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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub 15-Ago-2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e55060 

Artigos

A Educação Infantil nos currículos prescritos de licenciaturas presenciais de Educação Física no estado do Tocantins1

Early Childhood Education in the prescribed curricula of Physical Education in-person undergraduate teaching training degree in the state of Tocantins

La Educación Infantil en los currículos prescritos de licenciaturas presenciales en Educación Física en el estado de Tocantins

Hava Dias VARÃOi 
http://orcid.org/0000-0002-7175-522X

Marciel BARCELOSii 
http://orcid.org/0000-0003-1181-8724

André da Silva MELLOiii 
http://orcid.org/0000-0003-3093-4149

Rodrigo Lema Del Rio MARTINSiv 
http://orcid.org/0000-0002-1082-2425

i Licenciada em Educação Física pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Grupo de Investigação Pedagógica em Educação Física (GIPEF/UFT). E-mail: havadepaula@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-7175-522X.

ii Doutor em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professor do curso de Educação Física da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFT. Líder do Grupo de Investigação Pedagógica em Educação Física (GIPEF/UFT). E-mail: marcielbarcelos@uft.edu.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-1181-8724.

iii Doutor em Educação Física pela Universidade Gama Filho e Pós-Doutorado pelo Programa Associado em Educação Física da Universidade Estadual de Maringá/Universidade Estadual de Londrina (UEM/UEL). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da UFES. Líder do Núcleo de Aprendizagens com as Infâncias e seus Fazeres (NAIF/UFES). E-mail: andremellovix@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-3093-4149.

iv Doutor em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professor do curso de Educação Física e dos Programas de Pós-Graduação em Educação (PPGEduc) e de Educação Física em Rede Nacional (ProEF) na UFRRJ. Membro do GIPEF/UFT, Vice-Líder do NAIF/UFES e Líder do Grupo de Pesquisa em Docência na Educação Física (GPDEF/UFRRJ). E-mail: rodrigodrmartins@ufrrj.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-1082-2425.


Resumo

Neste artigo, analisam-se os currículos de licenciatura em Educação Física na modalidade presencial das Instituições de Ensino Superior públicas e privadas do estado do Tocantins, a partir das ementas e das bibliografias de disciplinas relacionadas à Educação Infantil. Trata-se, assim, de uma pesquisa documental. Adotou-se o software Iramuteq para o tratamento dos dados, a partir dos recursos Nuvem de Palavras e Análise de Similitudes, que foram examinados em diálogo com os documentos legais-pedagógicos da Educação Infantil e com autores que discutem a relação da Educação Física com base na Sociologia da Infância. Os resultados apontam que a formação caminha na direção de uma docência diretiva, centrada na figura do professor, em que o foco dos processos de ensino-aprendizagem reside na dimensão físico-motora das crianças, afastando-se da perspectiva defendida na literatura e nos documentos oficiais.

Palavras-chave: formação inicial; ementas; bibliografias; infâncias

Abstract

In this paper, the curricula of Physical Education undergraduate teaching training degree in the in-person modality of public and private Higher Education Institutions in the State of Tocantins/Brazil, are analyzed, based on the syllabuses and bibliographies of subjects related to Early Childhood Education. Thus, it is a documentary investigation. The Iramuteq software was adopted for data processing, from the Word Cloud and Similitude Analysis, which were examined in dialog with the legal-pedagogical documents of Early Childhood Education and with authors who discuss the relationship of Physical Education based on the Sociology of Childhood. The results show that training moves towards a directive teaching, centered on the figure of the teacher, in which the focus of the teaching-learning processes resides in the physical-motor dimension of children, moving away from the perspective advocated in the literature and official documents.

Keywords: initial formation; syllabuses; bibliographies; childhoods

Resumen

En este artículo, se analizan los currículos de licenciatura en Educación Física en la modalidad presencial de las Instituciones de Educación Superior públicas y privadas del Estado de Tocantins, Brasil, a partir de los planes de estudio y de las bibliografías de asignaturas relacionadas a la Educación Infantil. Se trata de una investigación documental. Se adoptó el software Iramuteq para el procesamiento de datos, a partir de los recursos Nube de Palabras y Análisis de Similitudes, que fueron examinados en diálogo con los documentos legales-pedagógicos de Educación Infantil y con autores que discuten la relación de la Educación Física con base en la Sociología de la Infancia. Los resultados muestran que la formación camina hacia una docencia directiva, centrada en la figura del profesor, en la que el foco de los procesos de enseñanza-aprendizaje reside en la dimensión físico-motora de los niños, alejándose de la perspectiva defendida en la literatura y en los documentos oficiales.

Palabras clave: formación inicial; planes de estudio; bibliografías; infancia

1 INTRODUÇÃO

Os cursos de formação de professores no Brasil são regidos pela Resolução nº 2, de 1 de julho de 2015, do Conselho Nacional de Educação (CNE) (BRASIL, 2015). Essa normativa define os parâmetros para a configuração dos currículos prescritos2 e os condicionantes para a atuação profissional docente, alinhando-a às demandas contemporâneas do mundo do trabalho. No caso da Educação Física, a Resolução CNE no 7, de 31 de março de 2004 (BRASIL, 2004), indica que o profissional licenciado nessa área de conhecimento está apto a atuar na Educação Infantil, nos anos iniciais e finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, em todas as suas modalidades (regular, técnico, Educação de Jovens e Adultos etc.). Atualmente, os cursos de licenciatura em Educação Física vêm passando por reformulações a partir da publicação da Resolução CNE nº 2, de 20 de dezembro de 2019 (BRASIL, 2019) - para todas as licenciaturas - e da Resolução nº 6, de 18 de dezembro de 2018, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Educação Física (BRASIL, 2018b).

Essas Diretrizes estão ancoradas em uma lógica de que os professores devem obter, por meio do curso de graduação, um vasto repertório de saberes teórico-práticos que os capacitem para exercer a docência nos diferentes âmbitos de atuação, sobretudo aqueles previstos nos documentos curriculares nacionais vigentes, como é o caso da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018a)3.

No que tange à atuação profissional na Educação Infantil, é importante salientarmos que a Educação Física ainda busca “o seu lugar” na primeira etapa da Educação Básica (MARTINS, 2018), isso porque se trata de um contexto que se constitui como não disciplinar, desobrigando, portanto, a presença de professores com formação específica em determinadas áreas do conhecimento. Ainda assim, por diferentes motivos, nota-se que, em muitos municípios brasileiros, há docentes com essa formação atuando nas redes públicas de Educação Infantil (MARTINS, 2018). Esse é o caso, por exemplo, de diversas cidades tocantinenses, como Palmas, Araguaína, Gurupi, Barrolândia, Miranorte, entre outras, indicando ser essa cada vez mais uma demanda premente do campo de atuação profissional dos licenciados em Educação Física na região.

Para Mello et al. (2016, p. 131), a presença e a expansão recente de professores de Educação Física lecionando na Educação Infantil ocorrem “[...] dada a centralidade do corpo/movimento e das brincadeiras nos processos pedagógicos desenvolvidos na primeira etapa da Educação Básica”, que é conferida pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) (BRASIL, 2010) e reafirmada pela BNCC (BRASIL, 2018a). O desafio que emerge é o de contar com a participação de professores “especialistas” em diálogo com as concepções de crianças/infâncias, de organização didática/curricular, de corpo/movimento e de jogos/brincadeiras encontradas nesses documentos.

Esse cenário em que se observa uma crescente inserção de professores de Educação Física no contexto não disciplinar da Educação Infantil (MARTINS, 2018), catalisada, especialmente, pela valorização da dimensão lúdica e corporal nas práticas pedagógicas infantis (MELLO et al., 2014), pelas DCNEI e pela BNCC, leva-nos a questionar em que medida os currículos de formação inicial em Educação Física contribuem para o fortalecimento dessa inserção, respeitando as singularidades da primeira etapa da Educação Básica.

No tocante à preparação profissional, Sayão (1999) alerta que, historicamente, os cursos de licenciatura em Educação Física não se preocupavam com a formação de professores para atuar na Educação Infantil. Ayoub (2001, p. 55) defende haver uma certa incompatibilidade da formação docente com as especificidades dessa etapa, assinalando que “[...] a ausência de propostas qualificadas dos(as) profissionais que atuam e que pretendem atuar na educação infantil traz consequências negativas para o desenvolvimento do trabalho educativo em creches e pré-escolas”. Em estudos mais recentes, Martins (2018) afirma que a conjuntura atual que indica essa tendência de ampliação da presença de professores de Educação Física na Educação Infantil exige repensar a formação de professores de Educação Física para a atuação no contexto institucional da primeira etapa da Educação Básica. Em sentido complementar, Nunes, Poulsen e Duek (2020) e Duarte e Neira (2022) recomendam que os cursos de licenciatura em Educação Física precisam avançar, no sentido de abarcar uma gama mais ampla de discussões teórico-metodológicas acerca do fazer pedagógico na Educação Infantil, contemplando, inclusive, os debates mais atuais sobre didática, sobre concepção de criança e sobre as dimensões do corpo/movimento infantil.

Problematizar os caminhos pelos quais a formação de professores de Educação Física voltada para a atuação no contexto institucional da primeira etapa da Educação Básica vem se configurando é relevante, pois, ainda hoje, “[...] prevalecem representações e práticas na Educação Infantil assentadas em perspectivas que concebem as crianças como seres incompletos e incapazes, que precisam ser preenchidos pelo adulto, para que possam alcançar a sua maturidade” (MELLO et al., 2015, p. 29). Em sentido contrário, as DCNEI (BRASIL, 2010) e, em certa medida, a BNCC (BRASIL, 2018a) defendem que as crianças sejam consideradas como sujeitos de direitos, produtoras de cultura e protagonistas dos seus próprios processos de socialização.

A literatura acadêmica aponta para a carência de estudos com foco na relação entre formação inicial em Educação Física e atuação profissional na primeira etapa da Educação Básica (FARIAS et al., 2019), sendo, no contexto tocantinense, completamente ausente. Concordando com Nunes, Poulsen e Duek (2020, p. 109), reconhecemos a relevância de pesquisas que “[...] visem conhecer a estruturação da matriz curricular de Educação Física no que se refere aos modos como estes compreendem a infância e a criança, assim como a organização do trabalho pedagógico na Educação Infantil”.

No sentido de ampliar os esforços investigativos com esse foco, o objetivo deste artigo é analisar os currículos de licenciatura em Educação Física na modalidade presencial das Instituições de Ensino Superior (IES) públicas e privadas do estado do Tocantins a partir das ementas e das bibliografias de disciplinas relacionadas à Educação Infantil. Dessa forma, torna-se factível compreender os caminhos pelos quais a formação docente em Educação Física voltada à atuação profissional na primeira etapa da Educação Básica está se delineando no contexto tocantinense.

2 METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa documental que utiliza como fontes as ementas e as bibliografias das disciplinas relacionadas à Educação Infantil dos cursos presenciais de licenciatura em Educação Física sediados no estado do Tocantins. Assim, é possível captarmos indícios sobre as concepções e os pressupostos que ancoram essas disciplinas, pois as ementas se caracterizam como uma descrição que resume o conteúdo conceitual de uma determinada disciplina curricular, enquanto as bibliografias relacionam as obras que dão suporte teórico-metodológico a elas. Salientamos que as ementas e a bibliografia representam o projeto formativo proposto por um currículo (GENTIL; SROCZYNSKI, 2014) e, particularmente nesta pesquisa, são indicadores de uma concepção de Educação Física na sua interface com a Educação Infantil.

A primeira etapa da pesquisa incidiu no levantamento junto à Plataforma e-Mec4 das IES que ofertam curso de licenciatura em Educação Física no estado do Tocantins. Dos 933 cursos ativos no Brasil, 30 deles estão espalhados pelos municípios tocantinenses, sendo oito na modalidade presencial. São eles: Faculdade de Guaraí (FAG); Universidade Federal do Tocantins (UFT); Faculdade de Palmas (Fapal); Instituto Federal do Tocantins (IFTO); Centro Universitário de Gurupi (UnirG); Centro Universitário Tocantinense Presidente Antônio Carlos (UNITPAC); Universidade Luterana do Brasil (Ulbra); e Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT).

A segunda etapa consistiu na sistematização e na análise dos Projetos Pedagógicos de Curso (PPCs) dessas instituições para a identificação das disciplinas relacionadas à Educação Infantil nesses currículos. Os PPCs foram acessados diretamente nos sites das IES. Aqueles que não se encontravam publicizados nas páginas oficiais foram solicitados e recebidos via e-mail. Dos oito cursos que compõem a nossa amostra, chegamos a um total de seis disciplinas/ementas e 42 obras relacionadas a elas.

De posse desses dados, demos início à terceira etapa, referente à inserção e ao tratamento dos conteúdos das ementas que interessavam ao estudo no software Iramuteq5 (CAMARGO; JUSTO, 2013), empregando os seguintes procedimentos: a) organização das ementas em blocos de notas; b) carregamento das informações no referido programa; c) aplicação da matriz de análise Nuvem de Palavras; d) aplicação da matriz de Análise de Similitude. Para os itens “c” e “d”, utilizamos como parâmetro os 30 primeiros termos, excluindo preposições, artigos definidos e indefinidos. Esse processo permitiu identificarmos as palavras com maior recorrência e, posteriormente, os agrupamentos semânticos. Os recursos do Iramuteq escolhidos para este artigo foram a Nuvem de Palavras e a Análise de Similitudes.

A Nuvem de Palavras foi usada para agrupar os termos com mais de três repetições nas ementas, gerando uma figura em formato semelhante a uma nuvem, na qual as palavras de maior recorrência aparecem centralizadas e grandes, enquanto as de menor recorrência ficam posicionadas nas bordas e em tamanho reduzido. A análise de Similitude aponta as conexões entre as palavras da nuvem a partir da relação semântica entre elas. Esse tipo de análise, neste artigo, foi utilizado como forma de inferir os sentidos e os significados que elas apresentam, gerando, assim, as categorias de análise desta pesquisa. Na interpretação dos dados, complementamos esses dois recursos do Iramuteq com excertos das próprias ementas.

Em relação às bibliografias, selecionamos aquelas que estavam presentes duas ou mais vezes nos documentos. As obras listadas foram organizadas em um quadro e analisadas com base nas inferências derivadas das ementas. Dessa maneira, foi possível percebermos a relação delas com as nossas interpretações.

A quarta etapa foi o exame crítico dos resultados obtidos em diálogo com autores que discutem a relação da Educação Física com a Educação Infantil com base na Sociologia da Infância e com os documentos legais/pedagógicos da Educação Infantil, quais sejam: as DCNEI e a BNCC. Adotamos esses documentos por reconhecer que eles balizam o trabalho pedagógico desenvolvido pelas instituições públicas e privadas dedicadas a cuidar e a educar crianças pequenas. A predileção pela Sociologia da Infância se justifica por essa área do saber defender uma concepção de criança como atores sociais competentes, com participação ativa em seus processos educativos, e por manter, em alguma medida, interface com os citados documentos (MELLO et al., 2016).

3 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

O levantamento dos PPCs das IES que ofertam o curso de licenciatura em Educação Física no estado do Tocantins na modalidade presencial perpassou pela nossa intencionalidade investigativa em analisar as disciplinas consideradas de “fundamentos”, ou seja, aquelas que focalizam questões teóricas e epistemológicas acerca dos saberes-fazeres da Educação Física na Educação Infantil, com vistas a subsidiar, em termos de conhecimentos, a futura atuação profissional nesse campo de trabalho. Com efeito, os cursos que continham disciplinas apenas de estágio supervisionado, ainda que direcionados à Educação Infantil, foram desconsiderados - é o caso da Ulbra e da UFNT. A partir dessa perspectiva, produzimos o Quadro 1.

Quadro 1 IES e disciplinas 

IES Disciplina Período Carga horária Natureza
FAG (Guaraí) Privada Educação Física na Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental 6º período 60 horas obrigatória
UFT (Miracema do Tocantins) Pública Educação Física na Educação Infantil 4º período 60 horas obrigatória
Fapal (Palmas) Privada Educação Física infantil 3º período 30 horas obrigatória
IFTO (Palmas) Pública Educação Física escolar I 5º período 60 horas obrigatória
UnirG (Gurupi) Pública Corpo em movimento na infância 8º período 60 horas optativa
UNITPAC (Araguaína) Privada Legislação e organização da Educação Infantil 8º período 60 horas obrigatória
Ulbra (Palmas) Confessional Apenas disciplinas relacionadas ao estágio na Educação Infantil - - -
UFNT (Tocantinópolis) Pública Apenas disciplinas relacionadas ao estágio na Educação Infantil - - -

Fonte: Os autores.

Depreendemos do Quadro 1 que, nos cursos de Educação Física da UNITPAC e da UnirG, as disciplinas estão localizadas no final do curso (8º período). Os currículos de licenciatura em Educação Física são regidos pelas Resoluções do CNE nº 2/2015 e nº 7/2004, que exigem a oferta de estágio supervisionado após a segunda metade do curso e, geralmente, as IES optam por colocá-los após as disciplinas de fundamento que discutem as especificidades correspondentes a cada etapa da Educação Básica. Há uma aparente contradição, tendo em vistas que o PPC da UNITPAC aponta a oferta do estágio supervisionado em Educação Infantil no 5º período e o da UnirG no 3º período. Os estágios ocorrem, portanto, antes das apropriações teórico-práticas.

Os acadêmicos dessas duas IES se inserem no estágio supervisionado em Educação Infantil sem conhecimentos específicos, tais como: as concepções históricas e atuais de criança e de infância, o corpo e o movimento infantil, o papel do jogo e da brincadeira nos processos formativos e a legislação que regulamenta a primeira etapa da Educação Básica. Essa organização curricular nos causa estranheza, sobretudo pelo caso da UnirG, que, além de ofertar a disciplina no último semestre do curso, ainda a classifica como optativa.

Ao dar status de optativa para a disciplina “Corpo em movimento na infância” e condicionar sua oferta ao último período, o currículo da UnirG negligencia um conhecimento que potencializa a compreensão do papel da Educação Física na Educação Infantil e que pode ser considerado como uma das bases para a sustentação do trabalho pedagógico realizado pelos discentes no estágio supervisionado.

Outro ponto que nos chama atenção no Quadro 1 é a disciplina de “Educação Física infantil” da Fapal. Sua carga horária de apenas 30 horas destoa das ofertadas pelas outras IES no Tocantins. Forquin (1992) destaca que o tempo e o posicionamento de uma disciplina determinam a sua relevância e as conquistas de um conhecimento em um determinado sistema curricular. Nesse sentido, o lugar que as disciplinas de Educação Infantil ocupam na UNITPAC e na UnirG revelam o grau de importância atribuído pelos autores do currículo, que nos parece ser de pouca valorização. A Fapal, por sua vez, ao propor uma disciplina com pouca carga horária para as discussões sobre Educação Infantil, indica a secundarização delas para a formação docente em Educação Física.

Ponderamos que essas críticas tecidas às IES se restringem ao modo como estão dispostas as disciplinas dedicadas às abordagens teórico-práticas específicas relacionadas à docência em Educação Infantil (com carga horária pequena, como optativa e alocadas posteriormente em estágios). Reconhecemos que as discussões que oferecem base para a atuação profissional no contexto da primeira etapa da Educação Básica não se encerram nelas, pois alguns conhecimentos de extrema relevância sobre crianças, infâncias, cultura corporal e didática geral se fazem presentes diluídas em outros componentes curriculares.

As seis disciplinas que compõem a nossa amostra possuem 42 obras assinaladas como referências bibliográficas. No Quadro 2, listamos as mais recorrentes, isto é, aquelas que apareceram duas vezes ou mais.

Quadro 2 Principais referências bibliográficas utilizadas nas disciplinas 

Autor/Ano Nome da obra Quantidade de vezes em que foi citada
Moreira e Nista-Piccolo (2012) Corpo em movimento na educação infantil 3
Mattos e Neira (2008) Educação Física Infantil: construindo o movimento na escola 3
Gallahue e Ozmun (2005) Compreendendo o desenvolvimento motor: bebês, crianças, adolescentes e adultos 3
Gardner (1994) A criança pré-escolar: como pensa e como a escola pode ensiná-la 2
Brasil (1998) Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) 2
Brasil (1997) Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) 2

Fonte: Os autores.

Para a produção da Figura 1, agrupamos as ementas das disciplinas apresentadas no Quadro 1 na base de dados do software Iramuteq e aplicamos o recurso Nuvem de Palavras. O resultado pode ser visualizado a seguir.

Fonte: Os autores.

Figura 1 Nuvem de Palavras formada a partir das ementas 

As palavras centrais e em maior tamanho na Figura 1 nos remetem a diversas possibilidades de compreensão acerca do modo como a participação de professores de Educação Física tem sido pensada para ocorrer na/com a Educação infantil. Essa organização prévia é útil para formar a Análise de Similitude (Figura 2). Esse recurso permitiu verificarmos as conexões entre elas, favorecendo a construção de categorias analíticas e, consequentemente, o exame crítico de suas representações.

Figura 2 Análise de Similitude formada a partir da Nuvem de Palavras 

Depreendemos haver três agrupamentos semânticos entre as palavras. Um deles, denominamos de “Didático-Metodológico”, ramificando do termo físico para a haste superior. Outro, que definimos como “Concepções Pedagógicas”, desdobra da palavra “Educação Infantil” para a haste direita. Um terceiro, que intitulamos de “Corporeidade Infantil”, ramifica-se para a haste inferior.

3.1 Análise de Similitude Didático-Metodológica

Observamos que as palavras agrupadas como Didático-Metodológicas denotam que as disciplinas que abordam a Educação Infantil nos cursos de Educação Física abarcam, em alguma medida, uma preocupação de discutir a docência propriamente dita, os processos organizacionais para se lecionar nessa etapa da Educação Básica. Consideramos isso positivo, pois é papel das licenciaturas fortalecerem a noção de profissionalidade docente e de identidade com o magistério.

Os excertos das ementas revelam essa centralidade em discutir, na formação inicial, os modos de organização dos processos de ensino-aprendizagem da Educação Física com a Educação Infantil:

[...] intervenção docente no processo de ensino e aprendizagem; [...] planejamento de ensino, critérios de seleção de conteúdos, métodos e técnicas de ensino e critérios de avaliação (FAG, 2014, p. 55).

Análise das relações entre Educação, Educação Física e a Infância, como eixo de reflexão para a intervenção profissional com bebês e crianças da primeira infância, no âmbito da Educação Infantil [...] (UFT, 2014, p. 62).

Elaboração de um programa, considerando os elementos: objetivos, conteúdos, estratégias e avaliação (IFTO, 2017, p. 152).

Elaboração e aplicação de atividades no âmbito do movimento corporal (UNIRG, 2017, p. 71).

Com exceção da disciplina constante no PPC da UFT, que busca estabelecer algum diálogo com particularidades da Educação Infantil e das infâncias, pensando a ação docente a partir delas, as demais tratam as questões didáticas de forma genérica, como se a docência em Educação Física fosse universal, aplicável a qualquer contexto. A própria ideia do que venha a ser conteúdo de Educação Física na Educação Infantil reforça uma lógica escolarizante, em que as crianças são enxergadas como alunos, em outras palavras, destinatários da ação docente formal, que precisam cumprir um programa de ensino que pressupõe a aplicação de técnicas supostamente adequadas de ensino e o estabelecimento de critérios claros de avaliação para conferir se a aprendizagem deles está ocorrendo.

Concordamos com Albuquerque, Rocha e Buss-Simão (2018) ao defenderem que os aspectos didáticos cumprem um papel primordial na formação docente, desde que fomentem reflexões acerca da complexidade da realidade concreta e busquem extrapolar a racionalidade instrumental e tecnicista que permeia muitos dos programas curriculares nas licenciaturas.

Portanto, a nosso ver, a forma como as disciplinas estão redigidas, sobretudo as da IES FAG, IFTO e UnirG, desconsideram as especificidades da primeira etapa da Educação Básica, que são muitas se comparadas ao Ensino Fundamental e ao Ensino Médio. A Educação Infantil é assumida textualmente, nas DCNEI e na BNCC, como uma etapa que rechaça a organização disciplinar, em que os conhecimentos são tratados pedagogicamente de maneira fragmentada. Os eixos estruturantes das práticas pedagógicas na BNCC são as interações e as brincadeiras, e eles pressupõem a construção de conhecimentos por meio dos Campos de Experiências. Com efeito, exige-se interlocução entre diferentes sujeitos (independentemente da formação) e áreas do conhecimento. Essas questões não aparecem em nenhuma das ementas.

Mais importante do que falar sobre Educação Infantil nos currículos de licenciatura em Educação Física e discutir a docência em geral é problematizar as particularidades que envolvem tal contexto, as singularidades das crianças e a necessidade de construção de práticas pedagógicas que as reconheçam como sujeitos de direitos, produtoras de cultura e protagonistas dos seus processos de socialização. No cenário atual, em que a BNCC anuncia o papel dos professores e as formas de se operar com os conhecimentos na interação com os bebês e as crianças, tais disciplinas carecem de uma aproximação maior com essas discussões.

Mello et al. (2016) alertam que a BNCC não deve ser tomada com uma prescrição para a Educação Física se inserir na Educação Infantil, tampouco para a mera aplicação irrefletida de técnicas e de conteúdos de ensino. No entanto, os autores reconhecem que o referido documento traz um acúmulo de discussões sobre a infância escolarizada no país e que há nele alguns elementos importantes que foram preservados das DCNEI. Por esse ângulo, os pesquisadores defendem uma “[...] organização didática e curricular da Educação Infantil de maneira integrada e articulada entre as diversas áreas do conhecimento” (MELLO et al., 2016, p. 144), de modo que o professor de Educação Física seja mais um adulto a colaborar com a formação integral das crianças, respeitando-as como seres ontologicamente plenos.

A ausência de um delineamento formativo mais específico nessas ementas e em diálogo com as particularidades que permeiam a Educação Infantil reforça a preocupação de Mello et al. (2014) de que um dos maiores desafios para a participação de professores de Educação Física na primeira etapa da Educação Básica é de natureza teórico-metodológica.

Quando olhamos as bibliografias associadas a essas disciplinas (Quadro 2), deparamo-nos com autores que discutem a Educação Infantil de maneira específica. As obras em que observamos proximidade com as questões didáticas denotam uma estruturação da ação docente focalizando o corpo e o movimento infantil como objetos principais das aulas, almejando a aprendizagem de habilidades motoras e o desenvolvimento físico-corporal. Os documentos referenciais para as disciplinas são o RCNEI e os PCN. O primeiro organiza os processos educativos na Educação Infantil por meio de eixos temáticos, sendo um deles denominado de movimento. O segundo foi elaborado para subsidiar o Ensino Fundamental, não guardando relação com a primeira etapa da Educação Básica.

A forte influência de perspectivas centradas em abordagens desenvolvimentistas e psicologizantes na Educação Física voltada para a Educação Infantil já foi registrada por autores da área, tanto nos currículos de formação quanto na produção acadêmica da área (MARTINS, 2018). Essas formas de conceber o trabalho da Educação Física com a Educação Infantil destoam dos pressupostos que fundamentam os documentos legais/pedagógicos que orientam a organização e a operacionalização da primeira etapa da Educação Básica (BNCC), podendo, segundo Martins, Trindade e Mello (2021, p. 77), “[...] ‘depor contra’ a presença/permanência desses professores nessa etapa de ensino”.

Concordamos com Ewald, Martins e Mello (2020) que não é papel da Educação Física reforçar dicotomias como: natureza x cultura, estrutura x ação, ser que é x ser em devir. Ao contrário, os referidos autores defendem ser possível pensar uma participação de professores com formação específica em Educação Física nas instituições de Educação Infantil que contemple “[...] as crianças em sua complexidade biopsicossocial e a dinâmica curricular presente nessa primeira etapa da Educação Básica no Brasil” (EWALD; MARTINS; MELLO, 2020, p. 14).

3.2 Análise de Similitudes: Concepções Pedagógicas e Corporeidade Infantil

As palavras que formam os grupos por nós denominados de “Concepções Pedagógicas” e “Corporeidade Infantil” se entrelaçam, pois compreendemos que o pensamento que norteia as práticas pedagógicas está intimamente ligado à noção de cultura, corpo e movimento infantil. Consideramos pertinente, portanto, analisá-las conjuntamente. Os excertos a seguir descrevem como essas duas questões são tratadas nas ementas:

Características físicas, mentais e sociais da criança de 0 a 10 anos [...]. Estudo do movimento enquanto prática criadora da atividade humana, da cultura corporal e da consciência do corpo em suas várias dimensões na educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental. (FAG, 2014, p. 55).

[...] desenvolvimento integral de bebês e crianças pequeninas. Compreensão dos aspectos do desenvolvimento infantil, ludicidade, jogos e brincadeiras com ênfase nas possibilidades de movimento nas instituições Infantis (UFT, 2014, p. 62).

Estuda e analisa a prática pedagógica da Educação Física na Educação Infantil diante da discussão da importância do movimento na Formação integral do indivíduo (FAPAL, 2015, n.p.).

Organização de experiências motoras conforme as possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento do aluno. [...]. Entender e identificar a cultura afro-brasileira e indígena por meio dos conteúdos das aulas de educação física. Executar atividades esportivas com a temática de meio ambiente no contexto escolar (IFTO, 2017, p. 152).

Estudos sobre concepções de corpo e corporeidade na estreita ligação com o desenvolvimento das capacidades intelectuais, motoras, afetivas e sociais da criança pequena. Reflexões sobre Educação Física, motricidade, ludicidade e corporeidade na infância [...] (UNIRG, 2017, p. 71).

Educação Infantil: dimensão histórica, concepções pedagógicas e a configuração contextual [...] (UNITPAC, 2016, p. 138).

As ementas abordam, de forma ampla, distintas vertentes para se efetivar o trabalho pedagógico da Educação Física com a Educação Infantil. São citados nelas a ludicidade, os jogos, as brincadeiras, os esportes, as questões étnico-raciais, a cultura corporal, porém atrelados ao aspecto motor. Destacamos que a palavra “movimento” aparece com frequência, ressaltando a centralidade dessa dimensão na formação docente. Frases como “[...] movimento enquanto prática criadora da atividade humana [...]” (FAG, 2014, p. 55); “[...] ênfase nas possibilidades de movimento nas instituições Infantis [...]” (UFT, 2014, p. 62); “[...] importância do movimento na Formação integral do indivíduo [...]” (FAPAL, 2015, n.p.); “Organização de experiências motoras [...]” (IFTO, 2017, p. 152); “[...] concepções de corpo e corporeidade na estreita ligação com o desenvolvimento das capacidades intelectuais, motoras [...]” (UNIRG, 2017, p. 71) denotam que a motricidade infantil é assumida como o principal eixo para pensar a participação de professores de Educação Física na primeira etapa da Educação Básica nos cursos de formação desses docentes no Tocantins.

As bibliografias mais adotadas nessas disciplinas (Quadro 2) utilizam como referências (documentos/obras/autores) ancorados em perspectivas de Educação Infantil cognitivista, em que o movimento infantil é concebido com um meio para adquirir capacidades, habilidades e aprendizagens consideradas fundamentais para o desenvolvimento das crianças (BRASIL, 1998; GALLAHUE; OZMUN, 2005; GARDNER, 1994; MATTOS; NEIRA, 2008; MOREIRA; NISTA-PICCOLO, 2012).

Nessa direção, o movimento é considerado um instrumento de preparação dos alunos para as exigências da vida escolar e social. O papel dos professores de Educação Física na Educação Infantil seria o de promover as condições supostamente ideais para que eles avancem no domínio corporal das tarefas cotidianas. É uma lógica assentada na óptica de criança como um vir-a-ser, como um sujeito que, um dia, no futuro, poderá ser considerado “alguém” e, para isso, é necessário cuidarmos, hoje, de prover suas necessidades vindouras.

Ewald, Martins e Mello (2020, p. 3) chamam a atenção que essas perspectivas impactam a concepção pedagógica por estarem “[...] alicerçadas sobre um viés biológico e universal, cuja ênfase recai sobre os fatores maturacionais do desenvolvimento infantil, colocando em plano secundário a dimensão sociocultural presente nesse processo”. Se direcionarmos o nosso olhar para a BNCC, percebemos que esse documento (ainda não reconhecido como referência bibliográfica nas disciplinas curriculares estudadas neste artigo) concebe o trabalho da dimensão motora a partir do campo de experiências “Corpo, gestos e movimento” (BRASIL, 2018a), que preconiza o entrelaçamento entre corpo, emoção e linguagem, visando a emancipação e a liberdade por meio da ludicidade e das interações estabelecidas entre as crianças e delas com os adultos das instituições educativas da infância.

De acordo com Mello et al. (2016), mesmo sendo merecedora de críticas pela forma como foi elaborada e pelo texto final produzido, na BNCC, é possível reconhecermos avanços no modo como é pensado o trabalho com o corpo e com o movimento quando comparada ao RCNEI, pois “[...] a matriz biológica, gradativamente, vai cedendo lugar a abordagens socioculturais, que valorizam os sentidos produzidos pelas crianças nas suas ações motoras com e sobre o mundo” (MELLO et al. 2016, p. 138, grifos dos autores). Em que pesem as acertadas ressalvas que fazem à BNCC, os autores concluem que, no referido documento, há “[...] noção de corpo e de movimento como forma de expressão e de produção de sentidos, inscritas num contexto cultural e distantes de uma ideia estereotipada e biologicista” (MELLO et al., 2016, p. 144).

Ao estudar os discursos docentes, Martins (2018) identificou que, embora o foco do trabalho de professores de Educação Física que atuam na Educação Infantil voltados para o aspecto motor seja assumido com frequência, essas narrativas apontam que:

A motricidade encarnada no desenvolvimento físico e das habilidades vem aparecendo como a especificidade do trabalho pedagógico da Educação Física na Educação Infantil. [...]. A diferença parece ser que a ênfase não está centrada, necessariamente, nessas dimensões do corpo e do movimento numa relação meramente biológica do ser humano, mas, sim, no quanto a motricidade dialoga e contribui no processo educativo das crianças de zero a cinco anos (MARTINS, 2018, p. 126).

O fato positivo é que, mesmo diante de uma formação docente e de uma produção do conhecimento fortemente baseadas em pressupostos desenvolvimentistas e psicomotores (MARTINS, 2018), os professores realizam um “consumo produtivo” (CERTEAU, 1994) desses bens culturais aos quais têm acesso, ressignificando-os e forjando uma atuação profissional autoral.

Esse movimento está intimamente relacionado ao eixo Didático-Metodológico (Figura 2). A produção de práticas pedagógicas que valorizem a identidade infantil perpassa pela necessidade de reflexão sobre os objetos de ensino da Educação Física e como eles podem ser organizados e compartilhados na Educação Infantil, assumindo o protagonismo infantil como eixo central do trabalho pedagógico, produzindo, assim, “mil maneiras de” (CERTEAU, 1994) planejar, mediar e avaliar os processos pedagógicos relacionados à atuação profissional nessa etapa educacional.

Ultrapassar o reducionismo biológico do binômio corpo-movimento é um desafio que exige pensarmos possibilidades de trabalhar pedagogicamente a corporeidade em sentido amplo. Nesse sentido, é preciso buscar estabelecer interação com as crianças de maneira menos hierarquizada e diretiva; organizar os processos de ensino-aprendizagem, levando em consideração as produções culturais infantis e a sua plena capacidade de expressar seus anseios e suas demandas; reconhecer e valorizar as agências das crianças; e fomentar, nas mediações pedagógicas, o protagonismo infantil como forma de dar visibilidade a essas autorias, pontos de vista e produções culturais. Ewald, Martins e Mello (2020), Martins (2018) e Mello et al. (2016) vêm pontuando a Sociologia da Infância como um campo de conhecimento potente para pensarmos as práticas pedagógicas na Educação Infantil a partir dessa perspectiva, e, também, enxergam por ela possibilidades de aproximar o fazer docente da Educação Física nesse contexto que não se estrutura de maneira disciplinar.

Baseados em Sarmento (2005), esses mesmos autores destacam ainda que a Sociologia da Infância sozinha não é suficiente para oferecer os elementos necessários para esse processo educativo. Eles apontam a necessidade de estabelecer diálogos teórico-metodológicos com os outros campos de conhecimento, como a Psicologia, a História Cultural e com o próprio campo do Comportamento Motor. Superar reducionismos de cunho biológico não pode significar a adoção irrestrita de outras matrizes teóricas, sob risco de reforçar dicotomias e polarizações, tais como natureza x cultura e estrutura x ação, que não contribuem para a formação integral das crianças de zero a cinco anos de idade (EWALD; MARTINS; MELLO, 2020).

A formação docente precisa contemplar essa pluralidade de referenciais e abordar, no interior das disciplinas curriculares, discussões ampliadas acerca dos processos educacionais da infância. Ao que nos parece, nas ementas analisadas neste artigo, essa é uma das principais lacunas que evidenciamos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossos dados indicam que as IES públicas e privadas do estado do Tocantins vêm oferecendo disciplinas sobre Educação Infantil nos currículos de cursos presenciais de formação de professores de Educação Física. Elas têm, predominantemente, 60 horas de atividades distribuídas em um semestre letivo e são, majoritariamente, obrigatórias. Esses dois fatores denotam o reconhecimento da primeira etapa da Educação Básica como lócus de atuação docente, ainda que esse profissional não esteja inserido nessa etapa obrigatoriamente, reforçando a percepção de que essa é uma demanda do mundo do trabalho no contexto tocantinense.

A análise das ementas revela três agrupamentos semânticos: “Didático-Metodológico”, “Concepções Pedagógicas” e “Corporeidade Infantil”. No primeiro, percebemos que a formação se estabelece de forma genérica, sem apontar com clareza como essas questões levam em consideração as particularidades da Educação Infantil. Já no segundo e terceiro, notamos a emergência de uma concepção pedagógica que considera o corpo e o movimento infantil mais alinhados ao paradigma biologicista, que tendencia a uma compreensão do trabalho pedagógico do professor de Educação Física com foco no desenvolvimento físico-motor.

As bibliografias mais recorrentes associadas a essas disciplinas são específicas da Educação Infantil (exceto os PCN) e oferecem indícios de que esse debate caminha na direção de uma docência diretiva, centrada na figura do professor, em que o foco dos processos de ensino-aprendizagem reside na dimensão físico-motora. Essa percepção é reforçada quando examinamos os outros dois agrupamentos semânticos de palavras, realizados por meio da Análise de Similitude.

Notamos a ausência dos documentos legais/pedagógicos mais recentes para a etapa da Educação Infantil, como é o caso das DCNEI e da BNCC. Parte dos referenciais presentes nas bibliografias sinaliza uma filiação teórica aos campos do Comportamento Motor e da Psicomotricidade, perspectivas que se distanciam tanto do que preconizam as DCNEI quanto a BNCC. Não defendemos a opção irrefletida por apenas uma vertente teórica para pensar a formação de professores de Educação Física que poderão atuar na Educação Infantil; ao contrário, consideramos de suma importância que o futuro docente tenha acesso ampliado aos diversos campos do conhecimento e possam, a partir deles, enxergar possibilidades de interagir com crianças de zero a cinco anos de idade, respeitando as suas singularidades.

O estudo reforça a necessidade de fortalecimento da formação docente em Educação Física em diálogo com as demandas do campo de atuação profissional, principalmente no momento presente, em que os currículos das licenciaturas estão passando por reformulação (BRASIL, 2018b, 2019). Por esse ângulo, a Educação Infantil requer ampliarmos as discussões teórico-práticas dos futuros professores para o reconhecimento da criança como sujeito de direitos, admitindo sua capacidade de produção cultural e suas maneiras de se apropriar do conhecimento no contexto da Educação Infantil para além de uma visão tradicional de cunho biologicista.

Entendemos ser importante que a formação em Educação Física contemple discussões e experiências sobre as infâncias de maneira amplificada, em que vários campos de conhecimento são articulados, tendo em vista que as crianças são seres ontologicamente plenos.

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NOTAS:

1 Esta publicação contou com financiamento de bolsa (Processo 164456/2019-8) de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

2 Gimeno Sacristán (2000) denomina de “currículo prescrito”, que diz respeito a um dispositivo institucional de orientação para guiar percursos formativos de determinados sujeitos.

3 Reconhecemos que essa vinculação entre a BNCC e as Resoluções do CNE que reformulam os currículos das licenciaturas é alvo de intensas e justas críticas, por representar um tipo de formação docente com caráter eminentemente técnico. Salientamos, porém, que não é o nosso foco aprofundar tais reflexões neste texto.

4 Disponível em: https://emec.mec.gov.br/. Acesso em: 22 mar. 2021.

5 O Iramuteq é um software gratuito, de acesso livre, que permite sistematizar, por meio de diferentes recursos, corpus textuais.

Recebido: 16 de Julho de 2021; Aceito: 16 de Maio de 2022; Publicado: 14 de Julho de 2023

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