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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub 16-Out-2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e50297 

Artigos

O Currículo e a Produção de Rostidade:afecções, desterritorializações e reterritorializações em cenário pandêmico

Curriculum and the Production of Faciality:affections, deterritorializations and reterritorializations in a pandemic scenario

El Currículo y la Producción de Rostridad:afecciones, desterritorializaciones y reterritorializaciones en el escenario pandémico

Daniele Farias Freire RAICi 
http://orcid.org/0000-0002-1137-736X

i Pós-Doutora em Educação. Professora Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UEB). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED/UESB) e do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Formação de Professores (PPG.ECFP/UESB). E-mail: daniele.freire@uesb.edu.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-1137-736X.


Resumo

O objetivo deste trabalho é discutir os efeitos das afecções da pandemia nas práticas curriculares, seja na educação básica, seja na educação superior. Busca aproximar-se dos movimentos de desterritorializações e reterritorializações curriculares decorrentes da pandemia da Covid-19. Está amparado pela esquizoanálise e utiliza-se da bricolagem metodológica, recorrendo a diferentes dispositivos, discursivos e não discursivos, considerados em suas tramas. O estudo está situado no estado da Bahia e apoia-se na filosofia da diferença para produzir novos sentidos e significados à educação e ao currículo. Entende o currículo como linguagem que opera maquinicamente no processo de rostificação, que significa e subjetiva os modos de existir, captura o desejo e separa o corpo da potência de agir. Em contraponto, propõe aberturas curriculares que favoreçam a produção desejante e que aumentem a potência de agir do sujeito.

Palavras-chave: currículo; processos de rostificação; afecções; desterritorializações; reterritorializações

Abstract

The aim of this paper is to discuss the effects of the affections of the pandemic on curricular practices both in basic and in higher education. It seeks to approach the movements of curricular deterritorialization and reterritorialization resulting from the Covid-19 pandemic. It is supported by schizoanalysis and uses methodological bricolage, by means of different discursive and non-discursive devices considered in its plots. The study is located in the state of Bahia and based on the philosophy of difference to produce new senses and meanings for education and the curriculum. It understands the curriculum as a language that operates mechanically in the facialization process, which means and subjectifies the ways of existing, captures the desire and separates the body from the power to act. In contrast, it proposes curricular openings that favor the production of desiring machines that increase the subject’s power to act.

Keywords: curriculum; facialization processes; conditions; deterritorializations; reterritorializations

Resumen

El objetivo de este trabajo es discutir los efectos de las afecciones de la pandemia en las prácticas curriculares sea en la educación básica, sea en la educación superior. Busca aproximarse de los movimientos de desterritorializaciones y reterritorializaciones curriculares decurrentes de la pandemia Covid-19. Está amparado por el esquizoanálisis y utiliza el bricolaje metodológico, recurriendo a diferentes dispositivos, discursivos y no discursivos, considerados en sus tramas. El estudio está situado el en estado de Bahia y se apoya en la filosofía de la diferencia para producir nuevos sentidos y significados a la educación y al currículo. Entiende el currículo como lenguaje que opera maquinicamente en el proceso de rostrificación, que significa y subjetiva los modos de existir, captura el deseo y separa el cuerpo de la potencia de actuar. En contrapunto, propone aberturas curriculares que favorezcan a la producción de máquinas deseantes que aumenten la potencia de actuar del sujeto.

Palabras clave: currículo; procesos de rostrificación; afecciones; desterritorializaciones; reterritorializaciones

1 NOTAS DE INTRODUÇÃO: “E AGORA, VOCÊ?”

As duas primeiras décadas do século XXI no Brasil têm nos levado a contínuas instabilidades e incertezas. São campos de forças de diferentes naturezas que podem ser identificados, sobretudo, nos meandros da política, cujos ecos são sentidos nas propostas formativas da escola, para onde temos direcionado nosso olhar ao longo dos anos. ‘Como’, ‘por que’ e ‘para que’ instituímos um currículo escolar são platôs que me1 envolvem e com eles sigo em muitas direções. Os platôs, para Deleuze e Guattari (1995a), não têm início nem fim; estão sempre no meio, vibrando em regiões de intensas movimentações. Assim, os modos como vamos instituindo os currículos e, por eles, vamos sendo constituídos, precisam ser discutidos levando-se em consideração os diferentes espaçostempos. Não há currículo que ‘nasce morto’, como se diz ‘por aí’. Currículo é linguagem e, como tal, experimenta a transmutação de seus ‘falantes’. Presumindo que “a linguagem não é a vida, ela dá ordens à vida; a vida não fala, ela escuta e aguarda” (Deleuze; Guattari, 1995b, p. 13), inquieto-me em saber qual a ‘palavra de ordem’2 dos currículos escolares. O que escutamos e o que aguardamos de um currículo?

Para Deleuze (2019), o exercício do poder produz afetos, uma vez que a força se define por seu poder de afetar outras forças, com as quais está em tramadas relações. Para o autor, cada força implica relações de poder e está prenhe de realidades virtuais aguardando possíveis atualizações. Dizemos que somos afetados e afetamos constantemente. Não há nesse ‘jogo’ vítimas e algozes, entretanto, recorrentemente, tornamo-nos cúmplices de nossos afetos quando acolhemos o poder que se atualiza em nós. Quando uma linha de poder nos afeta, que uso fazemos dela? Que sentidos produzimos em nossos modos de existir para os efeitos de nossos afetos?

Gostaria de pensar os afetos a partir da realidade objetiva onde produzimos o cotidiano, trabalhamos e nos efetuamos como corpo vivente. Desse modo, pensar a educação e a formação, como correlatas, requer que as situemos em diferentes modos de expressão de suas substancialidades, ou nas realidades objetivas que produzimos. Somos igualmente afetados pela linguagem, pela subjetividade e pelo corpo.

Entre os fluxos dos discursos que vêm nos afetando no campo educacional quero registrar o Projeto de Lei (PL) 7.180/2014, que institui o Escola Sem Partido (ESP) e quer, entre outras coisas, alterar o artigo 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9.394/1996, fazendo constar no texto legal a precedência dos valores familiares sobre a educação escolar “nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa, vedada a transversalidade ou técnicas subliminares no ensino desses temas”. A esse PL foram apensados mais outros 21 até o ano de 2019, sendo o PL 4.961/2019 uma contraposição às ondas neoconservadoras que tentam conformar os currículos, ao intentar acrescentar ao artigo 12 da LDB 9.394/1996, um inciso que determine que os “estabelecimentos de ensino incluam, em seus regimentos e estatutos, normas de valorização da diversidade cultural, social e de combate a qualquer forma de discriminação”.

Enquanto estávamos tentando perceber os efeitos do ESP em nossas práticas curriculares, fomos agenciados pelos discursos das reformas voltadas ao “novo ensino médio” no Brasil, legitimado pelo anúncio da Medida Provisória (MP) 746/2016, que cuidou de instituir a política de fomento à implementação de escolas de ensino médio em tempo integral e a alterar a LDB 9.394/1996 e a Lei 11.494, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Decorre da citada MP a Lei 13.415/2017, que modifica a LDB 9.394/1996 e estabelece mudanças na estrutura do ensino médio, com destaque para a definição de uma nova organização curricular que contemple uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e que garanta a oferta de diferentes possibilidades de escolhas aos estudantes, de itinerários formativos, com foco nas áreas de conhecimento e na formação técnica e profissional, conforme apresentado no portal do Ministério da Educação (MEC).

Entremeada a essas medidas, ao mesmo tempo que tramitava a reforma do ensino médio, seguia com celeridade a proposta da BNCC, a qual culminou na Resolução do Conselho Nacional de Educação, por meio do Conselho Pleno (CNE/CP), que instituiu e tornou obrigatória a implementação da BNCC ao longo das etapas e respectivas modalidades no âmbito da educação básica.

Quando olho em direção às políticas no campo da educação superior, especificamente no trato com a formação docente, vejo um cenário também impreciso e instável. Registramos nas duas primeiras décadas do século XXI significativas propostas de modificações nos cursos de licenciatura a fim de alinhar a formação de professores às reformas da educação básica. Entre os principais atos legais localizo como os mais contundentes a Resolução CNE/CP 02/2015, que define as diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada; e a Resolução CNE/CP 02/2019, que revoga a Resolução CNE/CP 02/2015 e define as diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial de professores para a educação básica e institui a base nacional comum para a formação inicial de professores da educação básica (BNC-Formação), iniciando novos ciclos de alterações curriculares para as licenciaturas.

Assim, finalizamos o ano de 2019 com o desafio de implementar, no ano seguinte, o “novo ensino médio” e a BNCC, na educação básica; e, ainda, de propor reformas curriculares para as licenciaturas, nas universidades. Tudo isso em cenários antidemocráticos e neoconservadores, cujas forças se chocam e se afetam, sem podermos predizer como esse ou aquele poder se efetuará em nós e em nossas práticas. No entanto, isso não era tudo... teríamos muito mais afecções pela frente!

No raiar da terceira década, no ano de 2020, na imanência das tensões e dos acontecimentos na política, de modo geral, e na educação, de maneira particular, quando ainda estávamos problematizando e nos esforçando pela compreensão de todas as reformas anteriormente anunciadas, soubemos, por meio da Portaria 188, do Ministério da Saúde, a emergência em saúde pública de importância nacional (Espin) em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (Covid-19). Não tardaria para, em 11 de março do mesmo ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificar o surto do novo coronavírus (SARS-CoV-2) como uma pandemia.

A pandemia da Covid-19 retirou-nos de nossos territórios aparentemente estáveis, onde supostamente experimentávamos a segurança de um pretenso ‘normal’. No estado da Bahia, a pandemia motivou o Decreto Estadual 19.549 que declarou a situação de emergência no território baiano. E, mesmo antes de noticiar a situação de emergência, já havia suspendido as atividades letivas nas unidades de ensino, públicas e particulares, por meio do Decreto Estadual 19.529. As escolas estavam de portas fechadas; os profissionais da educação e os estudantes foram induzidos ao isolamento ou distanciamento sociais, uma vez que dentre as medidas sanitárias estava a suspensão de muitas atividades, consideradas não essenciais, a fim de evitar a propagação do vírus e proteger a vida humana.

Esse distanciamento dos professores e alunos das escolas3 leva-me a pensar com Carlos Drummond de Andrade, com seu poema José, publicado originalmente em 1942, em meio a Segunda Guerra Mundial. Utilizando-me dos preceitos de Drummond (Andrade, 2012), pergunto: e agora? Os cenários confusos, nebulosos, retiraram-nos, à primeira vista, da compreensão de nós mesmos e do que estávamos experimentando individual e coletivamente com o anúncio da pandemia e a indicação de isolamento social. Experimentamos as forças vibrantes que se encontram, que se atravessam e produzem sentimentos de diferentes naturezas em nós; experienciamos a ambivalência em nossos modos de existir e passamos a conviver, simultaneamente, com o desespero e a esperança; a ideia apocalíptica e o nascimento de um mundo novo... nós, que nos preparávamos para resistir às reformas antidemocráticas que se impunham à educação brasileira, nem cogitávamos que teríamos que lidar abruptamente com as desterritorializações curriculares que se impuseram às escolas e aos seus atores e autores, sobretudo, com a emergência dos trabalhos remotos. Ficamos nós, professores e professoras, pesquisadores e pesquisadoras, em grande parte, com os versos de Drummond: “A festa acabou/ a luz apagou/ o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José?/ E agora, você?”.

A pandemia da Covid-19, assim como todos os outros afetos, produzem encontros. O sentimento de “e agora?” provoca efeitos que podemos classificá-los como bons ou maus encontros. Quando levado ao limite, o encontro requer de nós a tomada de decisões e as decisões que tomamos (não decidir é decidir!) não podem ser tratadas aqui como boas ou más, mas como atitudes que produzem uma multiplicidade de efeitos em nós, podendo tanto nos conduzir ao aumento da potência de nossas ações, quanto à diminuição delas. Quando reduzimos nossa potência de agir, experimentamos um sentimento quase destrutivo, podendo nos levar à morte, não necessariamente física. Quando elevamos nossa potência de agir, sentimos a alegria que nos impele a desejar mais e mais. Estamos falando, portanto, das afecções que temos em nossos modos de existir.

Assim, meu objetivo com este trabalho é discutir os efeitos das afecções da pandemia nas práticas curriculares da escola, seja no nível de educação básica, seja na educação superior. Aqui, entendo o currículo como linguagem, cuja prática discursiva se efetiva em potentes relações, que fala e faz ver, cujas ressonâncias dos movimentos de atualização estão intimamente relacionadas aos desejos; estes, forças potentes, que querem afirmar-se. Parto, portanto, da premissa de que o desejo por algo não significa ‘ausência’, mas, tão somente, intensidade viva, que a cada efetuação vai criando formas. O desejo, como movimentos constantes, não se fixa nem se esgota. É força motriz que quer e, quanto mais se efetua, mais quer.

A intenção que acompanha (e motiva) o objetivo deste trabalho é a vontade de aproximar-me dos movimentos intensos de desterritorializações e reterritorializações que a pandemia provocou nos currículos a fim de perspectivar outras composições curriculares, uma vez que acredito que o experimentado nesses novos cenários tem muito a nos dizer sobre os currículos e seus sentidos na escola. Aventuro-me ao longo deste estudo com o pressuposto de que a linguagem pode ser desobedecida (Skliar, 2014) pelos movimentos intensos dos desejos. Por essa razão, escrevo este trabalho em modo de tessituras, filigranas de uma composição complexa e intensa, cujas multiplicidades germinam, pululantes. Ao mesmo tempo que afirmo o desejo e toda a sua intensidade, afirmo as máquinas desejantes, esquizofrênicas, que produzem fluxos, em que o desejo corre, flui e corta (Deleuze; Guattari, 2011). As máquinas desejantes agenciam realidades individuais e coletivas e, nesse sentido, cada um de nós, com nossas pequenas máquinas, somos bricoleurs. Desviamos as ‘coisas’ de seus usos funcionais, como nos dizem Deleuze e Guattari (2011, p. 11).

Então, amparada pela esquizoanálise, ou a análise dos desejos, utilizo-me da bricolagem metodológica para a feitura deste trabalho. Essa perspectiva possui uma recusa à aceitação passiva dos métodos de pesquisa impostos de fora. Para os bricoleurs, os métodos de pesquisa envolvem muito mais do que procedimentos; atuam também como uma tecnologia de justificação, ou seja, como uma forma de defender o que afirmamos saber e o processo pelo qual sabemos (Kincheloe, 2007).

A opção pela bricolagem metodológica encontra-se com as concepções de ciência que não se conformam ou se metodologizam. Como nos diz Borba (1998, p. 17), “precisamos sair do conforto das metodologias prontas. É o fazer ciência, o criar, o construir ciência que definirá a ‘composição’ (a bricolagem) metodológica”. Desse modo, as realidades produzidas maquinicamente foram constantemente acessadas durante a produção deste estudo, realimentando os fluxos investigativos. Consequentemente, considerei que fazer ciência não é prostrar-me servilmente à metodologia, mas, ao contrário disso, reconheço que “a metodologia é um conjunto de procedimentos necessários no fazer e criar ciência, no entanto, ela só é definida (enquanto fazer ciência) a posteriori, jamais a priori, sob pena de conformismo” (Borba, 1998, p. 17).

Ao longo desta bricolagem, recorri a diferentes dispositivos. Para Foucault (1979, p. 244), o dispositivo é um “conjunto heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais [...]”. Nesse processo tentei mobilizar diversos dispositivos, discursivos e não discursivos, dentre os quais posso destacar: as lives, que se multiplicaram nas universidades em tempos de pandemia; os diálogos on-line com professores das redes pública e privada da educação básica e superior, por meio de questionários abertos, utilizando o Google formulários; o acompanhamento das orientações de atividades remotas propostas pelo Estado em seus documentos oficiais; e, ainda, minhas experiências docentes, uma vez que assumo minha implicação neste estudo. Assino este trabalho como um artesanato intelectual (Mills, 2009), cuja atitude performática da pesquisa, assim como a performance artística do artesão, está em constantes entretecimentos. Todos esses dispositivos, vistos e considerados em suas tramas, são modos de ampliar as possibilidades de aproximação com o objetivo apresentado, contudo não trazem a pretensão de esgotamento em face do proposto, uma vez que máquinas desejantes produzem outras e outras máquinas desejantes.

Geograficamente, situo esta pesquisa realizada no estado da Bahia e, por estarmos nos utilizando das redes sociais e de documentos oficiais on-line, não houve a delimitação de municípios. Para a realização dos diálogos on-line fiz contatos com docentes das redes pública e privada, da educação básica e superior, via WhatsApp, por lista de transmissão, permanecendo no grupo de colaboradores somente aqueles que concordaram em se manter nos diálogos. Quanto aos questionários abertos, enviei o link para 100 docentes, dos quais 35 foram respondidos. As respostas obtidas foram organizadas em torno de eixos comuns, de maneira que optei por não fazer explicitações ipsis litteris das falas individuais dos docentes, exceto em situações em que se mostraram necessárias.

Este artigo faz parte de um conjunto de estudos que nos ajudam a ver as composições curriculares que emergem no/do cotidiano de nossas práticas escolares, tanto na educação básica quanto na educação superior. Para tanto, apoio-me na filosofia da diferença para produzir novos sentidos e significados à educação, de modo mais abrangente, e ao currículo, de maneira mais específica.

2 O CURRÍCULO E A PRODUÇÃO DA ROSTIDADE: “VOCÊ É DURO, JOSÉ!”

Conforme mencionei na introdução deste texto, o currículo é uma linguagem que está, constantemente, em relações de forças. Como linguagem, “é uma prática social, discursiva e não discursiva, que se corporifica em instituições, saberes, normas, prescrições morais, regulamentos, programas, relações, valores, modos de ser sujeito” (Corazza, 2001, p. 10). Como discurso, o currículo articula “sua doce palavra/ seu instante de febre/ sua gula e jejum/ sua biblioteca /sua lavra de ouro/seu terno de vidro/sua incoerência/seu ódio” (Andrade, 2012). O currículo “é duro, José!”, mas não é suficientemente sólido para fixar-se. Para Skliar (2014), a linguagem tanto obedece quanto desobedece. Para esse autor, a linguagem é desobedecida pelas crianças, velhos, mulheres, artistas e filósofos, pela conversa, leitura, escrita, inscrição nas paredes irregulares, presos, dementes, autistas... pelos que preferem fazê-lo... “A fala, a leitura e a escrita procedem e advêm de certo tipo de experiência de desobediência da linguagem. Se a linguagem não desobedecesse e não fosse desobedecida não haveria filosofia, nem arte, nem amor, nem silêncio, nem mundo, nem nada” (Skliar, 2014, p. 17).

Para Corazza (2001, p. 11), “a linguagem de um currículo é tudo que ele dispõe para imputar alguma vontade aos outros”. Entretanto, a autora adverte que, enquanto o currículo pensa que está utilizando a linguagem, é ela que o utiliza e, por essa razão, o currículo sempre diz mais do que quer e, ainda, diz sempre outras coisas do que afirma dizer. Daí, então, com esse entendimento, dizemos que o currículo é uma máquina de poder que produz tipologias de ‘rosto’, não de um rosto individual, mas de tipos de rosto ‘funcionais’ na sociedade.

Deleuze e Guattari (2012) nos falam do rosto como uma razão semiótica, produzido maquinicamente. O rosto não é o ‘revestimento’ da cabeça; tampouco se trata de uma condição de hominização, que separa os humanos dos animais, como processo evolutivo. Entretanto, poderíamos dizer que é um processo ‘civilizatório’, na medida em que introduz o sujeito a um tipo aceitável nos estratos sociais. Os rostos são efeitos de agenciamentos de poder e não existem fora do desejo.

Há, no rosto, um muro branco e um buraco negro. O muro branco, superfície plana, constitui a significância, na qual estão inseridos os signos e suas redundâncias; o buraco negro, onde se alojam a consciência, as paixões e suas redundâncias, constitui a subjetivação (Deleuze; Guattari, 2012). Muro branco e buraco negro, sistema semiótico em constante conexão. Para os filósofos,

O rosto é, ele mesmo, redundância. E faz ele mesmo redundância com as redundâncias de significância ou frequência, e também com as de ressonância ou de subjetividade. O rosto constrói o muro do qual o significante necessita para ricochetear, constitui o muro do significante, o quadro ou a tela. O rosto escava o buraco de que a subjetivação necessita para atravessar, constitui o buraco negro da subjetividade como consciência ou paixão, a câmara, o terceiro olho (Deleuze; Guattari, 2012, p. 36).

É preciso dizer, todavia, que o rosto não constitui o muro branco, nem o buraco negro. Estes já estão presentes no processo de rostificação. Para Deleuze e Guattari (2012, p. 37), “os rostos concretos nascem de uma máquina abstrata de rostidade que irá produzi-los ao mesmo tempo que der ao significante seu muro branco, à subjetividade seu buraco-negro”.

O rosto é, portanto, uma enunciação. Ele produz a subjetividade desejável no social. O rosto, como significação e subjetivação, é um dispositivo de captura do desejo e tende a sequestrar a potência de agir das pessoas. São rostos domesticados por suas funções. Produzimos o rosto do professor, do aluno, da mãe, do filho, do médico, do engenheiro... antes de termos um rosto individual, temos um tipo de rosto.

E como acontece o processo de rostificação pelo currículo? Ora, a rostificação é parte integrante do uso que fazemos da linguagem em sua dimensão incorporal, mas que se agrega ao corpo. Nesse sentido, o rosto deixa ver a efetuação dos afetos da linguagem (significância e subjetivação) no corpo, cujos sistemas são em si mesmos redundantes.

Há uma máquina abstrata que agencia os tipos de rosto. Esses agenciamentos maquínicos, como já o dissemos, não operam por semelhança, mas por razões semióticas. Tal máquina funciona por agenciamentos de poder de certas formações sociais. É desse lugar que vemos o currículo agindo maquinicamente para efetuar no plano concreto determinados poderes que dominam, que modelizam. Assim, é possível dizer que não é à toa que muitos discursos dominantes se efetuam em modos de políticas públicas curriculares, a exemplo da tentativa do movimento do ESP, da reforma do ensino médio, da BNCC e das reformas das licenciaturas, entre tantas outras. Há um processo tipológico de rostificação em curso, que significa e subjetiva modos de ser, de pensar e de existir no mundo, nos mundos. Já nos perguntamos o que quer a BNCC com todo o seu conjunto de competências e habilidades? Qual o tipo de rosto desejado pela máquina de rostificação do ‘novo’ ensino médio? Embora eu não tenha a intenção de aprofundar tais questões neste artigo, não posso me furtar em dizer que está em curso a produção de rostos produtivos e eficientes necessários a um sistema capitalista que sufoca as máquinas desejantes e sequestra as singularidades dos modos de existir.

Para Deleuze e Guattari (2012), há um porvir ao rosto: sua condição de ser destruído, desfeito. O rosto precisa caminhar em direção ao “a-significante”, ao “a-subjetivo”. Para os autores, se o homem tem um destino, este deve ser o de escapar ao rosto, ultrapassar os muros brancos e sair dos buracos negros. O que há além dos muros brancos (da significação) e sob os buracos negros (das subjetividades)? Há uma vida intensa que pulsa e deseja. Ao desejo nada falta, mas, ao relacionar-se, quer. Quanto mais se afirma o desejo, mais se deseja; mais se afirma a vida. Ora, não fica difícil de perceber que o rosto é uma zona de intensidades em que há nele movimentos de desejo. Daí é possível dizer que o rosto tem em si a potência de se desfazer, de se destituir. Não é um encarceramento perpétuo do desejo. Ao efetuar-se, o desejo cria meios para guardar-se e lançar-se novamente. Há uma máquina desejante que está a todo tempo pululante, cuja força se renova a cada efetuação com sua potência de agir.

Acreditamos que os currículos escolares têm propósitos explícitos em criar muros brancos e buracos negros. Entretanto, aventuramo-nos em perspectivar aberturas curriculares que coloquem os corpos (e as mentes) à espreita de que algo lhes aconteça, ou que disponham os sujeitos em movimentos intensos do desejo. Intensidade que em nada tem a ver com velocidade, “o movimento mais lento não é o menos intenso, nem o último a se produzir ou a ocorrer” (Deleuze; Guattari, 2012, p. 41). Os movimentos mais rápidos podem convergir com os mais lentos, conectarem-se em desenvolvimentos dissincrônicos, em velocidades diferenciais. Em nossa sociedade, comumente temos alguém como ‘mais ativo’ quando este é capaz de fazer muitas coisas, um sujeito eficiente. Entretanto, a atividade da vida está em outra direção; está em modificar as coisas ou a si mesmo em função dos encontros que produz. Nesse sentido, tais encontros, afecções, escapam dos territórios, avançam em direção a novas territorialidades, ou reterritorializam-se.

Não podemos pensar em um currículo que não seja ele também um território produzido. Tal território está sempre em via de desterritorialização, uma vez que o desejo não para. O território curricular precisa ser constituído, portanto, como um lugar de passagem, não um muro cada vez mais alto e mais denso. Preocupa-me a recorrência das vezes em que se faz uso das expressões ‘grade curricular’, ‘matriz curricular’, ao referir-se a um currículo. Às vezes, nem nos damos conta da significação dessas expressões. O que faz uma grade e uma matriz? Qual a semiótica que se efetua nesses currículos?

Importa-me pensar, nesse sentido, em uma maneira em que o território curricular não entorpeça o sujeito, não tente amputar-lhe o desejo. Pensar em um currículo que, em vez de possuir a função exclusiva de uma máquina de rostificação, caminhe em direção à constituição do currículo como produção desejante. Esse me parece ser o grande desafio que se coloca às pesquisas no campo dos currículos. O desejo, como força vibrátil, produz a si mesmo e, ao produzir-se, expande-se. O desejo é força vital. Não podemos continuar separando o corpo do que ele pode, ou, dito de outra maneira, não podemos conceber uma educação que separe o sujeito da própria potência de vida. Como destituir o muro branco, buraco negro, do currículo? Esse é um convite que faço a fim de pensarmos sobre o uso que fazemos de nossos afetos. Avancemos, então, no sentido das afecções e o bom e mau uso que delas fazemos.

3 AS AFECÇÕES E OS AFETOS: “E AGORA, JOSÉ?”

Somos todos seres de relações e estabelecemos relações de diversas naturezas. Para Deleuze (2017), em composição com a obra de Espinosa, as relações não podem ser separadas do poder de serem afetadas. Essa afirmativa decorre de um estrito sistema de equivalências que nos conduz à primeira “tríade do modo finito: a essência como grau de potência; um certo poder de ser afetado, no qual ela se exprime; afecções que preenchem, a cada instante, esse poder” (Deleuze, 2017, p. 239). A segunda tríade consiste em “uma conexão não é separável de um poder de ser afetado. [...] a estrutura de um corpo é a composição da sua conexão. O que pode um corpo é a natureza e os limites do seu poder de ser afetado” (Deleuze, 2017, p. 240). Assim, o poder de sermos afetados de diversas maneiras é o que nos caracteriza, uma vez que estamos a todo o tempo em conexões, cujas forças se embaralham, tensionam-se, efetuam-se, de maneira que um modo qualquer passa a não existir quando deixa de se conectar. Isso nos sugere que viver é afetar e afetar-se!

Há, segundo Deleuze (2017), uma relação entre modos existentes, finitos e a substância infinita, Deus. Ao homem (e às coisas) cabe-lhe a finitude, apesar de suas inumeráveis conexões e maneiras de serem afetadas. Referindo-se à obra de Espinosa, Deleuze (2017) faz ver que há diferenças entre os modos existentes e a substância divina. A primeira delas está em que Deus é afetado por uma infinidade de maneiras, sendo, portanto, um infinito pela causa, uma vez que é Ele a causa de todas as suas afecções, o que O caracteriza como um infinito e ilimitado, mas que contém as essências e todos os modos existentes. Infinito é Deus. A segunda diferença está em, sendo Deus a causa de todas as suas afecções, Ele não sofre por elas. Deus não tem paixões, porque não há nada exterior a Ele, diferentemente dos modos existentes que são afetados pelo que lhes é exterior. Então, o que sentem inicialmente são as paixões. Dessas diferenças entre os modos de existência e Deus Deleuze (2017) separa a afecção da paixão.

Essa distinção que Espinosa faz, e que Deleuze (2017) traz para pensar as afecções, deixa ver que os modos de existência são necessariamente afetados por outros modos de existência, não de iguais maneiras, evidentemente. Ademais, não sendo os modos existentes as próprias causas de suas afecções, o que primeiro se experimenta são as paixões ou as afecções passivas. Por que são assim chamadas? Porque, ainda seguindo o Espinosa de Deleuze (2017, p. 242), há uma terceira diferença entre os modos de existir e Deus: “as afecções de Deus são os próprios modos, essências de modos e modos existentes. Suas ideias exprimem a essência de Deus como causa. Mas as afecções dos modos são como afecções no segundo grau, afecções de afecções [...]”. Em resumo, as afecções passivas são o efeito de um corpo sobre o outro e, portanto, são “ideias inadequadas ou imaginações; os afetos ou sentimentos que decorrem daí são, portanto, paixões, sentimentos eles mesmos passivos” (Deleuze, 2017, p. 242).

Ora, como já o disse, os modos existentes estão em uma ampla rede de conexões afetando-se mutuamente. As afeções decorrem de um número muito grande de forças, de intensidades, que querem se efetuar nos modos existentes, seja nos corpos, na linguagem, na subjetividade. Considerando as afeções que temos tido no campo da educação, inclusive as decorrentes da pandemia da Covid-19, o que sentimos inicialmente são seus efeitos, os quais tendem aos sentimentos de medo, pânico, sensação de impotência, ansiedade e pavor. Tais efeitos sentidos nos modos de existência, comumente, são decorrentes das ideias inadequadas4 da própria situação vivida. Na maioria das vezes, são afecções em que a força externa a nós captura-nos e nos limita. Todavia, as relações que os corpos estabelecem nesses encontros produzem outras e novas afecções, cada vez mais multidirecionais, porquanto “um modo existente possui atualmente um número muito grande de partes. Ora, tal é a natureza das partes extensivas, que elas ‘se afetam’ umas às outras ao infinito” (Deleuze, 2017, p. 240). Então, importa-me perguntar, assim como fez Deleuze (2017): um modo existente sempre permanecerá subjugado às ideias inadequadas e às paixões ou poderá conquistar uma afecção ativa, que conduza à ação?

As contribuições que Deleuze (2017) traz a partir de suas leituras de Espinosa remetem-nos a algumas reflexões potentes. Ancorado na Ética, Deleuze (2017) recorre às variações existenciais do modo infinito, cujo argumento se sustenta em afirmar as inúmeras afecções passivas que um modo de existência experimenta, provocando constantes mudanças. E, enquanto o poder de ser afetado estiver preenchido por afecções passivas, sua força e sua potência serão de sofrer. No entanto, enquanto dura, o modo de existir pode ser preenchido por afecções ativas, as quais possuem a força e a potência de agir. Perspectivando tais reflexões no campo da educação, a pergunta que emerge é: as práticas curriculares na escola estarão sempre subjugadas às afecções passivas ou conquistaremos as potências de agir?

Nesse caso, segundo Deleuze (2017, p. 245), o compreender ou o conhecer aciona a potência de agir, própria da alma, uma vez que:

Para uma mesma essência, para um mesmo poder de ser afetado, a potência de padecer e a potência de agir seriam suscetíveis de variar em razão inversamente proporcional. Ambas constituem o poder de ser afetado, em proporções variáveis.

Anteriormente, afirmei o quanto é importante pensar na produção da potência de agir, sobretudo quando compreendemos que as afecções passivas diminuem essa potência. Para Deleuze (2017, p. 247-248), “na verdade, nossa potência de sofrer é nossa impotência, nossa servidão, isto é, ‘o grau mais baixo de nossa potência de agir’”.

Quero, aqui, pensar na pandemia como uma força, um poder de afetar. Então, pergunto: quais os afetos da Covid-19 nas práticas curriculares, seja da educação básica, seja da educação superior? Que uso fazemos desse afeto?

Parece-me que temos tido recorrentemente sentimentos-paixões em detrimento das ações e isso tem dificultado criar e produzir modos de existência mais ativos. Temos assistido a um sem-número de ressentimentos, de murmúrios, de vitimização. Tais atitudes, decorrentes de sentimentos-paixões, têm nos separado de nossa potência de agir. É fato que são experimentações de passagens, as quais não devem nos fixar.

É interessante o quanto Deleuze (2017) vai costurando a ideia dos desafios e, ao mesmo tempo, das potências das afecções ativas. Chama-me a atenção como somos afetados de maneiras muito diferentes pelo mesmo fato exterior. Em face da pandemia, por exemplo, acompanhamos um sentimento de fracasso, uma aparente vontade de retorno à ‘normalidade’, aos ajustamentos. Nos primeiros meses da pandemia, lidamos com as lamentações que ora produzimos nas semióticas de nossos discursos. Deixamo-nos ser capturados pela pandemia e lançamos ‘ao vento’ nossas profundas expressões de desânimo, de impotência. “E agora, José?” Para alguns professores com quem pude dialogar, a pandemia foi devastadora, capaz de prejudicar a qualidade do ensino e da aprendizagem. No entanto, essa responsabilização, que agora projetamos no ‘outro’, tão somente mostra o quanto essa captura nos ‘livra’ de nossa ‘culpa. Tínhamos qualidade no ensino e na aprendizagem? Os discursos são recorrentes no sentido de dizer que a pandemia descaracterizou o currículo e que a dinâmica escolar e seu sentido deixaram de existir, temporariamente. Há os que dizem que a pandemia enuncia a necessidade de novos modos de organização da escola; e, ainda, os que afirmam que as mudanças não foram tão acentuadas, uma vez que continuam dando suas aulas, as crianças continuam aprendendo. O que muda, então, diante dos inumeráveis sentimentos que emergem das afecções da pandemia? Por que alguns se veem diante do trágico, do problemático, e outros veem possibilidades de criação e de inventividade? Por que, passados os primeiros impactos da ‘notícia’ da pandemia, alguns veem alternativas para a escola, enquanto outros se encerram em uma visão aparentemente pessimista? Encontramos em Deleuze (2017), ainda em diálogos com a Ética, de Espinoza, que desde o começo de nossa existência temos sido preenchidos por afeções passivas, mas que a potência de agir é a única expressão de nossa essência e, ao mesmo tempo, nosso poder de ser afetado. Nesse sentido, a potência de padecer permanece até que conquistemos a potência de agir. No limite dessas provocações filosóficas, pensando nos processos de subjetivação em massa, a questão que se impõe é: como poderíamos nos tornar mais ativos? Estamos a todo tempo sendo subjetivados na ordem padecimento, da passividade, do sofrer e, com isso, a potência de agir presume subverter as segmentaridades sociais alicerçadas em estruturas endurecidas, tais como famílias patriarcais, escolas modelares, igrejas disciplinares, políticas autoritárias etc. Nessa direção, perspectivando um currículo ativo, teremos que subverter as formas modelares e disciplinares que o constituem.

Então, na tentativa de melhor pensar sobre ‘como nos tornar mais ativos’, mais uma vez recorro a Deleuze (2017, p. 248), que assim se posiciona: “[...] não sabemos ainda como conseguiremos produzir afecções ativas; não conhecemos, portanto, nossa potência de agir. [...] a potência de agir é a única forma real, positiva e afirmativa de um poder de ser afetado”. Esse posicionamento de Deleuze (2017) nos convida a pensar em como poderíamos nos ‘esvaziar’ das afecções passivas e, ao mesmo tempo, ‘preencher-nos’ de afecções ativas. Nessa direção, tudo parece caminhar para produzir o desejo. Para Deleuze e Guattari (2011, p. 43), “o desejo é a máquina, o objeto do desejo é também máquina conectada [...]. O ser objetivo do desejo é o Real em si mesmo”. Desse modo, o desejo produz no real. E, segundo os autores, “o desejo está sempre próximo das condições de existência objetiva, une-se a elas, segue-as, não lhes sobrevive, desloca-se com elas [...]” (Deleuze; Guattari, 2011, p. 44). Esse deslocamento do desejo, das intensidades, produzem os movimentos de desterritorializações e reterritorializações, como veremos a seguir.

4 DESTERRITORIALIZAÇÕES E RETERRITORIALIZAÇÕES CURRICULARES: “PARA ONDE, JOSÉ?”

Nesse processo de rostificação em que os agenciamentos maquínicos de poder se tensionam, não há somente as forças de subjetivação, mas também são demandadas forças de experimentações, de rupturas que fazem a captura das funções tipológicas fugir. Sabendo que somos feitos de desejo e, ao mesmo tempo, somos relacionais, nos cenários de pandemia muitas são as composições de forças que experimentamos. Quais as forças que se efetuaram em nós e como nos compusemos com elas?

Nos primeiros meses em que fomos afastados das atividades presenciais nas escolas, vimo-nos “Sozinho[s] no escuro/qual bicho-do-mato,/sem teogonia,/sem parede nua/para se encostar,/sem cavalo preto/que fuja a galope,/você marcha, José!/José, para onde?”(Andrade, 2012). Essa sensação de ‘ir para onde?’ coloca-nos diante de nossos próprios rostos e deles emergem novas forças desejosas.

Deleuze e Guattari (2012) nos falam de quatro teoremas das desterritorializações: 1) não nos desterritorializamos sozinhos, mas no mínimo com dois termos; 2) de dois elementos ou de movimentos de desterritorialização o mais rápido não é forçosamente o mais intenso ou o mais desterritorializado; 3) o menos desterritorializado se reterritorializa sobre o mais desterritorializado; e 4) a máquina abstrata não se efetua apenas nos rostos que produz, mas em diversos graus e direções. Esses teoremas nos ajudam a ver que estávamos/estamos todos desterritorializados de nossos trabalhos, de nossas verdades, de nossos ‘rostos’, mas que não nos desterritorializamos sozinhos. A escola estava/está desterritorializada, o currículo se viu/se vê desterritorializado e as máquinas continuaram/continuam a operar seus agenciamentos. O que fazer, então, com a prática escolar? Fugir a galope. Mas para onde?

Aceleradamente, vimos emergir um sem-número de lives tratando dos desafios da escola em tempos de pandemia; o lançamento de alguns ‘manuais’ de como efetivar o ensino remoto com orientações práticas aos professores e professoras; as composições de forças entre os que apoiam e os que não apoiam o ensino remoto foram se acirrando; a problemática da qualidade no ensino remoto foi ganhando cada vez mais destaque; a ‘dúvida’ sobre o que ensinar em tempos de pandemia; os discursos negacionistas foram se expandindo, querendo de volta a ‘normalidade’... Com uma expressão ordinária, digo: ‘vimos o mundo emborcar e embaralhar-se ainda mais’. Assim, temos experimentado os primeiros ‘tempos’ de pandemia da Covid-19.

Progressivamente, estamos produzindo novos territórios. É como se as coisas tivessem começado a ‘entrar em órbita’. Nesses movimentos, vimos que a sala de aula física foi se compondo com as telas de aparelhos celulares, tabletes, notebooks; algo ainda indizível parece ter nos acontecido. Nossas verdades foram deslocadas. Passamos a estar em frente à tela digital com a sensação de um ‘aqui e agora’, antes só experimentado na realidade objetiva. Ao observar as aulas remotas de alguns estudantes, tanto de educação básica quanto de ensino superior, pude acompanhar o ‘descontrole de classe’ dos docentes. Experimentamos, ainda que parcialmente, a desordem. E, então, o que queríamos a qualquer custo? Retornar à normalidade, ao padrão que nos rostifica e que nos dá a segurança do aceitável. As práticas discursivas já começavam a criar uns sentidos e significados para o “novo normal”.

À medida que o tempo avançava, passamos a assistir aos movimentos de reterritorialização, em variadas direções. Há, ainda, processos muito diferenciados em tempos e velocidades. As telas de celulares e computadores foram fazendo rizomas com as salas de aulas presenciais e com elas foram criando novas formações, novos territórios; os estudantes, agora mais familiarizados com o ensino remoto, ‘desligam’ ou desligam-se da câmara e fazem conexões outras em suas experiências de vida; no ‘meio da aula’, param para lanchar, conversar com um colega via chat ou WhatsApp e, sem sair do fluxo formativo, retornam às aulas... eles não precisaram pedir permissão para irem ao banheiro ou darem uma ‘voltinha’... e eles continuam aprendendo muitas coisas! Contudo, também, vimos estudantes se apegarem ao necessário retorno, à resistência aos novos tempos-espaços de aprendizagem, negando quaisquer possibilidades de integração ao que ora emergia.

Nessas andanças, tive contato com um relato de uma professora do 1.º ano do ensino fundamental, que expressou sua surpresa ao constatar que as crianças de seis anos estão sendo alfabetizadas pela plataforma on-line. Constatamos depoimentos de estudantes que dizem estar “muito melhor assim [sem ir à escola]”. Por outro lado, assistimos ao adoecimento de professores e alunos diante da ausência (ou da presença) da escola. É fato que as noções de tempo e de espaço vêm sendo atualizadas, constantemente. As movimentações, sejam lentas ou velozes, estão em nossos modos de existir.

A pandemia nos afetou e nos desterritorializou, não temos como negar. No entanto, o que tem nos acontecido desde então? Para onde foi nosso discurso de que a escola física é o espaço de excelência das aprendizagens? O ensino remoto desterritorializou o Panóptico5 da escola. Quem agora vigia? Quem agora controla o desejo? É possível retornar ao mesmo ponto que habitávamos antes de nos desterritorializarmos?

Para Foucault (2013, p. 88), “o Panopticon é a utopia de uma sociedade e de um tipo de poder que é, no fundo, a sociedade que atualmente conhecemos - utopia que efetivamente se realizou. [...] Vivemos em uma sociedade onde reina o panoptismo”. Essa sociedade panóptica da qual somos cúmplices agenciam-nos e nos faz crer que ‘em um belo dia havia um mundo normal’. Ideia inadequada. Vivemos a todo tempo desestabilizados pelas intensidades dos desejos que nos constituem, embora ainda nos esforcemos por manter tipos de rostos que nos confortam. Foucault (2013) nos chama a atenção para o fato de que no panoptismo não mais há inquérito, mas vigilância. Tal vigilância acontece por alguém sobre quem se exerce o poder. A escola é cheia desses vigilantes que, enquanto exercem o poder, vigiam e constroem sobre aqueles que vigiam um saber. Esse novo saber “não se ordena em termos de presença ou ausência, de existência ou não existência. Ele se ordena em torno da norma, em termos do que é normal ou não, correto ou não, do que se deve ou não fazer” (Foucault, 2013, p. 89).

Diz-se: “O currículo está fora do normal!”, “Não está certo praticar o currículo no ensino remoto!”, “Não pode haver aprendizagem se não estiver na escola!”. Na tentativa de um retorno à normalidade, tenho visto práticas curriculares que me tomam em provocações. De um lado, a negação da plausibilidade do ensino remoto; do outro, a prática arbitrária de tão somente “levar a escola para casa”.

É importante aqui dizer que a negação de que trato aqui não se refere aos justos argumentos diante da indescritível desigualdade que se avolumou entre os que têm ou não as condições materiais e imateriais decorrentes de situações socioeconômicas, violentas no Brasil. A negação a que eu me refiro volta-se para o modo como somos afetados e como fazemos usos dos afetos, cujos efeitos após as desterritorializações, produzirão novos territórios. Como estamos reterritorializando os currículos escolares em tempos de pandemia (arrisco-me a dizer “após” a pandemia)?

Em primeiro lugar, considero importante dizer que a transferência da escola para a casa, a fim de atender às demandas socioeconômicas, parece fragilizar o que aqui estamos entendendo por possibilidades trazidas pela potência curricular. Em seguida, é preciso reconhecer que casa não é escola, podem até ser correlatas, mas não são redutíveis. De resto, tampouco podemos acreditar que a escola ‘em casa’ não seja possível. Meu esforço, então, é pensar como os currículos, nessas movimentações intensas, vão produzindo e sugerindo novos e possíveis territórios. Estaríamos começando a reterritorializar outros currículos, experimentados individual e coletivamente, para além dos currículos mais disciplinares? A resposta ‘sim’ seria precipitada, mas sua negação, também. O que esta sendo dos currículos com o retorno às aulas após o período de distanciamento social provocado pela pandemia? Não podemos dizer ao certo. Entretanto, sabemos que não estão os mesmos. Estamos constatando a emergência de alguns enunciados em torno do que vem sendo denominado de currículo hibrido, o que requer de nós algumas discussões importantes, sobretudo, em torno do sentido que está sendo atribuído ao conceito “híbrido”. Nessa direção já nos perguntamos: o que está querendo essa nova máquina de rostificação? Qual o lugar das singularidades nessas novas práticas curriculares?

Com essas confabulações que apresentei não tenho a pretensão de dizer se são boas ou más, como já tratei disso na seção anterior. O que pretendo é insistir em dizer que a maneira como desterritorializamos e reterritorializamos nossos desejos tem a ver com o bom uso ou mau uso das afecções. Para algumas pessoas, diante de toda essa metaestabilidade, “tudo isso é um grande prejuízo para as pessoas, para a escola, para a humanidade!”. Todavia, outros afirmam: “estamos construindo um novo momento para a escola; é a hora de nos reinventarmos”. Há os que riem e os que choram diante da mesma afecção. E a forma como atualizamos os efeitos das afecções em nós produz realidades. Quais realidades educacionais produzimos em tempos de pandemia?

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciei este trabalho com o desejo de discutir os efeitos das afecções da pandemia nas práticas curriculares da escola, seja no nível da educação básica, seja na educação superior, cuja intenção se encontrava com a vontade de aproximar-me dos movimentos intensos de desterritorializações e reterritorializações que a pandemia provocou nos currículos. O objetivo em tela visava, ainda, perspectivar ‘outras’ composições curriculares, uma vez que os cenários pandêmicos têm muito a nos dizer sobre os currículos e seus sentidos na escola.

Durante a feitura deste texto fui compondo com os versos de José, poema imortal de Carlos Drummond de Andrade (2012). Essa foi uma maneira que encontrei de expressar os feitos iniciais das afecções da pandemia achados nos dispositivos que utilizei para produzir este estudo. José nos traz o sentimento apocalítico experimentado por muitos de nós, no mundo inteiro; viu-se destituído de suas potências de agir. Todavia, a pergunta “e agora, José?” não dá conta de dizer dos nossos desejos, por essa razão, preferi chegar nessas considerações finais com as perguntas: “e quanto a você? Que são suas máquinas desejantes?” (Deleuze, 2006, p. 308). O desejo é intensidade que nos compõe. Entretanto, estamos subjugados em uma sociedade panóptica que captura e nos afasta do que podemos. Enquanto estamos afastados do que pode nosso corpo, só sentimos as potências de padecer.

O currículo, sendo uma linguagem, é também uma máquina de rostificação que produz subjetividades e significações socialmente aceitas, mas, potencialmente enfraquecidas, que padecem. Estamos desde o ano de 2020 com o compromisso de implementar na educação básica a BNCC e o novo ensino médio e, na educação superior, as reformas nas licenciaturas. No entanto, fomos interrompidos, em parte, pela pandemia da Covid-19, a qual provocou desterritorializações curriculares tanto na educação básica quanto superior, principalmente em função da suspensão das aulas, em decorrência da medida sanitária.

Foi possível acompanhar algumas desterritorializações curriculares. De maneira muito comum, própria dos processos de rostificação, os currículos escolares foram transportados para casa e “para as nuvens”. Embora não seja possível dizer que são os “mesmos currículos”, tampouco podemos dizer que estão abertos à produção de desejos como intensidades singularizantes. Afirmo que muitas coisas estão escapulindo do controle que as escolas insistem em exercer sobre os currículos.

Digo que um currículo ‘orientado’ pela BNCC, cujas competências e habilidades se comprometem com as tipologias dos rostos, é insuficiente para produzirmos pessoas potencialmente ativas. O desejo é confabular currículos que não entorpeçam o sujeito e não tentem amputar-lhe o desejo. Daí o esforço em pensar em um currículo que deixe sua função de uma máquina de rostificação e caminhe em direção à constituição do currículo como produção desejante. Precisamos perspectivar aberturas curriculares que coloquem os sujeitos à espreita de seus acontecimentos.

REFERÊNCIAS

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NOTAS:

1 Ao longo deste texto, farei uso da 1.ª pessoa do verbo, tanto no singular quanto no plural. Assim, o emprego do “eu” e do “nós” não é uma distração na língua escrita, mas tão somente para garantir um território de fala. Dessa maneira, quando eu estiver fazendo uso da pessoa no singular, quero expressar a intensidade com a qual me sinto atravessada; quando fizer uso da pessoa no plural, quero expressar que são composições de um eu agenciado coletivamente.

2 Para Deleuze e Guattari (1995b), a palavra de ordem não é, necessariamente, uma fala no imperativo, mas os atos que estão ligados ao enunciado por uma ‘obrigação social’.

3 O termo escola está sendo utilizado tanto para referir-se às instituições de educação básica quanto às de educação superior.

4 É importante afirmar que as ideias inadequadas não podem ser confundidas com ideias equivocadas ou errôneas; referem-se tão somente às ideias que ainda não foram balizadas pela compreensão do encontro, ou, dito de outra forma, o corpo afetado ainda não conseguiu explicar o próprio encontro.

5 O Panóptico, pensado por Jeremy Bentham, em 1785, era uma forma arquitetônica pensada para as prisões, em que havia uma torre no centro do edifício para abrigar um vigilante. No Panóptico, todos poderiam ser vistos pelo vigilante, mas os vigiados não poderiam vê-lo. Foucault se utiliza dessa ideia para problematizar os dispositivos disciplinares, como fez em sua obra Vigiar e punir.

Recebido: 30 de Agosto de 2020; Aceito: 16 de Agosto de 2022; Publicado: 08 de Setembro de 2023

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