nossas pedagogias. Dir-se-á que é preciso tornar expressivas as feridas que nos atravessam. Para tanto, é necessário declarar um pluralismo existencial, uma transformação dos modos e maneiras de fazer sentir, bem como propor-se a recorrer aos testemunhos da dor que nos levam do século que nos precedeu às nossas próprias grafias vitais do presente. “Testemunha” é o nome de uma ferida sempre pendente e inconclusa que requer memória e imaginação.

Echavarren (2021), no poema “O tempo passado pela água” 15, escreve:

O passado tem mais consistência, [...] é muito mais estável, duro, varia pouco, enquanto o presente não tem a menor constância e escorrega das nossas mãos como fina areia. [...] Porque a imagem é outra coisa que um simples corte feito no mundo dos aspectos visíveis. É um rastro, uma pegada, um traço visual do tempo que deseja tocar, mas também de outros tempos suplementares - fatalmente anacrônicos e heterogêneos - que não consegue, como arte da memória, reunir. [...] É uma vibração, um ressoar, um olhar extraído da superabundância que se faz por fragmentos, se desloca, produzindo não uma plena luz, mas um horizonte feito puramente de lampejos. Em obras feitas de luminescência, curiosamente essa dimensão ocorre na terceira pessoa. [...] É no espaço perceptivo onde se encontra a lâmina que desliza sobre nossa fantasia e engole o vazio. [...] O afeto não precisa da imagem.

Diz-se, do mundo antigo ao moderno, de Lucrécio a Montaigne, que memória e imaginação são modos de “percepção de substituição”. Elas denotam uma irradiação da percepção do tempo e do espaço para além do terreno da própria realidade, evocando certa presença do que está ausente, e foram chamadas por um nome fatal: “poderes enganosos” da percepção. O enganoso reside, nesse caso, no fato de que recordações e imaginações podem confundir-se entre si. Assim como a memória beira o erro de encontrar o que procura de maneira sagaz e infalível; de mesma forma a imaginação afunda, incapaz de evocar de modo exato o imaginado para se perder em uma imagem fugidia e sem contornos. A memória parece ser um conhecimento instintivo, uma espécie de “saber da diferença do real como realidade singular”. A imaginação é um esforço também instintivo, uma busca do singular para dotar o imaginado de uma quase presença, resumindo-se apenas a uma impressão do outro, a qual não alcança nenhuma captura definitiva. À relativa segurança da memória se opõe a incerteza constitutiva da imaginação. Se a primeira é mais precisa que a segunda, é porque a ordem do tempo é mais propícia que a ordem do espaço para uma quase percepção do que está ausente. A imaginação foi sempre precisada pelo que é capaz de conservar como imagem dos afetos para o pensamento sensível.

2.2 Futuro anterior

A memória é devedora das palavras e das imagens, principalmente no naufrágio da razão. Por essa razão, o testemunho é a promessa incomensurável de que não seremos expulsos de nossas palavras, de nossos vocábulos, e de que a ansiedade de um tempo não devorará o que sobrou da sanidade de uma época. Essa é uma ideia comum às testemunhas e central às páginas de Los náufragos, de Améry (1935), quem antecipa a própria vida em um século de horror. Améry é o pseudônimo de Hans Mayer, que escapou do campo de Gurs, na Alemanha nazista, e logo depois também resistiu em Auschwitz. Embora frágil e quase sem imaginação, em seu testemunho está a única memória que se opõe à perda de sentido: nosso horror era nossa lucidez, escreve Antelme (1957) em L’espèce humaine. Levi (1958, 1982, 1989), nas páginas de Se questo è un uomo, Se non ora, quando? e I sommersi e i salvati, escolhe uma figura específica para pensar a expressão concentrada e purificada de todos os exílios “do vivo”. Ele escreve:

Isso é o inferno. Hoje, em nosso tempo, o inferno deve ser assim, uma sala grande e vazia e a gente, cansado, tendo de ficar em pé, e uma torneira pingando e a água que não nos é permitida beber, e esperamos algo realmente terrível e nada acontece, e segue não acontecendo nada. Como podemos pensar? Já não se pode pensar, é como se já estivéssemos mortos. Alguns sentam-se no chão. O tempo passa gota a gota16.

Todos os efeitos da ilustração moderna e da razão instrumental que levam às fábricas da morte em série giram sobre essa frase, com o projeto moderno inacabado que permanece suspenso nesse umbral. Aprendemos o inverso do imperativo categórico: quando o outro não é percebido, o simbólico desaparece. Bataille (1970) observa, em Le problème de l’Etat e La structure psychologic du fascisme, que os piores fascistas nunca disseram “eu escolhi”, mas sim “eu obedeci”. Todo fascista sempre invoca uma não eleição. Goering, Himmler e Eichmann sempre se apresentaram como funcionários mesquinhos, pequenos burocratas. Sabemos que o fascismo invoca a ordem estabelecida, nunca uma eleição. A função dos campos de extermínio como fenômenos da modernidade é elevar ao mal político pelo aniquilamento da presença humana, ou por sua conversão em “coisa”. Isso é feito ao apresentar-se o real como incrível, afundando-nos na dissolução da memória. Essa condição é radicalizada ao constatarmos: aqueles que nos aniquilam afirmam ser apenas “funcionários sem pensamento próprio, que cumprem ordens sob o imperativo categórico”. A experiência definitivamente se torna trivial, como sugere Simone Weil, ou banal, como aponta Hannah Arendt. A degradação e o esquecimento são uma queda irremediável da linguagem em direção ao “mal”. Enquanto Arendt (1964), em Eichmann in Jerusalem. A report on the banality of evil, acredita que a política pode deter as forças da morte como acontece com os espíritos liberais, a trágica Weil (1947) investiga, em La pensateur et la grâce, que não há como deter o mal porque ele se encontra entramado na maquinaria da guerra sem fim e nos dispositivos que nos lançam à monotonia. O mal aparece quando o imaginário já não pode ser distinguido do simbólico, quando o dizer poético se perde na brutalidade “apenas” formal da linguagem. Ali não há como desobedecer à voz do imperativo categórico do poder. Talvez possamos, isso sim, tornar visíveis duas das faces do dispositivo instrumental da técnica moderna, que se mostram claramente no fascismo e no momento de doloroso esplendor de três crianças que dele padeceram.

Esse ato de insubordinação corresponde a tornar visíveis as bordas da linguagem e as máscaras da razão da técnica moderna, para que possamos percorrer a banalidade de Adolf Eichmann quando se recusa a escolher e repete, como único modo de existência possível, o imperativo categórico gramatical da obediência; também para que possamos contrastar essa banalidade à força da palavra de Steinberg (1996), última testemunha dos campos de concentração alemães, para quem a sobrevivência ao estado de exceção tinha como única prerrogativa a recuperação do vivente, do lugar de “coisa entre as coisas”, sem memória, afetos e sensações. Duas faces da mesma moeda que levaram o humanismo à experiência do terror pelo estado de exceção. Enfrentamos os rostos do senhor cinzento dos campos de tortura sem fim e do sobrevivente que no inferno se envolve em tons de cinza para se tornar homólogo ao espaço do terror, assim podendo resistir. Procuremos, então, tornar visíveis as bordas da vida em um momento em que o próprio simbólico está em risco. Quem poderia esquecer os carvões do esloveno Mušič (2015, p. 25), o resistente nascido em Görz? Quem poderia esquecer seus textos, traçados como desenhos entre 1944 e 1945, em Dachau?

Vivíamos em um mundo afastado de tudo o que se poderia imaginar. Um mundo absurdo, alucinante e irreal. Em outro planeta, sem dúvida. Com regras estranhas. Uma ordem precisa e cruel, levada ao limite da credibilidade. Quem tivesse o menor nível de poder poderia esmagá-lo como a um verme. Aceitávamos essa realidade como se não houvesse outra. [...] Quanta elegância trágica nesses corpos frágeis!

No limiar entre o desenho e a escrita, o cérebro embotado tenta seu último suspiro para compreender a trágica e terrível verdade: aquela que Mušič afirma ter tido de tocar com suas próprias mãos naquele lugar onde a loucura e a morte se tornavam realidade, num estado de dolorosa intensidade. O campo de extermínio é a vítima, como dor indescritível. Ele é a negação real do real. E o que ali acontece é um mundo de “desfazeres”, um mundo residual. O que pode surgir dali? Um nascimento sem desejo, um renascimento como neutralidade insuportável, uma subtração total do sagrado. E é por isso que se diz do campo de extermínio como aquele que exibe a completa ausência de sentido e fundamento. O espaço de uma liberdade coagulada, e coagulada na perversidade. Quem sobrevive só necessita de silêncio para uma nova visão fortalecida do abismo. Em uma passagem inesquecível de seus Diarios, Mušič diz que uma borboleta se agarra a seu lápis e não quer ir embora. E uma borboleta nos recorda outra, no fundo de um imenso naufrágio.

2.3 A menina borboleta

Um menino italiano de nove anos chamado Matías deslumbrou-me com uma declaração aos colegas em uma discussão em sala de aula, quando o assunto era o ato de criação ou invenção. Diante da pergunta “o que é arte”, formulada pela pedagoga que coordenava a conversa, o menino disse: “a arte é você, e não é você. As imagens que produzi são parte de você e são mais que você”, uma afirmação perturbadora e lúcida que nos confronta no porvir das imagens que fabricamos e que nos ultrapassam. Esse depoimento está inscrito sob o segredo do desenho de outra menina, uma menina checoslovaca de 11 anos, Marika Friedemanova, que deixou uma série de desenhos antes de entrar em uma câmara de gás. Desenhos reunidos a uma porção de textos sob o título Yo no veré más otra mariposa, livro inspirado no poema La Mariposa, do poeta tchecoslovaco Pavel Friedman, escrito antes de sua morte, aos 20 anos, em 4 de junho de 1942, no campo de concentração de Theresientadt. Os desenhos de Marika guardam o segredo da imaginação diante do real que se avizinha. As palavras de Pavel preservam a gênese do simbólico que penetra no subsolo de todas as terras da realidade e de todos os céus da imaginação, porque apenas as catástrofes próprias à ordem do simbólico dão conta dos problemas do real e do imaginário. As palavras do poeta, como os desenhos da garota, têm um valor fundamental, cortando como um raio a vida que nos toca. Ele escreve:

A última, precisamente a última, / Era de um amarelo brilhante que ainda me deslumbra. / Era como se o sol não parasse de chorar sobre as pedras... / Era tão amarela, e voava ligeira para cima. / Certamente queria se despedir do mundo, com um beijo. / Vivo trancado neste gueto há sete semanas, / ao lado da minha gente, e as flores me chamam, / e o galho branco da castanheira do pátio. / Mas não vi mais borboletas. / Essa foi a última que vi. / Aqui, no gueto, as borboletas não sabem, não podem mais voar. / A última borboleta…17

O real tende ao confinamento da unificação e se apresenta como uma irrupção sem saída. É semelhante ao fechamento do gueto e à morte inevitável, embora as flores e o galho branco da castanheira desdobrem-se no imaginário, exercendo uma ação de atração em um instante de realidade que ainda perdura. A última borboleta é, em verdade, a reserva do simbólico, ao mesmo tempo irreal e inimaginável. Ela é irredutível à ordem do real e do imaginário, toca a gênese da formação do todo e a variação de suas partes. É a mais recente invenção de um mundo anterior ao gueto. A última borboleta não é uma figura da imaginação no gueto, contrária à castanheira do pátio. Não é uma borboleta qualquer. Trata-se da última borboleta, a última, que se confunde com a própria origem da linguagem. O simbólico, como a gênese em si mesmo, é de um amarelo brilhante que deslumbra. Ao nos dispormos ante o tempo de qualquer imagem, encontramo-nos diante de uma pegada, de uma marca, de um “afora” do gueto, de um degrau e de uma passagem que nos leva ao exterior do dispositivo de confinamento. Leva-nos ao princípio do simbólico como marca constitutiva de nós mesmos e do além de nós. É o brilho que deslumbra, é o amarelo brilhante. Ao final, são as marcas que ficam, são elas o que mais resiste ao tempo. A essas marcas chamamos “traços materiais” ou “traços da memória” e, em ambos os casos, elas duram enquanto durar o corpo ou o material que as sustenta, enquanto durar o “amarelo brilhante” que ainda deslumbra. É a partir dessa duração e desse deslumbre que, talvez, compreendamos melhor por que um conceito, como ideia, equivale à intensidade de uma cor. É esse “tocar o que deslumbra” o que nos faz sentir.

2.4 O filho da morte

Uma imagem irredutível interroga-me. É a presença de um olhar sem palavras, um olhar negro como uma lâmina de aço, que encerra os poucos sons inarticulados que saem a intervalos de uma boca. De que lugar remoto viria a força desse olhar? Quem teria o terrível privilégio de ver, na escuridão de um par de olhos, a natureza incurável da ofensa à vida? Apenas um olhar de dor insondável vindo do próprio nervo de um horror sem nome teria a força silenciosa contra qualquer palavra insubstancial. Nas garras do “Grande Acampamento de Auschwitz”, o nome de uma criança inquieta os vivos em um espetáculo sombrio. Seu nome é Hurbinek. É o nome dos restos de um vivente nas fronteiras do humano. É o nome de um menino de três anos que nasceu, viveu e morreu entre o cinza da neve e do céu. Na ausência de um nome e uma língua maternos, os prisioneiros libertados pelos russos dotaram-no dessa investidura humana com esse nome, vindo de seus próprios gemidos e balbucios. Hurbinek é o nome de um rosnado, de um grito silenciado. É o menino que passou entre os vivos e os mortos sem nunca chegar a ser totalmente humano. Sofreu a urgência do limiar, do umbral irreparável que moldou sua curta vida perante a fonte do mal inesgotável que destrói o corpo e reduz a pó os afetados. Mal que os apaga e os torna abjetos, embora dotados de um olhar equivalente ao ambiente brutal em que vivem. Olhar do real sem nenhuma imaginação, efeito da destruição do simbólico em si mesmo.

Primo Levi é a testemunha serena do horror dos campos de extermínio. Embora forçado a pular por sobre as escadas de uma dívida sempre pendente para com aqueles que não sobreviveram, ele retorna repetidamente à figura de Hurbinek. Volta-se sobre o “filho da morte”, que tem um olhar mais negro que a noite. Ele estava paralisado em seus membros inferiores e suas pernas atrofiadas, finas como fios. Contudo, os olhos, perdidos no que lhe restou do rosto, golpeavam com força os vivos. Olhos cheios de perguntas, de afirmações, do desejo de serem desacorrentados, de romperem a tumba de seu silêncio. Esses olhos em busca de palavras tocam violentamente, desmontam a própria distância do ver, essa separação da visão medida e mensurável. Tocar com aqueles olhos impedia que a distância de seu olhar lhe devolvesse o que ela própria, com a ausência de palavras, havia dele retirado. Se a visão se exerce invisivelmente em uma pausa na qual tudo se retém, aquele olhar só poderia funcionar em função do que se nos escapa. Em Hurbinek, insiste o intervalo entre o gesto do corpo e o silêncio da palavra, que para a humanidade significa a privação no instante da imagem impossível. Na descrição de Levi (1958), a criança parece conseguir tocar a relação imediata com um mundo sem palavras, um mundo do real desnudado, sem cobertura da proteção imaginária e da própria gênese da linguagem. Aquele que viveu e morreu tentando falar conseguiu “tocar olhando” para o corpo de alguns homens de moral abatida. Essa moral, como expressão severa de seu olhar, não deixou de interpelar esses homens em seu abismo. Hurbinek, o filho sem palavras da morte, possuía um olhar selvagem e humano, tão impessoal quanto a morte e tão humano quanto um naufrágio que desafiou a humanidade desde um silêncio forçado.

Quem poderia enfrentar a dor desse menino? Quem poderia chegar perto de seus olhos cheios de horror? Outro menino chamado Henek, com cerca de 15 anos, um jovem húngaro robusto que sobrevivera ao inferno e cuidava, limpava e aconchegava o mais novo. Henek tentou transferir sua língua para Hurbinek, como um presente que lhe devolveria traços de humanidade diante da desolação da barbárie. O adolescente pensou ter ouvido uma palavra, a qual nunca desvelaremos. Em uma de suas tentativas de vestir o pequeno, ele alucina, ou talvez de fato ouça uma tímida pronúncia. Palavra da origem do simbólico que não pertence a língua nenhuma, mas indica a única possibilidade de o menino entrar no mundo dos homens. Para além da alucinação de Henek, instante de uma só chama na noite gelada e sem “afora”, o triunfo do sopro da vida se extingue. A vida do espírito como palavra não chega a Hurbinek, que morre no sopro de uma fala impossível. Levi o sabe diante da Górgona: “ninguém” é o verdadeiro nome daquele menino que instalou uma pressão impessoal e humana por seu olhar. Auschwitz, a cidadela infernal que o viu nascer e morrer nos primeiros dias de março de 1945, deixou passar o intervalo de um olhar negro sem palavras. O olhar do dispositivo da morte em série, em que o simbólico se extingue. Sob essa imagem de esvaziamento, aonde a linguagem não chega para nos transmitir a ilusão de que as coisas podem ser vistas por todos os lugares, Levi nos mostra que, na ausência da fala, a visão que toca e corta desde a morte não está livre de suas limitações. A violência do olhar de Hurbinek, que guardamos como um pensamento vital dentro do peito, conseguiu tocar os vivos sem palavras, além de manter sua saudação aos mortos. Olhar desesperado para os vivos, olhar que buscou, no balbuciar do gesto de uma única e ausente palavra, o túmulo de seu silêncio como o segredo da noite, e a lápide vazia para a pergunta sem fim dos vivos.

2.5 O menino que caminha sobre as águas

Um relato me deixa sem fôlego. Uma experiência faz minha pele arrepiar. Entrei nas salas de tortura da Escola de Mecânica da Marinha, antiga ESMA18, com os arquitetos que colaboraram com as organizações da Memória da ditadura. O local estava vazio. E fui guiado por uma pergunta: onde estava Pablo Miguez? Seu nome, o do menino torturado e desaparecido aos 14 anos, caminha nesta terra arrasada sintetizando todas as violências, os “conglomerados de horror” dos centros de detenção clandestinos argentinos. Eu percorria o espaço antes de sua abertura ao público, tomado por uma vertigem que transformou meu corpo. Temi não ser digno daqueles passos. Meu corpo saltou sobre um mesmo lugar e compreendeu, como em uma obscura conformidade, a necessária defesa do simbólico. Algo estava me chamando e esperando por mim. Experimentei a morte como estando em uma relação extrema com meu corpo. Todas as violências levavam o nome de uma única violência. Somente havia visto uma foto “três por quatro” do rapaz. Mais tarde, Lila Pastoriza19, sobrevivente do horror, revelou sua história. Sob o letal Plano Condor, o fato é que “ninguém sabia o que fazer com o menino”. Foi torturado na frente de sua mãe e, claro, sem qualquer justificação, só se pode dizer: “já tinha visto demais” 20. Pablito, como era chamado nos campos, está perdido na névoa do silêncio. Nunca se soube se desapareceu em Valentín Alsina21 ou nos “voos da morte”. 22. Se chamássemos dor a essas fontes que causam o sofrimento e se reservássemos esse termo para aquilo que vem da negação patológica dessa mesma dor e encobre o mundo com uma ilusão de felicidade total, como se suas causas pudessem ser abolidas, talvez concluíssemos que a diminuição do sofrimento implicaria um duelo, o da felicidade; o duelo de um corpo eterno e sem mácula, o de uma natureza pródiga, sob um sistema de relações sociais harmonioso e completamente racionalizado. No entanto, o tempo presente parece parado diante da dor porque ela se torna presente no instante, não se permitindo imaginar futuros ou relembrar passados. A dor construída no presente é sempre física, dói no corpo como um talho que fere a unidade imaginária que somos, e a faz explodir em fragmentos na própria gênese do simbólico. Não há palavra ou imagem que possa recobrir esse “rasgo de carne” que a dor abre no corpo. Diante da impossibilidade de o simbólico fazer seu trabalho de luto, o imaginário multiplica desproporcionalmente seus véus. “Dor” é o nome de pegadas, cicatrizes, rastros e restos através dos quais a possibilidade de um mundo aparece ou desaparece.

A escultura Reconstrucción del retrato de Pablo Míguez23 abre o século XXI em nossas costas fluviais de “barro e Prata” 24, como memória dos “voos da morte” do naufrágio argentino. Ao olharmos para ela, que retrata a figura do garoto desaparecido, atualiza-se na memória outro nome, o do menino que desapareceu sem ter aprendido qualquer língua. “A vergonha de ser homem” é o outro nome para “a banalidade do mal”. É a especificidade absoluta da dor que singulariza. Quando ela se torna inabitável, cercam-nos e insistem as linguagens intoleráveis do sofrimento, como miseráveis compensações que, por sua presença velada, impedem qualquer pergunta em carne viva, à margem até mesmo do sujeito e de sua própria expulsão. O sofrimento produz um sentido despossuído, fechando-se na primeira pessoa, justamente ali onde a dor abre o corpo ao imensurável, porque esquecimento, e o faz referindo-se apenas ao vórtice da ferida. Entre o mirante desde onde se veem a escultura de Fontes e seu dorso, naqueles 70 metros que percorrem a distância entre o retrato impossível e o olhar, as cinzas das “Mães da Praça de Maio” encontraram seu lugar, ampliando o sentido da obra através da ação da comunidade, ao mesmo tempo que desfazendo a linguagem da arte através de um chamado ético e político. Quiséramos a transformação do lugar por uma paixão comunitária - talvez essa paixão pudesse superar as práticas de ódio. A negatividade que a dor inaugura funda um lugar e uma linguagem porque toca o secreto do corpo e seu sem-sentido, apenas assim fortalecendo-o e transformando em vínculo comunitário. Diante da dor, não se trata de identificação, tampouco de compaixão ou empatia. Trata-se de “fazer em comum”, além de qualquer compreensão última e externa, ou até mesmo contra toda lógica de comunicação dominante. É desde a solidão absoluta e desde o seio dessa comunidade impossível que a dor leva à produção de um mundo, mas somente depois da morte de toda afirmação de sentido como transcendência, porque sua viabilidade histórica já foi, então, mutilada. É por isso que o menor traço de dor sem sentido desmente qualquer reivindicação por uma filosofia da identidade.

3 CERTEZA DO AGORA

Apenas nos resta, para fazer sentir, a grafia da instabilidade. Em uma carta a Willhem Fliess, datada de 6 de dezembro de 1896, Freud diz que os mecanismos psíquicos são gerados por superposições de capas, e que ao longo do tempo os “traços de memória” se reordenam segundo novas preocupações e inscrições. O psicanalista comenta que o essencialmente novo em sua teoria seria a tese de que a memória é múltipla, não existindo de maneira simples, funcionando por registros em variedades de signos. Assim, as imagens da memória não são reflexos invariáveis da experiência, mas produto de uma construção complexa do aparelho psíquico. Esses vestígios, os traços de memória, estão submetidos a transformações incessantes pelas condições sociais e políticas do meio. As constelações e relações da experiência coletiva mudam constantemente. Podemos dizer que o aparelho psíquico segue um complexo movimento temporal por meio do qual o posterior constitui também o anterior. Essa tese de Freud é equivalente à defendida por Warburg (2010) em Atlas Mnemosyne, a qual marcou a intuição e o rumo de nossos contemporâneos. Os corpos sem luto dessas crianças e, com eles, os de toda a humanidade e suas “razões” deixaram entrelaçadas em mim uma “imagem-rastro” e uma “imagem-tumba”, como últimos recursos do simbólico. Pessoa (2010, p. 58) escreve, em Mensagem: “Quem é que ousou entrar / Nas minhas cavernas que não desvendo / Nos meus tetos negros do fim do mundo? [...] Quem vem poder o que só eu posso / eu que vivo onde nunca ninguém me visse?”. “Eu me despi e os levo para o fim do mundo”: só se poderia dizer, com serenidade e rigor, que a realidade suficiente é, ao mesmo tempo e sem qualquer distinção, de natureza dolorosa e trágica. E são esses princípios de crueldade da realidade - tão idiota quanto todo o real - que compõem qualquer historicidade, física e psíquica. Acredito, como Lucrécio, Espinosa e Nietzsche, que a crueldade da realidade exemplifica-se de forma singular e significativa na crueldade da memória e da imaginação, das alucinações e dos fantasmas. Em primeiro lugar, a crueldade é experimentada no corpo da ferida do desamor. E só se sobrevive à beira do abandono como inflexão de um lugar. O ego é um lugar e foi feito um lugar. Ele é a fratura do corpo existente.

Alguns vestígios certamente permanecem dessas histórias trágicas. Enquanto acaricio o corpo de minha mãe, portadora da Doença de Alzheimer, perco-me em pensamentos. Alguns nascem em “berços de ouro” e desejados, outros em “berços emprestados” e indesejados. Outros, e não são menores, vêm a este mundo por pais desconhecidos e por abandono. Não sou um rejeitado, mas um quase-não-nascido da inflexão de um lugar. O que resta a todos, sem distinção, é fazer-se uma vida. Mas essas vidas não têm a mesma gestação nem o mesmo destino. A raiva, o ódio, provêm de um passado conhecido ou desconhecido de humilhação, de uma mesma ferida que permanece aberta. São poucos os que vivem sem serem vítimas de rejeição ou abandono, e conseguem fazer desses restos uma vida possível, que faça sentir a outras vidas um caminho de liberdade através da expressão. Estes nos ensinam a viver o tempo que resta. São os que carregam as fábulas de uma metamorfose sensível e flexível. Alguns têm pouco crédito em sua conduta, outros se declaram criminosos. Em ambos os casos, há uma épica e uma lírica que buscam sua expressão, como na vida dos artistas.

O olhar sombrio da radicalidade da infância é um começo de vida que pode transformar alguns em artistas, sob a destreza dos desesperados. Artistas do abandono que negaram o necessário e afirmaram o suficiente, e que transformam o signo da morte e da rejeição em uma causa da qual se desprendem, buscando o acontecimento da quimera de uma expressão. Enquanto acaricio o corpo de minha mãe - “ouvi passos que não nos olham, que estranhos / se afastavam, / ruídos que caminham, sem saber, em direção ao meio da vida” -, as vozes de Jorge Polaco25 me acompanham no silêncio. E o sussurro de Roberto Echavarren (2021) me diz, ao pé do ouvido: “as cartas não dizem o que vai acontecer [...] o homem desejoso que foge de sua mãe, o faz toda a vida”. Só faz sentir quem foge da gramática de sua língua materna para evocar a ferida e o horror em uma expressão tão inesperada quanto anômala.

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NOTAS:

Dedico este texto ao filósofo Juliano Garcia Pessanha, porque ter me emocionado em diversas ocasiões de minha vida. Li seus livros desde que saíram separadamente em pequenas edições, e tenho em mãos atualmente a tetralogia sob o título Testemunho Transiente. Usei três títulos presentes em seus livros neste ensaio, em ressonâncias distantes, porém afetivas, com sua escrita.

2 O fato de não se esconder nunca no céu faz com que essa constelação seja conhecida como circumpolar. A maneira mais fácil de encontrar a Ursa Maior é buscar, na cartografia cósmica do céu, o grupo de estrelas denominado Grande Carro, as quais constituem a região dos quadris e do rabo do urso. Apesar do nome, essas estrelas possuem a forma de uma pipa com a rabiola estendida e são mais visíveis no Hemisfério Norte, onde variam sua posição no céu conforme as estações do ano. No Hemisfério Sul, elas se movem no entorno de uma região chamada Saco de Carvão, que por ser bastante escura só pode ser observada em locais específicos do território.

3 Existem cerca de 40 milhões de pessoas na Sibéria, das quais 10% são indígenas, e embora alguns povos como os Sakha (ou Yakutos) e os Komi tenham suas próprias repúblicas dentro do estado russo, muitos outros estão em perigo de extinção ou em processo de assimilação (“russificação”). Os Even pertencem a este último grupo, seus direitos territoriais permanecem não reconhecidos, embora lutem para retomar e retornar a seus territórios ancestrais na floresta. Nastassja Martin trabalhou entre suas terras e às margens do avanço dos colonos soviéticos sobre esses povos.

4 Para compreender a noção de atual é necessário especificar a noção de virtual. Ambas são inseparáveis e convergem uma à outra, expondo um problema ontológico: o das “partículas” virtuais e sua relação com a atualização. Para Gilles Deleuze, o virtual tem a mesma realidade do atual, e a emissão, absorção, criação e destruição das partículas virtuais ocorrem em um tempo menor que o tempo mínimo pensável, bem como na medida em que essa brevidade as mantém em um princípio de incerteza ou indeterminação. Referindo-se a Proust, o autor explica que a natureza do virtual consiste em “ser real sem ser atual, ideal sem ser abstrato, e simbólico sem ser fictício” (DELEUZE, 2018, p. 276). O campo lógico se define porque “a natureza do virtual é tal que se atualizar é se diferenciar por ele” (DELEUZE, 2018, p. 279), de modo que pode ser concebido simultaneamente como gênese (poder em processo de atualização) e estrutura (sistema de relações reais, ideais e simbólicas). Na medida em que, para o autor, não há outra estrutura além da linguagem - ou seja, as coisas só têm estrutura na medida em que têm um discurso silencioso: a linguagem dos signos -, o virtual pode, então, ser pensado como a solução para um problema estrutural colocado em determinado campo, que diz respeito simultaneamente ao real e ao simbólico. A noção de virtual, assim, cumpre a tríplice determinação de ser real, ideal e simbólica, supondo em sua simultaneidade a ordem de qualidade, ação e pensamento, de modo que se afirma ser a estrutura a própria realidade do virtual.

5 O termo “imagem” tem um uso variável na obra de Gilles Deleuze. A imagem é o que aparece e, portanto, variável em seus efeitos. Em particular, a expressão “imagem do pensamento” aparece em Nietzsche e a filosofia para mostrar até que ponto Nietzsche teria subvertido outro tipo de imagem, que o autor denomina imagem dogmática do pensamento. Em Diferença e repetição, radicaliza-se a noção de imagem do pensamento como dimensão conceitual filosófica do pensamento, como conjunto de postulados pré-filosóficos aos quais a filosofia obedece. A imagem é a matriz que tem sido considerada como o traçado de uma boa vontade do pensamento ou da correspondência natural do pensamento com o bem e a verdade na história da filosofia ocidental. Esse nada mais é, entretanto, que seu caráter moral. O que Deleuze segue em Nietzsche é a genealogia de um combate que confronta postulados e modelos de pensamento como se existissem por natureza. O pensamento forma uma atmosfera com a opinião atual, à qual procura superar e preservar ao mesmo tempo. Esse esforço, para o filósofo, leva à doxa porque, de Platão a Kant, seria uma questão de “traçar” o transcendental sobre o empírico. As variações estéticas e os poderes políticos encontrariam, numa imagem dogmática, sua ingenuidade e seu funcionamento para constituir e legitimar a ordem social e os valores estabelecidos. Uma nova imagem do pensamento supõe pensar de outra forma, e isso requer produzir uma ruptura e tornar visível uma novidade além da representação. Para que isso seja possível, a verdade não é o elemento que faz o pensamento funcionar, mas o sentido e o valor são aqueles que tentam colocar o pensamento no movimento das forças para que se apoderem dele. É a maneira de suprimir o transcendente que impede pensar sob acordos morais. O filósofo acredita que não se pensa por natureza, mas pelo encontro e violência com certos estímulos que são intensidades e signos. Em Proust e os signos, Deleuze dá contorno à imagem dogmática e propõe uma nova imagem do pensamento, dizendo que, para que seja algo, o pensamento necessita que alguma coisa o viole, obrigando-o a pensar. Por um lado, o pensamento só pode começar a pensar libertando-se da imagem e dos postulados dogmáticos; por outro lado, o pensamento é a terrível revelação de uma fissura, de um novo direito de presença que não se deixa representar e que, no entanto, viola a razão. Trata-se, então, de buscar a experiência Real, como a experiência do pensamento em sua gênese, que nos confronta como pura diferença intensiva. Levando ao extremo a “A analítica do sublime”, de Kant, Deleuze busca a nova imagem do pensamento nas relações discordantes das faculdades: a disparidade ou a anomalia de um esforço divergente traça, para o filósofo, um caminho para o impensado como germe da intensidade. No encontro entre o pensamento e o “fora”: entre filosofia, ciência e arte, Deleuze descobre que não se trata de “traçar”, mas de “violar” o pensamento até seus limites, e isso se torna possível quando a experimentação revela novas possibilidades de atividade de um domínio expressivo. Essas novas possibilidades são concebidas como uma imagem problemática, que só parece vir de uma expressão que, indiretamente em cada caso, toca a gênese do real, povoando o mundo com ritmos e movimentos inesperados. A imagem problemática do pensamento subsiste na construção e desdobramento singular-conceitual de cada filosofia.

6Panchatantra é uma coleção de fábulas em prosa e verso no idioma sânscrito, cujos manuscritos mais antigos datam do século XI, mas que se acredita terem sido compostos muito antes, entre o terceiro século antes de Cristo e o terceiro século depois de Cristo. Sua escrita é atribuída a Vishnu Sharma.

7 A crítica negativa refere-se, aqui, à concepção de falsos problemas que deixam de lado o ordinário e o singular. Um falso problema é uma sombra, uma segunda afirmação que só afirma a partir de uma negação. Por isso, ele não é um ato de pensamento, não inventa, embora se refira a um ato criativo que se desnatura, invertendo-se. A inversão consiste em ter como original uma afirmação derivada, em ter a negação como motor do pensamento, como afirma Gilles Deleuze em Nietzsche e a filosofia. A imagem do negativo é o idêntico e participa da imagem dogmática do pensamento.

8 Crisálida é o nome biológico e mítico da metamorfose como processo de mutação profunda que afeta a corporeidade. É um processo de formação em constante atividade, nunca estático, expressando um pleno ativismo intensivo da variação entre a larva e o esplendor da borboleta. Ovídio pensa todas as histórias antigas a partir da crisálida. O problema do storytelling é justamente esse, lidar com uma forma cuja suprema incógnita é a vida, definida por processos intensivos de mudança de suas forças de conformação. Isso supõe que todos os agenciamentos relacionais entre forças mutuamente heterogêneas produzam uma mutação. Diante da crisálida, Deleuze e Guattari, em O que é filosofia? pensam que o “percepto” é uma paisagem limiar anterior ao homem, ocorrendo na ausência dele. Os autores confirmam, assim, que os “afetos” são os devires de um processo de formação não humana no próprio nervo da natureza.

9 Para compreender a natureza da imanência e sua lógica é central compreender a imagem do pensamento problemático do atual e do virtual. A questão, para Deleuze, é como passar da singularidade do virtual à individuação atual por meio de um processo de formação que ele chama de “cristalino”, e que acontece concomitantemente ao estabelecimento existencial, ao comprometer igualmente a imagem e o objeto, a percepção e a memória, regimes de signos e modos de invenção. A compreensão da imanência, portanto, depende de um pensamento que não sabe de antemão o que é pensar. Isso significa afirmar o “fora”, ou a divergência, não como um além, mas como condições de imanência em si mesmas, como mundos de capturas, limiares e relações abertas, para além de qualquer fechamento. O plano de imanência é, em si, a imagem do pensamento constituída pelo par atual-virtual.

0 A relação entre compressão e compreensão supõe o que pressiona e ao que se incumbe o “uso de si”, da própria existência sensível como pressuposto e pilar de todos os usos, como algo que está à mão e pelo qual se é tocado no exato momento em que se toca a existência.

1 Podemos sustentar um pluralismo existencial que diz não haver um único modo de existir ou de existência, e que mesmo um único Ser apresenta vários modos de existir, físicos, psíquicos, espirituais, valorativos e de representação. Vale reconhecer que o modo não é uma existência, mas a maneira de fazer existir um Ser em um ou outro plano.

12 Podemos ver ali não apenas uma reconsideração das conversões teológico-políticas como as de Paulo de Tarso, mas também a crítica de Nietzsche à política de qualquer sacerdócio.

13 “Hay se dá” é uma expressão poético-filosófica que denota a auto invenção que dá lugar a um “sentipensamento” sensorial, o qual afirma o ato criativo do “há - existe, se instaura, acontece”, mostrando um mundo pleno de coisas heterogêneas. A poesia inventa palavras que dão lugar às coisas. A criação de uma palavra é também a criação de um mundo, a instauração do “há”, do acontecimento do próprio mundo.

14 O verbo de que deriva a palavra “testemunha” tem o significado antigo de um infinitivo de uso legal (testaris), mais tarde conjugado a um verbo transitivo (testum), indicando o ato de preencher um espaço.

15 O poema está no livro Veneno de escorpión azul (ECHAVARREN, 2021). Os trechos são retirados de diversas páginas e reunidos livremente pelo autor de maneira sequencial. Por isso, não há paginação.

16 Os trechos são retirados de diversas páginas dos três livros e compostos livremente pelo autor em forma de fala contínua. Por isso, não há paginação.

17 O poema é traduzido livremente pelo autor. Não há tradução original em publicações literárias ou acadêmicas no espanhol ou no português. O poema pode ser encontrado em diversos sites na internet, com variações em suas traduções, todas a partir do inglês.

18 A Escola de Mecânica da Armada - ESMA -, foi uma unidade da Marinha argentina destinada à formação de suboficiais especialistas em mecânica e engenharia de navegação. Localizava-se na propriedade que o Conselho Deliberativo da cidade de Buenos Aires cedeu ao Ministério da Marinha em 1924. Ali funcionou o maior centro clandestino de detenção, tortura e extermínio da última ditadura cívico-militar argentina.

19 Lila compartilhou com o garoto “capuzes” e “aquários” como lugares de tortura. Eles também compartilharam tormentos e sofrimentos.

20 Pablo Miguez foi sequestrado em 12 de maio de 1977 por um grupo operativo de militares que procurava militantes do Exército Revolucionário Popular. Ele acabou em La Matanza, no centro de tortura clandestino El Vesubio. Depois viveu no sótão de tortura da ESMA.

21Valentín Alsina é um bairro da região metropolitana de Buenos Aires.

22 Os “voos da morte” eram uma das maneiras de fazer “desaparecer” os prisioneiros da ditadura militar do país. Os prisioneiros eram jogados no mar, vivos ou mortos, desde pequenos aviões.

23 Construída em 1999 por Claudia Fontes no Parque de La Memoria, “O homenzinho que anda sobre as águas”, como é popularmente conhecida a obra, olha a linha do horizonte desde sua figura flutuante no Rio da Prata, sempre de costas para o espectador, negando o rosto da criança desaparecida e indicando, ao mesmo tempo, a possível direção do atiramento dos corpos dos militantes políticos.

24 Alusão ao local onde a escultura está instalada, o Rio da Prata, na porção que banha o Parque de la Memoria.

25 Trechos do poema de Jorge Polaco de 1994 chamado Decoración de interiores y otros escritos.

Recebido: 19 de Outubro de 2022; Aceito: 18 de Janeiro de 2023; Publicado: 30 de Março de 2023

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