SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.21Migrações Curriculares: Cotidianos, Travessias e Criações de Outras Margens como PossibilidadesCurrículo e práticas de subjetivação: uma abordagem socioepistemológica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub 30-Jun-2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e49195 

Artigos

A Diversidade na Sala de Aula e suas Influências na Formação de Identidades Discentes

Diversity in the Classroom and their Influences in the Formation of Discent Identities

Diversidad en el Aula y sus Influencias en la Formación de Identidades Discentes

Maria da Conceição Oliveira LOPESi 
http://orcid.org/0000-0002-4692-9283

Fabrício Oliveira da SILVAii 
http://orcid.org/0000-0002-7962-7222

i Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Professora e Gestora da rede estadual de Educação Básica de Feira de Santana -Ba. E-mail: maria.ceica74@yahoo.com.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-4692-9283

2ii Doutor em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professor do Departamento de Educação e Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). E-mail: fosilva@uefs.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-7962-7222


Resumo

O artigo analisa como tem sido o trabalho de professores com a diversidade na educação básica, a partir de narrativas sobre suas práticas de mediação pedagógica desenvolvidas com o intuito de gerar reflexões em torno do processo de formação identitária. A pesquisa trilhou no lastro da discussão acerca de diversidade, identidade, diferença, práticas pedagógicas, nos aportes da metodologia qualitativa, com opção pela entrevista semiestruturada. Os sujeitos participantes foram cinco professoras de História da Educação Básica e três licenciandos em História de uma universidade pública. Os resultados permitem concluir que há percepções dos colaboradores a respeito da importância de desenvolver práticas educativas que contemplem temáticas da diversidade, mas ainda um trabalho tímido, quase que solitário no tocante a uma pedagogia fundamentalmente encorpada sobre o reconhecimento da diversidade e das diferentes identidades presentes na escola.

Palavras-chave: diversidade; identidade; diferença; prática pedagógica; narrativas

Abstract

The article analyzes how the work of teachers with diversity in basic education has been, based on narratives about their pedagogical mediation practices developed with a view to generating reflections around the process of identity formation. The research was based on the discussion of diversity, identity, difference, pedagogical practices, in the contributions of the qualitative methodology, with an option for the semi-structured interview. The participating subjects were five History of Basic Education teachers and three graduates in History from a public university. The results allow us to conclude that there are perceptions of the collaborators about the importance of developing educational practices that contemplate themes of diversity, but still a shy, almost solitary work with respect to a fundamentally robust pedagogy about the recognition of diversity and the different identities present in the school.

Keywords: diversity; identity; difference; pedagogical practice; narratives

Resumen

El artículo analiza cómo ha sido el trabajo de los docentes con diversidad en la educación básica, por las narraciones sobre sus prácticas de mediación pedagógica desarrolladas con miras a generar reflexiones en torno al proceso de formación de identidad. La investigación se basó en la discusión de la diversidad, identidad, diferencia, prácticas pedagógicas, en los aportes de la metodología cualitativa, con una opción para la entrevista semiestructurada. Los sujetos participantes fueron cinco profesores de Historia de la educación básica y tres graduados en Historia de una universidad pública. Los resultados nos permiten concluir que existen percepciones de los colaboradores sobre la importancia de desarrollar prácticas educativas que contemplen temas de diversidad, pero que sigan siendo un trabajo tímido y casi solitario con respecto a una pedagogía fundamentalmente concebida sobre el reconocimiento de la diversidad y las diferentes identidades presentes en la escuela.

Palabras clave: diversidad; identidad; diferencia; práctica pedagógica; narrativas

1 INTRODUÇÃO

A escola pública brasileira, criada para atender aos interesses ideológicos do Estado e de uma minoria, durante muito tempo, foi privilégio de grupos sociais economicamente favorecidos. Organizada a partir de um currículo rígido, sua cultura pedagógica e didática sempre foi baseada em uma clientela escolar homogênea social e culturalmente. Hoje, o espaço escolar, atendendo às pressões sociais, abre-se para os grupos que dela foram alijados ao longo da história, constituindo-se em palco da diversidade, mas, ainda assim, assegurando o currículo padronizado que ignora a pluralidade social e cultural latente na escola e que não favorece aos estudantes se revelarem em suas individualidades e experiências como sujeitos.

A escola, rotineiramente, ignora as diferenças, fazendo com que todos tenham que se adaptar a um perfil único, mesmo protótipo de aluno ideal, secundarizando as diversidades e se constituindo reprodutora das desigualdades. Predomina o fazer educacional hegemônico, que não leva em consideração o capital cultural e as desigualdades sociais que influenciam o modo de aprender e o fracasso escolar das classes socialmente desfavorecidas (BOURDIEU, NOGUEIRA e CATANI 2007). Na contemporaneidade, atendendo às pressões sociais, surge a necessidade de uma pedagogia que possibilite ecoar a voz aos desiguais, que abra espaços para as narrativas de afirmação da diversidade, de identidades, valores e tradições coletivas, desconstruindo a visão homogênea e horizontal de culturas, como afirma Arroyo (2008).

O professor, na Educação Básica, exerce sua profissão docente em turmas numerosas, com variados perfis, interesses diferentes, e muitas vezes são dadas as mesmas aulas, as mesmas leituras, dissociando o ensino da vida e realidade dos educandos, o que dificulta a formação do indivíduo. O desconhecimento da história de vida e das identidades juvenis e adultas, que habitam a sala de aula, tem sido um fator que dificulta o olhar para uma pedagogia da diversidade. Nesse espaço, em meio a essa pressão da sociedade do conhecimento e da informação, vemos jovens distantes, perdidos em conflitos existenciais, relacionais, emocionais, com baixa autoestima, depressivos, sem referência identitária, sem vislumbrar projeto de vida e de sociedade, à margem dos processos decisórios das políticas públicas e com pouca compreensão das narrativas históricas de opressão, de construção das desigualdades sociais, de raça, de gênero, de sexualidade.

Percebe-se, por outro lado, também na escola, o “excesso” de vida entre os jovens, falantes, barulhentos, enérgicos, ávidos por narrarem suas histórias, resenhas, ou ouvir do outro relatos de vida parecida com a sua, fazendo-os perceber que não estão sozinhos, mas atravessados por experiências semelhantes. A sala de aula também é povoada pelo adulto, que busca na escola a socialização, a oportunidade não tida ou perdida de outrora, o letramento para melhor interagir na sociedade e refazer sua história. Esse espaço revela o potencial narrativo que os jovens produzem sobre si, sobre o outro e sobre o modo como lidam com suas concepções, vivências e experiências. As narrativas se presentificam cotidianamente na sala de aula, desvelando os modos constitutivos de cada sujeito, mas, às vezes, com pouca escuta e diálogo com as práticas educativas que ali se desenvolvem.

As narrativas, as memórias, os textos (auto)biográficos se apresentam como possibilidades de escutar a si mesmo e o outro. Segundo Cunha (1997), a narrativa tem sido bastante recomendada para fins de ensino, especialmente na perspectiva das propostas de produção do conhecimento, que têm o educando como um ser socialmente situado. São dispositivos potentes para possibilitar a mediação didática do fazer docente, gerando diálogos sobre as diversas formas de ser, de pensar e de criar alteridades no espaço escolar. As diversidades se revelam nas narrativas, no movimento experiencial de cada sujeito, que se evoca cotidianamente a pensar e a se constituir em sua singularidade. Nos espaços educativos, a mediação é produzida narrativamente, fazendo emergir a compreensão dos modos de lidar pedagogicamente com os estudantes e consigo mesmo. É nessa seara reflexiva que, neste estudo, motivamo-nos a pensar: Quais as estratégias de mediação dos professores para trabalhar com a diversidade na sala de aula? Que práticas são importantes levar para a Educação Básica, a fim de contribuir com a formação para a diversidade? Que identidades os professores têm ajudado a formar com suas aulas e atividades na universidade e na escola?

Portanto, a proposta da pesquisa que realizamos teve como objeto de estudo a prática de mediação de professores na construção das identidades discentes, no (re)conhecimento das diferenças em sala de aula, por meio da escuta das histórias de vida, visando a uma pedagogia para a diversidade. O intento é poder ampliar as reflexões em torno da ação de educadores acerca da importância de criar espaço e tempo de fala para os educandos expressarem suas narrativas, suas experiências, seus saberes de opressão, sua identidade individual e coletiva. É problematizar a discussão, como afirma Arroyo (2008), sobre os processos de desumanização dos sujeitos que chegam à escola: da periferia, do campo, negros, pobres, mulheres, homossexuais, pois, em meio a esse quadro de diversidade, é fundamental fornecer dispositivos que auxiliem os jovens e adultos, ajudando em suas escolhas, posicionamentos e trajetórias de vida. É necessário desenvolver no estudante a consciência de raça, de gênero, de sexualidade, de si mesmo e de sua classe, para que se engaje em ações de (auto)transformação por melhores oportunidades, afirmação da identidade e redução das desigualdades. Assim, nada melhor do que ensinar ao aluno a saber-se, a conscientizar-se dos processos históricos da construção da opressão, conforme explica Freire (1987), e, nessa direção, contribuir para a reflexão a respeito da importância da escuta das narrativas de vida como possibilidade de estreitamento de laços afetivos entre professor e aluno, na busca de uma pedagogia da empatia e da inclusão.

2 COMPREENDENDO DIVERSIDADE, IDENTIDADE E DIFERENÇA

Sabemos que a escola perpetua as desigualdades por meio de seu modus operandi e legitima o status quo da sociedade - opressores e oprimidos - ao adotar o currículo definido pelas classes hegemônicas. O “professor foi e, em parte, continua sendo formado para homogeneizar, para transformar o diferente em igual, para ensinar, transmitir conhecimentos, orientar atitudes, procurando transformar em algo controlável o que não pode ser controlado” (PAIM, 2015, p. 14). Essa homogeneização curricular precisa ser problematizada, tendo em vista o fosso social e o apagamento do outro cultural gerados pelos modos de produção capitalista. É notória a necessidade de a escola pública definir seu papel, reconhecer-se como lugar multicultural, povoado pelas classes trabalhadoras, negros e negras, homens e mulheres, meninos e meninas, pobres, excluídos socialmente e ainda legitimados pela exclusão escolar quando a pedagogia não os reconhece como sujeitos de direitos, desprovidos de condições iniciais iguais para competir nessa sociedade de classes. O Conselho Nacional de Educação, desde o ano de 2001, versa em seu Parecer 017/2001 sobre a inclusão das diferentes identidades coexistentes no ambiente escolar e discorre acerca do propósito da educação:

Operacionalizar a inclusão escolar - de modo que todos os alunos, independentemente de classe, raça, gênero, sexo, características individuais ou necessidades educacionais especiais, possam aprender juntos em uma escola de qualidade - é o grande desafio a ser enfrentado, numa clara demonstração de respeito à diferença e compromisso com a promoção dos direitos humanos (BRASIL, 2001, p. 11).

O Parecer de 2015 reafirma, deliberando sobre a formação de professor e a diversidade de modo a contemplar: as questões socioambientais, éticas, estéticas e relativas à diversidade étnico-racial, de gênero, sexual, religiosa, de faixa geracional e sociocultural como princípios de equidade (BRASIL, 2015, p. 5). Também no Parecer de 2019, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial em Nível Superior de Professores para a Educação Básica definem:

VIII - compromisso com a educação integral dos professores em formação, visando à constituição de conhecimentos, de competências, de habilidades, de valores e de formas de conduta que respeitem e valorizem a diversidade, os direitos humanos, a democracia e a pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas (BRASIL, 2019, p. 5).

Percebemos, portanto, que o tema tem sido fortemente pautado pelos documentos norteadores, fazendo o chamado para que as escolas se engajem a fim de responderem ao desafio do relativismo, do currículo heterogêneo, da pedagogia da diversidade, sobreposta historicamente pelo currículo homogêneo e universal.

Nessa direção, o multiculturalismo se apresenta como um importante instrumento de luta política, pois questiona esse conhecimento considerado oficial. A teoria crítica do currículo problematiza a necessidade de refletir sobre aspectos culturais e experiências dos grupos marginalizados. Para Freire (2005), educador e educando devem dialogar a respeito dos conteúdos a serem apreendidos, construindo um currículo que discuta as condições da cultura dos grupos subordinados, questionando as injustas estruturas do currículo tradicional. A escuta, o diálogo, a manifestação dos discentes, o reconhecimento e a valorização das diferenças são fundamentais para a escola permanecer viva e significativa nos dias de hoje. Assim, dar vez e possibilitar que se ecoe a voz aos diferentes sujeitos que compõem o espaço escolar torna-se um imperativo para que se desenhe uma pedagogia que responda aos anseios dos sujeitos marginalizados.

Segundo Silva (2003), questões como etnia, raça e gênero configuram um novo repertório educacional significativo. Para ele, é importante não só reconhecer a diversidade como parte integrante do contexto escola, mas também problematizar como as diferenças são construídas. A escola é um território habitado por híbridas identidades, e elas não são estáveis, constroem-se no decorrer de um processo de discursos linguísticos, práticas e costumes sociais, passando por mudanças e transformações ao longo do tempo, a partir das representações sociais construídas nos diferentes contextos. Para Silva (2014), a identidade importa porque existe uma crise global, local, pessoal e política. Os processos históricos que supostamente sustentavam certas identidades estão entrando em colapso e novas vão sendo forjadas, por meio de lutas e contestação política. Conforme a autora, surgem novos movimentos sociais com uma necessidade de reconstrução das identidades nacionais e étnicas e reafirmação das pessoais e culturais.

A identidade é construída por meio da diferença. Para Silva (2014), a sociedade, impregnada de conceitos, impõe um padrão de comportamento, de acordo com a cultura produzida em seu tempo histórico, que foi socialmente estabelecida pelas representações. Aquilo que destoa do considerado normal, igual, passa a ser discriminado, olhado como o diferente. Portanto, a produção da identidade está intrinsecamente associada à diferença, demarcando território de contraste e luta. A identidade e a diferença traduzem-se em declarações entre quem pertence e não pertence a um grupo, incluídos e excluídos. Afirmar a identidade significa demarcar fronteira, separar.

Ainda segundo Silva (2014), a diferença e a identidade não podem ser limitadas ao respeito e à tolerância para com a diversidade, pois são construídas cultural e socialmente e por isso devem ser discutidas e problematizadas. Ele chama a atenção para a pedagogia e o currículo escolar, que precisam oportunizar aos estudantes a capacidade de crítica e questionamento sobre os modos de dominação de como se constrói a identidade e surgem as diferenças, constituindo-se em relações de poder, como uma questão política. Para ele, é preciso problematizar como são construídas, não só reconhecer, mas também questionar, compreendendo a diferença como múltipla, ativa, produtiva, e não diversa, estática, estéril. É fundamental o exercício de uma pedagogia que leve em conta as contribuições da teoria cultural recente, pois, ao reproduzir e valorizar uma identidade única, acaba-se por estimular a discriminação ou a segregação, promovendo assim a exclusão do diferente, ou seja, dos sujeitos que não correspondem a um padrão ou não obedecem a um comportamento estabelecido.

Hoje, nessa sociedade globalizada e em constante transformação, não há espaço para uma identidade fixa, imutável, única, pois os sujeitos se diferenciam, são múltiplos e podem construí-la de modo pessoal e coletivo, dependendo das relações das redes de convívio social. Segundo Carrano (2008, p. 200):

Os sujeitos se fazem e articulam suas identidades no interior de determinados contextos societários e históricos. Nascemos em determinada classe, cidade e país. Nosso corpo traz marcas que nos distingue, positiva ou negativamente, na sociedade e nossos pais nos legam determinados capitais culturais mais ou menos vantajosos para a integração social.

Dessa forma, entendemos que já trazemos opiniões, representações e conceitos e preconceitos sobre o mundo, a cultura, o comportamento das pessoas, a partir dos contextos em que vivemos, reafirmando a construção das identidades, que são produzidas em dada cultura, tempo e espaço. Isso denota que elas podem mudar, não são estáveis, configurando-se “como um sistema dinâmico, definido entre possibilidades e limites, que gera um campo simbólico no qual o sujeito pode conquistar a capacidade de intervir sobre si e reestruturar-se” (CARRANO, 2008, p. 199). Essa intervenção pode ser mediada pelo educador por meio de um trabalho de reflexão e autorreflexão, perguntando-se a respeito da prática pedagógica exercida, se esta colabora para a manutenção do sistema, legitimando as normas hegemônicas das classes dominantes, mediante a homogeneização pedagógica, ou ensinando os alunos a refutarem, questionarem, problematizarem os processos históricos de exclusão, buscando “formar identidades críticas, rebeldes, solidárias, não conformistas, criativas e autônomas?” (CANDAU, 2008, p. 51). Como afirma Carrano (2008, p. 201), “a instituição escolar pode desempenhar um papel importante neste processo de escolhas identitárias e construção de autonomia pessoal dos jovens, desde que se encontre aberta ao diálogo com as novas gerações”. Para o autor,

Esta é uma das mais importantes tarefas educativas, hoje: educar para que os sujeitos reconheçam a si mesmos e aos outros. Isso, talvez, seja mais significativo do que ensinar conteúdos que podem ser aprendidos em muitos outros espaços. Para escutar, numa relação solidária, é preciso, contudo, assumir a própria identidade, entrar em relação com a diferença e rejeitar as desigualdades (p. 201). [...] Em geral, acredita-se que a escola deva ser o lugar de aprendizagens de coisas e, de fato, ela o é; entretanto, deveria ser também o espaço-tempo cultural onde crianças e jovens seriam estimulados a desaprender (desdicere), ou questionar, os vários condicionamentos sociais que nos afastam da aquisição da autoconsciência e da solidariedade. A racionalidade das nossas pedagogias quer nos fazer crer que a aprendizagem se restringe apenas a saberes situados fora de nosso corpo (CARRANO, 2008, p. 204).

Constitui-se um desafio, portanto, fazer da escola um lugar de aprendizado da empatia e do sentimento de coletividade e respeito, que concilie os conhecimentos universais e a realidade humana, com suas especificidades, sua cultura, sua identidade própria, pois valorizar uma identidade única, um modelo normativo, contribui para o alarmante fosso social da desigualdade, discriminação e exclusão. É imprescindível pensar o currículo de modo a empoderar as classes populares com o conhecimento universalmente hierarquizado, conforme explica Saviani (2007), mas a partir de sua prática social, de suas experiências narrativas, biográficas e culturais, de modo a fazer sentido para sujeitos de múltiplas necessidades e potencialidades. Assim, a pedagogia da diversidade deve suscitar as experiências, a fala das vozes silenciadas, reprimidas, tornando a sala de aula mais democrática e participativa. A dialogicidade entre professor e aluno, entre os alunos, desenvolve sentimento de empatia, solidariedade, valorização da vida e da cultura, a partir das experiências compartilhadas por meio de

[...] narrativas autobiográficas, documentos históricos, dados estatísticos e demográficos, podendo ser socializadas por meio de pesquisas, leituras, discussões, seminários elaborados pelos/as estudantes, palestras feitas por convidados, assim como de experiências dos/as próprios/as alunos/as. Essas fontes são utilizadas para delinear contextos históricos contemporâneos; para superar visões estereotipadas e preconceituosas; assim como para trazer à tona histórias não contadas e vozes silenciadas (CANDAU, 2008, p. 48).

O que falam, de onde falam, o que sabem, como vivem, o que querem os alunos são interrogações pedagógicas que podem ressignificar o trabalho docente por meio das narrativas e das experiências dos sujeitos. “Aprender a trabalhar com as experiências prévias dos jovens alunos é compreender que estes são sujeitos culturais e portadores de biografias originais e não apenas alunos de uma dada instituição” (CARRANO, 2008, p. 205). A experiência é definida por Larrosa (2002, p. 26) como “aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma.” Esse saber derivado da experiência carregado de marcas culturais, pessoais, de padecimento, de sensibilidade, pode resultar numa constituição de personalidade, de caráter, numa forma singular de ser e de pensar o mundo. Mas e a universidade e seu papel na formação de futuros professores que atuarão na Educação Básica? A diversidade constitui pauta e princípio que regem a relação pedagógica nesse espaço de formação?

Segundo Arroyo (2008), os professores não são formados para trabalharem com as diversidades, as universidades unificam o currículo, sentem-se ameaçadas em sua hierarquização do saber quando as minorias adentram seus espaços. Os estudantes que lá estão também não são ouvidos por seus formadores. Suas memórias, identidades, experiências não são valorizadas. As diferenças são ignoradas, todos têm que se adaptar a um perfil único de aluno, mesmo protótipo, conforme o autor. Para ele, educadores e educandos precisam saber-se, saber de si, de suas memórias, tempo, espaço, família, condição de negro, de gênero, de segregado. De nada vale o saber que não ensina a saber-se. Segundo o autor:

Relatos mostram que essa preocupação legítima por saber-se, por encontrar interpretações conscientes sobre suas histórias, sobre essas representações para delas se libertarem não encontra espaço na prioridade acadêmica. Os currículos deixam pouco espaço para saber-se. O espaço é para o saber as disciplinas, o que ensinar e como ensinar, exigidos no núcleo comum por inflexíveis diretrizes curriculares. O saber-se sobre si, suas histórias coletivas de opressão, segregação e as autoimagens negativas impostas e internalizadas nessas vivências não merecerão um lugar privilegiado nem nos currículos de formação docente nem os de educação básica dos setores populares (ARROYO, 2008, p. 17).

Na visão do autor, a diversidade nos currículos de formação é secundarizada, o universal, comum, é que determina toda a pedagogia, não abrindo espaço para desconstrução da autoimagem negativa internalizada pelos desiguais ao longo do processo histórico de opressão. Muitas vezes, práticas educativas se limitam a tematizar a história dos coletivos diversos sem se abrirem à radicalidade política, cultural e educativa que vem de seus movimentos e organizações. A universidade precisa dialogar com a diferença, com os coletivos diversos, assim como a pedagogia dos movimentos sociais tem avançado nesse processo de afirmação das identidades e promovido a desconstrução do sentimento de inferioridade das minorias. Formar os próprios docentes-educadores é uma afirmação política e identitária necessária, assim como o é que os desiguais vejam suas histórias de luta e afirmação na história (ARROYO, 2008, p. 17). Candau (2008) também sustenta a necessidade de sermos conscientes de nossos enraizamentos culturais e do processo de hibridização e de negação e silenciamento de determinados pertencimentos culturais, desconstruindo visões estereotipadas de nós mesmos e a ideia de cultura e identidade como um dado natural. Faz-se necessário o exercício de uma visão dinâmica e plural, articulando a dimensão pessoal e coletiva dos processos de construção das identidades.

Constitui-se exercício fundamental direcionar o olhar para as urgências que impulsionam a vida, contextualizando as histórias às práticas sociais. O trabalho dissociado da vida, realizado sem objetivo, apenas como tarefa escolar, afasta toda possibilidade de criação e atribuição de sentido. Assim, vale evocar Dominicé (2006, p. 13) sobre a importância de uma das atividades com narrativa, em que o autor se concentra no trabalho com adultos e destaca o relato da biografia educativa como

[...] suporte para clarificar a posição a sustentar diante dos desafios da vida e da história: saber melhor de onde viemos; quais são essas tradições interiorizadas e combatidas no curso de nossa vida; em nome de quem, ou do que, nos insurgir contra o racismo, a corrupção ou a hegemonia do nacionalismo. Nós não temos nada além de nossa educação para saber melhor ao que nos apegamos verdadeiramente. [...] A atividade biográfica consistiu ontem em elucidar como nos tornamos o que somos ou como aprendemos o que sabemos. Importa, sem dúvida, que no futuro o trabalho reflexivo sobre a história de nossa vida se centre, sobretudo, sobre o que nos vai permitir aprender a crescer, a ganhar em lucidez sobre a sorte do mundo e a desenhar o que é verdadeiramente, para nossas sociedades, questão de vida ou de morte.

Portanto, é fundamental que a educação e o professor utilizem estratégias que levem os alunos a questionarem a sociedade, as representações sociais construídas, a condição das minorias, as estruturas sociais injustas e narrarem em que tipo de sociedade desejam viver.

Assim, nesse percurso, a pesquisa se debruçou sobre analisar o trabalho de professores da Educação Básica com a diversidade na sala de aula. Os sujeitos entrevistados foram cinco professores de História de uma escola pública estadual de grande porte que oferta o Ensino Fundamental II, Ensino Médio e EJA. Entrevistamos também três estudantes licenciandos em História de uma universidade pública, com o intuito de analisar, na narrativa dos futuros professores, como a diversidade atravessa ou não as práticas educativas na academia, de modo a refletir a respeito da atuação dos docentes que chegarão às salas de aula da Educação Básica. Os nomes são fictícios a fim de preservar a identificação dos colaboradores, conforme preconiza o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), e as denominações escolhidas para as professoras da Educação Básica são nomes de mulheres que se destacaram na História. A seleção pelo professor/estudante de História atribui-se ao fato de se esperar uma consciência ainda maior por parte desses profissionais acerca do processo de construção histórica de opressão das minorias e da necessidade de afirmação e valorização dessas identidades. Assim, com esse estudo, espera-se contribuir para reflexões educacionais significativas, rumo à construção de propostas pedagógicas que tenham como centro da educação escolar o ensino e a aprendizagem para a vida, para a alteridade, para que não transforme os diversos em desiguais.

3 AS NARRATIVAS DE PROFESSORAS E LICENCIANDOS SOBRE A PEDAGOGIA DA DIVERSIDADE NA SALA DE AULA

Nesse contexto de conflitos, contradições e debates em torno de universalização e relativismo, hoje, na sociedade pós-moderna, como andam as escolas públicas em matéria de reconhecimento e valorização da diversidade? Para Moreira e Candau (2008, p. 16), “a escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e neutralizá-las. Sente-se mais confortável com a homogeneização e a padronização”. E afirmam que ela, a escola, precisa responder ao desafio para o qual vem sendo chamada, o de abrir espaço para a diversidade, a diferença e para o cruzamento de culturas.

Podemos confirmar a referência feita pelos autores na narrativa de uma das professoras entrevistadas nesse estudo:

Há muito questiono o papel da escola pública em reconhecer as diferenças e a diversidade, que não são sinônimos. O verniz ralo da igualdade faz com que se apague identidades, silencie vozes dissonantes, enalteça o que é supostamente universal. Não é fácil remar contra a maré. Na maior parte do tempo sinto-me sozinha e, confesso, muitas vezes é mais fácil seguir a maioria (Dandara, Entrevista, 2020).

Percebemos, na fala da professora, o sentimento de trabalho solitário, a dificuldade de um trabalho coletivo, até mesmo com seus pares, professores da disciplina, sobre o trabalho com as diferenças e diversidades presentes na escola. Se entre os pares evidencia-se uma dificuldade de diálogo e trabalho conjunto em torno dos mesmos objetivos, isso reflete também na falta de um impacto maior em matéria de resultado na prática da escola como um todo, cabendo um forte delineamento das ações no Projeto Político Pedagógico e a obrigatoriedade de a escola responder ao chamado desse desafio, mobilizando todos por meio de projetos interdisciplinares, um projeto comum pelo qual as diferenças e as diversidades sejam dialeticamente incluídas. A ideia de homogeneização de práticas, como assevera Arroyo (2008), presentifica-se na narrativa de Dandara quando ela pondera sobre o verniz da igualdade em face do apagamento da diversidade e de reconhecimento das diferenças que existem na sala de aula.

Perguntamos às professoras sobre estratégias pedagógicas utilizadas para trabalhar com a diversidade, e algumas das narrativas lemos a seguir:

Através de pequenas ações, procuro possibilitar a visibilidade e audibilidade dos que “não estão enquadrados” na dita normatividade. Para mim, quanto mais diferenças, melhor do ponto de vista pedagógico, pois exige uma atitude contra-hegemônica em relação aos saberes e aos sujeitos detentores do saber. Entre os exemplos posso citar o repúdio às atitudes de preconceito e exclusão de alunes [o e entre as letras n e s é intencional] fora do padrão cis-hétero, chamando-os pelo nome que desejam, possibilitando o debate de temas sugeridos pelos alunes, não promovendo momentos religiosos, como orações, que contemplam a crença hegemônica, combatendo o discurso da meritocracia, reafirmando-me como mulher negra que se esforça para trabalhar numa perspectiva antirracista, mobilizando e dando maior atenção a conteúdos tidos como secundários por tratar de povos e culturas e regiões fora da Europa, a exemplo das culturas africanas, ameríndias e árabe (Dandara, Entrevista, 2020).

Nas minhas práticas diárias, tento desenvolver atividades de debates, tenho uma comunicação aberta com meus alunos, falamos de todos os temas e promovendo sempre o respeito entre as opiniões. Procuro trabalhar a realidade deles e as ferramentas que utilizo muito são filmes e músicas, pois essas atividades lúdicas geralmente são mais atrativas. Como sou da área de HUMANAS [ênfase da professora], fica fácil trabalhar filmes e músicas, mas escolho sempre as que fazem parte da realidade deles e que possuem criticidade nos seus conteúdos (Catarina, Entrevista, 2020).

Costumo desenvolver práticas e estratégias pensando na diversidade, e sinceramente não é algo fácil porque demanda tempo, ambiente propício, uma certa desenvoltura com as TICs (tenho algumas dificuldades com as mesmas, preciso geralmente da ajuda dos colegas). Costumo usar textos reflexivos e até mesmo o livro didático (História), rodas de conversa, principalmente sobre a questão do bullying e o respeito ao outro, pois a escola é composta por alunos de vários grupos sociais, econômicos, políticos, étnicos, religiosos etc. É uma batalha diária porque a comunidade escolar é o reflexo da nossa sociedade machista, racista, excludente e homofóbica, e, nós do corpo docente, também não escapamos disso, estamos inseridos nesse vínculo social. Neste sentido, o conhecimento, a empatia, o amor e a solidariedade são as ferramentas mais importantes para exterminarmos de nosso meio, os preconceitos que nos tornam desumanos (Frida, Entrevista, 2020).

Percebemos uma consciência da necessidade da abordagem temática por meio de diferentes estratégias e metodologias. A visão de uma relação pedagógica democrática está presente nos relatos de estratégia de comunicação aberta sobre os diversos temas e por meio de rodas de conversa. A professora Dandara declara afirmar-se como mulher negra e defender uma educação antirracista e contra-hegemônica, lidando com e dando relevância a cultura e conhecimentos dos povos fora do eixo europeu. A utilização das TICs é citada por uma das professoras como uma limitação ao desenvolvimento mais amplo da atuação pró-diversidade, enquanto outra entrevistada diz fazer uso de filmes e músicas como boas estratégias para esse trabalho.

As narrativas das professoras refletem situações do cotidiano escolar, o que nos possibilita o diálogo com Candau (2008), que chama a atenção para o enfrentamento de situações concretas de discriminação e preconceito que acontecem no cotidiano escolar e muitas vezes são ignoradas, encaradas como brincadeiras, ou o bullying presente na escola, como declara Frida, uma das professoras. A autora adverte para a necessidade de ultrapassar a visão romântica do diálogo intercultural e adotar uma política de enfrentamento dos conflitos e de inclusão, a partir também dos modos de organização do ensino e avaliação e escolhas do conteúdo, a partir das realidades pessoais, coletivas e culturais dos discentes. Não trazer as experiências socioculturais dos estudantes favorece o desenvolvimento de uma autoestima baixa, elevados índices de fracasso escolar e a multiplicação de manifestações de desconforto, mal-estar e agressividade com relação à escola (CANDAU, 2008). Perguntamos à entrevistada Dandara como ela possibilita aos estudantes a audibilidade que menciona em sua narrativa, a fim de verificar como se dá essa escuta e se as experiências são suscitadas:

Costumo promover um momento que, para eles, é algo “antes” da aula, mas, na verdade, é um exercício de oralidade levando um tema de grande repercussão na mídia, por exemplo. Ou peço que eles sugiram um tema para que na próxima aula, possamos discutir. Outra estratégia é o elogio: da boa leitura feita em voz alta, de algo na aparência (cabelo), algo que me dê a brecha pra que estes alunos se aproximem, se sintam integrantes de um grupo que tem a diversidade como característica. Chamá-los pelo nome (procuro memorizar logo os nomes dos alunos fora da dita normatividade social) ou saber como gostam de ser chamados... Na ausência de algum desses alunos, procuro conversar com a turma, falar sobre a importância de incluir (Dandara, Entrevista, 2020).

Observamos no trabalho da professora a contextualização dos momentos e dos debates pautados pelo tempo presente, a escuta ao abrir espaço para que os estudantes façam sugestões de temas de seu interesse e a preocupação em incluí-los no grupo. A escuta individual e coletiva, no sentido de ouvir histórias de vida e as (auto)biografias dos sujeitos ainda não são tão presentes, nem nas rodas de conversa, que uma das entrevistadas cita, nem nas estratégias da professora que utiliza as tecnologias para trabalhar música e filmes. Ela menciona que entre acertos e erros na busca para que os estudantes se identifiquem, acerta quando consulta sua filha jovem, que tem a mesma idade deles: “Explico o que quero fazer e pergunto se ela gostaria de assistir a essas aulas” (Catarina, Entrevista, 2020). É relevante ressaltar um momento da fala dessa professora ao asseverar ter alcançado o objetivo da aula quando os alunos se reconheceram, identificaram-se com determinado filme a que assistiram. Isso significa que ver suas lutas, sua cultura, sua história não só de opressão, mas também de afirmação na História e na Arte é construir e reafirmar identidades capazes de autonomia pessoal, da consciência individual e da compreensão sobre a importância da coletividade. Assim, pensando em formar pessoas com autonomia pessoal, atitudes e personalidades coerentes para atuarem na sociedade na qual desejamos viver e construir, perguntamos também às professoras entrevistadas se o professor contribui para o processo de formação de identidades e quais podem ajudar a formar com suas aulas e atividades:

Sim, o professor contribui com a formação de identidades. Sempre abordo as diversas identidades e a importância de defendê-las nas minhas aulas. Porém, por questões ideológicas, evidencio a identidade das mulheres negras que frequentemente foram silenciadas ao longo da história da humanidade. Tento mostrar aos/as estudantes a importância dessas mulheres na história e a luta que muitas travaram contra os sistemas de dominação. O objetivo é desenvolver entre os alunos a prática do respeito, e entre as alunas a valorização do seu papel enquanto sujeito histórico (Ângela, Entrevista, 2020).

O processo de formação/construção identitária é muito mais interno (de dentro para fora), portanto, não me vejo como alguém capaz de construir a identidade de outrem. Entretanto, acredito que posso colaborar não reproduzindo o discurso da matriz epistemológica moderna que inferioriza o que legitimou chamar de “Outro” até porque o público da escola pública é esse outro que o eurocentrismo tenta desqualificar: negros, pobres, periféricos. Se minhas aulas exaltam apenas autores/cientistas do centro hegemônico, é como se dissesse aos alunos “apenas este saber é legítimo”, “só eles são capazes”. Como defendo uma educação antirracista, procuro colaborar para o reconhecimento e valorização da negritude, por exemplo, não reforçando estereótipos impostos aos negros ao longo da História, como a imagem da dor e da subserviência, por exemplo ou, ainda, não folclorizando o 20 de novembro. Prefiro ser a professora que contribui mais para a desconstrução daquilo que é dado como “natural”. Nos últimos anos me comprometi mais firmemente com a desnaturalização do racismo e do machismo (Dandara, Entrevista, 2020).

Acredito que trabalhando a identidade de protagonismo na construção de sua própria história. Ele, o aluno, precisa se reconhecer dentro do contexto em que vive. E como consigo isso? É fácil? Não é fácil, é um trabalho diário, de debates, discussões, estudos de textos, pra tentar despertar nesses alunos o pensamento crítico e reflexivo. E como diz a minha diretora, “é no miudinho da sala de aula”, na construção diária que iremos construir uma identidade de protagonismo (Catarina, Entrevista, 2020).

É consensual, na fala das participantes, que o professor contribui, sim, com a formação das identidades dos alunos, por meio de reflexões, diálogos, abertura de espaço para discutir as estruturas de dominação, além de demonstrar maior inclinação em defesa da afirmação de certas identidades, seja por questões ideológicas, pessoais, contextuais. A professora Dandara ressalta que prefere desconstruir visões naturalizadas ao longo da história pelas classes hegemônicas a construir identidade, pois esta é algo que nasce de dentro para fora. Portanto, o espaço escolar aberto aos contextos discursivos e ações contra-hegemônicas ajudam nas escolhas identitárias e formação da autonomia pessoal dos jovens, pois as identidades são construídas nas relações sociais, discursivas e dialógicas (CARRANO, 2008; SILVA, 2014). O autor afirma que a escola pode desempenhar importante papel na escolha identitária dos jovens, desde que oportunize o diálogo com as novas gerações.

Retomando a questão sobre quais estratégias são realizadas para trabalhar com a diversidade e nos relatos anteriores sobre a contribuição do professor para a formação das identidades, ressaltamos que, pela fala das professoras, não fica evidenciada a escuta/narrativa de histórias de vida dos próprios sujeitos ou (auto)biografias dos discentes em sala de aula como ponto forte de estratégia para a construção e afirmação das identidades, como sugerem alguns autores (ARROYO, 2008; DOMINICÉ, 2006; CANDAU, 2008). As histórias de vida podem se constituir em uma grande oportunidade de o professor conhecer as diferentes identidades, as experiências vividas pelo estudante, suas lutas silenciadas, não contadas nos livros de história e, portanto, sem referências identitárias. A relação de escuta solidária pode ser uma grande aliada na construção de um ambiente pacífico, de empatia e possibilidades para uma pedagogia menos homogeneizadora e mais humanizada, contextualizada com as realidades diversas. A troca, o olhar para dentro, para si e para o outro, para suas raízes e seu entorno consiste em um exercício necessário à pedagogia das diferenças, da afirmação da identidade e respeito à diversidade. Sobre isso, Candau (2008, p. 26) ressalta que:

A socialização entre os/as alunos/as dos relatos sobre a construção de suas identidades culturais em pequenos grupos tem se revelado uma experiência profundamente vivida, muitas vezes carregada de emoção, que dilata a consciência dos próprios processos de formação identitária do ponto de vista cultural, assim como a capacidade de ser sensível e favorecer este mesmo dinamismo nas respectivas práticas educativas. Estes exercícios podem ser introduzidos desde os primeiros anos da escolarização, orientados a identificar as raízes culturais das famílias, do próprio contexto de vida - bairro, comunidades, valorizando-se as diferentes características e especificidades de cada pessoa e grupo.

Assim, as identidades, as afirmações, a valorização das diferenças e da diversidade vão sendo tecidas em meio às relações sociais e pedagógicas que vamos vivenciando e oportunizando aos estudantes vivenciar, ajudando-os a fazer escolhas, posicionamentos e formar sua personalidade. Assim também acontece no ambiente acadêmico, nas experiências de formação inicial de professor, na relação pedagógica vivida pelo futuro professor, este que atuará na Educação Básica e levará consigo exemplos e representação da identidade docente. Sobre essa relação pedagógica, ouvimos também alguns licenciandos do curso de História. Ao narrarem algumas práticas educativas na universidade, a estudante Jamile relatou:

Como a maioria dos estudantes do curso de História são negros e majoritariamente oriundos da escola pública, alguns debates visam discutir questões que diretamente atingem ou atingiram essas pessoas ou familiares, alicerçando a teoria a experiência de vida dos sujeitos para compreender a formação da sociedade brasileira, políticas públicas, os projetos de inclusão e exclusão de grupos e os projetos de governos (Jamile, Entrevista, 2020).

A entrevista ainda afirma ser importante levar para a Educação Básica, antes de tudo, “empatia para compreender e problematizar o local de fala dos estudantes e questionamentos sobre os momentos históricos para perceber as lacunas, onde estavam os negros, mulheres, indígenas em cada período, associando às experiências dos estudantes” (Jamile, Entrevista, 2020). Percebemos, assim, que as práticas refletem na formação da identidade do sujeito e influenciam sua atuação em outros contextos. Fica evidente que as experiências, posturas, escolhas de conteúdo e modos de organização das aulas, processos didático-metodológicos e avaliativos repercutem na formação de opinião e consequentemente repercutirão na construção identitária dos jovens e adultos em formação.

Podemos observar na fala de outros estudantes de licenciatura insatisfações na condução do trabalho realizado na universidade em diferentes disciplinas. Todas as disciplinas devem incorporar o pensamento crítico. Provas padronizadas, conteúdos engessados são estratégias que desviam o olhar da realidade, não fomentam o pensamento crítico e criam cidadãos conformistas. A pedagogia crítica, ao contrário, é uma tentativa de reconhecer que a educação é sempre política e o tipo de pedagogia que se usa tem muito a ver com a cultura, a autoridade e o poder. Nessa questão de autoridade e poder, podemos destacar na narrativa de dois participantes a ideia de que o professor impõe seu ponto de vista, denotando, para esses estudantes, uma postura autoritária, que não dá liberdade à diversidade de pensamento, como podemos observar nos depoimentos:

Os professores, para trabalhar a consciência política dos alunos, fazem debates sobre os mais diversos temas. Desde a eleição de 2018, temas como a PEC, reforma do Ensino Médio, reforma da previdência, questões ambientais, falas e decisões feitas por ministros foram bastante discutidos. O problema é que, ao invés de dialogar com os alunos, a maioria dos professores não aceitam opinião divergente da sua e querem impor o seu ponto de vista (Vanessa, Entrevista, 2020).

Sobre a prática docente em sala de aula pelos professores, noto, na prática didática da maioria destes docentes (alguns deles, intelectuais orgânicos), uma preocupação em catequizar o seu público à sua ideologia. Ao invés disto, seria melhor despertar nos seus estudantes a reflexão crítica, indo na contramão do ensino engessado e possibilitar... a construção própria do mundo pelos estudantes [...] (Pedro, Entrevista, 2020).

Essas respostas alusivas a uma relação docente-discente não dialógica também sugerem uma forma autoritária de entender a sociedade, sobretudo quando o professor e o conteúdo são incontestáveis. Há uma evidente crítica à falta da perspectiva dialógica, princípio fundante para a construção de políticas que sejam democráticas e tecidas a partir das realidades que cada sujeito vivencia. É notório que a formação é um mecanismo responsável pela produção de opiniões e argumentos que consolidam o modo de pensar de cada um. No entanto, a formação não pode gerar visões unilateralizadas sob o pretexto de que o estudante não tem autonomia de pensamento. A pedagogia crítica demanda a necessidade de que o diverso se presentifique na construção de saberes e práticas efetivas do pensamento político.

Tal perspectiva implica entender que a formação de professores é responsável por possibilitar a produção de conhecimento nos futuros docentes de modo que eles saibam operar dialógica e democraticamente os princípios educativos com os quais lidarão no exercício da profissão. Assim sendo, a formação é basilar para viabilizar que as práticas educativas na escola básica tenham aderência aos princípios da valorização da diversidade e do trabalho com o reconhecimento das diferenças. Se ao professor compete o desenvolvimento de práticas de ensino que estejam centradas na autonomia do estudante, levando-se em consideração que este é um sujeito diverso, as narrativas podem ser um caminho profícuo para a produção de práticas pedagógicas que se voltem para os aspectos da diversidade. Nessa seara, tais práticas assentar-se-ão em dimensões curriculares, ancoradas nos princípios do currículo em uma perspectiva pós-crítica, como assevera Silva (2003), em que se valorizam os processos de identidade e de alteridade e, de igual modo, em um fazer educativo voltado para o trabalho com a diversidade e com as diferenças, como defendem Silva, Rios e Nuñes (2019).

Logo, entendemos que há um chamado a respeitar a diversidade de todos os tipos, de pensamento, da cultura e das realidades humanas. As práticas homogeneizadoras das instituições precisam dar lugar a uma pedagogia das diferenças e da diversidade, não só fomentando o pensamento crítico e a desconstrução de visões naturais da exclusão, mas também abrindo-se às histórias denunciantes de luta, resistência e afirmação e articulando-se aos coletivos diversos na luta por políticas de inclusão e justiça social.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conceber a dinâmica com a diversidade na perspectiva dos sujeitos participantes da pesquisa que realizamos permite-nos elencar algumas conclusões. Inicialmente, ratifica-se a necessidade de ações institucionalizadas para que não se resuma a práticas solitárias de professores e professoras com conhecimento mais aprofundado sobre a emergência de pautar a diversidade em sua agenda escolar e acadêmica. A formação inicial e permanente dos professores precisa estar assentada nessa seara pró-diversidade e na radicalidade política, pois percebemos que aqueles profissionais mais envolvidos com a temática em seu percurso acadêmico de formação mostraram-se mais inclinados a uma postura política e combativa de exclusão.

Pelas discussões tecidas no recorte da pesquisa, percebemos a necessidade de uma referência clara da temática da diversidade no ensino, sobretudo de história, sobretudo nos currículos, favorecendo uma prática pedagógica que não seja monocultural e normativa, mas um processo de desconstrução e negociação de sentidos (SILVA; RIOS; NUÑES, 2019). Constatamos que há muito o que fazer, pois não basta trazer o tema para a sala de aula em um caráter transmissivo de conteúdo, ou apenas reconhecer as diferenças, mas também problematizar como são construídas as identidades, estimulando os sujeitos a saírem da condição de subalternidade.

Ouvir os educandos, suas histórias de vidas, experiências, ainda é uma didática pouco presente nas salas de aula, em uma perspectiva de valorização da autobiografia e, por conseguinte, da abertura de espaço para o cruzamento de culturas e afirmação das identidades pessoais e coletivas. A realidade do sujeito é trazida mais predominantemente pelos professores na abordagem do contexto histórico-cultural da sociedade e menos na perspectiva didática de escuta de suas biografias. Os processos de homogeneização por meio do currículo, das práticas didático-metodológicas e avaliativas predominam nos contextos escolares, como podemos observar no relato de uma das professoras entrevistadas, ao expressar que muitas vezes se sente sozinha e por isso diz ser mais fácil seguir a maioria, ou seja, seguir as práticas homogeneizadoras e apenas o conhecimento universal hierarquizado, se um conjunto de professores não converge para uma prática cooperativa, visando os mesmos objetivos. Ficou evidenciado que ações isoladas acontecem tanto na universidade como nas escolas e que as práticas de formação influenciam e refletem na pedagogia do professor da Educação Básica. Por essa razão, há a necessidade da produção e manutenção de um currículo multicultural que institucionalmente discuta os grupos marginalizados e questione o conhecimento hegemônico, considerado oficial. A universidade precisa, ainda mais, dialogar com a diferença, reestruturar seus currículos de formação, articular-se com a Educação Básica e com a pedagogia dos movimentos sociais, para que, como estes, promova a radicalidade política, a afirmação de mediação das minorias e paute as lutas sociais.

REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel G. Os coletivos diversos repolitizam a formação. In: PEREIRA, Júlio Emílio, LEÃO, Geraldo (Orgs.). Quando a diversidade interroga a formação docente. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 82-96. [ Links ]

BOURDIEU, Pierre; NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio M. Escritos de educação. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. [ Links ]

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE n.º 017, de 15 de agosto de 2001. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica. Brasília: Ministério de Educação/Conselho Nacional de Educação, 2001. [ Links ]

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP n.º 2, de 9 de junho de 2015. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial e Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica. Brasília: Ministério da Educação/Conselho Nacional de Educação, 2015. [ Links ]

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP n.º 2, de 20 de dezembro de 2019. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial e Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica. Brasília: Ministério da Educação/Conselho Nacional de Educação, 2019. [ Links ]

CANDAU, Vera Maria. Educação em direitos humanos e formação de professores/as. In: CANDAU, Vera Maria; SACAVINO, Suzana (Orgs.). Educação em Direitos Humanos - temas, questões e propostas. Petrópolis: DP et Alli, 2008. p. 73-92. [ Links ]

CARRANO, Paulo. Identidades culturais juvenis e escolas: arenas de conflitos e possibilidades. In: MOREIRA, Antônio Flávio, CANDAU, Vera Maria (Orgs.). Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 182-211. [ Links ]

CUNHA, Maria Isabel da. Conta-me agora! As narrativas como alternativas pedagógicas na pesquisa e no ensino. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v. 23, n. 1/2, p. 185-195, jan./dez. 1997. Disponível em: Disponível em: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?pid=S0102-25551997000100010&script=sci_arttext&tlng=pt . Acesso em: 20 jan. 2021. [ Links ]

DOMINICÉ, Pierre. A formação de adultos confrontada pelo imperativo biográfico. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, maio/ago. 2006. Disponível em: Disponível em: http://edubase.sbu.unicamp.br:8080/jspui/handle/EDBASE/650 . Acesso em: 20 jan. 2021. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. [ Links ]

FREIRE, Paulo. A educação na cidade. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2005. [ Links ]

LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, jan./fev./mar./abr. 2002. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZVDxC/?format=pdf&lang=pt . Acesso em: 20 fev. 2021. [ Links ]

MOREIRA, Antônio Flávio, CANDAU, Vera Maria (Orgs.). Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. [ Links ]

PAIM, Elison Antônio. Narrativas, memórias e experiência do fazer-se leitor. História Oral, v. 18, n. 2, jul./dez. 2015. Disponível em: Disponível em: https://revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/view/563 . Acesso em: 23 jan. 2021. [ Links ]

SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2007. [ Links ]

SILVA, Fabrício Oliveira; RIOS, Jane Adriana V. Pacheco; NUÑEZ, Joana Maria Leôncio. Formação para a docência no PIBID: Experiências, Diversidade e Desenvolvimento identitário. Emancipação, Ponta Grossa, v. 19, n. 1, p. 1-14, 2019. Disponível em: Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/emancipacao/article/view/9929 . Acesso em: 20 fev. 2021. [ Links ]

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. [ Links ]

SILVA, Tomaz Tadeu da. A perspectiva dos estudos culturais In: SILVA, Tomaz Tadeu da; HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn (Orgs.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 72-103. [ Links ]

Recebido: 21 de Junho de 2020; Aceito: 08 de Agosto de 2022; Publicado: 15 de Maio de 2023

Creative Commons License Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional que permite o uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a obra original seja devidamente citada.