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Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub June 30, 2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e55013 

Artigos

Estratégias retóricas do Todos Pela Educação: contexto de influência e de intervenção

Rhetorical strategies of the All for Education: context of influence and intervention

Estrategias retóricas del Todos por la Educación: contexto de influencia e intervención

Geniana dos SANTOSi 
http://orcid.org/0000-0001-6926-0132

Clarissa Bastos CRAVEIROii 
http://orcid.org/0000-0003-3940-7492

Denise de Souza DESTROiii 
http://orcid.org/0000-0002-0372-3138

i Doutora em Educação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UFMT, Líder do Grupo de Pesquisas Curriculares e Discurso (GPCeD), certificado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: genianaufmt@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-6926-0132

ii Doutora em Educação pela UERJ, Pós-Doutorado em Educação, Campo Currículo pela UERJ. Docente na Universidade Federal Fluminense (UFF), Líder do Grupo de Pesquisas Curriculares (GPeC/CNPq). E-mail: clacraveiro@yahoo.com.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-3940-7492

iii Doutora em Educação pela UERJ. Supervisora na Secretaria Especial de Direitos Humanos da Prefeitura de Juiz de Fora, Minas Gerais. Pesquisadora Colaboradora no Grupo de Pesquisas Curriculares e Discurso (GPCeD/CNPq). E-mail: denisesdestro@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-0372-3138


Resumo

Neste artigo, destaca-se, a partir da perspectiva discursiva e da análise retórica, estratégias em torno dos direitos educacionais na contingência instaurada pelo Coronavírus Sars-Cov-2. Problematiza-se um cenário de disputas sobre o funcionamento das escolas e a atuação dos professores em que o movimento Todos Pela Educação projeta significação de ordenamento e de normatização. Como resultados, identificaram-se a redução/condensação da Educação a Distância às ferramentas utilizadas nessa modalidade de ensino e um investimento pertinente à cientificidade dos dados que subsidiam a tomada de decisões nas políticas educacionais, construção discursiva que opera como fundamento das políticas deliberativas.

Palavras-chave: retórica; Todos Pela Educação; direitos educacionais; pandemia; currículo

Abstract

In this article, from a discursive perspective and rhetorical analysis, strategies related to educational rights in the contingency established by the Coronavirus Sars-Cov-2 are highlighted. A scenario of disputes about the functioning of schools and the performance of teachers is problematized in which the “Todos Pela Educação” (All For Education) movement projects the meaning of ordering and standardization. As a result, it was identified the reduction/condensation of distance education to the tools used in this type of teaching and an investment relevant to the scientificity of the data that support decision-making in education policies, a discursive construction that operates as the foundation of deliberative policies.

Keywords: rhetoric; All For Education; educational rights; pandemic; curriculum

Resumen

En este artículo se destaca, a partir de una perspectiva discursiva y del análisis retórico, estrategias en torno a los derechos educativos en la contingencia instituida por el Coronavirus Sars-Cov-2. Se problematiza un escenario de disputas sobre el funcionamiento de las escuelas y de la actuación de los docentes en que el movimiento Todos por la Educación proyecta significación de ordenamiento y de normativización. Como resultados, se identificaron la reducción / condensación de la educación a distancia a las herramientas utilizadas en esa modalidad de enseñanza y una inversión pertinente para la cientificidad de los datos que subsidian la toma de decisiones sobre políticas educativas, construcción discursiva que opera como fundamento para políticas deliberativas.

Palabras clave: retórica; Todo por la Educación; derechos educativos; pandemia; currículo

1 INTRODUÇÃO

O discurso educacional tem se orientado por uma retórica injuntiva que institui a educação como um direito fundamental a ser garantido mediante acesso, permanência e qualidade da escolarização. Antes da pandemia, tal retórica centralizava a qualidade, contudo, em 2020-2021, a impossibilidade da presencialidade nos espaços educativos impôs a reflexão de que nem acesso, nem permanência são demandas superadas, tornando urgente outros modos de organização escolar, além de uma intensa disputa pela sua normatização1.

O “novo normal”, significado na linguagem coloquial como sinônimo do contexto pandêmico, escancara as desigualdades sociais e educativas do Brasil. Por isso, consideramos pertinente retomar as reflexões de Biesta (2018) sobre os efeitos da globalização para as decisões políticas, em que interferências concretas de organismos e de organizações se evidenciam nas disputas por regulação e controle do desenvolvimento da educação de modo alinhado aos objetivos econômicos.

Entendemos que, de certo modo, se formaliza, a partir dessa organização retórica, um contexto de influência (BALL, 2002), especialmente no que tange às produções das políticas curriculares, conectando os direcionamentos propostos a um fundamento inequívoco de resolução aos problemas educacionais. Ademais, acreditamos que outras questões podem emergir nesse processo de definição de rumo e prumo à educação brasileira, sendo as estratégias retóricas algumas delas.

Neste trabalho, portanto, identificamos o movimento Todos Pela Educação (TPE) como esse lugar/agente de interferência concreta, operando de modo a projetar uma retórica educacional com contradições e ambivalências, particularmente em face da organização e da oferta contingenciada pela pandemia mundial ocasionada pelo Coronavírus Sars-Cov-2. Buscamos, mediante a análise retórica, problematizar argumentos e estratégias que sinalizam caminhos à educação em tempos de crise sanitária, adoecimento e morte, direcionando o nosso olhar para o contexto brasileiro, mais especificamente à retórica do TPE.

A retórica educacional, sedimentada pela projeção do TPE, vincula demandas sociais amplas por justiça social à escola e à prática pedagógica docente a partir das estratégias: 1. deliberativa (democrática); 2. injuntiva (jurídica, normativa e de ordenação); e 3. epidítica (demonstrativa, fúnebre ou de louvor) (GUEDES, 2014; LEACH, 2002). Para essa discussão, amparamo-nos nas produções do currículo, considerando-o como um território de disputas por significação e negociação (LOPES; MACEDO, 2011). Um projeto de questionamento construído “[…] na diversidade e pluralidade de marcas pessoais e sociais” (PACHECO, 2009, p. 398).

Ponderamos, a partir de Pacheco (2009), a necessidade de uma reinvenção do currículo como um projeto crítico que articule passado e presente, e, sobretudo, que reconheça o diferir, ser e sentir que se vivencia no contexto pandêmico, como um direito educacional. Nos termos de Lopes (2019, p. 61), “[...] o currículo precisa fazer sentido e ser construído contextualmente, atender demandas e necessidades que não são homogêneas”.

Ao investirmos na análise retórica referente aos direitos educacionais no passado e no presente, reconhecemos o contexto pandêmico como um período de tensão, de noopolítica, situação-limite (FREIRE, 2000, 2005) e, que, por essas características, acaba por impelir intervenções apressadas, justificadas pela exigência da continuidade/normalidade dos serviços educacionais após “fechamento das escolas” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 8), situando a crise educacional para além da crise sanitária vivenciada.

Por meio de uma abordagem qualitativa, que considera o registro documental como expressão, mesmo que parcial da produção discursiva, apontamos o discurso como estruturação do social (LACLAU, 1993, 2011), salientando para movimentações estruturais na produção discursiva hodierna que, se, anteriormente, salientava para o espaço físico escolar como deficitário e ineficiente (BIESTA, 2018), por hora, investe nele, e na presencialidade, todas as apostas de solução dos problemas educacionais, alocando a escola e a presencialidade na centralidade do discurso civilizatório.

Dito isso, organizamos este texto por tópicos. No primeiro, apresentamos sentidos atribuídos à retórica, destacando a análise retórica por sua potencialidade à desconstrução/desestabilização do discurso educacional. No segundo, salientamos as noções de acesso, permanência e qualidade da educação, apresentadas como produtoras dos direitos fundamentais humanos. No terceiro tópico, refletimos acerca da retórica produzida pelo TPE, mediante a Nota Técnica “Ensino a distância na Educação Básica frente à pandemia da Covid-19” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a). No quarto e último tópico, evidenciamos novos e velhos dilemas à educação no contexto de adoecimento, morte e luto da população.

2 ANÁLISE RETÓRICA CONTEMPORÂNEA

As estratégias de convencimento2 assumiram centralidade entre os povos que fizeram da linguagem instrumento de negociação e de domínio, ao utilizarem a escrita, a fala e a eloquência como modo de impor regimes de verdade e relações assimétricas de poder. Tais recursos revelam intenso investimento retórico no sagrado, no divino, no imaterial e, atualmente, no caráter científico3 das evidências utilizadas para fundamentar um conjunto de decisões políticas.

Nessa perspectiva, não obstante o uso da eloquência possuir destaque em diferentes culturas, a capacidade de ensiná-la, estruturá-la ou analisá-la, bem como desconstruí-la, é atribuída à cultura grega. A retórica nessa cultura consistia em objeto de ensino, técnica-retórica e, outrossim, em teoria, mediante a qual seria possível analisar a produção discursiva. Tal construção/invenção opera na lógica do dizer em curso, pontuando o bem falar/o bem dizer como ferramenta de argumentação e, por vezes, de enganação. Isso posto, muitos estudos que se dedicam à tradição retórica pontuam que ela é estigmatizada por ser significada como uma coleção de mentiras, indicando a duvidosa intenção do orador (LEACH, 2002).

Conforme Reboul (2004), foram os gregos que situaram a retórica como técnica capaz de instrumentalizar alguém para a defesa de qualquer tese/causa, independentemente de seu conteúdo, de sua razoabilidade moral ou ética. Nesse tocante, inicia-se, em Aristóteles, a preocupação de estruturar os estudos do campo discursivo, com vistas a desvelar que os discursos se circunscrevem no contexto social, não são construídos de modo isolado, mas se imbricam na própria constituição da realidade. Nesse sentido, Lima (2011, p. 15) salienta que:

A arte retórica ganha, com Aristóteles, o sentido de faculdade de descobrir em todo assunto o que é capaz de gerar a persuasão; o exame acurado das formas que compõem o discurso (ou rethón), levando em conta cada situação social; de acordo com o momento, o ambiente, a cultura e as pessoas envolvidas.

No que concerne à maneira como a retórica se institui na tradição grega, é preciso ponderarmos que, de modo divergente a outros pensadores, Aristóteles salientava um caráter investigativo e, sobretudo, desconstrutivo/reflexivo para o fazer retórico. Conforme aborda Klöckner (2010, p. 24), “[...] o objetivo de Aristóteles com a retórica foi oferecer tratamento eminentemente filosófico ao tema em oposição ao tratamento descuidado que retores e sofistas daquele tempo conferiam ao tema”.

Tendo em vista a preocupação em tornar a retórica propositiva para a análise da produção discursiva, e considerando as características e os gêneros discursivos, o presente trabalho parte da desconstrução como marco para uma visão ética do exercício de reflexão sobre o discursivo.

No livro I, Aristóteles analisa e fundamenta os três gêneros retóricos: 1) Deliberativo, que procura persuadir ou dissuadir, orientando para uma decisão futura. O seu lugar é nas assembleias e nos conselhos; 2) Judicial/Forense, que acusa ou defende a propósito de uma ação passada, determina o que é justo ou injusto. É típico dos tribunais; e 3) Epidêitico/Epidíctico, que elogia ou censura atos contemporâneos (KLÖCKNER, 2010, p. 25).

Ponderando sobre os gêneros retóricos, neste artigo, relacionamos tais aspectos com os desenvolvidos pelos estudiosos contemporâneos da análise retórica, Laclau (2013), Leach (2002), Klöckner (2010) e Reboul (2004), a fim de evidenciarmos elementos constituintes da retórica educacional em face à pandemia.

Laclau (2013) afirma que os gêneros retóricos não são puros e estáticos, pois são produzidos nas contingências e nos processos de negociação (LACLAU, 2013; MATHEUS; LOPES, 2014). Nesses processos, mostra-se significativo valorizar, enfatizar e compreender os momentos de decisão política, haja vista que, na emergência dessa decisão, são produzidas as relações sociais (LACLAU, 2011).

Para situarmos o procedimento reflexivo, consideramos a organização defendida por Leach (2002) como orientadora para o tratamento do discurso como empiria. Nesse tocante, são etapas e condições para a análise retórica: a) a identificação da situação retórica, que, no caso deste estudo, é a contingência pandêmica e seus efeitos sobre uma reorganização discursiva em torno da educação; b) a identificação dos tipos de discursos retóricos, epidítico, injuntivo e deliberativo4; e, por fim, c) a compreensão a respeito das figuras retóricas, condensações e sínteses como: novo normal, fechamento das escolas, por exemplo.

3 ACESSO, PERMANÊNCIA E QUALIDADE DA EDUCAÇÃO

O discurso educacional põe em destaque, ao menos na dimensão retórica, um projeto civilizatório mundial direcionado pela Organização das Nações Unidas (ONU) a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nisso estão de acordo Goldemberg (1993), Lessard e Carpentier (2016), que assinalam sobre o projeto que dá centralidade à educação como meio de contenção de todo tipo de barbárie e alteração dos processos produtivos de modo alinhado ao desenvolvimento econômico almejado pela sociedade capitalista.

Com esse foco, o investimento na educação passa a ser fortalecido pelas reformas das políticas educacionais, pelas ações da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e, mais enfaticamente, pelas agendas do Banco Mundial, que inicia um processo de direcionamento global das políticas locais, que, conforme Biesta (2018), se formalizam como organizações com interferência direta nos princípios e nos propósitos educativos. O autor também sinaliza os sistemas de medição internacionais tais como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), estudo sobre as tendências matemáticas e das ciências e da competência leitora que contribuem para o fortalecimento dos discursos sobre a “qualidade” e os “padrões de educação” bem como o de “boa educação” (BIESTA, 2018).

Em se tratando da universalização da educação, especificamente no Brasil, Goldemberg (1993, p. 68) aponta que, “[...] em 1950, apenas 36,2% das crianças de 7 a 14 anos tinha acesso à escola. Em 1990, esse índice havia atingido 88%”. Essa comparação fornece uma visão da ampliação do acesso à escolarização mediante a incorporação das políticas internacionais propostas pela Unesco/pelo Banco Mundial na reforma educacional brasileira. Nesse sentido, pontuamos que, após a ampliação do acesso, outro problema se mostrou premente às políticas educacionais: a permanência.

Leon e Menezes-Filho (2002, p. 424) assinalam que “[...] a queda na taxa de evasão foi especialmente acentuada na década de 1980, e se mostrou constante a partir dos anos 1990”. Na pesquisa desenvolvida pelos autores, eles destacam que, embora a reprovação não tenha sido um elemento de definição para a evasão escolar, contribuiu de modo significativo para sua manutenção, principalmente entre os estudantes mais pobres. Ademais, os autores enfatizam que a melhoria da frequência escolar se deve à presença da população, empobrecida pelas desigualdades sociais, nos espaços educativos, tendo em vista que, nos grupos mais ricos, essa problemática se mostrou irrelevante, sendo esse um forte indício de que a renda/pobreza distancia os sujeitos dos espaços educativos5 (LEON; MENEZES-FILHO, 2002).

Acesso e permanência são direitos assegurados pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB) - Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 2017), que atribui ao Estado e à família a corresponsabilidade por tais garantias na Educação Básica. Contudo, essas responsabilidades não têm sido suficientes para que tais direitos sejam garantidos. A permanência contínua na escola possibilitou outras garantias aos estudantes, melhorando o acesso aos serviços públicos e aumentando significativamente a média do nível de escolarização do brasileiro para 9,3 em 2018 (BRASIL, 2019). Entretanto, as práticas discursivas a respeito da permanência sem proficiência têm fortalecido um discurso de crise generalizada, provocando a abertura do espaço escolar para as intervenções mais diversas possíveis. Isso, ao encontro dos índices produzidos pelas avaliações de larga escala, corrobora para a estruturação de uma retórica epidítica, de acusação sobre a ausência de qualidade, ineficiência da escola, implicando a disputa entre projetos educacionais e seus respectivos propósitos para a educação.

Significa dizer que, a partir das reformas curriculares, das ideias de crise e de fracasso dos sujeitos escolares, dos índices insuficientes relativos à proficiência, inicialmente da alfabetização e suas evidências científicas, o direito à educação passou a condensar tão somente o domínio de um dado repertório curricular a ser avaliado, o que tem empobrecido a significação de currículo escolar. Lopes (2012, p. 702) destaca que: “A qualidade da educação é uma reivindicação usual, vinculada à ideia de que o currículo precisa garantir a possibilidade de crianças e de jovens permanecerem na escola e atingirem os níveis instrucionais julgados necessários a um projeto de sociedade”.

Matheus e Lopes (2014) explicam que não é recente a demanda por qualidade; ela, de certo modo, está relacionada ao acesso e à permanência por uma contiguidade necessária à garantia do complexo direito à educação. De acordo com as autoras:

O discurso de qualidade foi especialmente difundido nas propostas de qualidade total dos anos 1990, marcadas por uma estreita relação entre os modos de operar da escola e as dinâmicas empresariais, mas não se limita a esse período. Como exemplo emblemático mais recente, o movimento Todos pela Educação associa as metas de qualidade ao processo de inclusão escolar, reduzindo a defasagem idade-série, e ao alcance de índices instrucionais adequados, a partir de critérios estabelecidos em testes centralizados, principalmente o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), do Ministério da Educação (MEC) e a Avaliação Brasileira do Final do Ciclo de Alfabetização (Prova ABC), organizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP/MEC), pelo IBOPE e pela Fundação Cesgranrio (MATHEUS; LOPES, 2014, p. 341).

Por ser uma garantia subjetiva, dificilmente quantificável, como no caso do acesso e da permanência, tal demanda foi assumindo contornos muito amplos e, conforme assinalam as autoras, tornou-se vazia de significação. Essa característica, ao passo que implica uma impossibilidade de resolução, articula demasiadas equivalências em um território discursivo, tornando-se bandeira de diferentes grupos e ganhando centralidade nas políticas educacionais.

A demanda por qualidade, por sua urgência e dificuldade de resolução, tem apagado a necessidade de continuidade das políticas de acesso e permanência, por vezes pontuais e desarticuladas6, algo que, devido à provisoriedade do momento, pode retornar no bloco de agendas educacionais, em parte, em função do que se vivenciou em 2020 a partir da condensação retórica “novo normal”.

4 TODOS PELA EDUCAÇÃO: NORMATIZAÇÃO ÀS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS A PARTIR DE ESTRATÉGIAS DELIBERATIVAS

A noção de qualidade educacional faltosa compõe o repertório discursivo do TPE há algum tempo. Por meio de diversos documentos7, o movimento tem delineado a crise educacional e sua necessidade de transformação mediante intervenção e controle por meio de políticas centralizadoras.

O movimento TPE, com fundação em 2006, tem sede em São Paulo, é constituído por diferentes setores da sociedade, mas se caracteriza principalmente pela constituição de um contexto de influência8 a partir do qual diferentes ações políticas são delineadas (BALL, 2002). “O Todos Pela Educação é uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, plural e suprapartidária, fundada em 2006. Com uma atuação independente e sem receber recursos públicos, nosso foco é contribuir para melhorar a Educação Básica no Brasil” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 2).

É notório que o TPE atua na definição das políticas públicas educacionais, especialmente em nome da produção de um currículo eficiente e produtor de igualdade social. Além desse aspecto, impactou-nos ter conhecimento de que nenhuma das pessoas que assina a elaboração da Nota Técnica tem formação e/ou experiência profissional no campo educacional, sejam escolas, sejam Universidades. Mesmo assim, o Todos Pela Educação (2020a, p. 2) advoga pela produção de conhecimento cujo objetivo é o de “[…] apoiar a tomada de decisão das diferentes esferas do poder público e articulamos junto aos principais atores para efetivar as medidas que podem impactar os rumos da Educação”, inclusive monitorando criticamente os indicadores educacionais e as políticas públicas desenvolvidas no Brasil.

A equipe constituinte desse documento é majoritariamente proveniente do campo empresarial e, conforme sinaliza Martins (2013), representa organizações com crescente impacto nas políticas públicas, criando um contexto de intervenção nas políticas curriculares. “Tais organizações são fomentadas por grupos empresariais e lideranças da sociedade, atuam em rede, e, a partir de estabelecimento de alianças com o poder público, buscam incidir nas políticas públicas voltadas à área da educação em seus países de origem” (MARTINS, 2013, p. 3).

O autor sinaliza que a atuação desses grupos consiste “[…] no princípio do direito à educação de qualidade” (MARTINS, 2013, p. 4) corroborando com aspectos constitucionais, os quais ressignificam ideais políticos presentes na década de 1990 e assimilam pautas novas à agenda educacional, com o intuito de reestruturar a educação pública. Tendo em vista esses aspectos, dedicamos especial atenção às produções retóricas do TPE, de modo a refletirmos acerca de sentidos endereçados à organização curricular em face da pandemia. Salientamos que vários chamamentos à ação pedagógica são projetados pela organização ora focalizada, que, pelo seu próprio nome, carrega em si um ar deliberativo e democrático. Atinente a isso, retomamos problematizações de Lopes (2012) a respeito do caráter democrático que algumas representações reclamam para si.

A partir da análise retórica, é possível compreendermos o caráter deliberativo do discurso pela sua vinculação às demandas populares e pela responsabilização direcionada aos sujeitos que constituem o campo educativo, nesse caso, os professores.

O TPE tem atuado na produção de textos de sensibilização e de formação de opinião acerca dos rumos da Educação. No dia 9 de maio de 2020, o TPE divulgou um texto sobre as ações educacionais em tempos de pandemia. A matéria em questão é intitulada “Educação na pandemia: ensino a distância dá importante solução emergencial, mas resposta à altura exige plano para volta às aulas” e expressa orientações à condução de atividades educacionais no contexto brasileiro, além de indicar o fechamento das escolas como um óbice à garantia dos direitos à educação (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020b).

Anteriormente, em abril de 2020, o TPE lançou a Nota Técnica “Ensino a distância na Educação Básica frente à pandemia da Covid-19”, uma análise e uma visão “[...] do Todos Pela Educação sobre a adoção de estratégias de ensino remoto frente ao cenário de suspensão provisória das aulas presenciais” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 1). Nesse sentido, destaca-se que, além de ser a primeira versão:

Trata-se de um documento em construção e para debate, especialmente considerando que as discussões sobre o tema estão em constante amadurecimento neste momento. Novas contribuições advindas das experiências nacionais e internacionais certamente surgirão ao longo das próximas semanas e agregarão à literatura educacional sobre o tema (literatura que, naturalmente, tem a maior parte de seus estudos proveniente de tempos de normalidade, e não excepcionais como agora). Assim, e reconhecendo que nenhuma solução é, em um contexto como o atual, perfeita e definitiva, o Todos Pela Educação buscará atualizar constantemente suas análises com vistas a subsidiar e qualificar o debate público educacional brasileiro (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 2).

O texto consiste em resposta à interrupção do funcionamento das escolas e busca orientar as dinâmicas de oferta dos serviços educacionais nesse novo contexto. A referida Nota apresenta um recorte que privilegia a normatização e a implementação de medidas para o retorno das aulas, com a disposição em quatro pontos:

  1. Frente ao atual momento, soluções de ensino remoto podem contribuir e devem ser implementadas. Mas, considerando seu efeito limitado, é preciso cuidadosa normatização e, desde já, atenção ao planejamento de volta às aulas.

  2. Uma estratégia consistente para o ensino remoto é aquela que busca mitigar as condições heterogêneas de acesso e os diferentes efeitos de soluções a distância em função do desempenho prévio dos estudantes.

  3. Ensino remoto não é sinônimo de aula online. Há diferentes maneiras de estimular a aprendizagem a distância e, se bem estruturadas, atividades educacionais podem cumprir mais do que uma função puramente acadêmica.

  4. Mesmo a distância, atuação dos professores é central (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 5).

Conforme o objetivo do movimento, a “[…] nota recorre aos dados e evidências existentes para iluminar desafios, limitações e caminhos para a adoção do ensino remoto, buscando apresentar uma abordagem propositiva e evitar uma leitura descontextualizada de um momento inédito no Brasil” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 3).

O texto defende a transitoriedade da modalidade regular de ensino para a modalidade a distância, no contexto da pandemia, assinalando a Educação a Distância (EAD). Tal compreensão é marcada pela prescrição de ações desenvolvidas como planejamento e processos de implementação. Nessa perspectiva, o TPE coloca-se na posição de conclamar a sociedade para repensar a oferta de ensino, mas, sobretudo, sua qualidade, voltando-se à preocupação com o acesso e a lógica de desempenho, estruturando informações e ideias para a ampliação do debate.

[…] a contribuição ao debate público presente nesta Nota se estrutura a partir de quatro principais mensagens que, novamente, estão informadas pelos mais recentes dados e pesquisas científicas, além de atentas ao imenso desafio ora vivido. Espera-se, assim, qualificar as discussões sobre o assunto e prover eventuais subsídios à tomada de decisão dos gestores e profissionais da área de Educação responsáveis pelo atendimento nas etapas do Ensino Fundamental e do Ensino Médio (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 4).

Como dados para subsidiar as decisões no âmbito das políticas educacionais, a Nota Técnica destaca o comparativo entre a atuação para a manutenção das atividades educacionais em estados e municípios. A esse respeito, salienta maior mobilização da rede estadual, que tem superado o trabalho desenvolvido pelos municípios quanto à continuidade das atividades pedagógicas.

Salientamos que há uma condensação de sentidos que significa a EAD a partir de alguns recursos relativos à sua operacionalização, como: 1. Uso de plataformas on-line; 2. Utilização de videoaulas gravadas; 3. Uso de materiais digitais via rede; 4. Aulas on-line ao vivo; 5. Aulas via TV; 6. Orientações via chat, sem que haja real compreensão acerca dessa modalidade de ensino.

A condensação da modalidade EAD enfatizada, além de demonstrar ausência de conhecimentos sobre essa modalidade educacional, implica a produção de representações distorcidas sobre a mediação pedagógica desenvolvida no âmbito da EAD, suscitando discussões nacionais anteriores acerca de sua inviabilidade nas três etapas da Educação Básica9. Outra prática discursiva estruturante no documento esboça a produção de uma compreensão híbrida de educação10 a distância/ensino remoto, assinalando que: “No atual contexto, atividades a distância assumem caráter essencial” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 6).

Quiçá pela necessidade do distanciamento social, a utilização do termo “distância”, atrelado às atividades escolares, passe a indicar, no contexto discursivo em questão, a possibilidade de permanência/continuidade da escola. A partir disso, é possível refletir que, se, em outras práticas discursivas, a escola havia sido questionada acerca de sua capacidade de ensinar, mesmo presencialmente, por ora aposta-se em sua continuidade e em seu funcionamento a fim de aplacar as dificuldades dos estudantes. Conforme disposto no documento, “[…] é preciso ter expectativas realistas quanto às diversas soluções existentes, sabendo que elas são importantes alternativas no atual momento, mas não suprirão todas as necessidades acadêmicas esperadas e previstas nos currículos” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 6).

A compreensão sinalizada no contexto de novas práticas pedagógicas, idealizadas e normatizadas pelo TPE, indica ainda um investimento no discurso de crise intensificada pela impossibilidade das atividades marcadas pela presencialidade e a necessidade de um currículo fixo, previsto, implementado. A palavra “currículos” evoca o processo de reforma curricular vivenciado nos últimos anos, cujo resultado foi a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e conseguinte orientação para a produção de documentos curriculares no âmbito local (estados e municípios), momento discursivo em que o TPE atuou fortemente. Nessa articulação entre currículos previstos e práticas de ensino remoto, a Nota Técnica estrutura uma proposta de implementação, normatização e regulação das práticas pedagógicas com vistas à garantia dos direitos educacionais, acesso, permanência e qualidade.

O TPE assinala que:

Considerando o avanço do ensino remoto em diversas redes, tornam-se urgentes as discussões sobre normatização da equivalência das atividades realizadas a distância. Mesmo que a legislação permita seguir nesse sentido, não há parâmetros mínimos nacionais e tampouco consenso sobre como avançar (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 7).

O documento sinaliza, outrossim, a regulação da oferta educacional, projetando um cenário crítico e urgente de modo a demonstrar a necessidade da escola como lugar de garantias, embora outrora marcado pela ausência de qualidade.

Por fim, um alerta importante no que tange à priorização dos esforços por parte do poder público nas próximas semanas e meses: por mais que a adoção do ensino remoto possa contribuir para reduzir o impacto do fechamento de escolas na formação dos alunos, é fundamental que as redes de ensino não demorem a planejar estratégias eficazes para lidar com a volta às aulas (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 8).

As estratégias discursivas estruturadas no documento ora destacado indicam um deslizamento entre os sentidos atribuídos à modalidade EAD e ao ensino remoto, mesmo que contingencialmente, como resposta aos problemas referentes à permanência da oferta, ainda que isso não represente a permanência dos estudantes, cujo acesso às tecnologias nem sempre é uma realidade.

As quatro mensagens apresentadas nesta Nota buscaram sintetizar, a partir das mais recentes evidências e do contexto atual, importantes questões a respeito do ensino remoto nos Ensinos Fundamental e Médio, uma vez que esta estratégia, mesmo que com limitações, torna-se absolutamente relevante em um cenário de distanciamento social e fechamento provisório de escolas. Não por acaso, optou-se aqui pela diferenciação entre o termo “Educação a Distância (EaD)” - modalidade de ensino que pressupõe uma organização e lógica própria - e o termo “ensino remoto” - que enfatiza a natureza mitigadora da ação. Com efeito, as pesquisas apontam que a modalidade EaD na Educação Básica11 também tem suas limitações específicas, mas, diante do cenário atual, não se trata de uma análise exclusiva sobre ela, e sim sobre o que está ao alcance das redes de ensino em um momento que exige respostas ágeis e inéditas (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 15).

Reforçar a crise, apontando para possibilidades de solução, mostra-se estratégia para justificar ações de caráter injuntivo a serem realizadas em nome dos direitos educacionais. Assim, “[…] uma resposta em escala e à altura dos desafios que surgirão só poderá ser dada com um robusto conjunto de ações pós-período de fechamento das escolas” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 8).

Conforme disposto no documento ora focalizado, tais ações são destacadas não somente como oportunas, mas como imprescindíveis para contenção do caos causado pela ausência da escola como um espaço físico de produção de proficiência. Entre as ações, algumas apontam para o acolhimento dos sujeitos escolares, indicando reconhecimento dos impactos que uma pandemia causa na produção das subjetividades, de ser e existir em face da morte eminente.

[...] o Todos Pela Educação, reconhecendo a criticidade do momento e se solidarizando com a situação, não medirá esforços para apoiar todos os gestores e profissionais da área que já estão, dentro das suas possibilidades e alcance, buscando soluções em prol das crianças e dos jovens brasileiros (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 15).

Ademais, a Nota Técnica aponta a evasão como uma possibilidade real, após o distanciamento dos estudantes do espaço escolar, sinalizando ações de apoio e formação aos professores necessárias ao enfrentamento dos impactos da pandemia para a educação (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a).

Conforme a experiência de países que sofreram com longos períodos de suspensão de aulas demonstra, tais estratégias precisarão contemplar novas e excepcionais demandas, como o acolhimento emocional dos alunos e profissionais da Educação, a comunicação reforçada com as escolas e as famílias, um acompanhamento mais próximo dos estudantes com maior propensão ao abandono ou evasão, avaliações diagnósticas acompanhadas de amplos programas de recuperação escolar e ações de formação e apoio aos professores em múltiplas dimensões (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 8).

Ressaltamos que a cada problema apontado, acesso, permanência, aprendizagem, há abertura discursiva para novas ações de intervenção, regulação e controle, complexificando o lugar assumido pelo TPE no contexto da tomada de decisão curricular, o que tende a projetar políticas apressadas que apagam o caráter democrático necessário à educação.

5 DIREITOS À EDUCAÇÃO, NOVOS E VELHOS DILEMAS

Os significantes privilegiados nesta discussão relacionam-se às práticas discursivas sobre acesso, permanência e qualidade da educação. Estão, como foi expresso, na dependência do espaço escolar, ambiente de aprendizagem, mas, sobretudo, na ideia de presencialidade como garantidora de direitos educacionais na Nota Técnica.

No registro discursivo estudado, observamos como situação retórica, no contexto da pandemia, a demanda pelos direitos educacionais, vinculados à reabertura das escolas, mesmo que, em outros momentos discursivos, tal presencialidade não tenha se mostrado elemento significativo para superação dos problemas educacionais vigentes.

Outrossim, é preciso considerar que dos tipos de discursos retóricos identificados, assumem principal importância o deliberativo e o injuntivo, que, na composição narrativa do TPE, são capazes de definir organizações futuras para oferta educacional, desvelando, sobretudo, a ambivalência de uma escola, espaço físico em crise até há poucos meses12 e que agora se mostra como elemento garantidor de direitos educacionais: acesso, permanência e qualidade.

Ainda sobre equidade, outra preocupação na mudança do ensino presencial para totalmente a distância é o aprofundamento das desigualdades de aprendizagem por conta dos conhecimentos e competências já desenvolvidos até então pelos alunos. Por mais que existam experiências bem-sucedidas de soluções tecnológicas que beneficiam, em maior grau, os alunos de baixo desempenho acadêmico, contribuindo para reduzir as disparidades educacionais, elas invariavelmente são implementadas como suplementar ao ensino presencial (como atividades de reforço, por exemplo) (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 10).

Já no tocante às figuras retóricas utilizadas no TPE, a ideia de fechamento e abertura dos espaços escolares parece relacionar-se à lógica das atividades de comércio, que devido à pandemia tem realizado o movimento de fechamento e abertura conforme a classificação essencial e não essencial. Nesse sentido, ainda que o “antigo normal” tenha sido extremamente criticado, via mobilização para as reformas curriculares e a proposição de um currículo por competências, “o novo” se delineia ainda como mais aterrorizante, tendo em vista a ausência da presencialidade, a possibilidade de evasão devido à fragilidade das políticas de acesso.

É importante lembrar, ainda, que certos conteúdos e disciplinas se adaptam melhor ao ensino virtual do que outros, então pode ser importante analisar, no currículo, quais as competências e habilidades conseguem ser melhor trabalhadas a distância, para que sejam o foco das atividades pedagógicas neste período de fechamento das escolas (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 11).

Esses são alguns dos novos/velhos dilemas educacionais propostos pelo TPE, que condensa elementos de uma retórica respaldada nos regimes de verdade, sejam eles estruturados na invenção, na disposição e no estilo de um discurso científico baseado em evidências, na medida e no cálculo (BIESTA, 2018). Nesse sentido, Biesta também nos instiga a pensar sobre o que medimos e o que validamos com os dados comparativos na aprendizagem, “[…] estamos medindo o que valorizamos ou estamos medindo aquilo que é facilmente mensurável, chegando à situação em que valorizamos o que podemos medir ou aquilo que se mediu” (BIESTA, 2018, p. 6).

Como contradição/ambivalência, podemos apontar que, conquanto se ampare na disposição13 e no estilo do discurso científico, o TPE pouco considera as produções acadêmico-científicas sobre a educação, haja vista a formação acadêmica da equipe técnica dessa Nota Técnica que identificamos14, contradição ainda passível de problematização no contexto de influência das comunidades epistêmicas e disciplinares que destinam seu foco ao estudo dos processos educacionais contemporâneos (DIAZ-BARRIGA, 2018) 15.

Na produção retórica estudada, é possível compreendermos como estratégia retórica a fragmentação de contextos de influência (acadêmico, científico versus democrático, deliberativo) em que o TPE reclama para si o lugar da representação/representatividade de demandas populares em torno da educação. Além disso, ignora sentidos educacionais para a modalidade EAD, acesso, permanência, qualidade educacional que circulam no contexto da comunidade docente e de pesquisadores das universidades que lidam com a formação de futuros docentes nos cursos de licenciatura e com a formação continuada dos profissionais em exercício no âmbito das redes públicas de ensino.

De modo similar, enfatizamos que a condensação/síntese evidências científicas, estratégia retórica utilizada outrora para conectar os índices de proficiência em alfabetização às políticas curriculares de alfabetização centralizadoras (BIESTA, 2018), parece ser resgatada como fundamento para o direcionamento da oferta educacional em tempos de pandemia. Destarte, o documento “[…] recorre aos dados e evidências existentes para iluminar desafios, limitações e caminhos para a adoção do ensino remoto, buscando apresentar uma abordagem propositiva e evitar uma leitura descontextualizada de um momento inédito no Brasil” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 3). A Nota salienta inclusive que:

Estratégias de ensino a distância deverão cumprir papel importante para a redução dos efeitos negativos do distanciamento temporário, mas as evidências indicam que lacunas de diversas naturezas serão criadas. Com isso, normatizações sobre sua equivalência para fins de cumprimento do ano letivo precisam ser objeto de atenção dos órgãos reguladores e, desde já, redes de ensino precisam começar a planejar um conjunto robusto de ações para o retorno às aulas (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a, p. 5).

Essa estratégia, embora possa ser confundida com um posicionamento em prol da ciência/anti-negacionismo, apresenta um afastamento da leitura do contexto educacional como potencializador de contágio pelo coronavírus, reiteradamente apontado pelos cientistas, bem como uma aproximação da leitura da escola à mercê da lógica de abertura e de fechamento, em semelhança ao comércio e que carece de uma proposta pedagógica e com uma política educacional adequada a esse enfoque.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta discussão, na qual propusemos reflexões acerca da cena curricular construída em meio à retórica de crise e necessária normatividade, estivemos orientadas por uma compreensão curricular atenta à relação passado e presente da significação dos direitos educacionais. Focalizamos, como materialidade discursiva, a produção do TPE a partir de uma Nota Técnica que reclama para si legitimidade em dizer sobre a oferta educacional na contingência vivida entre 2020-2021. Salientamos que as produções de sentido sobre acesso, permanência e qualidade educacional, no contexto discursivo apontado, são marcadas pela ameaça ao direito à educação, entendido como presencialidade e proficiência.

Nesse ínterim, ao passo que projeta sentidos sobre a ameaça ao direito à educação, o TPE opera com condensações limitadas sobre o propósito da educação (BIESTA, 2018). Dentre as estratégias utilizadas, algumas sugerem a responsabilidade/intencionalidade da escola e dos professores pelo fechamento dos espaços educacionais e rompimento da continuidade do ensino e da aprendizagem. Ao abordar, desse modo, o momento de isolamento social, a organização parece ignorar o contexto pelo qual a comunidade planetária vem passando, que torna imprescindível ter outras produções de sentido sobre educar e escolarizar, para além da continuação dos programas curriculares, da reprodução e da disseminação de algum conteúdo promotor de proficiência.

A formação de um campo de influência (BALL, 2002) que busca intervir nas políticas curriculares a partir do caráter deliberativo e injuntivo da retórica, fomentando representações, por vezes equivocadas, sobre as possibilidades de continuidade dos processos educacionais (educação a distância, ensino remoto), mostra-se como um elemento presente, de modo implícito, ao denotar sobre a dicotomia fechamento/abertura, buscando regular as formas de oferta, operando pela lógica negacionista em face da crise sanitária brasileira, de modo a salientar um imperioso funcionamento (reduzido à presencialidade nos espaços físicos educacionais) em meio ao adoecimento e morte da população.

Destarte, enfatizamos a urgência de outros campos de influência, do trabalho em rede, e da necessária participação dos campos epistêmico e disciplinar relacionados à educação na problematização de equívocos enunciados tanto em torno da modalidade a distância quanto ao que concerne educar em tempos de adoecimento e morte.

Além desses campos, destacamos, outrossim, a importância do fortalecimento da argumentação dos profissionais da Educação, de todas as etapas, todos os níveis e todas as modalidades, em defesa do trabalho docente com segurança16 da provisoriedade do ensino remoto (síncrono ou assíncrono), que não se configura como EAD, e que representa tanto uma possibilidade de vínculo quanto um meio para a mediação pedagógica necessária nesse momento. Nesse esforço, talvez consigamos perturbar o discurso que se respalda na retórica jurídica/injuntiva, ainda que enunciada como deliberativa, direcionada ao direito educacional condensado/simplificado nos critérios de presencialidade e de transmissão de conteúdo promotor de proficiência, moldado pela lógica do mercado/comércio.

REFERÊNCIAS

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NOTAS:

Diferentes pesquisadores do campo da Educação divulgaram Lives e artigos buscando esclarecer sobre o Ensino online, a Educação a Distância e possíveis práticas para o Ensino Emergencial não presencial. Exemplos: Prof. Mariano Pimentel (Unirio), Profa. Edméia Santos (UFRRJ) e outros.

2 Retomamos, por exemplo, o trabalho organizado por Peter Burke (1992) que situa a historicidade da escrita como uma produção política já que atua no sentido de reconstruir atitudes daqueles que estão fora da ordem discursiva.

3 Por exemplo, discursos que polarizaram a sociedade brasileira entre “ficar em casa” e manter o distanciamento social para evitar o contágio e/ou disseminação da Covid-19 ou a imunidade de rebanho/imunidade coletiva e/ou não gravidade da doença para público sem comorbidade especial. Nesse aspecto, indicamos Campos (2020) que aborda os efeitos do negacionismo acerca da pandemia no contexto brasileiro.

4 Tais discursos, conforme a análise retórica, estão orientados pela temporalidade: passado, presente, futuro e se referem ao louvor (epidítico) diante de uma situação ou figura fúnebre, à ordenação jurídica ou prescrição (injuntivo ou jurídico) e aos princípios democráticos e projetos futuros (deliberativo).

5 A esse respeito, espaços educativos e relação entre renda/pobreza e distanciamentos dos espaços educativos, a Nota Técnica do TPE também ressalta que esse aspecto vem acontecendo em tempos de pandemia com relação à educação online. Em famílias que dependem quase que exclusivamente do acesso à educação via Educação Pública, qualquer interrupção nessa educação acarreta prejuízos maiores para os estudantes (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a).

6 É possível citar a interferência e a participação do TPE na proposta de Implementação da BNCC (articulação entre o TPE, Movimento pela Base Nacional Comum e Fundação Lemann). Disponível em: https://www.todospelaeducacao.org.br/_uploads/_posts/172.pdf. Acesso em: 18 maio 2021.

7 Documento técnico denominado Relatório Anual de acompanhamento Educação Já (2021) e o Anuário Brasileiro da Educação Básica (2020) são alguns deles. Disponíveis em: https://todospelaeducacao.org.br/wordpress/wp-content/uploads/2021/02/2o-Relatorio-Anual-de-Acompanhamento-do-Educacao-Ja_final.pdf e https://todospelaeducacao.org.br/wordpress/wp-content/uploads/2020/10/Anuario-Brasileiro-Educacao-Basica-2020-web-outubro.pdf. Acesso em: 15 jun. 2021.

8 A Nota Técnica em questão possui 19 páginas, é assinada por diferentes sujeitos que se dividem nas funções de coordenação, redação, apoio técnico, coordenação editorial e diagramação. No contexto da Nota Técnica focalizada, o TPE é representado por: Administradores, Economistas e por estudantes que concluíram o Ensino Médio e que assinam como Analistas de Políticas Educacionais.

9 A esse respeito, ver discussões sobre a diferença entre EAD e Ensino Remoto Emergencial de Édmea Santos (2020) em Live da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) Nacional. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PWmuNdt7dAc. Acesso em: 7 jun. 2021.

10 Entendemos e corroboramos que o entendimento de “ensino híbrido” compreende a parcialidade presencial e online, concomitantemente nas aulas oferecidas aos alunos.

1 Acerca disso, destacamos que, conquanto apontem uma distinção entre EAD e ensino remoto, parecem desconhecer a legislação em torno da regulação da modalidade a distância para a oferta educacional no País.

2 Sobre isso, é possível identificar uma intensa produção de notas técnicas e materiais orientativos do TPE baseados em Diagnósticos e Evidências, como exemplo, indicamos a leitura de “Para Alfabetização na Idade Certa, uma política nota 10”, que parte de uma construção mais ampla denominada Educação Já. Disponível em: https://todospelaeducacao.org.br/noticias/para-alfabetizacao-na-idade-certa-uma-politica-nota-dez/. Acesso em: 20 maio 2021.

3 Disposição em retórica é elemento importante, pois influencia na receptividade/no acolhimento de determinados discursos, conforme discutido por Leach (2002).

4 Neste estudo, foi muito relevante saber quem são os “intelectuais” (intelligentzia técnica) que operam nas fixações emergenciais para a educação.

15Intelligentzia técnica - expressão cunhada por Goulder (1985), em Futuro de los intelectuales y el ascenso de la nueva clase.

16 Destacamos o recente embate político causado pelo Projeto de Lei (PL) No 5595/2020, atualmente tramitando no Senado, sem deliberação, como iniciativa da Câmara dos Deputados. O PL: “Reconhece a educação básica e a educação superior, em formato presencial, como serviços e atividades essenciais e estabelece diretrizes para o retorno seguro às aulas presenciais” (BRASIL, 2020).

Recebido: 13 de Julho de 2021; Aceito: 14 de Fevereiro de 2022; Publicado: 30 de Março de 2023

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