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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub 15-Dic-2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e59528 

Artigos

Significação memorialística em dois tempos

Two-time memorialistic significance

Significado dos memoriales en dos tiempos

Maria Amália de Almeida Cunhai 
http://orcid.org/0000-0002-0233-3883

Maria Helena Menna Barreto Abrahãoii 
http://orcid.org/0000-0002-1278-4098

i Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professora Titular do Departamento de Ciências Aplicadas à Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: amaliacunha@fae.ufmg.br - ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-0233-3883.

ii Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora Titular na FAE/PPGEdu da Universidade Federal de Pelotas, Pesquisadora Sênior do CNPq. E-mail: abrahaomhmb@gmail.com - ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-1278-4098.


Resumo

Este artigo analisa o processo de escrita de um memorial acadêmico (para fim de promoção na carreira), a partir de um registro em dois tempos. Para tanto, utiliza-se da hermenêutica ricoeuriana, sugerindo recortes entre a identidade-idem (mesmidade) e identidade-ipse (ipseidade). O artigo está estruturado entre o tempo que recobre o significado desta construção narrativa a partir das experiências-recordações da autora do memorial e o tempo que recobre as significações da avaliação, a partir da narrativa de quem o leu e o avaliou. Este esforço de compreensão entre o si e o outro não deixa de estar atravessado pela busca de reconhecimento, refletido em um processo de docimologia entre os pares. É neste jogo de reconhecimento mútuo que escrevemos em dois tempos, sabendo que o indivíduo nada é, enquanto o é para si só.

Palavras-chave: memoriais de formação; escrita autobiográfica; escrita de si

Abstract

This article analyzes the process of writing an academic memorial (for the purpose of career advancement), from a two-stage record. For that, it uses the ricoeurian hermeneutics, suggesting cuts between the idem-identity (sameness) and ipse-identity (ipseity). The article is structured between the time that covers the meaning of this narrative construction from the experiences-memories of the author of the text and the time that covers the meanings of the evaluation, from the narrative of those who read and evaluated it. This effort to understand the self and the other does not stop being crossed by the search for recognition, reflected in a process of docimology among peers. It is in this game of mutual recognition that we write in two moments, knowing that the individual is nothing, while he is for himself.

Keywords: training memorials; autobiographical writing; writing yourself

Resumen

Este artículo analiza el proceso de redacción de un memorial académico (con fines de promoción profesional), a partir de un registro en dos etapas. Para ello, utiliza la hermenéutica ricoeuriana, sugiriendo cortes entre la ídem-identidad (mismidad) y la ipse-identidad (ipseidad). El artículo se estructura entre el tiempo que recorre el sentido de esta construcción narrativa a partir de las vivencias-recuerdos del autor del texto y el tiempo que recorre los sentidos de la evaluación, a partir del relato de quienes lo leen y evalúan. Este esfuerzo por comprenderse a sí mismo y al otro no deja de ser atravesado por la búsqueda de reconocimiento, reflejado en un proceso de docimología entre pares. Es en este juego de reconocimiento mutuo que escribimos en dos momentos, sabiendo que el individuo no es nada, mientras que es para sí mismo.

Palabras clave: memoriales de entrenamiento; escritura autobiográfica; escribiéndote a ti mismo

1 INTRODUÇÃO

Segundo Ricoeur (1991, p. 190), para responder à pergunta “quem sou eu?”, é preciso narrar a história de uma vida. O autor nos indaga: “Não se tornam as vidas humanas mais legíveis quando são interpretadas em função das histórias que as pessoas contam a seu respeito?” (Ricoeur, 1991, p. 138). Para o autor, se o conhecimento de si próprio é uma interpretação, a interpretação de si próprio, por sua vez, encontra mediação na narrativa. A estrutura narrativa, segundo Ricoeur, é o que oferece sentido à práxis humana.

O autor chega, nesse sentido, a argumentar a favor de uma noção de identidade narrativa em contrapartida à noção de identidade pessoal, destacando que é por meio da identidade narrativa que se constrói a identidade pessoal. Uma narrativa autobiográfica, por exemplo, seria, nessa perspectiva, uma interpretação de si, a partir de um indivíduo que se debruça sobre seu passado e sobre si mesmo, buscando reconstituir-se no presente.

Este artigo, escrito a quatro mãos, reflete uma ação vivida em dois tempos. O tempo I, que é o tempo da narrativa, consubstanciado em um memorial para fim de promoção na carreira e o tempo II, que é o tempo da experiência significada ou da interpretação da avaliadora deste Memorial, o qual em ambos os tempos, teve e tem a significação de um Memorial de Formação.

É na hermenêutica ricoeuriana, justamente na busca de sentido de uma identidade narrativa, mediada pela interpretação, que procuramos refletir sobre a significação memorialística em dois tempos, sugerindo recortes entre a identidade-idem (mesmidade) e identidade-ipse (ipseidade). O uso do conceito de identidades reflete uma polissemia entre o “si mesmo” e o “outro”.

Este esforço de compreensão entre o si e o outro está atravessado pela busca de reconhecimento (a escrita de um memorial para fins de promoção na carreira perante uma banca examinadora). É neste jogo de reconhecimento mútuo que escrevemos em dois tempos, sabendo que o indivíduo nada é, enquanto o é para si só.

2 TEMPO I - AS SIGNIFICAÇÕES DA CONSTRUÇÃO

Não temos acesso direto às nossas experiências senão através da mediação das palavras e representações que construímos sobre elas. Pouco a pouco, nossas experiências adquirem a forma de ‘histórias’. Narrar nossa história adquire um outro sentido quando, no sentido etimológico, biografamos a nossa vida, conferindo-lhe a forma de escritura.

As formas que os indivíduos usam para biografar suas vidas não são de sua própria autoria, não lhes pertencem e eles não podem decidir por si mesmos: são formas coletivas que pertencem à história, à cultura e à sociedade.

Se nunca deixamos de nos biografar, o que significa a escrita de um memorial, senão a documentação de um rito de passagem? Ao investigar a natureza sociológica dos ritos, Van Gennep (2012) mostra que, sem eles, a sociedade humana não existiria como algo consciente, uma dimensão a ser vivenciada e não simplesmente vivida, como ocorre com os gestos mais pesados da rotina cotidiana. O autor descreve, então, 3 ritos que estruturariam nossas vidas:

  1. Ritos de separação: os ritos de separação seriam os preliminares (como os rituais funerários, por exemplo);

  2. Ritos de Margem: os ritos de margem seriam os liminares (cerimoniais, etapas mais autônomas da vida);

  3. Ritos de agregação: seriam os pós-liminares (como o nascimento, por exemplo).

O rito que, a nosso ver, simboliza a escrita de um memorial seria o liminar, ou o chamado rito de margem. Os ritos de margem, segundo Van Gennep, situam-se em zonas consideradas neutras, com possibilidade de concretização de ritos de entrada e de saída, início e fim, morte e renascimento.

Todavia, todos os ritos comportam um mecanismo muito parecido entre si, de parada, espera, passagem, entrada, agregação. Há sempre novos liminares a atravessar, pois a vida do indivíduo é um processo contínuo de desagregar-se e reconstituir-se.

Escrever um memorial exige, portanto, uma pausa que se situa entre o início e o fim. É um olhar da travessia que se faz da margem, é um morrer e renascer. “É um agir e depois parar, esperar e repousar, para recomeçar em seguida a agir, porém de modo diferente” (Van Gennep, 2012, p. i). Ao escrever o memorial, é possível observar o processo de transformação individual: olho as minhas experiências pregressas e vislumbro o que será da minha vida pessoal e profissional em um futuro que se avizinha.

Desta forma, a escrita de um memorial não deixa de ser, metaforicamente, a ilustração daquilo que significa atravessar a soleira, ou seja, reingressar em um mundo já conhecido, porém de modo diferente. Para reingressar neste ‘velho mundo novo’, autorizado por um processo de avaliação da promoção na carreira, é necessário um esforço meta-narrativo que tem lugar na escrita de um memorial.

No livro Experiências de Vida e Formação, Josso (2004), diz que o saber experiencial se dá a conhecer, do ponto de vista do sujeito aprendente, em interações com outras subjetividades.

A situação da construção narrativa, nos termos prescritos pelo memorial, pressupõe a narração de si mesmo, sob o ângulo da sua formação1, por meio do recurso e recordações-referências que se organizam em uma estrutura narrativa coerente, em torno do tema da formação e, por quê não, da sua carreira.

A socialização da autodescrição de um caminho, com suas continuidades e rupturas, envolve igualmente competências verbais e intelectuais que estão na fronteira entre o individual e o coletivo (Josso, 2004). A socialização da escrita pressupõe que autor e leitor passarão, concomitantemente, por um processo de auto e heteroformação.

2.1 A sociologia e a escrita autosocioanalítica

Nous ne sommes pas ce que nous savons mais ce que nous sommes prêts à apprendre

(Mary Catherine Bateson)

Inspirada pela ciência social como a prática de um ofício, procurei escrever um memorial no qual reflito sobre este ofício em sua dimensão teórico-prática, dimensão esta que não se separa da minha vida. Se em geral somos socializados a dissociar vida e trabalho, a condição de escrita do memorial vai contra esta convenção habitual.

Para Mills (2009, p. i), “o trabalhador intelectual forma-se a si próprio à medida que trabalha para o aperfeiçoamento de seu ofício”. Isto quer dizer que ele deve aprender a usar sua experiência de vida em seu trabalho intelectual: examiná-la e interpretá-la continuamente. É justamente este exercício que configura o que Mills chamou de artesanato intelectual, de modo que o indivíduo está irremediavelmente envolvido em cada produto intelectual em que ele possa trabalhar (Mills, 2009).

A sociologia também nos ensina o quanto é possível valer-se de nossas experiências para compreender o mundo social. Howard Becker, em seu livro Segredos e Truques de Pesquisa, cujo teor resulta em grande medida das experiências do autor como professor, afirma que a maior parte de seus trabalhos foram autobiográficos, de maneira explícita ou não. Nestes trabalhos, prossegue o autor, “[...] é possível ver como fui ensinado, os traços dos sociólogos com os quais aprendi meu ofício, bem como o que o trabalho sociológico podia ser e o que uma vida sociológica podia ser” (Becker, 2007, p. 10). Assim, talvez por ofício, aprendemos a identificar o idiossincrático como a variante de um problema geral, “mas cada novo problema é diferente o bastante de todos os outros para nos dar algo a acrescentar à nossa compreensão da classe geral das dificuldades” (Becker, 2007, p. 10).

A ideia de artesania ou artesanato de Mills (2009) mostra que os ofícios da ciência social, exatamente como os de um encanador ou um carpinteiro, têm seus segredos, destinados à solução de problemas particulares. Essa espécie de compreensibilidade sociológica é análoga ao aprendizado de habilidades de um ofício observando artífices mais experientes, utilizando seus truques para resolver os problemas da vida real (Becker, 2007).

No mês de março de 2020, alguns dias após a UFMG decretar a suspensão das aulas em função da crise do coronavírus, tomei conhecimento de que o interstício para a minha progressão para a classe de professora titular ocorreria no mês de novembro. Confesso que esta informação, em meio a um cenário excepcional da nossa história, causou-me uma certa angústia, pois essa tarefa se impôs a mim em um momento de bastante fragilidade emocional, consequência direta da crise instalada por ocasião da pandemia de covid-19. Ao mesmo tempo, senti que eu deveria tentar transformar em processo criativo, uma crise impossível de ter suas consequências mensuradas imediatamente, a partir de uma perspectiva subjetiva e que pudesse se objetivar na escrita do meu memorial.

É certo que, em um primeiro momento, pensei em esboçar a escrita do texto exigido estritamente de acordo com as orientações previstas na resolução da Universidade (Ramírez, 2014). Por outro lado, se a exigência da compreensibilidade sociológica era meu dever de ofício, como escrever biograficamente sem fazer referência a um fato social - a crise em seu aspecto multidimensional a partir da covid-19 - sem fazer referência a este momento particular?

Colocar em prática a imaginação sociológica pressupõe uma disposição que pode ser aprendida por meio de um registro diário, segundo Mills (2009) e que deriva de nossa necessidade de reflexão sistemática da vida cotidiana pois, escrever a vida, mesmo que ordinária, nos ajuda a desenvolver hábitos reflexivos e assim manter nosso mundo interior desperto.

Também Pierre Bourdieu (2005) me inspirou nesta tarefa. No livro Esboço de uma auto-análise, o sociólogo é estimulado a fazer sua autoanálise, isto é, a assumir-se a si mesmo como objeto sociológico e, portanto, a fazer a sociologia de si mesmo e a de sua relação com a sociologia.

A socioanálise pode ser vista como um saber construído pelas ciências sociais para servir de mediação na reflexão que o sujeito produz sobre ele mesmo: quanto mais o indivíduo toma consciência do social no interior dele mesmo, assegurando um exercício reflexivo de suas categorias de pensamento e de ação, menos ele tem chance de agir pela exterioridade que os habita (Bourdieu, 1991).

Estudar a sociedade requer um processo constante de ir e vir: precisamos examinar o mundo, pensar sobre aquilo que vimos e retornar ao mundo para dar mais uma olhada. Fazemos isto para melhor compreender a realidade social. No entanto, adverte Bourdieu, quando se fala no mundo social é quase sempre para dizer o que ele deveria ser e não sobre aquilo que ele é. O discurso sobre o mundo social é quase sempre performativo: ele encerra desejos, exortações, censuras, ordens etc. Assim, embora o discurso do sociólogo se esforce para ser constatativo, ele é quase sempre performativo (Bourdieu, 2019).

Ao tentar traçar as linhas do meu memorial, meu esforço heurístico pautou-se mais pela ideia do constatativo do que do performativo, uma vez que procurei analisar o que sou, utilizando como ferramenta analítica a sociologia. Com os óculos do meu habitus, busquei analisar a sociedade da qual faço parte e, por extensão, a minha carreira e a minha vida, a partir das disposições que me formaram, através das maneiras de ser, pensar, agir e sentir.

Assim sendo, um pouco motivada por essa ideia, a da indissociabilidade entre biografia e sociedade, é que penso ter dado início à feitura do meu memorial. Se todo memorial é uma escrita autobiográfica, assumi o risco de escrever sobre os anos que marcaram a minha vida laboral, entrelaçados às experiências subjetivas, interpretadas em um momento muito particular da nossa história.

Impossível fazer a escansão da vida2 sem levar em consideração o contexto atual. A aceleração de novos tempos e ritmos de trabalho, a insegurança e a incerteza de dar início, por meio do trabalho remoto, a um exercício laboral diante do qual não estávamos preparados, a sensação de solidão, são sentimentos que agudizaram a minha saúde mental diante de um tempo de incertezas.

Concomitante à aceleração do mundo exterior, iniciei um processo de introspecção do meu mundo interior. Este movimento de exteriorização da interioridade e da interiorização da exterioridade esteve acompanhado por um processo de imersão reflexiva nos dilemas vividos e agudizados pelo confinamento.

Assim, considero que a escrita do meu memorial coincidiu com um momento muito excepcional das nossas vidas, marcado pelo isolamento vivido como imposição resultante de uma pandemia. Este fato exigiu de mim uma postura bastante reflexiva e quase incontornável: esta dimensão da nossa história não poderia estar dissociada de todo o processo de escrita do meu memorial, dos meses de confinamento que me fizeram pensar desse jeito e não de outro. Do ponto de vista subjetivo, estar próxima de meio século de vida também me levou a um balanço a respeito daquilo que já realizei e aquilo que ainda pretendo realizar.

Bateson (2019) chama a atenção acerca dos conceitos fundamentais que reorientam a vida das mulheres em especial e que têm sido alterados nas últimas décadas: trabalho, mundo doméstico, amor, engajamento. É com um misto de improvisação e criatividade que temos vivido, buscando um certo equilíbrio entre a adequação dos papéis que nos são impostos, nossos desejos e responsabilidades.

É impossível falar da carreira sem falar nos ritmos psicológicos da reprodução e do envelhecimento que trazem rupturas claras nas nossas vidas de mulheres, mais do que na vida dos homens: a gestação, a amamentação e, depois, como um espelho, à adaptação das crianças conjugadas ao nosso trabalho, a capacidade de passar de uma preocupação à outra, de dividir-se em atenção, a improvisar quando chegam novas demandas, novas pressões.

Esta reflexão sobre o ordinário da vida, que formalizei com entradas diárias, com uma escrita marcada pelo gênero diarístico, reflete o tom que busquei para a escrita memorialística, qual seja, a intenção do coser, do costurar, do alinhavar histórias, projetos, experiências, vivências que constituem a trama da minha existência nesta travessia. Ao concentrar-me na narrativa do meu memorial, é como se eu estivesse passando a limpo, ou costurando, para mim mesma e para os leitores, os 17 anos de labor que marcam a minha existência e que, portanto, ressignificam a minha institucionalização na profissão que escolhi. O trabalho exercido na esfera pública e na esfera privada estiveram durante todo o tempo amalgamados.

2.2 A escrita do diário na composição de um memorial: o que eu aprendi com este processo?

Minha memória está aí, empurrando algo desse passado para dentro deste presente.

(Henri Bergson)

Para mim, o presente é para sempre, e o eterno está sempre mudando, fluindo, se dissolvendo. Este segundo é vida. E quando passa, morre. Mas você já não pode recomeçar a cada novo segundo. Tem de julgar a partir do que já está morto. Como areia movediça ... invencível desde o início. Uma história, uma imagem, pode reviver algo da sensação, mas não o bastante. Nada é real, exceto o presente, e mesmo assim já sinto o peso dos séculos me esmagar. Uma moça, há cem anos, viveu como vivo. E ela está morta. Sou o presente, mas sei que também passarei. O momento culminante, o relâmpago fulgurante, chega e some, contínua areia movediça. E eu não quero morrer.

(Os Diários de Silvia Plath- Julho de 1950)

Na nossa profissão, seja no campo literário, artístico ou científico, não é incomum utilizarmos registros e reflexões sobre o nosso ofício. Na sociologia, vimos de que forma sociólogos como W. Mills e H. Becker utilizavam o registro do cotidiano enquanto uma das dimensões para exercitar a imaginação sociológica. Na literatura, Virginia Woolf fazia os sketchbooks: um caderno em que os artistas fazem croquis e registram esboços de suas ideias e inspirações.

Para muitos autores, os Diários são terrenos de resistência. No livro Caderno Proibido, da escritora Alba de Céspedes (2022), é possível avaliar o peso de sua escrita como criações de mundo possíveis e enquanto prática de autorrepresentação. O hic (aqui) e nunc (agora) é parte da dinâmica do diário e este último nunca pode abolir o nunc, “o ponto do tempo no qual cada um de nós vive de certo modo o último momento do mundo, em solidão ou em sincronia com os outros, e fixa sua última experiência” (Muscariello, 2022, p. i).

A narrativa se passa no espaço confinado da casa, onde é possível ler a topografia do universo doméstico, elaborada por Gaston Bachelard, na qual o armário e as gavetas são registrados como “órgãos da vida psicológica secreta” e constituem o “centro de ordem que protege toda a casa contra uma desordem sem limite”. Na casa, Valéria Cossati (a personagem narradora) vive uma condição dilemática: a casa é um espaço aprisionador e, ao mesmo tempo, protetor. Como resolver esta aporia? Assim, a escrita de um Diário está muito além da pura expressão individual. Por mais íntimo que pareça, um diário permite sempre articular as vozes e experiências alheias com os sentimentos mais profundos e subterrâneos.

O movimento é, portanto, simultaneamente interno, para dentro da linguagem e externo, voltado para fora. “Nada é mais fascinante”, escreveu no prefácio da edição de Mrs. Dalloway, em 1927, “do que enxergar a verdade que habita atrás dessas imensas fachadas de ficção - se a vida é de fato real, e se a ficção é de fato fictícia. E provavelmente a relação entre ambas é extremamente complicada” (Woolf, 2021, p. 13).

Poliak (2002) interroga-se a respeito do “que falar de si” quer dizer, estudando as disposições sociais da autobiografia, bem como das disposições profanas socialmente diferenciadas da autobiografia. A autora partiu de relatos de vida espontaneamente produzidos, para uso privado, ou numa perspectiva editorial, sem desconsiderar tudo o que a “espontaneidade” aparente dissimula. Não se trata também de se permanecer circunscrito a uma dimensão do fato literário, que exclui toda sorte de produtos não ficcionais (diários, memoriais, romances autobiográficos etc.), avaliados de um ponto de vista estético e que exclui toda sorte de produtores do discurso de si.

Para Poliak, devemos lembrar sempre a respeito da desigual condição de falar/escrever sobre si. O sentimento de incompetência linguística, de indignidade cultural, entre outros, leva muitas pessoas a crer que sua vida “não merece ser contada”, percepção muitas vezes ligada ao “valor” da pessoa, à convicção de possuir um “eu particular”, que não merece ser registrado.

De acordo com Lejeune (2014), a escrita de um diário recobre três dimensões da vida: 1) a dimensão que exercita o autoconhecimento, pois o diário abre para debate um diálogo naquele que o escreve. A aventura do diário é muitas vezes vivida como uma viagem de exploração, ainda mais que esse conhecimento de si não é uma simples curiosidade, mas condiciona a continuação da viagem: é preciso escolher e agir (Lejeune, 2014); 2) a dimensão que exercita a resistência - Como transformar o “foro íntimo” em campo de defesa onde recuperamos as energias e buscamos forças? 3) E, finalmente, a dimensão que exercita um tipo de escrita que pode ter origem em diversas necessidades. Pode-se dizer que, para muitas atividades humanas, o diário é um método de trabalho (Lejeune, 2014).

A escrita de um memorial, processo narrativo e autobiográfico, diante de um novo contexto, o da pandemia, foi um enorme desafio pessoal levado a cabo durante quase um semestre que compreendeu diferentes fases do isolamento e que refletiu na escrita deste texto.

Durante esses meses, acredito que o primeiro grande desafio foi narrar a minha experiência em um tempo de indelicadezas e incertezas no Brasil e no mundo. A narrativa se iniciou de uma forma árida, dolorosa, e a escrita foi, pouco a pouco, se configurando na maneira que eu encontrei de impedir que a tristeza e a angústia parecessem maiores do que a minha capacidade de me reinventar. Ao mesmo tempo, eu sabia que a escrita era a única maneira de objetivar um percurso profissional que não estava dissociado das experiências mais subjetivas da minha vida.

Se no início eu sentia dificuldade em ser sujeito do texto, com o passar dos dias eu fui percebendo que aquele exercício poderia ser vivido como um processo de autoexperiência e, por que não, um poderoso e vital exercício de sobrevivência.

Assim, a minha narrativa foi por mim vivida como um processo de autoexperiência, no sentido de como A. Schutz (2018) a entende, ou seja, como uma forma de experimentar atributos totalmente distintos ao de uma biografia que se tem na vida cotidiana. Os acontecimentos fáticos insistiam em ceder lugar ao meu humor, ao meu desejo de atribuir significados a determinadas coisas e temas.

Mesmo sabendo das exigências para a escrita de um memorial, não conseguia ordenar os acontecimentos dentro de uma ordem cronológica ou ceder a imposições determinadas de ritmos. Cada registro existia em uma ordem ditada pelo ritmo de uma duração. Geralmente eu escrevia ao final de um longo dia e eu tinha a sensação de que aquele era o único dia da minha narrativa. O único dado que se apresentava como o fio condutor de uma sequência era a evolução da doença. Este era o único cenário teleológico da narrativa, já que o medo de vivenciar uma situação de pandemia nunca antes vivida, insistia em ser o tema central da minha escrita.

O segundo desafio foi a constatação de que, para empreender a tarefa de escrever um memorial, eu teria que fazer um deliberado e consciente deslocamento de lugar. Eu precisei entender que a dinâmica da narrativa em primeira pessoa é muito diferente de quando se lê sobre ela, de quando se pesquisa sobre ela. Senti que para escrever sobre as minhas experiências, era necessário iniciar um processo de compreensão de mim e do mundo, a partir de uma escrita diária, na perspectiva da autoexperiência, sobre os acontecimentos que marcaram a minha vida laboral, a partir de um cenário pontuado por dias e dias de isolamento, vividos em um contexto particular da minha existência.

A vivência da autoexperiência foi também um tempo de espera, semelhante a um processo de cura, de secar as feridas. Na espera, é possível encontrar uma estrutura temporal que se nos impõe (Bergson, 2011) e nesta estrutura percebemos a incongruência das várias dimensões temporais.

A sucessão de acontecimentos do mundo exterior se impôs ao meu ritmo temporal biográfico. Todos os interlúdios, atos parciais, “sem importância”, que antes eu poderia deixar de lado, transformaram-se em elementos necessários durante o meu processo narrativo. São essas as vivências que foram narradas.

A minha autoexperiência esteve aqui ritmada tanto pela realidade cotidiana, através da imposição de tarefas, dos planos e conjecturas num contexto de incertezas, quanto pelos interlúdios que estruturam a minha vida temporalmente. Assim, a autoexperiência pode ser definida também como um fluxo de consciência, ou seja, ela possibilitou uma espécie de compreensão, por meio da narrativa, das minhas vivências pessoais e profissionais, na perspectiva de um processo de sucessão fixa capaz de converter um agora em um agora recente e que se converte em um agora passado, pois toda vivência efetiva tem necessariamente um horizonte de passado e um horizonte de futuro.

Ao escrever sobre o significado das experiências pessoais e de trabalho em minha vida, revivo o efêmero, o processual e a transformação provocada pela escrita e seu estado ressonante. Pergunto como o mundo no qual somos dispostos é constituído ou, mais precisamente, que tipo de elo ou relação temos, ou podemos ter, com este mundo? Para Rosa (2019), essa é a experiência fundante a partir da qual a subjetividade e a consciência se desenvolvem. Compreender as disposições do indivíduo em um certo mundo deve constituir em um esforço heurístico para a reflexão sobre as diferenças e patologias socialmente geradas pela qual a imersão diária das pessoas no mundo e suas contribuições para sua construção são moldadas. Foi a partir desta moldura que pude compor o meu memorial, ressignifcando, por meio da narrativa, as minhas experiências e vivências.

3 TEMPO II - SIGNIFICAÇÕES DA AVALIAÇÃO

A identidade narrativa, diferente da identidade pessoal,

tem como possibilidade de emergência a vivência

na dialética do si constitutivo da identidade pessoal

e o outro constitutivo da alteridade (Ricoeur, 1991).

Primeiramente, desejo trabalhar com mais detalhe um conceito já explicitado em outro momento (Abrahão, 2008): memorial de formação, cujo entendimento pode se diferenciar de um memorial acadêmico ou memorial institucional produzido com vistas a concurso de progressão de professores na carreira universitária.

O primeiro, por definição, diz respeito ao processo e à resultante da rememoração com reflexão sobre fatos relatados, oralmente e/ou por escrito, mediante uma narrativa de vida, cuja trama (intriga) faça sentido para o sujeito da narração, com a intenção, desde que haja sempre uma intencionalidade, de clarificar e ressignificar aspectos, dimensões e momentos da própria formação. A intencionalidade é, pois, condição essencial para que haja formação. Esta é produto de práticas formadoras geralmente havidas em Seminários de Pesquisa-Formação (Josso, 2002), Ateliês Biográficos (Delory-Momberger, (2012) ou Círculos Dialógicos Investigativo-auto(trans)formativos (Heinz, 2015) que se desenvolvem na academia em cursos de Graduação e de Pós-Graduação, não só, mas especialmente, na área da Educação, com intencionalidade voltada à formação continuada, tanto dos participantes como do(a) professor(a)-formador(a). No que respeita ao processo, trata-se de experienciar o momento da narrativa reflexionada de vivências também como um componente formativo essencial (3).

Trata-se de o narrador, elaborador do próprio memorial, ser o sujeito da narração (embora dela também seja objeto), consciente de que a reflexão empreendida é elemento sine qua non para a compreensão da própria formação e, ainda, de que o momento da narração, nos moldes aqui entendidos, é, também esse, um momento formativo. A trama de que falo terá sentido ao urdir os fatos, relacionando-os ao contexto sociopolítico e cultural do narrador. Essa intriga também enlaça, na mesma urdidura, o contexto espacial com o temporal, de tal forma que a narração se apresente, como quer Ricoeur (1994), com uma natureza tridimensional, em que passado, presente e futuro se enlaçam no sentido de que o caráter temporal da experiência do sujeito, tanto na ordem pessoal quanto social, é articulado pela narrativa, especialmente quando clarifica a dualidade tempo cronológico/tempo fenomenológico. A natureza temporal tridimensional da narrativa se explicita pela rememoração do passado com olhos do presente e permite prospectar o futuro, razão pela qual a própria trama narrativa não procura necessariamente obedecer a uma lógica linear e sequencial. De forma articulada com a perspectiva tridimensional do tempo narrado, entendo a narrativa autobiográfica constituída de tríplice dimensão: como fenômeno (o ato de narrar-se reflexivamente); como metodologia de investigação (a narrativa como fonte de investigação); como processo (de aprendizagem, de autoconhecimento e de (re)significação do vivido) (Abrahão, 2006).

Essa construção, como tal, costuma restar obnubilada em diversos Memoriais Acadêmicos escritos - diferentemente dos Memoriais de Formação - para compor processos de progressão de professores na carreira universitária, mesmo porque esse não parece ser o objetivo dessa prática. Para a finalidade posta nesse processo, o candidato deve apresentar e comprovar relevante produção acadêmica em termos de ensino, pesquisa e extensão, orientações, publicações, além de gestão, mediante a construção e defesa de um texto - um Memorial Acadêmico - ou, de outra forma, defender uma tese. Tenho escrito que memorial dessa natureza, geralmente descritivo e informativo, é construído para complementar o Curriculum Vitae visando à avaliação pelos pares, segundo critérios não necessariamente de viés formativo, mas avaliativo do desempenho do candidato ao longo do tempo.

O escopo do primeiro (formativo) e o do segundo (informativo) é o que os diferencia como característica e resultado. Isso não elide, no entanto, a que possam, de tempos em tempos, ser apresentados e defendidos, em Bancas de Progressão na Carreira Universitária, memoriais com alto grau de reflexividade sobre o vivido, fundamentada em densa epistemologia e decorrente teoria, os quais podemos considerar, face a essas características, como memoriais realmente formativos e transformativos. É o caso, por exemplo, do Memorial de Soares (2001), muito conhecido, e o de Josso (2010), este uma Tese de Doutorado. É o caso do Memorial de Cunha (2022), o qual tive a honra de avaliar no processo acadêmico de progressão e de, posteriormente, escrever a respeito bem como de prefaciá-lo, quando publicado (Abrahão, 2022).

A autora em questão teve um tempo de 5 meses e meio para construí-lo, a iniciar em março de 2020, justamente no momento inicial das notícias de que a Covid-19, até o momento espraiada por países de nós distantes, estava chegando ao Brasil mediante absurda velocidade e infectando pessoas em ritmo crescente. Nesse contexto, ela concebeu e produziu o Memorial. O contexto pandêmico perpassa, necessariamente, as reflexões da autora por todo o texto narrativo, além de consubstanciar um acervo de informações sobre o avanço pari passu em número e significação dessa doença. A narrativa inicia com uma Introdução (chamada pela autora de Prólogo: Como dar vitalidade a um texto em tempo de incertezas) que contém um diário, com início em 15 de março e interrupção em 29 de agosto de 2001, data da entrega do Memorial na universidade, no qual dia a dia - às vezes um dia sim, outro não - a autora vai narrando reflexivamente os percalços da vida da família em quarentena, ao mesmo tempo em que tenta escrever os demais itens constitutivos do Memorial, juntamente com as atividades profissionais realizadas de modo remoto, confinada no apartamento com o esposo, um filho de 7 anos e uma filha adolescente, vivenciando momentos, muitas vezes, tensos, desgastantes, somados à constante preocupação com os familiares, amigos, colegas, alunos, cidadãos em geral e consigo própria.

Trata também, como não poderia deixar de ser, dos reflexos que o ensino remoto ocasiona no acirramento das desigualdades socioeconômico-culturais no meio dos estudantes brasileiros, bem como não esquece de considerar o alargamento dessas desigualdades em relação ao trabalhador adulto face à crise econômica ocasionada em grande parte pela própria pandemia. Como socióloga da Educação, a autora do memorial procura especialmente em autores da área as dimensões conceituais para interpretar esses momentos vivenciados de crise sanitária e econômico social. Portanto, o Diário que integra a Introdução - e, de resto, todo o Memorial - é um componente que lhe imprime sentido (não é algo solto), o que se evidencia se atentarmos para as próprias palavras da autora, (Cunha, 2022, p.142) : “O único dado que se apresentava como o fio condutor de uma sequência era a evolução da doença”. Um diário, em outras versões de que tenho conhecimento, não tem constado no conjunto de um Memorial Acadêmico. No entanto, neste caso, faz sentido.

A Introdução supera o número de páginas das que compõem o restante do Memorial, que também não são poucas. Isso não elide que o Memorial como um todo, nas demais páginas que o compõem, também mereça ser destacado como uma peça consistente e potente da narratividade autobiográfica, em que uma vida - a memorável vida de uma mulher, esposa, mãe, educadora, colega, amiga, dentre outros papéis sociais - sobressai e espelha não só a vivência experienciada dos dias atuais como toda uma trajetória pessoal/profissional viva, consistente e relevante, em que o caráter temporal da experiência narrada no Memorial está articulado pela narrativa, em especial quando clarifica a dualidade tempo cronológico/tempo fenomenológico. Escreve a autora:

Essa experiência do vivido, feita em primeira pessoa, trazida em uma dimensão temporal singular - o isolamento - não permite a distinção entre o plano fenomenológico e o plano físico da minha ação.

O horizonte de ação é a minha escrita. É a ela que eu me dirijo todos os dias ou em dias alternados para colocar no papel os processos de interação que estabeleço comigo e com os acontecimentos ao redor de mim. Neste empreendimento, minha interpretação do vivido passeia por várias ‘camadas temporais’ da minha vida: o meu passado, as lembranças da minha infância, o processo de fabricação do pão feito pela minha avó e retomado simbólica e materialmente por mim nesta quarentena, enfim, processos tanto cognitivos quanto perceptivos acabam sendo evocados no curso da transcrição da minha experiência (Cunha, 2022, p. 133).

Em outro ponto:

Foi um processo doloroso a vivência do afastamento materno e ainda há várias questões que tento elaborar todos os dias. Parece que tenho que equalizar um pouco o amor de menos do passado com a maneira como amo demais no presente, em relação aos meus filhos. Às vezes acho que procuro ser uma mãe que não tive, mas reconheço que devo ser a mãe possível, aquela que consigo ser (Cunha, 2022, p. 74).

Ao dialogar com o Memorial da autora, procurei fazê-lo tendo em mente dimensões ricoeurianas que tratam do tempoespaço humano, da narrativa em intriga, do tríplice presente narrativo e do círculo hermenêutico.

Considero que ao longo da potente, mas também sensível narrativa por ela construída, a dimensão tempoespaço se destaca ao lado de outras dimensões também conceitualmente fortes, formando um continuum narrativo orgânico e significativo, não só no Diário, como também nas demais partes do Memorial. Entendo que a autora nos envolve com um tempo denominado por Ricoeur (1994) de tempo humano, construído da síntese do tempo do mundo - cronológico - e tempo da vida vivenciada - sequencial - transmudado em um outro tempo, o tempo experienciado no âmbito da narrativa de uma história de vida construída em intriga, mediante uma síntese concordante/discordante do heterogêneo:

As vivências são por isso bem heterogêneas, mas como lembra Schutz, são as minhas vivências e o fato de cada uma delas se ligar ao que lhe é precedente e àquilo que lhe sucede, remonta à essência da durée, na qual essas vivências são vivenciadas em fluída transição e a essência do ato reflexivo de voltar-se para dirigido a estas, faz delas vivências significativas, no sentido originalmente primeiro da palavra, sem com isso eliminar os horizontes temporais do antes e depois (Schutz; Luckmann, 2009, p. 120). São vivências pré-fenomenais e que se tornam fenomenais somente em um ato específico do voltar-se para (Cunha, 2022, p. 145).

Segundo Ricoeur (1994, p. 85) “[...] existe entre a atividade de contar uma história e o carácter temporal da experiência humana uma correlação que não é puramente acidental”. Assim, “[...] o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo: em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal (Ricoeur, 1994, p. 85)”.

Ademais, o tempo humano aparece no Memorial também em outra dimensão: a tríplice dimensão ricoeuriana do presente, porque, segundo entendo, a correlação tempo e narrativa leva a indagar sobre a procedência da narração histórica de uma consciência histórica, em que o presente, o passado e a expectativa do futuro se imbricam em uma perspectiva tridimensional. No Memorial analisado, pois, a perspectiva tripartite do tempo narrado, também se apresenta no tempo pensado/experienciado, com as ambiguidades e, mesmo, contradições no seio dessas três instâncias, passado, presente, futuro:

A minha autoexperiência esteve aqui ritmada tanto pela realidade cotidiana, através da imposição de tarefas, dos planos e conjecturas num contexto de incertezas, quanto pelos interlúdios que estruturam a minha vida temporalmente. Assim, a autoexperiência pode ser definida também como um fluxo de consciência, ou seja, ela possibilitou uma espécie de compreensão, por meio da narrativa, das minhas vivências pessoais e profissionais, na perspectiva de um processo de sucessão fixa capaz de converter um agora em um agora recente e que se converte em um agora passado, pois toda vivência efetiva tem necessariamente um horizonte de passado e um horizonte de futuro (Cunha, 2022, p.143).

Explica, ela:

Isto porque toda essa vivência do agora tem um antes e um depois, porque a cada ponto da duração pertence necessariamente um passado e um futuro e foi revolvendo o tempo pretérito e o tempo presente que pude conjecturar sobre o meu futuro, narrando a minha vivência e enquanto narradora, experimentando um processo de autoexperiência no processo de construção permanente, porque reflexivo, de um memorial (Cunha, 2022, p. 144).

Assim como no Memorial entrevejo o tempo humano ricoeuriano inscrito no triplo presente da narrativa, percebo que a autora do memorial também nos faz conhecer a própria vida vivida em um espaço humano que ultrapassa a contradição espaço do mundo - espaço geométrico - e espaço vivenciado - ordenado descritivamente, tornando-o um outro espaço: o espaço experienciado pela reflexibilidade, espaço narrativo, subjetivado, pleno de significado. A narrativa reflexiva de si articula, portanto, tempoespaço humano. Essas articulações espaciotemporais são muito bem elaboradas pela autora, o que se pode visualizar, a seguir.

Enquanto via os dias correrem, pensei nas diferentes possibilidades de narrar uma história. Segundo Dubar (2005), é possível tanto eleger um eixo sincrônico, ligado a um contexto de ação e a uma definição da situação, em um espaço dado, culturalmente marcado, e um eixo diacrônico, ligado a uma trajetória subjetiva e a uma interpretação da história pessoal, socialmente construída. Assim, penso que esta reflexão está, pois, permeada tanto pelo eixo sincrônico (definida pela situação em um espaço dado, culturalmente marcado), quanto pelo eixo diacrônico, definido por uma interpretação muito subjetiva a respeito da minha identidade profissional (Cunha, 2022, p. 137).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ação humana narrada pressupõe uma conformação dos fatos dispostos em uma organização lógica que labora com elementos interpretativos, tanto de parte de quem os enuncia, como de parte de quem os escuta ou lê, constituindo-se a intriga narrativa mediante dimensões (pré) (con) (re)figurativas que abrangem o sentido concordante/discordante de uma totalidade narrativa significativa, relativa à intriga tecida do conjunto dos acontecimentos singulares significados no âmbito plural mais abrangente das relações humano-sociais. Ricoeur (1994) refere-se a esse movimento mediante três dimensões da narratividade: o da Mimese I, entendida como prefiguração, momento de pré-compreensão do mundo posto e da ação; o da Mimese II, posta como configuração da ação, momento interpretativo da narrativa; o da Mimese III, afeta à reconfiguração da ação, momento da reflexão do narrado que se desdobra em novas pré-configurações, configurações, reconfigurações. Esse Círculo Hermenêutico (Ricoeur, 1994) é, em meu entender, a alma do Memorial que imprime sentido mais potente à compreensão do vivido pela autora do memorial e por nós, leitores:

Essa démarche foi vivida primeiro como aporia, em seguida como maiêutica e, por fim, como uma epistemia 3 que, para mim, reside em uma possibilidade analítica para os estudos das biografias e autobiografias, histórias de vida e narrativas.

Como efeito primeiro, o hábito do registro diário produziu em mim um sentimento de aporia. Eu me vi em um grande vazio em meio a muitas incertezas e diante da exigência cada vez mais premente de uma nova reorganização doméstica, conjugada ao trabalho profissional.

Eu percebi que para sair da sucessão de crises vivenciadas e encetar uma dinâmica capaz de revelar os pressupostos conceituais exigidos em um memorial, eu deveria repactuar o processo como eu vinha elaborando o meu registro diário.

[...].

Em pouco tempo o meu registro adquiria o sentido do voltar-se para.

[...]. Esta consciência adquirida durante este processo consistiu em um esforço de maiêutica , ou seja, em uma jornada interior que não se fez sem dor e coragem. Este foi o segundo efeito produzido em mim através do registro cotidiano.

[...].

Analisar a estrutura fundamental do mundo da vida, imposta pelas condições fáticas da minha existência e dos limites inalteráveis de minha experiência e da minha ação e, finalmente, motivado pela minha finitude, representa um esforço de superação frente as forças que se apresentam e que se opõem em minha vida, mas restaurando o meu papel de agente consciente e responsável na interpretação dos fenômenos sociais. Este foi o terceiro efeito do processo narrativo, a epistemia: reconher aqui o meu papel de agente, daquele que interpreta o mundo e a si mesmo no mundo e, como tal, incorporando explicitamente na minha narrativa, no meu texto de memorial, a temporalidade e a experiência biográfica como elementos indispensáveis para compreender as minhas motivações para a ação, consciente que o âmbito do factível está limitado de modo imediato por minha situação histórica e biográfica (Cunha, 2022, p. 145-146, grifos da autora).

Ao finalizar, chamo a atenção de que ao lado e concomitantemente à leitura mais acadêmica do Memorial também me foi possível uma leitura mais literária - certamente, uma não elide a outra - permitindo-me usufruir não só da consistência reflexiva da narrativa de Maria Amália (Cunha, 2022) mas, igualmente, da beleza da escrita em termos formais e em possibilidades narrativas sensíveis e comprometidas com a boa vida a ser vivida em sociedades justas, conforme nos ensina Ricoeur (2013).

Essa fruição permite-me evolutivamente, a cada diálogo estabelecido com este Memorial, (re)conhecê-la, do mesmo modo que, possivelmente, a cada vez em que sobre ele escrevo ela me (re)conheça (Ricoeur, 2006). Há uma identidade narrativa entre Maria Amália (autora do Memorial) e eu, que o avaliou. Igualmente, Maria Amália, a cada vez que sobre o memorial escreve ou fala, sendo a mesma (mesmidade) é uma outra (ipseidade), da mesma forma, quanto a mim, quando releio o memorial, para narrar a respeito, sendo a mesma, sou uma outra, identidade narrativa, essa, (re)construída e (re)conhecida em alteridade (Ricoeur, 1991, 2006).

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NOTAS:

1 Há uma diferença substancial entre vivência e experiência elucidada por Josso (2002).

2 Aqui faço uma analogia à vida como um poema, cuja análise assemelha-se à decomposição dos versos nas suas unidades métricas.

3 Os destaques em negrito são meus, evidenciando que considero, no presente texto, aporia, maiêutica e epistemia relacionados às três mímesis ricoeurianas.

Recebido: 05 de Outubro de 2022; Aceito: 21 de Novembro de 2022; Publicado: 31 de Outubro de 2023

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