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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub 30-Jun-2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e55640 

Artigos

Migrações Curriculares: Cotidianos, Travessias e Criações de Outras Margens como Possibilidades

Curriculum Migration: Everydays, Crossings and Creations from Other Margins as Possibilities

Migración Curricular: Cada Día, Cruces y Creaciones desde Otros Márgenes como Posibilidades

1 Doutora em Educação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ); Pós-doutorado pela UERJ. Coordenadora de monografia do CEDERJ. E-mail: chagas.prof@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-5369-0875

ii Doutor em Educação pela UERJ. Coordenador Pedagógico na Rede Estadual de Educação do Rio de Janeiro e Professor de Geografia na rede privada de ensino. E-mail: mar_chado@hotmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-7845-7340

ii Doutora em Educação pela UERJ. Professora da Universidade Federal Fluminense. E-mail: mcecilias.castro@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-4606-2795

v Doutoranda em Educação pelo ProPed/UERJ. Professora do município do Rio de Janeiro. E-mail: thamy.lobo@hotmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-2606-9642


Resumo

Neste texto, apresentamos um estudo das pesquisas com os cotidianos acerca das travessias curriculares necessárias desde o aparecimento do novo coronavírus. Nosso objetivo é compreender como os ‘praticantespensantes’ das redes educativas estão ressignificando os currículos. Essas redes, que formamos e pelas quais somos formados, possibilitam as criações de ‘Migrações Curriculares’. A partir de um conto de Guimarães Rosa, conversamos com teóricos como Certeau, Bhabha, Deleuze e Alves. Foram implicadas as ‘praticasteoriaspraticas’ dos autores que atuam em diferentes ‘espaçostempos’. A metodologia de pesquisa se dá por meio de conversas com os ‘praticantespensantes’. À guisa de conclusão, entendemos que as travessias curriculares identificam a importância dos sentidos, dos afetos, das artes e da coletividade como caminho para ressignificarmos o mundo e nossa existência.

Palavras-chave: currículos; cotidianos; pandemia; migrações

Abstract

In this text, we present a study of the research with daily life about the necessary curricular crossings since the appearance of the new Coronavirus. Our goal is to understand how the ‘thinking practitioners’ of educational networks are giving new meaning to curricula. These networks, which we form and by which we are formed, enable the creation of ‘Curricular Migrations’. Based on a short story by Guimarães Rosa, we spoke with theorists such as: Certeau, Bhabha, Deleuze and Alves. The ‘practical theories’ of authors who work in different ‘spacetimes’ were implied. The research methodology takes place through conversations with ‘thinking practitioners’. As a guide to the conclusion, we understand that the curricular crossings identify the importance of the senses, affections, the arts and the collectivity as a way to give new meaning to the world and our existence.

Keywords: resumes; daily life; pandemic; migrations

Resumen

En este texto, presentamos un estudio de las investigaciones con la vida cotidiana sobre los cruces curriculares necesarios desde la aparición del nuevo Coronavirus. Nuestro objetivo es comprender cómo los ‘practicantes pensantes’ de las redes educativas están dando un nuevo significado a los planes de estudio. Estas redes, que formamos y por las que estamos formados, permiten la creación de ‘Migraciones Curriculares’. Basado en un cuento de Guimarães Rosa, hablamos con teóricos como: Certeau, Bhabha, Deleuze y Alves.Las ‘teorias prácticas’de los autores que trabajan en diferentes, espaciotiempos estaban implícitas. La metodología de investigación se lleva a cabo a través de conversaciones con “practicantes del pensamiento”. Como guía para la conclusión, entendemos que los cruces curriculares identifican la importancia de los sentidos, los afectos, las artes y la colectividad como una forma de dar un nuevo sentido al mundo y a nuestra existencia.

Palabras clave: reanuda; vida diaria; pandemia; migraciones

1 INTRODUÇÃO

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.

Guimarães Rosa

Em março de 2020, fomos acometidos pela progressão de uma pandemia no País. Tornou-se necessário estabelecer o lockdown nas cidades brasileiras e, por conseguinte, o fechamento físico das escolas, lembrando que as formas de ‘fazerpensar’ educação continuaram existindo. O vírus, com alto poder de contágio, fez com que o ano letivo fosse realizado, a maior parte, a distância. Passamos por um longo período de adaptação, travessias e deslocamentos.

Três ano depois, mais de meio milhão de vidas foram ceifadas. Tivemos, depois de inúmeras recusas do governo, a vacina. No entanto, se imunizou a população brasileira de modo muito lento. O País viveu uma crise sanitária, política e social, com muitas escolas fechadas e sentimentos contraditórios que pairam como uma nuvem de cúmulo-nimbo em toda a sociedade. Negacionismo, desqualificação da ciência, conflitos e tensões. A crise se expandiu para além do imaginado. Tratou-se de uma necropolítica (MBEMBE, 2016) em que políticas definem quem pode viver e quem deve morrer.

Esse período evidenciou as desigualdades sociais presentes em nossa sociedade. Essa crise é denunciada por Santos (2020, p. 5), que apresenta um panorama da crise que não é recente, mas foi escancarada com o surgimento do vírus. Ela é política, econômica, social:

A actual pandemia não é uma situação de crise claramente contraposta a uma situação de normalidade. Desde a década de 1980 - à medida que o neoliberalismo se foi impondo como a versão dominante do capitalismo e este se foi sujeitando mais e mais à lógica do sector financeiro -, o mundo tem vivido em permanente estado de crise. Uma situação duplamente anómala. Por um lado, a ideia de crise permanente é um oximoro, já que, no sentido etimológico, a crise é, por natureza, excepcional e passageira, e constitui a oportunidade para ser superada e dar origem a um melhor estado de coisas. Por outro lado, quando a crise é passageira, ela deve ser explicada pelos factores que a provocam. Mas quando se torna permanente, a crise transforma-se na causa que explica tudo o resto.

Em tempos de polaridades sociopolíticas, somos agenciados e provocados por múltiplas redes de ‘conhecimentossignificações’ que nos formam e pelas quais somos formados (ALVES, 2012). Neste texto, propusemos-nos a conversar acerca das aproximações entre currículos, cotidianos, criações e travessias das redes educativas na pandemia de Covid-19 e o conto “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa.

Aliamo-nos também ao pensamento de Deleuze (1998), em que o acontecimento é compreendido como névoa, criando a ideia de multiplicidades. Nelas, estão implicados elementos atuais e virtuais. O atual entende a condensação do efêmero; este se decompõe em partículas e se dissolve no virtual. O virtual segue individualizando-se em um processo constante de atualização, em fluxos diferentes e ininterruptos. Deleuze (1998, p. 55) ainda aponta que:

A ciência se torna-se cada vez mais ciência dos acontecimentos, em vez de estrutural. Ela traça linhas e percursos, salta, mais do que constrói axiomáticas. O desaparecimento dos esquemas de arborescência em prol de movimentos rizomáticos é um sinal disso. Os cientistas ocupam-se, cada vez mais, com acontecimentos singulares, de natureza incorporal, que se efetuam em corpos, em estados de corpos, agenciamentos totalmente heterogêneos entre eles (daí o apelo à interdisciplinaridade). É muito diferente de uma estrutura com elementos quaisquer, é um acontecimento com corpos heterogêneos, um acontecimento como tal que cruza estruturas diversas e conjuntos específicos. Já não é uma estrutura que enquadra domínios isomorfos, é um acontecimento que atravessa domínios irredutíveis.

Assim como as migrações acontecem em razão de inúmeras questões, os currículos escolares estão sujeitos a mudanças a partir de fluxos culturais ou percalços no caminho. Nestes últimos anos, o desafio da educação brasileira e as desigualdades socioeconômicas foram/são potencializados com a pandemia do novo coronavírus. Nossa intenção, neste artigo, não é produzir discursos que reforcem os binarismos (bom/mau, certo/errado), mas apresentar um estudo desenvolvido cujos limites e possibilidades são a produção de atualizações acerca das escolas e seus currículos e as criações cotidianas dos ‘praticantespensantes’ desses ‘espaçostempos’.

A palavra currículo é de origem latina e significa sentido, rota. Indica também processo, movimento, percurso. Consideramos que o acontecimento pandêmico vivido pelos ‘praticantespensantes’ das escolas produziu migrações curriculares e alterou as maneiras de se ‘fazerpensar’ os ‘conhecimentossignificações’. Nossas ‘praticasteoriaspraticas’ transformaram-se. O material escolar foi adaptado, planejamentos elaborados para a sala de aula física foram modificados para a ambiência virtual (SANTOS; WEBER, 2013). Medo, incerteza, tensão e, naquele primeiro momento, uma esperança de que logo retornaríamos à nossa rotina.

Não há fórmulas, manuais a serem consumidos; as tessituras de um projeto e seus processos indispensáveis de reformulação só se dão nos encontros, juntos, refletindo, planejando, registrando, com compromisso e sensibilidade, para perceber os interstícios e as artimanhas dos saberes cotidianos e comunitários que podemos mobilizar.

Para relacionarmos nossa ‘praticateoriapratica’ com os estudos com os cotidianos, apostamos nas interações possíveis entre Guimarães Rosa, Bhabha, Alves, Certeau e Deleuze. Estabelecemos conversas com as vivências de nossas atuações em diferentes redes educativas, pois cada um de nós atua em ‘espaçostempos’ diversos, seja em educação superior, na educação básica ou em uma organização não governamental.

2 CRIAÇÃO, MIGRAÇÃO E OUTRAS MARGENS

Seria que, ele, que nessas artes não vadiava,

se ia propor agora para pescarias e caçadas?

Guimarães Rosa

No conto “A terceira margem do rio”, acompanhamos o movimento de um homem que, um dia, resolve abandonar a sociedade para viver em uma canoa, no meio de um rio, o que surpreende sua família e os demais moradores, que não compreendem seu movimento de ir e seu não movimento de parar entre as duas margens e lá ficar. É um conto muito conhecido de Guimarães Rosa, amplamente utilizado em conversas acerca de literatura e comportamento humano. Neste estudo, realizamos aproximações do texto com os currículos, seus movimentos perante os acontecimentos, pois acreditamos que todas as questões sociais podem e acabam se transformando em questões curriculares, fazendo com que as abordagens das redes educativas migrem a todo momento.

Bhabha (1998, p. 19) nos permite ‘verouvirsentirpensar’ a relação que existe nesse processo de entrelugar. Ele afirma que “nossa existência hoje é marcada por uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de viver nas fronteiras do ‘presente’ [...]”, onde fixações são questionáveis, pois os fluxos existentes nesse processo de partidas e chegadas apresentam-se a partir de múltiplas vivências entre eu e os outros - como diz Maturana (1998), o legítimo outro. Assim como o pai, personagem do conto, sua partida não se caracteriza necessariamente numa chegada, mas em viver à margem. Ele escolhe o entrelugar e, a partir dessa ação, é possível compreender que os ‘praticantespensantes’, em suas travessias de vida e experiências, criam possibilidades de existência, até porque as águas do rio não param e, mesmo pretendendo estar no mesmo lugar, o personagem do conto não estará, porque o movimento do rio é contínuo.

Assim como nossas vivências, os currículos escolares podem e necessitam ser compreendidos a partir dessa recusa à fixação. Ao contrário, importa aos ‘praticantespensantes’ dos cotidianos escolares compreenderem que eles são criações que se permitem migrar, transformar, ressignificar. Currículos são ‘espaçostempos’ vivos, fluidos e orgânicos. Propensos a mudanças. Soares, Paiva e Nolasco-Silva (2017, p. 43) acreditam que

[...] são ‘espaçostempos’ de encontros entre diferenças, de reconhecimento e estranhamento, de escrituras sobrepostas, práticas negociadas, bricoladas e abertas à invenção, às contingências e às oportunidades. São atos coletivos, criados cotidianamente nas escolas, mesmo que em sua origem encontremos arbitrariedades políticas e teóricas e tentativas de controle. Currículos são declarações de intenções institucionais, produtos de políticas públicas e decisões administrativas.

Nossos processos de ‘aprendizagemensino’ nesse período de crise sanitária mundial trazem a concepção de que migrações forçadas encontram-se inclusive nos currículos escolares. As dificuldades desafiam o mundo, nossa própria existência e a continuidade da humanidade. A resistência ao caos torna-se necessária e, para tanto, a criação se apresenta como consequência, ressignificando nossa existência, conforme nos revela Giard (2014, p. 12), ao apresentar a obra de Certeau:

Como se criar? Que toma o lugar daquela que fora imperiosa urgência: ‘criar o quê e como’? Nesta pergunta eu reconheço a primeira forma de inversão de perspectiva que fundamenta A invenção do cotidiano, deslocando a atenção do consumo supostamente passivo dos produtos recebidos para a criação anônima, nascida da prática do desvio no uso desses produtos.

Essa capacidade humana de criar a partir do que é supostamente imposto nos leva a compreender que nossas práticas, inclusive as curriculares, criam movimentos migratórios e transformadores a partir de demandas dos ‘praticantespensantes’ desses ‘espaçostempos’. Entendemos que nesses movimentos não são possíveis capturas, localizações, estagnações. Eles acontecem a partir das interações estabelecidas e tecidas pelos encontros dos diferentes e pelas diversas necessidades surgidas. Dessa forma, tomamos como dimensão a vida e sua necessidade de mudanças, até mesmo as forçadas. Nem uma margem, nem outra. Assim como Bhabha (1998), entendemos a importância do entrelugar como ‘espaçotempo’ de fluxos, de movimentos, de deslocamentos como possibilidade de criações.

As andanças formativas que constituímos e pelas quais somos constituídos criam múltiplos ‘conhecimentossignificações’ nos cotidianos escolares. No período pandêmico em que vivemos, foi possível identificar muitas vivências que evidenciam essas migrações. A primeira delas é o ‘espaçotempo’, que deixa de estar localizado fixamente, em uma escola, por exemplo, e passa a acontecer nas ambiências virtuais (SANTOS; WEBER, 2013). Para as autoras, é possível tecermos ‘conhecimentossignificações’ e sentidos mediados pelo uso das tecnologias, como as ferramentas de plataforma de escolas on-line, encontro de mídias digitais, entre outros.

Assim, nossa metodologia de pesquisa foi realizada por meio de conversas com os ‘praticantespensantes’ dos cotidianos escolares. Os professores e autores deste artigo estão inseridos em redes educativas distintas, como: organização não governamental, rede privada e pública de ensino. Para nós, a riqueza produzida nos cotidianos possibilita ressignificar a ‘praticateoriapratica’ dos sujeitos que os compõem. O enfoque deste texto está nas transformações produzidas no âmbito educacional, suas negociações e criações de ‘conhecimentossignificações’ no momento atual.

3 NAVEGANDO EM OUTROS RIOS… TECNOLOGIAS E AMBIÊNCIAS VIRTUAIS

E, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio.

Guimarães Rosa

Antes mesmo de a pandemia da Covid-19 surgir, identificamos as tentativas de recusa das tecnologias nos ‘espaçostempos’ escolares, seja por ausência de acesso ao uso da tecnologia, ou por resistência ao novo. Muitas redes educativas possuem uma sala de informática, mas nem sempre são atualizadas, conservadas e têm acesso facilitado. Algumas destas coexistem com decretos municipais, em algumas regiões, que proíbem o uso de celular nas escolas. Conforme nos dizem Machado, Morais e Toja (2020, p. 147-148):

[...] a respeito dessas normas proibitivas, despontencializam-se tecnologias contemporâneas que fazem parte dos nossos cotidianos, inclusive para estudar. Ao contrário disso, devemos investigar como os usos de celulares, por exemplo, que é o que temos de mais disseminado, como um artefato tecnológico e linguagem multimodal, atribui valores formativos e criativos nos processos de aprendizagem. O uso consciente das tecnologias precisa ser discutido nos espaçostempos escolares, e a sua relação no dentrofora das escolas públicas e privadas no país. Os estudantes e os professores se relacionam durante todo o tempo, havendo muitos encontros físicos e outros virtuais.

Com o isolamento social e o incentivo de criações de atividades em ambientes on-line durante a pandemia, ficaram evidentes a necessidade e a potência desses artefatos eletrônicos, além de terem sido escancaradas as desigualdades sociais, a ausência de acesso à internet, de celulares, computadores e, ainda, ‘espaçostempos’ necessários para acompanhar e participar dos encontros. Agravando esse quadro caótico de adoecimento e óbito de muitos por problemas físicos e emocionais, acrescentamos as dificuldades de acesso e habilidade na utilização das tecnologias e recursos específicos para os ambientes virtuais, gerando uma crise dentro de outra, a pandemia. Crise essa de aumento exponencial pela falta de investimento em todos os níveis de governo.

Muitos docentes identificavam essas dificuldades e a ausência de políticas públicas para resolvê-las há algum tempo. Entretanto, acreditamos que os currículos se movem como as águas dos rios, iniciando os movimentos de criações curriculares. Prova disso são os inúmeros artefatos tecnológicos utilizados que atendessem a essa nova demanda. Zoom1, Meet, WhatsApp, E-mail, PDF, começaram a passar de, muitas vezes, desconhecidos a artefatos fundamentais para tentar uma aproximação entre ‘docentesdiscentes’ nesse período conturbado.

Assim como o nosso protagonista do conto, que pediu para construir uma “canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador” (ROSA, 1994, p. 409), docentes e discentes iniciaram suas criações para enfrentarem e se readaptarem aos dias distantes fisicamente das escolas; o desafio de caminhar sobre o fio da navalha (MATURANA; VARELA, 1995), que permeia entre a ausência de ações governamentais e o medo da contaminação do vírus.

Professores compondo atividades que instiguem a criatividade e a curiosidade em tempos tão difíceis; estudantes dividindo celulares e computadores com irmãos e responsáveis, muitas vezes em home office. Muitos caminhando em suas moradias com o aparelho em mãos até conseguir um sinal gratuito de internet, realizando as atividades no caderno e fotografando para enviar, gastando, assim, menos dados. Muitos ainda solicitando maior ampliação do uso do WhatsApp por terem acesso ilimitado no pacote de dados fornecido pelas operadoras de celulares ou material impresso para não “perder” os conteúdos das aulas. São diversas e múltiplas as estratégias e táticas (CERTEAU, 2014 criadas durante esse período. Se antes havia o pedido e o desejo para que o estudante “se desligasse do celular e prestasse atenção ao que ocorria em sala de aula”, agora o pedido é que ele utilize o celular para realizar as tarefas e se comunicar com a escola. São as tecnologias se impondo como um rio revolto, onde, à deriva, o jeito é aproveitar o fluxo d’água em busca da sobrevivência.

Diante do exposto, é possível identificar uma das redes educativas apresentadas por Alves (2019), que considera a importância dos usos das mídias na formação dos sujeitos. Com a suspensão presencial das atividades, nós, docentes, fomos desafiados a produzir novas maneiras, diante do caos, para navegarmos com nossas canoas, nossas ‘praticasteoriaspraticas’ a partir desse entrelugar.

4 O ENTRELUGAR DO PROFESSOR - MARGENS E POSSIBILIDADES

A gente teve de se acostumar com aquilo.

Às penas, que, com aquilo,

a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade.

Guimarães Rosa

Acreditamos que os docentes estabelecem relações com diferentes ‘praticantespensantes’ da educação, em especial os estudantes, pois estão mais próximos diariamente, percebendo, muitas vezes, seus desafios, limites e possibilidades, mobilizando os outros envolvidos, em busca de contribuir nos processos de ‘aprendizagemensino’. Não podemos ignorar que, como um dos ‘praticantespensantes’ da educação, o docente pode sinalizar questões e dificuldades, articulando possíveis medidas cabíveis e propondo migrações curriculares.

Igualmente ao personagem do conto, que decidiu atracar sua canoa entre as margens do rio, tivemos escolas e professores que fizeram da não ação suas ações, baseando-se nas dificuldades de acesso de muitos estudantes e professores, por discordarem dos modos como eram decididas muitas “soluções” para a suspensão das aulas presenciais. Entendemos que existem movimentos curriculares até quando não há, como um rio intermitente que, embora sereno, permite-nos navegar. A recusa em realizar as aulas de maneira remota pode, muitas vezes, denunciar as desigualdades e as impossibilidades de diversos docentes e discentes nesse processo.

Contudo, destacamos muitos docentes que se moveram e ainda se movem para criar, a partir das tecnologias, atividades, projetos e encontros com os discentes. Entendemos as dificuldades de muitos e a constante navegação para que os currículos fluam, permeando esses processos de ‘aprendizagemensino’. Assim como em um rio, criar currículos na pandemia é entender que há momentos de calmaria com águas tranquilas, em que há fluidez, e outros, de águas revoltas, em que se precisa mudar o curso quando esbarramos em obstáculos nos percursos. Faz-se necessário criar rotas, mas os cotidianos, com suas tantas astúcias, indicarão as transformações e pausas necessárias para a navegação.

4.1 ‘Espaçostempos’ curriculares - formações e criações nas presenças e ausências, navegando entre o presencial e o remoto

O rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre.

Guimarães Rosa

A primeira vivência narrada neste texto traz conversas de um dos autores com os ‘praticantespensantes’ de seu ‘espaçotempo’ de atuação, uma escola pública federal do estado do Rio de Janeiro. O desafio começa logo após conseguir licença para se dedicar ao doutorado e escrever sua tese, cujo objetivo era compreender como os movimentos migratórios se apresentavam como questões curriculares na escola.

As conversas, os artefatos culturais e tecnológicos acerca da temática migratória com os ‘praticantespensantes’ da escola eram o “mapa” de pesquisa. Esses elementos provocavam, questionavam e criavam experiências que permitiam traçar caminhos acerca de como cada um de nós experimenta deslocamentos, migrações e transformações ao longo da vida.

Os acontecimentos vividos por nós e por nossos ancestrais permitem-nos ‘verouvirsentirpensar’ o mundo como ‘espaçotempo’ de constante transformação e mudança. Fatores diversos justificam tal afirmação, seja a necessidade de fuga a um conflito, guerra e/ou escassez ou para obter melhores condições de vida, resultando na manutenção da vida e do mundo. Essa característica migratória não está presente apenas na espécie humana, mas em diferentes espécies de animais que migram com o mesmo objetivo. É possível identificar, inclusive, as transformações e migrações em diferentes paisagens e ecossistemas, sempre com o intuito de manutenção da vida.

A pandemia, acontecimento vivido pela humanidade, causou impacto nas macro e micropolíticas. Provocou mudanças de hábitos, valores e perspectivas. Produziu medo, insegurança e incertezas. Fomos acometidos por atos e sentimentos diversos. Essas consequências impactaram nossas vidas e pesquisas. Assim como o personagem de Guimarães Rosa, estávamos entre as margens ou, conforme descreve Bhabha (1998), no entrelugar.

O desafio estava lançado: Como continuar pesquisando e navegando nos cotidianos sem ser afetado por esse acontecimento? Como desenvolver nossas pesquisas sem narrar as experiências por nós vividas? Somos múltiplos e complexos, somos tanto e tão pouco concomitantemente. Como criar estratégias de sobrevivência diante do caos da pandemia? Como garantir a manutenção da vida, conforme fazemos desde os primórdios da história, a partir de movimentos migratórios, e que são realizados por diferentes espécies? Como a educação, tão importante e inerente à espécie humana, pode prosseguir diante desse cenário? O que é de fato fundamental para os currículos escolares? Como continuar educando crianças e jovens que estão em contínuo processo de desenvolvimento?

Estas e tantas outras perguntas foram e são parte de nossas vivências. Conforme mencionamos, nosso objetivo não é produzir respostas prontas, mas ‘verouvirsentirpensar’ o momento atual, em especial, no âmbito educacional. Interessa-nos identificar os ‘fazeressaberes’ criados pelos ‘praticantespensantes’ das redes educativas e compreender os ‘conhecimentossignificações’ criados no entrelugar, entre as margens. Também nos parece relevante entender, a partir dessas vivências, como estes estão vivenciando esse período de pandemia. Narramos nossas experiências e conversamos com elas, trazendo pistas (GINZBURG, 1989) daquilo que nomeamos currículos migrantes.

Diante do cenário de suspensão presencial das atividades, um misto de sentimentos e questionamentos surgiu para nós, gestores, docentes e profissionais da educação. Não sabíamos como agir diante de um quadro inédito para a educação. Não era uma greve docente, não eram férias, uma obra emergencial ou, ainda, a falta de itens básicos que, muitas vezes, acomete os cotidianos e que provoca a suspensão das atividades. Tão logo, porém, foi possível traçar um “mapa estratégico” de atuação e reorganização das aulas.

A pandemia trouxe consigo uma ausência de soluções em um campo acostumado a produzir respostas, a ensinar, identificar e produzir ‘conhecimentossignificações’ constantemente. Nesse sentido, as ausências trouxeram desconforto e inquietação. O que fazer? Como fazer?

Iniciamos o trabalho remoto em maio de 2020. Primeiramente, debruçamo-nos em nossa própria formação teórica, técnica e cultural. Estávamos diante da necessidade de transformação, o que nos pôs a caminhar em processos de repensar, refazer, rediscutir, reavaliar, ressignificar os modos de ‘aprenderensinar’ nossos currículos.

O debate a respeito da Educação a Distância tornou-se central em nossas reuniões gerais. A defesa por uma educação democrática, inclusiva e plural fazia jus à não realização dessa modalidade de ensino, uma vez que a maioria de nossos estudantes é proveniente das classes populares e tem dificuldades de acesso a direitos básicos. Além disso, os discursos contra o sucateamento da educação e a inserção da lógica neoliberal e mercadológica na educação se apresentaram como justificativas relevantes.

As incertezas, as dores, as ausências, as dificuldades, os medos e as indefinições eram sentimentos recorrentes em muitos. Após dias de esperar, esperar, esperar, fazia-se necessário caminhar, caminhar, caminhar... Outras ações foram realizadas na tentativa de minimizar os transtornos produzidos pela pandemia. Em abril, organizamos mutirões de distribuição de cestas básicas e levantamento de demais necessidades dos estudantes.

As ações pedagógicas que envolviam os estudantes foram retomadas em maio. O site2 criado pela instituição passou a permitir que os currículos migrassem em um movimento de centralidade e valorização das artes e dos sentidos e afetos. Encontramos a música, ampliando a potência criativa dos sons, as obras de arte, peças teatrais, danças e as culturas populares presentes em nossa formação. Foi possível destacar inclusive propostas que levam em consideração os diferentes sentidos e sentimentos tão relevantes nos processos de ‘conhecimentossignificações’ dos estudantes. Algumas atividades propostas, como fotografar a vista da janela, descrever sentimentos vividos durante esse período ou ainda refletir acerca da importância da ciência e da promoção à saúde como políticas públicas fundamentais para a nossa sociedade sinalizam as diferentes e múltiplas migrações curriculares vivenciadas nesse período.

Destacamos ainda o quanto as demandas institucionais têm nos colocado desafios, por orientação dos respectivos órgãos reguladores diretos ou pela necessidade da manutenção dos laços afetivos e pedagógicos com nossos estudantes. As mídias digitais passam, então, a ser parte fundamental nos processos de ‘aprendizagemensino’.Santos e Weber (2013, p. 44) afirmam:

Desenvolver práticas educativas associadas às tecnologias digitais em rede é um desafio que se coloca, uma vez que ter acesso a essas tecnologias não é suficiente, é preciso saber como usá-las para promover situações de ‘aprendizagemensino’.

Em contrapartida a esses desafios, nossas escolhas pedagógicas estão/são baseadas em afetos, no compromisso com uma educação que nos possibilite a criação e a reinvenção de si e do mundo. A liderança indígena Krenak (2020) traz importante reflexão a respeito do momento atual em que vivemos, amparando nossas propostas pedagógicas às crianças da instituição.

Quem dera eu pudesse fazer uma mágica para nos tirar desse confinamento, que pudesse fazer todos sentirem a chuva cair. É hora de contar histórias às nossas crianças, de explicar a elas que não devem ter medo. Não sou um pregador do apocalipse, o que tento é compartilhar a mensagem de um outro mundo possível. Para combater esse vírus, temos de ter primeiro cuidado, depois coragem (KRENAK, 2020, p. 8).

Nesse sentido, é com cuidado e coragem que seguimos desafiando-nos a educar nossas crianças. Acreditamos nas potências criativas que surgem diante do caos e do medo que tenta nos paralisar, mas persistimos em caminhar, por acreditarmos em outro mundo possível.

4.2 O não lugar ou o algum lugar - entre as margens de um rio hibridizado

Largo, de não se poder ver a forma da outra beira

Guimarães Rosa

Continuando nossas conversas, trazemos agora as vivências dos cotidianos existentes dentro de uma instituição privada, localizada geograficamente na cidade do Rio de Janeiro, no bairro da Freguesia, constituída majoritariamente pela classe média. A escola atende a um público local, que pode pagar por um sistema educacional que conseguiu (re)existir diante da pandemia da Covid-19, em virtude de uma melhor condição socioeconômica da comunidade escolar.

Entendemos que as travessias nessas migrações curriculares iniciam-se ainda nos moldes implementados logo no início da interrupção das aulas, em março de 2020. O modelo adotado por essa escola e por muitas outras escolas privadas da cidade do Rio de Janeiro foi a transposição das aulas segundo o ensino remoto, recurso possível por meio da ferramenta do Google Meet. Nesse panorama, Santos (2020, 19’17’’, Informação verbal) analisa que:

[...] uma solução mais rápida; muita gente não teve nem sequer uma semana para respirar e buscar uma solução rápida para atender aos seus exercícios institucionais. Então, o que a gente está chamando de educação remota é exatamente toda ação intencional, mas muito rápida e aligeirada, de fazer o encontro dos professores com seus alunos.

Em função disso, a transposição didática (LOPES; MACEDO, 2011) e as andanças ocasionadas nos currículos vigentes fizeram-se necessárias para os ‘docentesdiscentes’ no ano letivo. As migrações do presencial para o on-line criaram ‘práticasteorias’ necessárias para a formação de novos ‘conhecimentossignificações’ em meio ao caos. Santos, Machado e Morais (2021) entendem que as atualidades criam novas demandas e que precisamos nos relacionar com essas possibilidades existentes, permitindo-nos fluir nesse fluxo de mudanças e deslocamentos.

Em outubro de 2020, foi iniciado um sistema híbrido de aula, que podemos caracterizar basicamente desta forma: parte dos estudantes assistia à aula presencialmente e a outra parte continuava em sistema remoto, em um rodízio semanal em que os estudantes se alternavam em dois grupos distintos. Da sala de aula física os docentes transmitiam, ao vivo, suas aulas, auxiliados por um computador com câmera e som, ainda pela ferramenta do Google Meet. No retorno do ano letivo de 2021, esse sistema já foi adotado pela maioria das escolas privadas do estado do Rio de Janeiro. Amparadas pelas tecnologias, foi possível navegar nessas águas, mesmo com todas as intempéries, como as dificuldades tecnológicas dos professores, quedas de internet e tantos outros impasses. Diferente das escolas públicas que não conseguiram fluir nesse rio, rotineiramente, as aulas são ministradas em modo assíncrono.

Em contrapartida, pouco se considerou acerca da essencialidade da vida de professores e estudantes. As escolas privadas do Rio de Janeiro mantiveram-se abertas nos momentos mais críticos da pandemia, sendo submetidas a uma agenda neoliberal cada vez mais presente nos “pacotes” educacionais.

Todos esses deslocamentos existentes nos currículos provocaram mudanças nas maneiras com que estes foram vivenciados em seus múltiplos cotidianos. As aulas híbridas aconteceram em tantos não lugares ou lugares sem margens e parâmetros definidos. Colocaram em suspenso muitas ‘práticasteorias’ conhecidas nos ‘espaçostempos’ acadêmicos e também no ‘chão da escola’. Não foram nem presenciais, nem remotas, nem on-line. Foram criações outras. Repentinamente, surgiram especialistas em sistemas híbridos de educação, contrariando muito as metodologias e os pensamentos científicos. Na pandemia, tornaram-se necessárias outras criações, migrações forçadas. Eram rios que não imaginávamos navegar tão abruptamente.

Não são poucos os relatos de professores que questionam as ‘teoriaspráticas’ utilizadas nesse período pandêmico. As migrações curriculares são partes constantes de nossos processos formativos; deslocamo-nos em virtude de muitos acontecimentos (DIAS, 1995) existentes. Entendemos, assim como Dias (1995), que esses acontecimentos não são fatos ou ações históricas, mas sim possibilidades que encadeiam desdobramentos. Para o autor:

Os meios de comunicação dão conta de <<existentes>>, mas o evento filosófico não existe, subsiste. É autossubsistente. Ele não é o que aconteceu nem o que está na iminência de acontecer, ele está entre ambos, é as duas coisas ao mesmo tempo, o inactual entre-dois, em simultâneo o que vai ocorrer e o que ocorreu já num tempo próprio, sem presente, num tempo infinitivo não cronológico (DIAS, 1995, p. 15, grifo do autor).

Notamos que esse hibridismo presente em nossos ‘espaçostempos’ escolares sobrecarregaram-nos com tarefas desconhecidas em nossas práticas cotidianas. Como dar conta do presencial e do remoto? Como criar metodologias que assistam os estudantes que estão alocados no presencial e em casa ao mesmo tempo? Como demandar nossa atenção, como professores, para duas ambiências - a virtual e a presencial - tão distintas? As orientações das coordenações e das direções escolares são para que o corpo docente utilize metodologias ativas que permitam uma maior participação e interação dos estudantes na aula. Como se o professor pudesse dar conta sozinho de todo esse não lugar definido. Como se, em uma canoa, pudéssemos navegar no rio com espécies diferentes a esse ecossistema, todos juntos e ao mesmo tempo. Se já não bastassem as águas revoltas em que tentamos nos margear.

É notório que não temos todas as respostas para essas perguntas. Nem os gestores, os sujeitos que produzem as políticas públicas educacionais. Contudo, desafiamo-nos a ‘fazerpensar’ a educação. As travessias curriculares hibridizadas colocaram-se como um desafio para o professor. No entanto, é preciso pontuar que nos encontramos nos limites, navegando nesse fluxo em que passageiros distintos requerem atenção e modus operandis diferenciados. A pandemia trouxe a necessidade de discutirmos o ‘espaçotempo’ escolar e a utilização dos artefatos culturais tecnológicos nessa viagem.

4.3 Jovens aprendizes e suas buscas para encontrar um lugar no rio

Não pojava em nenhuma das duas beiras,

nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim.

Guimarães Rosa

A última vivência de currículo migrante na pandemia a ser chamada para esta conversa é a ocorrida em uma ONG, onde se oferecem cursos para jovens entrarem no mercado de trabalho. É uma atividade conflituosa, em que esbarramos em questões capitalistas e meritocráticas, que envolvem seleções para vagas em empresas que ofertam essa demanda, muitas vezes, somente por cumprimento de lei, enquanto nós, a equipe de professores, tentamos ampliar as questões dos processos seletivos com atividades que envolvem criações, ideias, leituras voltadas às artes. Possibilidades outras que podem os acompanhar na empresa e em outras partes de seus cotidianos.

A primeira ação da instituição, ao iniciar o isolamento social, foi encerrar o curso preparatório que permitia acesso aos jovens que residem em regiões periferizadas às vagas das empresas, continuando somente com os módulos de aprendizagem oferecidos aos jovens aprendizes que já estão contratados por empresas parceiras e que, como acordado em seus contratos, frequentam semanalmente a instituição para a parte teórica da aprendizagem, determinada pelo Ministério do Trabalho3.

Após essa grande perda, o acordado pela instituição, sem uma conversa conosco, professores, foi a utilização de uma plataforma para inserir as atividades, links de vídeos, propostas de materiais acerca do tema apresentado no dia e receber o retorno dos jovens em formato de texto. Uma solução estruturada, limitada e formal. Assim que se iniciaram os encontros por meio da plataforma, surgiram também as questões. Parte da equipe da instituição pressupunha que, em virtude da remuneração pelo contrato de aprendizagem, os jovens não teriam problemas - como dificuldade de acesso à internet, falta de celulares e computadores, entre outras. Não levaram em consideração que grande parte busca a primeira vivência de emprego para ajudar financeiramente em casa, nas necessidades básicas como alimentação, que se alastraram na pandemia, e muitos jovens relataram que os responsáveis e familiares perderam seus empregos nesse período. Onde há necessidade de comida não sobra para um investimento em uma internet de qualidade, por exemplo, o que os faz ficar à deriva, como o personagem do conto de Guimarães Rosa, em um movimento de incerteza e preocupação, depois de terem passado por um processo já difícil e concorrido em busca de um lugar no rio.

Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele (ROSA, 1994, p. 410).

Entretanto, como já mencionamos no texto, assim que surgem as dificuldades, os currículos são repensados e os professores da ONG, além de serem os que fazem a travessia das questões dos jovens para a equipe técnica, movimentam-se em busca de criações para que se consigam possibilidades e encontros com os jovens com dificuldades impostas pela crise. Estender prazos, receber atividades por fotos, telefone, e-mail, pensar atividades que propiciem aprendizado, mas que não ocupam o tempo dos módulos presenciais para serem realizadas. Repensar avaliações (Será que questionários são realmente necessários?), repensar a prática, o tempo, o planejamento. Muitas reuniões foram pautadas pelos desafios e pelas dificuldades dos jovens. O formato não era o melhor, a distância física e a estrutura fria da plataforma não ajudavam, mas buscamos viabilidades por meio de um retorno afetuoso aos textos escritos e ao pensar em atividades nas quais foi possível inserir músicas, trechos de filmes, peças teatrais e literatura. A arte nos ajudou a atravessar esse momento. Quando as atividades envolvem arte, o retorno e a empolgação dos jovens tornam evidente a potência da cultura nas redes educativas, mesmo em meio a um governo que não entendia e valorizava a importância da arte e da cultura em nossas vidas, em tempos de crise ou fora deles.

As atividades nas plataformas foram iniciadas em abril de 2020, um mês após ser decretado o isolamento social no Rio de Janeiro e diversos outros estados brasileiros, e permaneceu até o segundo semestre de 2021. O Ministério do Trabalho autorizou o retorno das atividades teóricas presenciais no início de 2022 para jovens aprendizes, apesar de alguns terem retornado às atividades presenciais práticas efetuadas nas empresas antes desse período. A ideia de uma maior aproximação, da maneira que é permitida em um isolamento social, foi até interessante, se não fossem todas as dificuldades de acesso que observamos durante todo o processo e considerando que não houve iniciativas que possibilitaram a melhora nesse período.

Solicitar a presença em um aplicativo que utiliza câmera e som é usar os dados móveis necessários para navegação da internet em um período curto de tempo. Nem todos têm acesso à conexão wi-fi, o que facilitaria esse contato. Logo, a adesão à parte dos encontros destinados ao Zoom foi muito baixa. A ONG possuia um quantitativo médio de 350 jovens que participam dos projetos. Nesse período atípico, em torno de 10% a 20% dos jovens conseguiram se manter conectados. Percebemos, nesses encontros que não só o acesso à internet impossibilitava a participação. Alguns jovens precisavam cuidar de irmãos e parentes pequenos; outros estavam dividindo o tempo da aprendizagem com outros cursos e estágios em busca de melhores oportunidades ou já pensando no momento em que o contrato, que tem validade predeterminada, acabaria, além do surpreendente aumento de número de jovens que, durante a pandemia, precisaram buscar outros empregos para ajudar na renda da família.

Mais uma vez, houve a necessidade do movimento dos professores, que levaram essas questões à equipe técnica, em busca de medidas que possibilitassem aos jovens oportunidades. Foi interessante, ainda mais em tempos pandêmicos como o que vivemos, uma proximidade na distância, desde que essa aproximação fosse acessível e possível para um maior número de jovens, caso contrário, a iniciativa de encontro se soma às iniciativas que só denunciam a desigualdade, a crise econômica e diversas injustiças alargadas pela Covid-19. Assim como no conto de Guimarães Rosa, um não movimento pode ser o movimento. Às vezes, é necessário e importante parar, em vez de forçar uma navegação para poucos.

Outra questão percebida nessa vivência e que foi presente nos poucos jovens que conseguiram acompanhar os encontros por meio do Zoom, e que é importante mencionar, é com relação à fragilidade. Eram corpos cansados, desesperançosos, emotivos, que apareciam na tela querendo, mais que conversar acerca do tema do módulo, falar das incertezas, das necessidades, das faltas que esse tempo nos trouxe. Nos estudos com os cotidianos, entendemos que formamos e somos formados por meio de nossas redes e de nossos sentidos, e essa vivência mostrava a necessidade, mais que nunca, do afeto para receber, para trocar, para ‘aprenderensinar’ em tempos difíceis. Acreditamos que essas características também nos possibilitam imaginar que nem tudo foi resolvido e deixado para trás após a pandemia, após todos estarem vacinados, após os ‘espaçostempos’ escolares, que tiveram que fechar nesse período, abriram encarregados de problemas. Ainda temos o desafio de ser e receber pessoas fragilizadas pelas perdas, pelas lutas e resistências pelo caminho, mas acreditamos no registro também como possibilidade de já pensar nesse futuro, enquanto lidamos com esse tempo de acolhimento. Currículos migram e, nos movimentos, encontram-se com os ‘praticantespensantes’ fluindo juntos - sempre em criações, seja em sentido de algum lugar, seja não indo, momentaneamente, a lugar algum.

5 ALGUMAS TRAVESSIAS FINAIS

A gente teve de se acostumar com aquilo.

Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade.

Guimarães Rosa

Migrar é preciso, criar é necessário. Estamos na iminência de viver a educação, que só pode acontecer na troca e no ‘aprenderensinar’ entre pessoas preocupadas e afinadas com o bem comum, ou seja, com a própria vida. Para tal, porém, precisamos também escapar dos discursos mercadológicos que tentam se apropriar dos processos criativos e da potência formativa que os cotidianos escolares têm, com os ‘discentesdocentes’ de diversos ‘espaçostempos’.

Compreender os indícios e pistas das criações curriculares produzidas pelos ‘praticantespensantes’ no contexto atual torna-se urgente, bem como identificar e relacionar os modos como os ‘conhecimentossignificações’ têm sido criados a partir dos movimentos migratórios dos currículos escolares. Apoiamo-nos nas ideias de Deleuze, em que o acontecimento engendrado pela Covid-19 perturbou-nos os modos habituais pelos quais concebemos o que somos e o mundo em que vivemos. As incertezas, medos, instabilidades, agenciamentos e disputas aturam incessantemente no mundo e, consequentemente, no ‘fazerpensar’ docente. Há, também, inúmeras criações e tensões, ‘aprendizagensensinos’ de crianças, jovens, famílias, gestores e toda a comunidade escolar.

Ainda enfrentamos as consequências da pandemia da Covid-19. Muitos profissionais da educação sofreram perda irreparáveis. O retorno ao ensino presencial ocorreu de modo lento, geralmente com algumas voltas às atividades on-line, quando ocorrem infecções do vírus nas redes educativas.

Foi uma travessia nova, repleta de surpresas, de assombros e incertezas, o que nos indica, assim como o personagem de Rosa (1994), que foi para o rio para nunca mais voltar, as mudanças impostas pelo Coronavírus permanecerão nas redes educativas. Quando voltamos totalmente às atividades presenciais, encontramos outras escolas, afetadas pelo vírus, pelas tecnologias, pelas maturações necessárias para que se continuasse a estudar, mesmo de longe, mesmo com as dificuldades, mesmo com o vírus. Infelizmente, vivenciamos e vivenciaremos ainda muitos impactos causados pela pandemia na educação, mas podemos indicar que os currículos continuarão o seu curso, por vezes fluindo nas águas, por vezes navegando contra a maré, por vezes parados, à espera, formando mais uma margem.

REFERÊNCIAS

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NOTAS:

1 A Zoom Video Communications é uma empresa americana de serviços de conferência remota com sede em San Jose, Califórnia. Ela fornece um serviço de conferência remota “Zoom” que combina videoconferência, reuniões on-line, bate-papo e colaboração móvel.

2 Disponível em: https://quarentuniuff.wixsite.com/coluniuff. Acesso em: 20 ago. 2022.

3 Com a criação do Projeto Jovem Aprendiz, aprovado no ano 2000, determinou-se que toda empresa de médio e grande porte deveria ter de 5% a 15% de jovens aprendizes contratados, com carga horária de 4 ou 6 horas no máximo, além da obrigatoriedade de um aprendizado teórico, oferecido por uma instituição sem fins lucrativos.

Recebido: 14 de Setembro de 2021; Aceito: 16 de Agosto de 2022; Publicado: 15 de Maio de 2023

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