1 INTRODUÇÃO
As discussões apresentadas no texto1 tomam como centralidade a análise da autobiografia de Oliver Sacks (2015) e suas possíveis relações com questões epistemológicas e teórico-metodológicas da pesquisa (auto)biográfica. Partirei inicialmente, de questões sobre a pesquisa (auto)biográfica no campo educacional, ao tomar como referência reflexões desenvolvidas por Passeggi e Souza (2017) e Souza (2014b) sobre o movimento (auto)biográfico no Brasil, constituição de redes de pesquisa, mas, especialmente, sobre a (auto)biografia como uma aposta epistemopolítica, decolonial e pós-disciplinar.
A partir de tais princípios, buscarei sistematizar análises da autobiografia Sempre em movimento: uma vida, escrita pelo neurologista Oliver Sacks (2015), ao destacar percursos e trajetórias de vida do intelectual, no que se refere à sua escolarização, formação, relações familiares e afetivas, atuação profissional e contribuições para o campo da Medicina, notadamente, através do pioneirismo do seu trabalho com a arte para o trabalho, no domínio da saúde.
A narrativa de Sacks apresenta disposições de sua constituição pessoal, laços familiares, formação e relatos de viagem, que de forma bastante singular se apresentam voltadas para o funcionamento do cérebro humano, em um texto que arrebata tanto pela reflexividade biográfica, como também pelas dimensões temporais de sua vida-formação, evidenciadas nessa publicação.
Ideais relacionais entre (auto)biografia, ciência e arte entrecruzam as análises apresentadas, na medida em que buscarei desenvolver dois argumentos-chave que mobilizarão as entradas propostas no presente texto. A primeira entrada descreve, de forma abreviada, aspectos epistemológicos e teórico-metodológicos da pesquisa (auto)biográfica; e a segunda centra-se na análise de questões de formação vividas por Sacks, objetivando, assim, situar a bricolagem humana, através de eventos sucessivos experienciados pelo biógrafo, num diálogo entre memórias, aventuras, conflitos, desafios pessoais e profissionais, ao revelar percursos de vida-formação marcados por discursos biográficos da experiência do narrador.
2 PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA: APOSTAS EPISTEMOLÓGICAS E CAMPO DE PESQUISA
Em trabalhos anteriores, Souza (2014b e 2006b) sistematizou questões sobre domínios e constituição da pesquisa (auto)biográfica, ao discutir aspectos epistemológicos e teórico-metodológicos da pesquisa biográfica, suas diferentes tipificações e suas contribuições para o campo da Formação de Professores. As reflexões aqui apresentadas partem de discussões realizadas por Passeggi e Souza (2017) sobre o movimento (auto)biográfico no Brasil e a pesquisa (auto)biográfica como uma aposta epistemopolítica, descolonizadora e pós-disciplinar, objetivando demarcar dimensões e domínios dos estudos (auto)biográficos, como um campo disciplinar em Educação.
No cenário brasileiro, temos aprofundado as discussões sobre as dimensões epistemológicas e teórico-metodológicas da pesquisa (auto)biográfica nas diferentes edições do Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)biográfica (CIPA) e suas publicações, possibilitando apresentar avanços sobre o campo de pesquisa e seus modos de trabalho como pesquisa, formação ou como prática de formação.
Conceitos de espaço, discurso biográfico e processo de biografização são férteis para constituição do campo de pesquisa ou mesmo fundante do espaço (auto)biográfico na pesquisa educacional. Conforme sistematiza Delory-Momberger (2005, p. 14), o espaço não se limitaria à multiplicidade de gêneros biográficos e autobiográficos, mas ele concerne principalmente à compreensão da natureza do discurso autobiográfico, enraizado na atitude fundamental do humano “que consiste em configurar narrativamente a sucessão temporal de sua experiência”. Levar a sério essa atitude singular, praticada desde a mais tenra idade, constitui um dos pontos centrais da pesquisa (auto)biográfica em Educação. Admite-se, pois, como pressuposto, que o sujeito, em todas as fases da vida, apropria-se de instrumentos semióticos - a linguagem, o grafismo, o desenho, os gestos, as imagens etc. - para contar suas experiências sob a forma de uma narrativa autobiográfica que até então não existia. E nesse processo de biografização, a pessoa que narra, embora não possa mudar os acontecimentos, pode reinterpretá-los dentro de um novo enredo, reinventando-se com ele.
Como campo de pesquisa, cabe nos perguntar sobre que tipo de conhecimento é possível gerar com base nessas narrativas de si e qual é a sua relevância para a investigação científica no que concerne aos conhecimentos humanos e sociais. Situada no âmbito da pesquisa qualitativa, a pesquisa (auto)biográfica em Educação (SOUZA, 2006b) tem procurado superar o dilema que lhe é imposto: ou acomodar-se aos padrões existentes do conhecimento dito científico ou, ciente da especificidade epistemológica do conhecimento que ela produz, contribuir para a construção de novas formas de se conceber a pessoa humana e os meios de pesquisa sobre ela e com ela.
Com efeito, a partir dos anos 1980, a crise dos grandes paradigmas, notadamente do estruturalismo e do behaviorismo, que haviam expulsado o sujeito do seu campo de investigação, abre novos horizontes para o “retorno do sujeito”, que reaparece sob múltiplas peles: a de autor, narrador, ator, agente social e personagem de sua história. Essa mudança, que se convencionou denominar de “giro linguístico” ou “giro discursivo”, está alicerçada numa inversão das relações entre pensamento/cognição e linguagem. A linguagem deixa de ser concebida, unicamente, como instrumento de expressão do pensamento, para ser entendida como fator estruturante das visões de mundo, um modo de perspectivar a realidade, como sugere Tomasello (2003) e, nessa mesma direção, as representações do outro e de si.
Nesse contexto, a narrativa, oral e escrita, como afirmam Brockmeir e Harré (2003, p. 526), torna-se “a descoberta da década de 1980”, o canal pelo qual circula a voz dos atores sociais que narram suas próprias experiências e se constituem na e pela linguagem. As narrativas tornam-se, ao mesmo tempo, um parâmetro linguístico, psicológico, cultural, político e filosófico fundamental para explicar a natureza e as condições da existência humana, constituindo-se entradas potencialmente legítimas para se ter acesso aos modos como o sujeito - ou uma comunidade - dá sentido à sua experiência, organiza suas memórias, justifica suas ações, silencia outras. Nesse sentido, elas oferecem padrões de interpretação, que contribuirão, tanto para o conhecimento do humano, quanto para o próprio aprimoramento da pesquisa qualitativa interpretativa.
Como afirma Barthes (1981, p. 19), a narrativa é transcultural e trans-histórica. Ela “[...] começa com a própria história da humanidade e nunca existiu em nenhum lugar e em tempo nenhum, um povo sem narrativa [...]”. Sua universalidade está na origem de sua quase infinita diversidade: narrativas jurídicas, literárias, bíblicas, históricas, ficcionais, anedóticas, jornalísticas, midiáticas, infantis, românticas, ideológicas, políticas, digitais, etc.
É dentro dessa infinita variedade que a pesquisa (auto)biográfica opera um recorte. Seu interesse recai especificamente sobre as narrativas autobiográficas, que se enraízam nessa atitude fundamental do ser humano “que consiste em configurar narrativamente a sucessão temporal de sua experiência” (DELORY-MOMBERGER, 2005, p. 14, grifos da autora), para contar a história de sua vida, a história de uma experiência, a história de um momento qualquer.
Para autores como Delory-Momberger (2005, 2012, 2014), Alheit e Dausien (2006), a pesquisa (auto)biográfica em Educação interroga essa capacidade antropológica de biografização, mediante a qual a pessoa que narra organiza sua experiência em termos de uma razão narrativa. A biografização é, portanto, esse processo permanente de aprendizagem e de constituição sócio-histórica da pessoa que narra. A pesquisa (auto)biográfica privilegia, pois, esses processos de biografização com o objetivo de compreender como os indivíduos se tornam quem eles são. Nesse sentido, ganha força a afirmação de Bruner (2014, p. 75), ao propor que “A criação do eu é uma arte narrativa”, portanto, um ato performativo, pelo qual dizer é fazer, biografar-se é tornar-se um outro para construir-se como um si mesmo.
Não se trata, portanto, de uma atitude esporádica e meramente circunstancial, mas de uma dimensão constitutiva dos processos de individuação e de socialização, estreitamente, relacionados às condições societais nas quais os indivíduos se biografam e produzem, narrativamente, formas de existência para eles próprios e para o outro. Nesse sentido, convém lembrar que o “giro narrativo” se insere num momento de grandes mutações sociais em que as instituições tradicionais - família, igreja, escola, trabalho -, perdendo a sua centralidade, remetem aos indivíduos a responsabilidade de encontrar por si mesmos meios de se instituir como sujeitos de direitos na sociedade.
No seio dessa ambivalência, situa-se a ousadia de tomar o autobiográfico como objeto de estudo. Por essa razão, essa ousadia se sustenta em apostas de diferentes ordens. Recorro ao termo “aposta” para sinalizar o engajamento, o desafio dessa aventura (auto)biográfica no mundo científico. Uma aposta de caráter epistemopolítico, que coloca no centro do processo a capacidade humana de reflexividade autobiográfica do sujeito, permitindo-lhe elaborar táticas de emancipação e empoderamento, suficientemente boas para superar interpretações culturais excludentes, que o oprimem. Uma aposta pós-colonial, que se opõe a uma visada elitista do conhecimento que desconhece essa capacidade de reflexividade humana e de interpretação do cidadão “comum” que sofre as pressões cotidianas que o destituem dos seus direitos e embotam sua consciência crítica. Finalmente, uma aposta pós-disciplinar, ancorada na liberdade de ir e vir em busca de instrumentos heurísticos onde eles se encontram, como sugere Ferrarotti (2014a), sem se acomodar aos quadros de uma visão disciplinar, ou inter-, ou pluri- ou multi- ou transdisciplinar.
Esta tríplice aposta está intimamente vinculada a quatro grandes orientações do movimento (auto)biográfico no Brasil (PASSEGGI, SOUZA, VICENTINI, 2011). A primeira considera as narrativas autobiográficas como um fenômeno antropológico. Nesse sentido, interessa-se pelos processos de individuação e de socialização dos seres humanos, interrogando-se sobre como nos tornamos quem somos. A segunda orientação utiliza as narrativas como fonte e método de investigação qualitativa, indagando-se sobre práticas sociais, não apenas para produzir conhecimento sobre essas práticas, mas para perceber como os indivíduos dão sentido a elas. A terceira orientação faz uso dessas narrativas como dispositivos de pesquisa-formação, instituindo o sujeito como pessoa interessada no conhecimento que ele produz para si mesma (SOUZA, 2006a). Finalmente, a quarta orientação estuda a natureza e a diversidade discursiva das escritas (grafias) da vida (bios).
As discussões voltadas para a configuração da pesquisa (auto)biográfica como uma aposta epistemopolítica, descolonizadora e pós-disciplinar, permite-me entender, conforme afirma Freire (1992, p. 85), que “[...] subestimar a sabedoria que resulta necessariamente da experiência sociocultural é, ao mesmo tempo, um erro científico e a expressão inequívoca de uma ideologia elitista [...]”, que historicamente procurou desvincular experiência, narrativas e vida cotidiana da trama científica, inscrevendo-se como um erro epistemológico e político. Nessa mesma direção, Santos (2002, p. 81) afirma que “[...] a ciência moderna consagrou o homem como sujeito epistémico, mas expulsou-o enquanto sujeito empírico [...]”, e com ele desperdiçava-se sua experiência. Descartava-se, assim, a criança com a água do banho. A tentativa do movimento (auto)biográfico é de recuperar essa ausência do sujeito empírico, de carne e osso, focalizando a sua experiência. Essa preferência pelo sujeito epistêmico, abstrato, objetivo, explica a resistência da pesquisa científica positivista à palavra da criança, da mulher, do transexual, de pessoas do campo, das ruas, das favelas, da floresta, dentre outras diversidades de vozes, em função da “pobreza” de seu pensamento, da “insuficiência” de seus modos de se expressar, de sua “pouca” idade, da “insignificância” de sua experiência. “Deficiências” assim categorizadas em função de critérios positivistas, coloniais, que desqualificam a legitimidade da palavra de quem foge aos padrões de racionalidade do adulto, de sexo masculino, heteronormativo, branco, letrado.
Contra essas correntes positivistas e colonizadoras, os estudos com as histórias de vida em formação e as narrativas autobiográficas, ao priorizar o humano, situam-se numa perspectiva epistemopolítica, como afirmam Pineau e Le Grand (2012). As narrativas propõem uma nova episteme, um novo tipo de conhecimento, que emerge não na busca de uma verdade, mas de uma reflexão sobre a experiência narrada, assegurando um novo posicionamento político em ciência, que implicam princípios e métodos legitimadores da palavra do sujeito social, valorizadores de sua capacidade de reflexão, em todas as idades, independentemente, do gênero, etnia, cor, profissão, posição social, entre outras dimensões.
Em um texto anterior, Passeggi (2015, p. 84) propõe que os estudos desenvolvidos com narrativas autobiográficas, em suas mais diversas abordagens e por redes de pesquisadores cada vez mais abrangentes, permitem conceber uma epistemologia do Sul ou pós-colonial, que se sustenta numa “revolução narrativa” contra a mera “ilusão biográfica”. Com efeito, as narrativas autobiográficas, analisadas, nos últimos anos, em teses, dissertações, entrevistas... rompem com as dicotomias positivistas, entrelaçando razão e emoção, sujeito e objeto de reflexão, nos processos de interpretação da experiência e atribuição de sentido à vida.
O trabalho de biografização, mediante o qual a pessoa que narra se converte em autor e caminha na direção da conscientização, da resistência e da emancipação, estaria vinculado, como sugere Bruner (1998, 2014), a um modo narrativo de pensar (literário, histórico, circunstancial), em oposição a um modo paradigmático (lógico-científico), objetivo. Portanto, a produção do conhecimento que resulta desse modo narrativo de pensar seria fundante para a constituição de uma epistemologia do Sul (SANTOS, 2009), ainda emergente, em contraposição a uma epistemologia do Norte, hegemônica, colonial, dogmática, excludente.
Como aposta pós-disciplinar, a pesquisa (auto)biográfica emerge do horizonte de conhecimentos que os humanos constroem em suas narrativas autobiográficas, sobre eles mesmos e sobre seu contexto social e histórico, como afirma Franco Ferrarotti (2014b, p. 25, tradução nossa): “só pode ser um saber global, holístico”. Por essa razão, seria inútil buscar apreendê-lo dentro de fronteiras disciplinares, pois esse tipo de conhecimento se refaz, a cada passo, sob novas configurações, escapando da rigidez e da estabilidade procurada no campo dito científico.
Os estudos em que Ferrarotti (2014a, 2014b) concebe as histórias de vida, numa perspectiva crítica, vão ao encontro dessas apostas epistemopolítica, pós-colonial, e pós-disciplinar subjacentes ao movimento (auto)biográfico em Educação e que, no nosso entender, necessitam ser cada vez mais exploradas, investigadas, enriquecidas, no sentido em que os resultados das pesquisas nessa área possam prestar os serviços que lhe competem nos estudos do humano, promovendo, como sugere o autor, a democracia e a socialização dos conhecimentos, convictas de que a construção do conhecimento na pesquisa (auto)biográfica só se faz com o outro e no respeito ao outro, jamais pelo pesquisador isolado.
É essa perspectiva pós-disciplinar, sugerida por Ferrarotti, que nos parece a mais adequada para pensar propostas metodológicas e de análises de fontes biográficas e autobiográficas, que, por sua complexidade, fogem aos padrões de análises que focalizam normas ou leis gerais do comportamento humano. Ela confere ao pesquisador e ao narrador a liberdade necessária para ir e vir em busca de instrumentos heurísticos tão revolucionários quanto o próprio “giro autobiográfico”, subjetivo, interpretativo, qualitativo e alheio aos esquemas de “hipótese-verificação” da perspectiva positivista.
Os desafios que se colocam no campo da pesquisa (auto)biográfica, face aos princípios epistemológicos, a diversidade de fontes e as perspectivas de análises, têm possibilitado, conforme já sistematizado por Souza (2014a), demarcar no campo educacional modos de trabalho e redes de pesquisas empreendidos nos domínios das práticas de pesquisa-formação, ao situar questões voltadas para a análise compreensiva-interpretativa de narrativas, como espaço, discursos e reflexividade biográficas inerentes aos sujeitos quando narram suas próprias histórias ou mesmo questões de formação.
Essa é a ideia que buscarei desenvolver na próxima seção do texto, ao buscar analisar questões de formação relacionadas as experiências de vida e percursos de formação da autobiografia de Oliver Sacks.
3 UMA VIDA EM MOVIMENTO: O QUE NOS DIZ OLIVER SACKS
Após as discussões sobre questões epistemológicos da pesquisa (auto)biográfica, buscarei analisar experiências de vida-formação de Oliver Sacks, expressas na autobiografia Sempre em movimento: uma vida (SACKS, 2015), ao tomar como ênfase questões de vida-formação, através da análise de suas memórias de escolarização, de formação, laços familiares e atuação profissional, no entrecruzamento entre ciência, arte e autobiografia.
Em trabalho anterior, Souza e Cordeiro (2016) analisaram imagens e fragmentos narrativos do livro o Lugar do escritor, de Chiodetto (2002), ao tomarem como corpus de análise fotobiografias de escritores da literatura brasileira, evidenciando lugares de escritas como processo criativo e aspectos relacionados à construção das identidades dos escritores. As imagens e os textos narrativos indicam os modos como cada escritor constitui seu espaço de escrita, bem como desvelam disposições criativas sobre a escrita, por que escreve e para quem escreve.
De outro modo, apreendo, através da leitura da autobiografia de Sacks como tais questões estão inscritas no seu processo criativo e literário. O livro é escrito como movimento memorialístico, ao resgatar correspondências destinadas para familiares, amigos e parceiros intelectuais com quem o autor manteve vínculo de sociabilidade, troca de experiências profissionais e influências sobre seu pensamento no campo da Neurociência.
Cabe observar ao longo do livro a diversidade de cartas trocadas entre Sacks e seus pais, tia, colegas de trabalho e parceiros intelectuais com quem socializava suas inquietações, pesquisas, análises de casos clínicos e muitas outras questões sobre sua própria vida. São instigantes as cartas sobre suas experiências quando se muda para Oxford, de suas viagens e de suas inquietações intelectuais e científicas.
O livro Sempre em movimento: uma vida (SACKS, 2015), publicado pela editora Companhia das Letras, em sua versão brasileira, é composto por 354 páginas e 11 capítulos que narram percursos de vida de Oliver Sacks, entrecruzando narrativas que revelam modos constitutivos de sua formação, relações familiares, sexualidade, gosto pelo motociclismo e fisiculturismo, pela literatura, pela arte e escrita, mas fortemente, pelo modo como sua autobiografia mobiliza reflexões filosóficas e científicas sobre o trabalho como neurocientista, através da descrição de casos clínicos2 e de sua vida pessoal. As fotografias apresentadas no livro marcam momentos significativos da vida do autor em plena articulação com as narrativas sobre seus hábitos, paixão pelo agachamento e fisiculturismo, natação, motocicletas, com familiares e amigos, além de seus lugares preferidos e seu último amor.
Nascido em Londres em 1933, Sacks é filho de médicos. A mãe cirurgiã e o pai clínico geral, de certa forma, exerceram influência na sua opção profissional. Com uma curiosidade aguçada, Sacks destaca-se no seu percurso escolar e nas experiências que desenvolvia, quando afirma que:
Quando eu tinha doze anos, um professor bastante perspicaz anotou no seu relatório: ‘Sacks vai longe, se não for longe demais’, coisa que acontecia com frequência. Quando menino, muitas vezes eu ia longe demais nas minhas experiências químicas, enchendo a casa com gases tóxicos; por sorte, nunca incendiei o lugar (SACKS, 2015, p. 15, grifos do autor).
Após a conclusão da escola, Sacks é aprovado com uma bolsa para estudar em Oxford, formando-se em Medicina. Após a formatura e como amante de viagens, descreve sua viagem antes de mudar-se para os Estados Unidos, tendo realizado em São Francisco, na Universidade da California (UCLA), residência médica em Neurologia. Desenvolveu sua vida profissional em Nova York, onde morava desde 1965 e trabalhava como neurologista. Sobre esse momento, afirma que:
Aos catorzes anos, ficou ‘entendido’ que eu ia ser médico. Meus pais eram, ambos, médicos, assim como meus dois irmãos mais velhos. […]
Quando obtive a bolsa para Oxford, precisei me dedicar: ficaria com zoologia ou faria o curso de medicina, com matérias de anatomia, bioquímica e fisiologia? O que mais me fascinava era a fisiologia dos sentidos - como víamos a cor, a profundidade, o movimento? Como reconhecíamos alguma coisa? Como entendíamos o mundo, visualmente? Eu desenvolvera esses interesses desde muito cedo tendo enxaquecas visuais, pois, além dos zigue-zagues cintilantes que antecediam um ataque, durante o prenúncio da enxaqueca eu podia perder o senso de cor, de profundidade ou de movimento, ou até a capacidade de reconhecer qualquer coisa. Minha visão se desfazia e se desconstruía na minha frente de maneira assustadora, mas também fascinante, e então se refazia e se recontruía, tudo isso no espaço de poucos minutos (SACKS, 2015, p. 19-20, grifos do autor).
Com uma capacidade literária singular, a autobiografia de Sacks configura-se como uma narrativa implicada, densa, poética e com aberturas para imersões na sua vida errante. A autobiografia de Sacks conjuga, de forma bastante literária, a vida errante do biógrafo, sua paixão pela velocidade e pelas motocicletas, sobre sua sexualidade, ao tratar de forma livre e abertamente de sua homossexualidade, suas relações afetivas transitórias e amorosas, sua relação com as drogas e posições de sua mãe em relação à sua homossexualidade, o que sem dúvidas, marcou profundamente sua história de vida. Revela também sua relação de afeto com sua tia Birbie, o impacto de sua morte, a notícia de sua aprovação para estudar em Oxford, sua relação com a leitura, os colegas de escola e com os seus pais, ao afirmar que:
O ano de 1951 foi movimentado e, em alguns aspectos, doloroso. Minha tia Birdie, que fora presença constante na minha vida, morreu no mês de março; ela morava conosco desde que eu nasci e amava incondicionalmente a todos nós. (Birdie era uma mulherzinha miúda e de inteligência modesta, a única em tanta desvantagem entre as irmãs e os irmãos da minha mãe. Eu nunca soube muito bem o que acontecera com ela quando pequena; falavam de uma lesão na cabeça quando bebê, mas também de uma deficiência congênita da tireoide. Nada disso tinha importância para nós; era a titia Birdie, parte essencial da família.) A morte de Birdie me afetou profundamente e talvez só então percebi como ela estava entrelaçada à minha vida, a todas as nossas vidas. Uns meses antes, quando consegui uma bolsa em Oxford, foi ela quem me entregou o telegrama, me abraçou e me deu os parabéns - derramando algumas lágrimas também, pois sabia que isso significava que eu, o seu sobrinho mais novo, iria sair de casa.
Eu devia ir para Oxford no final do verão. Acabara de fazer dezoito anos, e meu pai pensou que era o momento de ter uma conversa de pai para filho, de homem para homem. Falamos de dinheiro e mesadas - nada demais, pois meus hábitos eram muito frugais e minha única extravagância eram os livros. E então meu pai passou ao que realmente o preocupava.
‘Parece que você não tem muitas namoradas’, disse ele. ‘Você não gosta de garotas?’
‘Tudo bem com elas’, respondi, querendo que a conversa parasse por ali.
‘Prefere garotos, talvez?’, insistiu ele.
‘É, prefiro, mas é só uma sensação, nunca ‘fiz’ nada, e então acrescentei, temeroso, ‘Não conte para mamãe: ela não aceitaria.’
Mas meu pai contou e, na manhã seguinte, ela desceu de cara muito fechada, uma cara que eu nunca tinha visto antes. ‘Você é uma abominação’, disse ela. ‘Quisera que você nunca tivesse nascido.’ Então saiu e passou vários dias sem falar comigo. Quando voltou a falar, não houve nenhuma menção ao que ela dissera (e nunca mais voltou ao assunto), mas alguma coisa mudara entre nós. Minha mãe, tão aberta e que me dava tanto apoio de inúmeras maneiras, era dura e inflexível nessa área. Leitora da Bíblia como meu pai, amava os Salmos e o Cântico de Salomão, mas vivia perseguida pelos versículos terríveis do Levítico: ‘Não te deitarás com um homem como se deita com uma mulher. É uma abominação’.
Meus pais, como médicos, tinham muitos livros de medicina, inclusive vários sobre ‘patologia sexual’, e aos doze anos de idade eu mergulhara em Krafft-Ebing, Magnus Hirschfeld e Havelock Ellis. Mas eu achava difícil sentir que tinha uma ‘condição’, que a minha identidade pudesse ser reduzida a um nome ou a um diagnóstico. Meus amigos na escola sabiam que eu era ‘diferente’, quando menos porque evitava festas que terminassem em afagos e amassos (SACKS, 2015, p. 16-17, grifos do autor).
O texto desvela e revela suas relações com a vida, seu processo de escolarização-formação, atuação profissional, sua homossexualidade, suas itinerâncias, desejos, sonhos, medos e enfrentamentos diversos vividos ao longo de sua vida tanto no campo pessoal, familiar e sexual, quanto profissional.
A posição adotada pela sua mãe no episódio relatado, exerceu forte influências e marcas na sua trajetória de vida, notadamente, no que se refere a não aceitação e negação de sua homossexualidade, quando em outro excerto da sua biografia narra que “Mas suas palavras me perseguiram durante grande parte da minha vida e desempenharam um papel importante, inibindo e instilando sentimento de culpa em algo que deveria ser uma expressão de sexualidade livre e prazerosa [...]” (SACKS, 1995, p. 18).
Além de narrar como foi se constituindo pessoal e profissionalmente, as marcas de sua mãe e influências do seu pai, sua relação com os irmãos, especialmente com o que era esquizofrênico, descreve na primeira parte do livro dimensões de sua escolarização e formação, sua atuação como halterofilista, sua paixão por viagens e motocicletas e avança com narrativas entrecruzadas sobre a sua carreira como neurocientista e descrição de casos clínicos.
Outro aspecto que se evidencia na narrativa é a relação prazerosa com a escrita, o processo criativo e gênese de outras suas produções, além de cartas trocadas com familiares (mãe, pai e a tia) e colegas que exerceram influência na sua formação e carreira profissional. Cabe aqui destacar os cientistas Thom Gunn, A. R. Luria, W. H. Auden, Gerald M. Edelman, Francis Crick, que contribuíram para construção do seu discurso científico, analítico e literário, marcante na sua obra, sobremaneira, no que concerne à articulação entre ciência, arte e literatura.
Sua dedicação profissional é evidenciada em diferentes passagens do livro, quando revela o trabalho de escuta com os pacientes, o modo como ensinava seus alunos a escutarem, assim como o trabalho com casos clínicos, que muito contribuiu para a escrita de sua vasta obra científica e literária.
Sua experiência profissional se inscreve num movimento que entrecruza sua vida pessoal-profissional e sua obra, através do trabalho que desenvolveu com seus pacientes, descrição de pesquisas relacionadas ao funcionamento do cérebro e conflitos vividos no espaço profissional.
A narrativa autobiográfica apresentada por Sacks demarca entradas de outras obras escritas pelo autor, da mesma forma que revela relatos instigantes de sua trajetória e percurso estudantil, processos de acompanhamento dos pacientes, seus hábitos de escritas e registro de acontecimentos vividos, em forma de notas diversas em cadernos, com ênfase nas suas experiências científicas, através de observações, acompanhamento clínico e leituras sobre os casos clínicos que se dedicou ao longo de sua vida profissional.
Da mesma forma, a autobiografia deixa entrever situações e conflitos forjados na sua trajetória, num movimento entre vida, escrita, profissão e arte, que implicou de forma significativa o trabalho médico e científico por ele desenvolvido.
A autobiografia é escrita num momento em que o autor é acometido por um câncer no fígado, como cenário fértil para revisitar sua própria história, sua obra e socializar experiências e aprendizagens biográficas sobre vida, formação e profissão, sem ter perdido a esperança e a pulsão de vida. Como afirma o autor, “de todo modo, sou um narrador, um contador de histórias. Desconfio que o gosto pela narrativa é uma disposição humana universal, que acompanha as nossas capacidades de linguagem, de consciência de si e de memória autobiográfica” (SACKS, 1995, p. 329).
Vida, itinerância pessoal, formação e aprendizagem profissional são reveladoras da densidade analítica apresentadas pelo autor, ao tempo em que descreve aspectos relacionados à História da Ciência, em constante diálogo com a filosofia, a arte, a literatura e a prática médica, num diálogo que mescla um texto densamente literário, poético e provocante, pela narrativa de sua vida.
4 O QUE FICA POR DIZER
A sistematização apresentada sobre dimensões e apostas do campo da pesquisa (auto)biográfica evidencia modos como disposições espaço-temporais e de reflexividade biográfica se inscrevem como centrais para o processo de biografização, quando narramos acontecimentos e experiências. Tais conceitos são articulados à leitura cruzada de questões de formação da (auto)biografia de Olivier Sacks e dos movimentos que constituem sua vida-formação-profissão.
Modos de dizer sobre ciências e arte são demarcados a partir de questões de formação, de escolarização e relações familiares e profissionais de Oliver Sacks, entrecruzando com aspectos epistemológicos da pesquisa (auto)biográfica. Entre o dito, entendido como manifestações biográficas de Sacks e, o que fica por dizer, revelam leituras outras e aberturas sobre as múltiplas possibilidades de análises e interpretações que o texto narrativo e (auto)biográfico carrega, muito em função das marcas subjetivas e das trajetórias formativas que são explicitadas na arte e vida do narrador.