SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.21BNCC: Coalizões em Disputa na Formulação da Política Curricular NacionalEstratégias retóricas do Todos Pela Educação: contexto de influência e de intervenção índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub 30-Jun-2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e54732 

Artigos

Corpos infantis e pandemia: contraposições para a existência de um currículo comum

Children's bodies and pandemic: contrapositions for the existence of a common curriculum

Cuerpos infantiles y pandemia: contraposiciones para la existencia de un currículo común

Ana Paula Menezes ANDRADEi 
http://orcid.org/0000-0002-5353-4124

Jurema Rosa Lopes SOARESii 
http://orcid.org/0000-0001-9383-735X

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Culturas e Artes - UNIGRANRIO. Professora da Rede Municipal de Duque de Caxias-RJ. E-mail: anaap@unigranrio.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-5353-4124

ii Doutora em Educação - UNICAMP. Docente do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Culturas e Artes - UNIGRANRIO (Aposentada). E-mail: lsjurema68@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-9383-735X


Resumo

Percebendo a perda da potência das múltiplas formas de aprender e ensinar diante da exigência de um currículo nacional comum, escrevemos com o objetivo de refletir sobre conceitos capazes de pôr em evidência algumas consequências da pandemia de Covid-19 para a experiência discente e para os currículos escolares. Para tanto, lançamos mão de autores como Sennett (2003), Arroyo (2012), Buss-Simão (2012), Souza (2020), Correia e Zoboli (2021), Moreira, Santos e Gandin (2017). A análise dos conceitos de “corpo, cidade, noções comuns, periferia urbana e efeito de território” trouxe atenção para a pretensão de subjugar os corpos pelo estabelecimento de um currículo comum nacional. De modo que concluímos que a Base Nacional Comum Curricular despotencializa os corpos infantis como se eles não se manifestassem, apenas fluíssem de acordo com o que se pensou para eles, num projeto de sociedade.

Palavras-chave: corpo infantil; escola; isolamento social; currículo

Abstract

Realizing the loss of power of multiple ways of learning and teaching in the face of the demand for a common national curriculum, we write with the aim of reflecting on concepts capable of highlighting some consequences of the COVID-19 pandemic for the student experience and for curricula schoolchildren. For this, we used authors such as Sennett (2003), Arroyo (2012), Buss-Simão (2012), Souza (2020), Correia and Zoboli (2021), Moreira, Santos and Gandin (2017). The analysis of the concepts of “body, city, common notions, urban periphery and territory effect” brought attention to the pretension of subjugating bodies by establishing a common national curriculum. So, we concluded that the Common National Curriculum Base disempowers children's bodies as if they did not manifest themselves, just flowed according to what was thought for them, in a project of society.

Keywords: child body; school; social isolation; curriculum

Resumen

Al notar la pérdida de poder de múltiples formas de aprender y enseñar frente a la demanda de un currículo nacional común, escribimos con el objetivo de reflexionar sobre conceptos capaces de resaltar algunas consecuencias de la pandemia COVID-19 para la experiencia estudiantil y para los currículos escolares. Para ello, se utilizaron autores como Sennett (2003), Arroyo (2012), Buss-Simão (2012), Souza (2020), Correia y Zoboli (2021), Moreira, Santos y Gandin (2017). El análisis de los conceptos de “cuerpo, ciudad, nociones comunes, periferia urbana y efecto territorio” llamó la atención sobre la pretensión de sometimiento de los cuerpos mediante el establecimiento de un currículo nacional común. Así concluimos que la Base Curricular Nacional Común desempodera los cuerpos de los niños como si no se manifestaran, simplemente fluyeran según lo que se pensaba para ellos, en un proyecto de sociedad.

Palabras clave: cuerpo del niño; colegio; aislamiento social; currículo

1 INTRODUÇÃO

O presente texto tem como objetivo refletir sobre conceitos de “corpo, cidade, noções comuns, periferia urbana e efeito de território” como capazes de pôr em evidência algumas consequências da pandemia de Covid-19 para a experiência discente e para os currículos escolares, perpassando a influência do adulto responsável e a questão de como o território tem potência sobre a configuração do currículo.

Tal escrita se faz na intenção de realizar um diálogo entre autores que estudam o corpo, sobretudo na pandemia, e autores que problematizam a construção do conhecimento ancorada em um currículo nacional. No primeiro conjunto de autores, recorremos às ideias de Sennett (2003) que traz uma perspectiva histórica da relação corpo e cidade em diálogo. Arroyo (2012) e Buss-Simão (2012) que tratam da questão da docência diante dos corpos infantis precarizados que chegam à escola e Souza (2020) que aborda as consequências do isolamento social para os corpos infantis tutelados por adultos responsáveis, especificamente durante o período de isolamento social no ano de 2020.

Seguindo a nossa linha de raciocínio, trazemos, no segundo bloco, os autores Correia e Zoboli (2021); Moreira, Santos e Gandin (2017) e Santos (2017) que trabalharam em suas pesquisas conceitos importantes para a compreensão de como o território e a maneira como se dão as produções comuns de conhecimento esbarram, no sentido de ir contra, na existência de um currículo nacional comum como apresentado pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que organiza a estrutura curricular de modo que os corpos em território nacional sejam submetidos a produzir conhecimentos fora das relações com seus pares.

A presente reflexão está organizada da seguinte forma: inicialmente, nos debruçamos sobre a obra de Sennett (2003), tecendo considerações sobre a relação cidade-corpo-criança. Em seguida, Arroyo e Buss-Simão (2012) nos ajudam a pensar o corpo infantil na escola, a rotina e as relações com os outros. Ainda, Souza (2020) traz a sua contribuição sobre o corpo infantil confinado no contexto da Pandemia de Covid-19. Correia e Zoboli (2021); Moreira, Santos e Gandin (2017) e Santos (2017) contribuem no sentido de apontar como a Base Nacional Comum Curricular despotencializa o corpo em uma estrutura documentada com a pretensão de designar o que o corpo deve fazer. Nas considerações finais, trazemos as contraposições de um currículo comum em que se tem a pretensão em despotencializar os corpos infantis como se eles não se manifestassem, apenas fluíssem de acordo com o que se pensou para eles, num projeto de sociedade.

2 SENNETT: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS RELAÇÕES CIDADE, CORPO, CRIANÇA

O sociólogo e historiador Richard Sennett, nascido em Chicago, em 1943, professor de história e sociologia na Universidade de Nova York, realizou estudos sobre como a velocidade dos movimentos, impostos pelas novas arquiteturas das cidades, estavam ligadas à produção de distanciamento entre os corpos, dado o fato de que os locais passavam a se tornar meros caminhos sem qualquer significado para o cidadão que os cruzaria com o objetivo de chegar a outros espaços onde exerceriam suas habilidades produtivas em prol do desenvolvimento da sociedade.

Sennett (2003) vê o corpo como produto histórico, em seu estudo, mostra como o corpo que se deslocava se tornava passivo em relação ao espaço que cruzava, não interagindo com o que estava a sua volta. Sendo um produto histórico, nos diferentes períodos existem maneiras de lidar com o corpo, de modo que esse corpo passa a apresentar-se como instrumento do social e do econômico também, ao se revelarem, através dele, as relações de poder existentes entre povo-Estado-povo, entre homens e mulheres, adultos e crianças.

Em Carne e Pedra, Sennett (2003) mostra como o corpo inspira o crescimento de cidades europeias ao passo que este mesmo corpo pode obter destaque na hierarquia social, assim como também pode ser profundamente silenciado.

A arquitetura das cidades, inicialmente, fazia parte de um projeto que teria a intenção de viabilizar o trânsito das pessoas. Iniciando em Atenas, na antiguidade, passando por outras cidades escolhidas por Sennett (2003) no decorrer da idade média, do renascimento e da idade contemporânea, se imaginava um corpo ideal que passaria a ser referência para a localização e para a definição dos formatos das edificações a serem erguidas.

Uma questão importante levantada pelo autor eram os confrontos entre a comunidade cristã e a sociedade. Por exemplo, quando surgiram os guetos judeus, em Veneza, durante o renascimento que tanto atraía quanto provocava repulsa, tendo em vista que a relação com os judeus era saudável para a economia, mas não se aceitava sua religião. Os judeus eram conhecidos pelo “talento” para os negócios, porém o surgimento de algumas doenças como a lepra e a sífilis foram atribuídas à religião judaica, do que decorreu uma visão profilática do espaço urbano.

Assim, Sennett (2003) mostra que Willian Harvey1 e seus contemporâneos estudaram, em torno dos anos 1620, as partes do corpo e buscavam provar que os nervos (que faziam o corpo perceber a dor) eram estruturas maiores do que o que se acreditava na época. Através deste estudo, perceberam que o coração, com um sistema de veias e artérias, era responsável por manter todo o corpo funcionando e, a partir de então, começou se a veicular a ideia de que cada um era responsável por manter-se em boas condições de saúde.

A circulação sanguínea, com o capitalismo, foi relacionada com a livre circulação do mercado e, sendo a ideia de livre mercado de negócios a atividade mais importante, os corpos passam a se tornar menos sensíveis. Sennett aponta, ainda, que no séc. XVIII a urbanização das cidades passa a ser uma questão de saúde pública e, a partir de então, começam a produzir saberes que focavam a saúde do corpo e a importância de um corpo saudável para provocar mudanças no ambiente urbano.

Os costumes mudam para dar lugar a novos e saudáveis hábitos. Criam-se sistemas de esgotos, as roupas mudam e ficam mais leves a fim de deixar a pele respirar, já que o ar passou a ser visto como devendo percorrer o corpo, a pele seria a membrana que permitia que o corpo respirasse, por onde o ar penetraria. As pessoas passam a tomar banho e a se limpar após as necessidades fisiológicas.

Contudo, até então, a pele suja era vista como algo natural, e até saudável, tendo em vista a crença das pessoas nas crostas de sujeira para proteger e nutrir a pele. Portanto, os banhos eram desencorajados.

Aqui é interessante destacar o que se fala sobre as crianças e os bebês recém-nascidos.

Entre os camponeses, a sujidade incrustada na pele parecia natural, capaz até mesmo de proporcionar saúde. Urina e fezes humanas ajudavam a nutrir a terra; deixadas no corpo, bem que poderiam formar uma película revigorante, especialmente para crianças. Daí ser tão comum às pessoas do campo acreditarem que "ninguém deve lavar-se com muita frequência [...] porque a crosta de fezes secas e restos de mijo faziam parte do corpo e protegiam, especialmente crianças recém-nascidas [...] (SENNETT, 2003, p. 219).

Mas, de que forma camponeses sem acesso às informações que circulavam nos centros urbanos poderiam participar do desenvolvimento econômico nas formas de veias e artérias que ora se delineavam?

Os papéis sociais dados em Sennett (2003) revelam certa ausência de crítica ao descrever as relações existentes em cada época, a exemplo do que se vê em relação aos camponeses e aos que viviam nos centros urbanos. O corpo a que se refere é o corpo da nobreza atuante nas mudanças dos relacionamentos no meio social e econômico, este era o corpo que importava. Camponeses, mulheres e crianças não protagonizam, ou melhor, não viviam essas transformações a contento, eram levadas pela onda das mudanças feitas por quem tinha o poder de instituí-las. Eram corpos, muitas vezes precarizados, e na maioria das vezes apagados, silenciados.

A criança, como um corpo silenciado, aparece somente como aquele corpo que precisava de cuidados e que dependia integralmente da decisão de outros corpos, precarizados ou não, dos quais dependia para sobreviver.

Durante a Revolução Francesa, a imagem da estátua de Marianne, contudo, sempre esculpida com os seios de fora (quais símbolos de nutrição) revelava a nova relação do Estado com o povo. Consequentemente, mães de classe média e alta voltam a amamentar seus filhos, uma tarefa que era delegada às amas de leite. Embora a amamentação já indicasse um estreitamento das relações entre mãe e filho, esse estreitamento só era visto como necessário diante da importância dada para a relação Estado-povo em sua comparação.

No cenário econômico, o leite toma o lugar do sangue das veias e artérias que levaram à mudança para um ambiente saudável. Os seios de Marianne representam liberdade e vitalidade para o povo em sentido econômico, porém uma liberdade no espaço, o corpo era outra coisa. Tratava-se de uma liberdade sob vigilância do Estado. O Estado dominava na mesma medida em que o povo se sentia confortável e renunciava a confrontos.

O corpo infantil, nesse contexto, é apresentado em segundo plano, como aquele que passivamente aceita os cuidados, o desprezo, a ausência de voz, de direitos. A cidade era vista como meio de elevar o poder estatal através de edificações suntuosas e imponentes, construídas em lugares estrategicamente demarcados para se estabelecer o fluxo de corpos desejados. As pessoas consideradas quais corpos importantes eram, observadamente, os homens brancos e com poder aquisitivo ou de posses.

3 CORPO INFANTIL NA ESCOLA: ROTINAS E RELAÇÕES COM O OUTRO

Na pintura de Clement, o colo farto de Maríanne representava seu cuidado com todos os franceses, imagem de amamentação revolucionária, sublinhada na pintura por um ornamento incomum: uma volta da fita em torno de seu pescoço cai entre seus seios e segura, abaixo deles, um pêndulo, para significar que todo o povo francês tem o mesmo acesso a eles. É esse o apelo básico simbolizado por Marianne: atenções iguais para todos (SENNETT, 2003, p. 238).

A imagem de Marianne, na França revolucionária, retratava acolhimento do povo pelo Estado e era transferida para a relação entre mães e filhos, mães essas que agora viam como ato de promoção da saúde a amamentação de seus filhos feitas por elas mesmas. Aquilo que era considerado uma tarefa delegável às amas de leite assumia um novo significado. Contudo, considerando as mães nobres que podiam antes delegar essa e outras tarefas. As mães camponesas, no entanto, não tinham opção, além das tarefas diárias de uma dona de casa, que eram muito mais exaustivas do que atualmente, essas mães precisavam cuidar e amamentar os seus filhos e os filhos das damas da sociedade. O corpo da mulher pobre, silenciado, maltratado, humilhado, não era visto como importante para fazer a economia circular, contudo era nele que resvalavam as consequências das mudanças do comportamento social advindas das decisões tomadas em prol da saúde econômica.

Se era maltratado esse corpo feminino pobre, também sofriam consequências os corpos das crianças que, cuidadas por mães pobres, ficavam em segundo plano para que as mães tivessem condições de prestar cuidados aos filhos da nobreza.

O Estado pregava uma ideia que atraía pelo caráter de democracia, anunciava os mesmos direitos para todos, mas, em contrapartida, não enxergava todos os corpos como se fizessem parte do todo da sociedade. Apagava e silenciava pobres, mulheres e crianças.

Entretanto, passemos da França da revolução para os dias atuais, pensando, ainda, nos corpos infantis. Miguel Arroyo (2012), sociólogo e educador espanhol, que foi professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), realizou estudos sobre a educação popular, a cultura e a gestão escolar, a educação básica e o currículo, fala sobre ouvir as interrogações que vêm dos corpos, destacando a iniciativa do movimento feminista em fazer ouvir vários corpos precarizados: “não apenas os femininos, mas infantis, dos imigrantes, da velhice, dos miseráveis” (ARROYO, 2012, p. 23).

O autor mostra que, na escola, e necessário desconstruir a pedagogia que julgava poder moldar os corpos segundo suas necessidades sem, contudo, ouvir o que tinham a dizer, porque “fica cada dia mais difícil silenciar, controlar ou ignorar as ações corpóreas tanto dos(das) educandos(as) quanto dos(das) educadores(as)” (ARROYO, 2012, p. 24).

Arroyo (2012) aponta, ainda, para o fato de que, com o aumento do acesso à escola pública, as infâncias e adolescências que chegam à instituição escolar já diferem muito das infâncias e adolescências do passado. Hoje se tem na escola, não mais aqueles que podiam gozar do privilégio de obter uma educação escolar, mas sim todos a que a ela tem direito, muitos, porque não dizer a maioria, oriunda das classes populares, crianças e adolescentes de rua, inclusive.

Já não cabe à escola moldar os corpos que nela adentram segundo o que se espera. Conforme Arroyo (2012), esses corpos que hoje transitam na escola “exigem ser ouvidos” porque são

expostas a tantas violências que marcam seus corpos, a tal ponto que passou a ser um tema obrigatório para a reflexão pedagógica e docente: a violência nas escolas. Melhor, as violências sociais, corpóreas que violentam as vidas infantis que chegam as escolas públicas. Como entendê-las? Não procuram escola para entender-se? Mas estão imóveis nas cadeiras para esquecer-se? (ARROYO, 2012, p. 25).

Conforme o autor explica as reações desses corpos à violência que sofrem podem ocorrer em qualquer dos espaços em que transitam, inclusive na escola. E não limita a vulnerabilidade à violência somente aos educandos, mas a estende aos seus docentes que, diante das reações mais diversas desses corpos infantis e adolescentes na escola se tornam igualmente vulneráveis. Apresenta-se um ciclo de vulnerabilidade que desencadeia na escola, embora provocado pelo social.

Se a escola lida, embora fragilizada, com a responsabilidade de educar esses corpos precarizados pela pobreza e pela violência, ainda não age em conformidade com os objetivos de seu trabalho, tendo em vista a dificuldade que apresenta em reconhecer a história de vida das infâncias com quem trabalha, o que passa por “ver a humanidade em suas vidas e em seus corpos precarizados” (ARROYO, 2012, p.31).

Buss-Simão (2012) traz atenção para a organização dos espaços da sala de aula de crianças pequenas, analisando como este se configura quando organizado pelo adulto e quando organizado pelas crianças. Com que se preocupam “adultos-professoras” ao organizar esses espaços? E as crianças que uso diferente fazem?

Em sua escrita e reflexões, conclusões importantes vêm sendo trazidas. Primeiro, a contextualização de que a forma como se organizam os espaços-tempos da sala de aula pelos adultos não acontecem no vazio, existem atravessamentos oriundos de questões históricas, sociais etc., mas que ainda assim é importante perceber que é neste espaço que vão ocorrer as relações entre a criança e a instituição escolar. O corpo infantil descobre a escola como espaço de socialização e desenvolvimento neste ambiente de aprendizagem.

O espaço não é apenas uma realidade física com determinadas dimensões, mas ele representa algo, ele afeta e envolve. Afeta por sua presença e aspectos, pelos estados de ânimo que propicia, pela satisfação que produz nas atividades possíveis de serem ali realizadas. O espaço comunica o que é permitido e o que é possível fazer nele (BUSS-SIMÃO, 2012, p. 261).

Uma percepção possível a partir do que se diz é que o espaço da sala de aula, e por consequência o espaço da escola, será usado de acordo com uma finalidade pedagógica que partirá da iniciativa de adultos, enquanto o corpo infantil apenas o utilizará se cumprir determinados requisitos.

Conforme a autora explica, por causa do compromisso da instituição escolar com um ideário da modernidade, ela tem

[...] também como alicerces os pilares da regulação e da emancipação, [...], todavia, na busca de legitimação de uma “ordem” acaba o pilar da regulação se sobressaindo, o qual, numa perspectiva praxiológica constitutiva da Pedagogia, encaminha para uma necessidade de apreender e discutir as estratégias institucionalizadas de regulação e controle das crianças envolvidas no processo educacional (BUSS-SIMÃO, 2012, p. 262).

Este caráter regulador dos corpos das crianças na escola nos remete ao que Sennett (2003) mostrou nos estudos das sociedades europeias sobre as edificações feitas por seus governos, embora esses corpos infantis não fossem, possivelmente, pensados como partícipes de tal “ordem social”.

Apesar de todo estudo e empenho que se tem feito no sentido do que Arroyo (2012) nos mostra, parece difícil implementar uma ordem social, escolar, que leve em conta os corpos que a ela estarão sujeitos. Contudo, como saber quais são as necessidades dos corpos precarizados sujeitos a ordem imposta sem que estes sejam ouvidos?

4 O CORPO PRECARIZADO CONFINADO: CRIANÇAS NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID-19

Como adulto, temos ainda dificuldade em compreender e legitimar as diferentes formas delas [as crianças] viverem e atuarem no mundo. Suas práticas, marcadas pela expressão de múltiplas linguagens, de simultaneidade, de imprevisibilidade, são, na maioria das vezes, tratadas como problema, com caos. Cabendo à educação a tarefa de modificá-las, dominá-las no sentido do enquadramento social. Nessa perspectiva, educar tem como objetivo frear a imaginação, a fantasia, controlar o movimento, regular as múltiplas manifestações infantis, uniformizar suas temporalidades, desejos e sonhos (BUSS-SIMÃO, 2012, p. 273).

Pensamos, então, no quão séria é a questão apresentada tendo em vista o contexto atual de pandemia de Covid-19 em que observamos que muitas pessoas, incluindo crianças, tiveram sua liberdade cerceada. A doença contagiosa e fatal causada pelo novo vírus, a partir do fim de 2019 e início de 2020, não tinha nenhum tipo de tratamento ou vacina. Para evitar números ainda mais expressivos de mortes pelo mundo, entre as principais medidas de proteção estavam o uso de máscaras faciais, de álcool em gel para higienizar as mãos ao sair e isolamento (ou afastamento) social. Medidas que mudaram as rotinas dos corpos de crianças, jovens, adultos e idosos.

Para as crianças em idade escolar, essas medidas eram impossíveis de ser adotadas sem suspender as aulas presenciais. No Brasil, especificamente, nas escolas do Rio de Janeiro, com as salas de aula superlotadas era impossível pensar em crianças aglomeradas nas escolas. Cada rede de ensino elaborou novos meios de atender seus estudantes, contudo num atendimento que se revelou mais precário que o presencial, tendo em vista a necessidade de se manter contato a distância com essas crianças de baixa renda, na maioria dos casos. Como realizar tais atendimentos via telefone/internet se nem mesmo as unidades escolares tinham esses recursos à disposição? Algumas redes adotaram a impressão de materiais e sua distribuição às crianças, contudo com recursos dos professores, já que as impressoras disponíveis nas escolas não davam conta daquela demanda. Só para citar alguns dos desafios, essas coisas foram feitas nas melhores intenções, sem, contudo, que se procurasse saber o que esses corpos infantis precarizados pela pobreza realmente necessitavam.

Houve especulações e alguns colegas (professoras e professores) começaram a buscar ouvir esses corpos, fizeram descobertas que talvez imaginássemos, mas que, estávamos ignorando. Famílias, cujos adultos haviam perdido sua fonte de renda por causa da crise econômica agravada pela pandemia, sofriam sem os itens de primeira necessidade, como alimentos e produtos de higiene pessoal, sem os quais era impossível a prevenção contra o vírus que os colocara naquela situação.

Com respeito às crianças que precisaram, e ainda precisam, passar pelo isolamento social trazido como necessidade pela Covid-19, Souza (2020) explica como este isolamento social, no caso dessas crianças, acaba por se tornar um confinamento tendo em vista a característica que a infância assume como categoria geracional que tem espaços de circulação e permanência restritos pelos adultos, quais genitores, tutores, dessa infância, conforme explica: “Vistas pelo senso comum dos adultos como seres em formação e em preparo para a vida adulta, os espaços de vida das crianças são continuamente delineados pelos adultos, que estabelecem fronteiras e limites para sua atuação” (SOUZA, 2020, p. 164).

A mesma autora mostra que a situação da infância já se apresenta como, por uma questão histórica e social, uma condição limitante em que as crianças estão sujeitas a “ordem” imposta por um mundo adulto que, quase nunca ouve os seus anseios e necessidades e que “boa parte da infância sofre restrições devido à classe, ao gênero, à etnia, à localização geográfica” (SOUZA, 2020, p. 161) e esclarece que “como indivíduos presentes em todas as sociedades, as crianças sentem, de modo direto e por vezes mais agressivo, as implicações das decisões tomadas no mundo dos adultos, onde geralmente não têm voz ouvida, nem oportunidade de escolha” (SOUZA, 2020, p. 164).

Souza (2020) aborda a situação das crianças diante da pandemia, apontando os espaços estruturais delimitados por Santos (2002), a saber: o espaço doméstico, o espaço de produção, o espaço do mercado, o espaço da comunidade, o espaço da cidadania e o espaço mundial. Tendo em vista a situação de confinamento que se deseja expor aqui, falaremos especificamente sobre como a autora coloca a situação da criança no espaço doméstico.

Em relação ao espaço doméstico, é muito importante considerar como Santos (2002 apudSOUZA, 2020, p. 166) o define: “[...] o espaço doméstico, enquanto local de estruturação de poder, é onde se estabelecem a domesticidade e o parentesco sob um conjunto de relações de produção e reprodução”.

Souza (2020, p. 166) segue esclarecendo que é no espaço doméstico “que se situam as formas privilegiadas de poder intergeracional e de gênero”.

Essas formas de poder que se manifestam no espaço doméstico, de acordo com a autora, apresentam-se dicotômicas ao senso comum dos adultos sobre as crianças:

[...] se por um lado são as figuras inocentes a serem protegidas, por outro são os seres rebeldes e insurgentes que precisam ser controlados. Nestes tempos de pandemia, o espaço doméstico tem sido ocultador, pela distância dos pares, professores e demais cuidadores, das mais cruéis violências parentais (SOUZA, 2020, 166).

Entre os mais variados dados estatísticos mundiais, a autora mostra que no Brasil, no início do isolamento social, existia uma previsão de 18% de aumento dos casos de violência doméstica contra as crianças. Somando a isto

as transformações pelas quais as famílias têm passado e seus reflexos na vida das crianças - aumento de famílias sem filhos, com “diminuição” da infância nas pirâmides etárias, precarização do trabalho com jornadas intensificadas, famílias monoparentais, entre outros - que sofrem com o aumento da pobreza e deixam de ser o foco principal da atenção econômica de seus responsáveis (SARMENTO, 2002a; QVORTRUP, 2010 apudSOUZA, 2020, 167).

Souza (2020) mostra, então, que embora se tenha avançado em relação às leis de proteção à infância, ainda existe a necessidade do fomento de políticas públicas que garantam sua integridade numa rede de proteção que contemple o espaço doméstico. Como saber, então, a real situação desses corpos infantis diante dessa situação de “vulnerabilidade limitante”?

Em Sennett (2003), que apresentou a evolução das cidades europeias em sentido histórico, essa vulnerabilidade infantil era invisível para o Estado, o corpo infantil não assumia uma figura na estrutura social que se orquestrava porque esse corpo era visto como desprovido de necessidades próprias. Naquele contexto, só se percebia esse corpo por ser a sua higiene, os cuidados necessários para que se tornasse um corpo adulto, vista como tarefa exclusiva de genitores e de outros adultos responsáveis.

Hoje, apesar de avanços em termos de concepção a respeito desses corpos infantis, em termos do que se sabe sobre o desenvolvimento infantil e dos sentimentos das crianças, como vimos, ainda é difícil entender as necessidades desses corpos tutelados por adultos responsáveis que, em muitos casos, ocultam as realidades vividas pelas crianças.

Com a finalidade evidenciar as falas das crianças a respeito de sua situação durante o período de isolamento vivido em 2020, trazemos, a título de exemplo, uma experiência com crianças de segundo e quarto ano de escolaridade de escola da rede municipal de ensino de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. A experiência consistiu numa atividade de avaliação final do ano letivo, ocasião em que foi pedido às crianças que escolhessem um emoji que melhor definisse como tinha sido o ano letivo para elas. Em seguida, deveriam desenhar o emoji e enviar um áudio explicando o motivo de sua escolha. A ideia do emoji veio de uma atividade feita por uma professora de uma escola particular, tendo sido adaptada ao contexto das crianças da escola pública.

Uma criança respondeu a atividade com a escolha de emojis que indicam alguém chorando, assustado e triste. Justificou, explicando que o emoji que ela destacou como o mais importante foi o que fazia a cara de choro porque seu ano não tinha sido bom, tendo em vista a pandemia de Covid-19 que fez pessoas de seu convívio vítimas, algumas até fatais, e que, além disso, outras pessoas precisavam ficar “dentro de casa”.

A atividade foi enviada para duas turmas de uma escola pública municipal em Duque de Caxias localizada numa região de periferia em relação à capital do Estado e em relação ao centro do próprio município de Duque de Caxias e, infelizmente, apenas uma criança retornou resposta a esta atividade num todo de 55 crianças incluídas nos grupos de WhatsApp para os quais a atividade foi enviada. Este dado faz pensar que assim como os “cidadãos europeus”, em Sennett (2003), essas famílias, constituídas de corpos precarizados, já estão conformadas à “ordem” estabelecida pelo social. Na relação entre carne e pedra, parecem compreender uma mensagem subliminar de que seus corpos não precisam se manifestar, apenas fluir de acordo com o que se pensou para elas num projeto de sociedade elaborado por outras pessoas.

5 CORPO E CURRÍCULO: CONCEITOS QUE SE CONTRAPÕEM À BNCC

São dignos de reflexão em casos que envolvem escola, alunos e professores, os estudos de Moreira, Santos e Gandin (2017), que trabalharam com os conceitos de “periferia urbana” e “efeito de território”, mostrando que operar com esses conceitos pode contribuir significativamente para o trabalho curricular das escolas situadas em regiões de periferias urbanas, em especial para o trabalho com os corpos infantis precarizados aos quais nos referimos.

Em seus estudos, os autores mencionados explicam que a noção do termo “periferia” se dá no contraste com a qualidade de vida, de serviços públicos, das condições de vida e da situação econômica nos centros urbanos, situando a periferia numa posição social e economicamente menos privilegiada e, por isso, mais atingida por problemas sociais, como excesso de violência, ausência de controle do Estado e de recursos necessários à vida. Esclarecem, então, que

Para definir periferia, faz-se necessário articular as concepções de espaço físico e espaço social. Além de expressarem-se em um lugar geográfico, as periferias são consideradas como fenômenos urbanos. A partir da década de 1960, com o grande crescimento da população urbana brasileira, a questão da moradia dos pobres nas cidades ganhou maior visibilidade, principalmente pela formação de favelas nas maiores capitais (MOREIRA; SANTOS; GANDIN, 2017, p. 931).

Os autores também trabalharam com a noção de “hiperperiferia”, que se refere a pontos críticos dentro das áreas periféricas, onde o nível de problemas sociais e ambientais é muito alto, com maiores riscos para os habitantes.

[...] observou-se que os arredores das escolas estudadas são constituídos por áreas ocupadas, majoritariamente, por famílias em condições de pobreza, sendo possível encontrar microrregiões denominadas “hiperperiferias” (TORRES; MARQUES, 2001), onde os problemas sociais, habitacionais e de saneamento básico são ainda mais intensos. Tais condições se refletem em moradias precárias, altas taxas de violência, baixas condições socioeconômicas da população, entre outros aspectos, também expressos pelo baixo Índice de Desenvolvimento Humano da localidade. Assim, apesar da diversidade de trajetórias que compunham a localidade, seus habitantes compartilhavam dos processos segregatórios caracterizados pelas suas condições socioeconômicas e pelo território segregado que habitavam (MOREIRA; SANTOS; GANDIN, 2017, p. 939).

Além disso, trazem, também, a questão, estabelecida como fato, de que a pesquisa, trabalhando com a concepção de periferias urbanas, mostrou as nuances em relação aos índices econômicos e sociais, definidores dos níveis de qualidade de vida, que podem ocorrer entre comunidades do mesmo território, comunidades do mesmo bairro, tendo em vista subdivisões distintas dentro desses bairros. A localização de uma escola dentro de um bairro, segundo os estudos dos autores, pode modificar significativamente o modo de agir e de viver das pessoas, influenciando o trabalho pedagógico da escola, bem como o planejamento dos professores.

Contudo, foi verificada a tendência dos professores de generalizar as características dos estudantes atendidos em duas escolas do mesmo bairro. Nesta etapa da pesquisa, foram realizados estudos em duas escolas que apresentavam Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) distintos. Em relação a isto, os autores explicam que a introdução da noção de periferia urbana contribuiu para colocar em evidência os “múltiplos aspectos constituintes das realidades escolares” (MOREIRA; SANTOS; GANDIN, 2017, p. 940).

Em relação ao conceito de “efeito do território”, explicam que

Os conhecimentos do efeito do território sobre as desigualdades sociais começaram a ser organizados na década de 1980 a partir dos estudos urbanos da chamada Escola de Chicago, nos Estados Unidos e, desde então, estão sendo profícuos os resultados da aproximação da Sociologia Urbana com a Sociologia da Educação (MOREIRA; SANTOS; GANDIN, 2017, p. 933).

Indicam, assim, os autores, que o avanço desses estudos tem esclarecido que o espaço não é somente um posicionamento geográfico, mas também é um aspecto social que atravessa currículos e práticas pedagógicas nas escolas de periferia urbana, com efeito potencializador das desigualdades educacionais na medida em que não existe efetiva garantia de acesso à instituição escolar e que não há igualdade na distribuição de recursos entre as escolas localizadas nos centros urbanos e nas das periferias, de modo que esclarecem que seu intuito com o estudo foi

[...] chamar a atenção para processos complexos vividos em escolas situadas em locais segregados, que não podem ser ignorados nas análises dos fenômenos educacionais nesses contextos. Além disso, ao propor esta discussão, pretende-se reforçar os argumentos de que há ainda um importante trabalho a ser feito, tanto no âmbito das políticas sociais e educacionais, das instâncias oficiais e dos gestores educacionais, quanto no espaço escolar (MOREIRA; SANTOS; GANDIN, 2017, p. 937).

Nesta altura, os autores tocam em um ponto comum em relação à experiência vivida ao final de 2020 na escola em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, localizada numa periferia urbana, muito provavelmente em área considerada como hiperperiferia.

A referida escola municipal atende crianças de Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental e está localizada às margens de uma comunidade controlada pelo tráfico, sendo os seus alunos, em sua maioria, moradores dessa e de outras comunidades próximas.

O contexto social das crianças atendidas por essa unidade escolar foi agravado em 2020 por causa da pandemia de coronavírus, situação essa que elevou índices de pobreza e violência doméstica, conforme já mencionado neste estudo.

Retornando à compreensão do conceito de “efeito do território”, verificou-se que as escolas pesquisadas estavam em comunidade que sofreu diversas formas de ocupação. Percebeu-se que parte das ocupações do território onde a escola estava inserida era resultado de processos de desapropriação que provocaram o realojamento de inteiras comunidades para aquela localidade, provocando, também, um embate profundo com os moradores que ali já viviam. Os autores constataram, assim, tendo acompanhado as escolas e professores por alguns meses utilizando entrevistas e anotações diversas, que esses embates acabavam, muitas vezes, culminando no interior da escola. Ainda,

As precárias condições socioeconômicas do território onde se situavam as duas escolas do referido estudo também ajudaram a configurar certas especificidades do trabalho escolar desenvolvido nesses contextos, que passa a ser não somente centrado em ações pedagógicas, mas também, em ações de acolhimento e encaminhamento psicossocial (MOREIRA; SANTOS; GANDIN, 2017, p. 942).

Além disso, observaram-se evidências de que as escolas estão constantemente buscando meios de suprir as necessidades básicas de cuidados das crianças e buscando estratégias para vencer as dificuldades de aprendizagem, de forma que caracterizaram o trabalho da escola localizada nas periferias urbanas como “[...] descontínuo, precarizado e solitário” (MOREIRA; SANTOS; GANDIN, 2017, p. 945).

A respeito das relações entre “efeito do território” e “trabalho escolar” a pesquisa, com base nas noções de currículo formuladas por renomados nomes2 na área, traduziu o currículo escolar como práxis, orbitando entre conhecimento escolar e suas disputas e se concretizando em diversas práticas curriculares, esbarra com a questão da existência de um currículo nacional comum, já que fica clara a complexidade que se estabelece nos processos de exclusão e segregação social que se perpetuam ao redor das unidades escolares situadas em áreas de periferia urbana, assim como Correia e Zoboli (2021) esclarecem quando trataram da questão da palavra “comum” e do conceito de “noções comuns”.

Moreira, Santos e Gandim (2017) mostraram que o efeito do território durante as suas pesquisas se evidenciava de duas maneiras, tanto objetiva quanto subjetivamente, conforme a Tese de Santos (2017, p. 255):

A partir da coleta e análise de dados, identifiquei que efeito-território atua de duas maneiras sobre a escola como um todo e sobre o currículo escolar: a) de maneira objetiva - quando a rotina, a estrutura e o funcionamento da escola (e das práticas curriculares) sofrem alguma mudança efetiva em decorrência do efeito território, e b) de maneira subjetiva - quando o efeito de lugar conforma um saber docente que orienta os modos de sociabilidade, interação e distribuição do conhecimento.

Dito isto, queremos exemplificar de que formas questões sociais, sociais e econômicas e de saúde pública, têm grande influência sobre os currículos escolares, mudando a maneira como as práticas pedagógicas acontecem no interior da escola.

A pandemia de Covid-19, da mesma forma que outras questões que atingem a toda a sociedade, especificamente às comunidades mais pobres e vulneráveis, também provocou “[...] um certo abandono por parte de alguns educadores das questões mais voltadas ao conhecimento escolar em detrimento do necessário/urgente acolhimento ao aluno” (MOREIRA; SANTOS; GANDIN, 2017, p. 948).

Tendo em mente que o acolhimento nas comunidades que estão localizadas nas periferias urbanas precisou acontecer em prol de prover necessidades básicas aos estudantes que, para além de não terem acesso aos conteúdos escolares por meios remotos, também careciam de alimentação, de vestimenta e de abrigo. De modo que se pode concluir que: “Todas essas ressonâncias do efeito do território que incidem globalmente sobre a escola e os sujeitos que ali circulam e trabalham afetam, portanto, os processos curriculares, tanto no âmbito do planejamento curricular quanto das práticas pedagógicas de ensino” (MOREIRA; SANTOS; GANDIN, 2017, p. 949).

Correia e Zoboli (2021), ao tratar da temática currículo, trouxeram como tema principal a (im)possibilidade de uma Base Nacional Comum Curricular e falaram a respeito de conceitos de “corpo” e de “produção do comum”, que somente se faz na relação entre os corpos.

Explicaram que a percepção de ser afetado por outro corpo não garante a compreensão da multiplicidade que esse outro corpo comporta em si mesmo, apontando para o fato de que, geralmente, o que acontece é somente a percepção da consequência da ação de um outro corpo sobre o nosso próprio.

Os autores levantaram estes conceitos com base em definições trazidas por Deleuze e Spinoza, concluindo, assim, que as “noções comuns” só podem ser produzidas nos encontros dos corpos. Ainda explicam que

Essa concepção de corpo é imprescindível para produção do comum, pois as “noções comuns” ocorrem justamente quando as relações (movimento e repouso) que correspondem a dois corpos se compõem, elevando a potência de ambos afetarem e serem afetados, possibilitando-os tomar para si sua potência, haja vista que sua capacidade de ação e compreensão foi elevada diante da composição entre ambos os corpos (CORREIA; ZOBOLI, 2021, p. 309).

Após explorar os conceitos de “produções comuns” e do que é conhecido como “comum” os autores explicam que a Base Nacional Comum Curricular não traz, no corpo de seu texto, o conceito de comum a que se refere em seu título, mas deixa claro que comum seria aquilo que se deseja que todos os corpos sejam capazes de fazer.

Para os autores, o documento Base Nacional Comum Curricular despotencializa os corpos em relação à produção de “noções comuns” e os sujeita a uma estrutura documentada que designa o que o corpo deve fazer. Inverte a ordem natural da produção de conhecimentos, tendo em vista que em Deleuze e Spinoza, conforme os estudos dos autores mencionados, a produção de “noções comuns” somente acontece no contato com o outro, no afeto entre os corpos, conforme explicam

Quando no título deste escrito provocamos com o termo impossibilidade de uma Base Nacional Comum Curricular foi com o intuito de demonstrar no transcorrer deste artigo que o comum não é dado, mas produzido e depende de condições que o tornem possível. As condições que a BNCC oferece tornam o comum impossível na medida em que como mostramos nega a singularidade e os corpos dos professores e alunos subsumindo-os competências e aprendizagens presentes no documento (CORREIA; ZOBOLI, 2021, p. 318).

Diante das diversas realidades existentes em nosso país e da necessidade de trabalhar com elas de modo a incluir os sujeitos dos processos de aprendizagem e de ensino no trabalho pedagógico que envolve a construção do conhecimento, um trabalho que se constitui de formas mais diversas do que se possa imaginar, é inviável seguir um documento escrito, embora seguindo trâmites de democracia, na negação das tantas subjetividades e singularidades.

6 CONSIDERAÇÕES

Acolher crianças, corpos infantis, nestes tempos pandêmicos certamente não é tarefa fácil. Contudo, analisar a obra “Carne e Pedra” traz a necessidade de lembrarmos de um tempo de exclusão e silenciamento dos corpos, menos importantes, para a fluidez social e econômica. A criança, nas sociedades europeias, era vista como um corpo, sem voz, que precisava de cuidados, já que ia se tornar o adulto capaz de manter a ordem instituída em funcionamento.

Os corpos eram de onde partiam as motivações para organizar a vida, literal e figurativamente. Era através da dominação do corpo, ou de seu adestramento, que se conseguia estabelecer convívio social e econômico saudáveis. A cidade retratava o espaço onde os corpos coabitavam e trabalhavam para o crescimento econômico do Estado. Espaço este pensado tendo em vista conformar estes corpos, possibilitando-lhes movimento e certa medida de liberdade.

Atualmente, embora tenhamos crescido no sentido de entender como se dá o desenvolvimento infantil e que a legislação proteja e garanta os direitos das crianças como categoria geracional infância, ainda temos muitas dificuldades na execução desses direitos. Não conseguimos garantir que as infâncias, na forma corpórea das crianças que chegam a cada ano nos nossos sistemas de ensino, tenham garantido o direito à integridade física e moral, por exemplo. Temos uma luta a ser travada diariamente e precisamos colocar as crianças a par desta luta para que, pensando por si mesmas, sejam capazes de analisar as situações sociais vividas de maneira a poder participar das decisões tomadas no coletivo.

Instrumentalizar as crianças através da problematização da prática social, ainda que pareça negar à infância seu caráter de inocência, parece ser um caminho viável, pelo menos nesse momento.

Verificamos, também, que o efeito do isolamento social para muitas crianças foi de degradação física, mental e moral, mesmo no início da pandemia de Covid-19, quando já se previa um grande aumento nos casos de violência doméstica contra crianças no contexto mundial, porque já sendo corpos excluídos e precários devido a fatores como a pobreza e escassez de recursos necessários à vida, sua condição agora era de plena dependência de seus adultos tutores, responsáveis sob o pretexto legal de cuidar e proteger. Por este motivo, bem como pela questão de entender o pensamento da criança, se defende aqui a escuta dessas infâncias que chegam até seus professores, nas escolas, gritando por socorro.

Correia e Zoboli (2021) tocaram na questão da impossibilidade de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tendo em vista o não atendimento ao que parece essencial à construção de conhecimentos comuns que é a interação que parte do interesse dos corpos. Sinalizaram, então, que o fato é que a BNCC precisou despotencializar os corpos apresentando-os como incapazes de ser os próprios produtores de conhecimento e promotores de currículo.

Importante destacar que a noção de “corpo” trabalhada por Correia e Zoboli (2021) na “construção do comum” implica relações de afeto. Os autores deixaram claro que é a possibilidade de afetar e de ser afetado que viabiliza a construção conhecimentos comuns, premissa esta que não faz parte do texto da Base Nacional Comum Curricular ora vigente em nosso país, tendo em vista a negação da multiplicidade dos corpos que a ela estão sujeitos. Assim, destacamos a necessidade de aprender a ouvir os gritos muitas vezes interpretados como indisciplina e desinteresse.

REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel Gonzalez. Corpos precarizados que interrogam nossa ética profissional. In: ARROYO, Miguel Gonzalez; SILVA, Maurício Roberto da (Orgs.). Corpo infância: exercícios tensos de ser criança; por outras pedagogias dos corpos. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 23-54. [ Links ]

BUSS-SIMÃO, Márcia. A dimensão corporal entre a ordem e caos: espaços e tempos organizados pelos adultos e pelas crianças. In: ARROYO, Miguel Gonzalez; SILVA, Maurício Roberto da (Orgs.). Corpo infância: exercícios tensos de ser criança; por outras pedagogias dos corpos. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 259-279. [ Links ]

CORREIA, Elder Silva; ZOBOLI, Fabio. Corpo, “produção do comum” e currículo: sobre a (im)possibilidade de uma Base Nacional Comum Curricular. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 301-322, 2021. Disponível em: Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum/article/view/43085/34916 . Acesso em: 11 jun. 2021. [ Links ]

MOREIRA, Simone Costa; SANTOS, Graziella Souza dos; GANDIN, Luís Armando. Periferias Urbanas e Efeito do Território: contribuições conceituais para análises de processos curriculares e do trabalho escolar. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 15, p. 927-957, 2017. Disponível em: Disponível em: https://revistas.pucsp.br/curriculum/article/view/34909/24422 . Acesso em: 11 jun. 2021. [ Links ]

SANTOS, Graziella Souza dos. Recontextualizações Curriculares: uma análise sobre os processos curriculares no âmbito do planejamento e das práticas pedagógicas de ensino dos professores. Porto Alegre, 2017. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017. Disponível em: Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/168886/001048056.pdf?sequence=1&isAllowed=y . Acesso em: 11 jun. 2021. [ Links ]

SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003. [ Links ]

SOUZA, Viviane Martins de. Sobre espaços e tempos da infância: a urgência dos direitos das crianças no mundo em tempos de Covid-19. In: TÖWS, Ricardo Luiz; MALYSZ, Sandra Terezinha; ENDLICH, Angela Maria (Orgs.). Pandemia, espaço e tempo: reflexões geográficas. Maringá: PGE - Programa de Pós-Graduação em Geografia, 2020. p. 160-184. [ Links ]

NOTAS:

1 Médico britânico que, pela primeira vez, descreveu corretamente os detalhes do sistema circulatório do sangue. Publicado a obra "De Motu Cordis" (Sobre o Movimento do Coração e do Sangue) em 1628 na cidade de Frankfurt, livro que contém a primeira explicação acurada sobre a circulação sanguínea.

2 Michael Apple (1989, 1999, 2000, 2006), Regina Leite Garcia e Antonio Flavio B. Moreira (2006), Antonio Flavio B. Moreira (2007) e José Gimeno Sacristán (2000).

Recebido: 22 de Junho de 2021; Aceito: 04 de Fevereiro de 2022; Publicado: 30 de Março de 2023

Creative Commons License Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional que permite o uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a obra original seja devidamente citada.