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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub 15-Dez-2023

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e59631 

Artigos

Entre cartas:considerações sobre currículo escolar

Between letters:considerations on the school curriculum

Entre letras:consideraciones sobre el currículo escolar

Carlos Augusto Silva e Silvai 
http://orcid.org/0000-0003-4776-5935

Tatiana dos Santos Costaii 
http://orcid.org/0000-0003-4449-9600

Franciele Pereira dos Santosiii 
http://orcid.org/0000-0003-3917-2996

Rafael Christofolettiiv 
http://orcid.org/0000-0003-2752-8596

i Doutor em Educação. Técnico em Assuntos Educacionais (IFRO). Email: caugustosilvaesilva@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-4776-5935.

ii Mestra em Educação Escolar. Técnica em Assuntos Educacionais (IFAP). Email: costathatty@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-4449-9600.

iii Mestra em Educação Escolar. Professora da Rede Municipal em Porto Velho (Semed/RO). E-mail: francielepsicologia21@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-3917-2996.

iv Doutor em Educação pela Unesp. Professor Adjunto do Departamento de Ciências da Educação e do Programa de Pós-Graduação Profissional em Educação Escolar da Universidade Federal de Rondônia (Unir), Porto Velho - RO, Brasil. E-mail: rafael.c@unir.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-2752-8596.


Resumo

Tomando como inspiração a filosofia da diferença, de Deleuze e Guattari, para pensar no currículo, experimentou-se o procedimento epistolar. Para tanto, neste artigo, pesquisadores/professores trocam cartas, questionando-se: o que temos produzido de nós mesmos com o currículo? A carta I traz uma composição de articulações entre uma cooperativa e uma escola, criando conexões entre as linhas rizomáticas do currículo e o cotidiano escolar, dos saberes de catadores e professores; na carta II, imagens são produzidas a partir do cotidiano escolar, atravessado pelo dentro/fora da escola; a carta III percorre lugares que produzem forças dionisíacas para pensar o currículo e suas articulações com a besteira da utilidade. Por fim, buscou-se pensar nas cartas e seus encontros como uma possibilidade de escrever outro lugar para o currículo, combatendo a rigidez, propondo alianças sem hierarquias.

Palavras-chave: cartas; currículo; filosofia da diferença

Abstract

Taking as inspiration the philosophy of difference, by Deleuze and Guattari, to think about the curriculum, the epistolary procedure was experimented. In this article, researchers/teachers exchange letters, asking themselves: what have we produced of ourselves with the curriculum? The letter I brings a composition of articulations between a cooperative and a school, creating connections between the rhizomatic lines of the curriculum and the school daily life, of the collectors’ and teachers’ knowledge; in letter II, images are produced from the school daily life, crossed by the inside/outside of the school; letter III goes through places that produce Dionysian forces to think the curriculum and its articulations with the silliness of the utility. Finally, we think about the letters and their encounters as a possibility of writing another place for the curriculum, fighting the rigidity, proposing alliances without hierarchies.

Keywords: letters; curriculum; philosophy of difference

Resumen

Tomando como inspiración la filosofía de la diferencia, de Deleuze y Guattari, para pensar el currículo, se experimentó el procedimiento epistolar. En este artículo, los investigadores/profesores intercambian cartas, preguntándose: ¿qué hemos producido de nosotros mismos con el currículo? La carta I trae una composición de articulaciones entre una cooperativa y una escuela, creando conexiones entre las líneas rizomáticas del currículo y la vida cotidiana de la escuela, de los saberes de los coleccionistas y de los profesores; en la carta II, se producen imágenes de la vida cotidiana de la escuela, atravesadas por el interior/exterior de la escuela; la carta III recorre lugares que producen fuerzas dionisíacas para pensar el currículo y sus articulaciones con la estulticia de la utilidad. Finalmente, buscamos pensar en las cartas y sus encuentros como una posibilidad de escribir otro lugar para el currículo, combatiendo la rigidez, proponiendo alianzas sin jerarquías.

Palabras clave: cartas; currículo; filosofía de la diferencia

1 SOBRE MAPAS, CARTAS E CURRÍCULOS

Enquanto instrumento norteador, o currículo insiste em modos de vida homogêneos e em garantir sua perpetuação na educação, desembocando num conglomerado de normatizações, as quais podem ser tomadas como uma estrutura básica educacional, cujos passos tendem a desejar alunos muito bem projetados como cidadãos atuantes em prol de uma sociedade (Veiga-Neto, 2002).

Entendemos que o currículo não é uma cartilha na qual se encontra a receita pronta para um bom desenvolvimento educacional e unicamente o que se deve ensinar. Além disso, deve-se tomar cuidado com determinado praticismo que insiste em dissociar teoria e prática. Para efetuar a diferença, é necessário introduzir-se no mundo dos alunos, de maneira a possibilitar o envolvimento e a dissolução de barreiras hierárquicas entre as formas de conhecimento e suas hegemonias. Trata-se de produzir um currículo que resista ao apagamento dos modos de existências heterogêneos e engaje aqueles que percebem a vida ameaçada e decidem lutar por ela.

Mais que um documento norteador de procedimentos pedagógicos, o currículo é uma produção vital. Um exemplo desse currículo que nos inspira é apresentado por Amorim (2020, p. 407): um currículo-vida sobre o qual o autor trava um combate contra trâmites representacionais e nos convoca para a produção de um currículo possível de “sonhar, imaginar, escrever e inventar vidas outras”.

Outra ideia sobre currículo que nos interessa é a que Ferraço e Moraes (2021) chamariam de currículo entremeado com a fabulação. Inspirados em Deleuze, os autores apostam num currículo construído a partir de escritas inspiradas em situações experimentadas no cotidiano escolar, que não se dissociam dos autores da pesquisa. Partem, portanto, da biblioteca escolar, para produzir personagens conceituais como um traço potente para a invenção curricular, que não tem a ver com a descrição de uma realidade, mas com a “fabulação do currículo como ato político e coletivo, como reinvenção da própria língua, escrevendo em atenção aos sujeitos cotidianos e aos agenciamentos políticos e coletivos por eles promovidos” (Ferraço; Moraes, 2021, p. 1560).

Essas possibilidades de produção de um currículo avesso à função disciplinar tendem a se envolver em diversas esferas, pois é uma necessidade indispensável, tornando-se aquilo que desejamos para o momento: criar vidas com o currículo por meio de cartas. Um currículo que acontece por outros territórios, em que também há um envolver-se, um pensar junto, mas não igual, um fazer currículo com aquilo que atravessa se dá no ineditismo das novas relações, das palavras, bem como das suas criações. Um território que pode produzir realidades a partir dos encontros.

Na obra Kafka por uma literatura menor, Deleuze e Guattari (2003) produziram uma máquina literária na qual o texto circuitaria a mesmice, sem a necessidade de uma interpretação sobre um sentido único ou de uma escrita como contemplação de algo acessado por poucos, quase sublime. Percebemos um vitalismo nessas linhas rizomáticas que formam palavras vivas e produzem efeitos dos mais diversos ao se combinarem. Efeitos que intervém. Escritas vivas que contam histórias sem imposições, que afirmam a multiplicidade e a força da diferença.

Os autores nos apresentam máquinas de escrever com componentes de expressão: as cartas, as novelas e os romances. Detivemo-nos ao primeiro aspecto, as cartas, no sentido de que se trata de ser um “rizoma, uma rede, uma teia de aranha” (Deleuze; Guattari, 2011, p. 59). E o que seria um rizoma se não um mapa totalmente aberto, móvel, com uma multiplicidade de entradas e saídas, produzindo conexões sempre heterogêneas, que perfuram a membrana do pensar arborescente e, ao mesmo tempo, escavam raízes de um rizoma e nele se perdem?

Nessa perspectiva rizomática, qualquer ponto desse sistema pode ser produtivo. Deleuze e Guattari (2011) abordam-no como um sistema aberto e, aqui, destacamos o produzir como criação, invenção de possibilidades, conexões com o inesperado. Abertura àquilo que é novo. Raízes que se encadeiam uma na outra e noutra. O início e o fim já não são mais o cerne; o meio torna-se palco de experimentações. Assim, “entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular [...]” (Deleuze; Guattari, 2011, p. 49). Destarte, experimentar uma escrita sem um destinatário, em meio a movimentos que ocorrem dentro e fora da escola, entre as escritas, nesse entrelaçamento do qual não há uma saída ou um destino predefinido, as cartas são mobilizadas pelos fluxos e, na mesma medida, os mobilizam.

Esse fluxo tem a ver com “um vampirismo propriamente epistolar” (Deleuze; Guattari, 2003, p. 59). Produzir cartas implica em escrevê-las com sangue, pois demanda certo envolvimento: corpo com corpo. As cartas levam consigo algo que explode por todos os lados e não se tem, especificamente, uma direção: elas apenas vão. A imagem de uma carta lançada num rio pode ser uma boa figura para ilustrar isso; porém, tal carta nunca está protegida sob o resguardo de uma garrafa. Está banhada do sangue daquele que escreve (o sujeito de enunciação) e também do próprio sangue daquilo que se escreve (o sujeito de enunciado), que se misturam com as águas do rio, com o sol, com a areia. Até chegar ao seu destino de escolha, a carta já não é mais a mesma. Ora, o sujeito de enunciado já é outro e o de expressão se desprende; no entanto, podemos dizer que esse sujeito não é esquecido, só não tem mais total controle daquilo que foi. Eis aí o “uso perverso ou diabólico” (Deleuze; Guattari, 2003, p. 61) do ato de escrever cartas.

Esse sangue que trazem as cartas dá-nos vida. Nas palavras de Deleuze e Guattari, (2003, p. 62) “[...] o sangue, dar-lhe a força de criar”. Nesse sentido, as cartas podem jubilar: envio-lhes sangue e com sangue produzirás um currículo. Assim como a literatura de Kafka, de acordo com os autores, um currículo menor, jamais no sentido quantitativo, mas que emprega um desvio na “língua” de um currículo oficial e estabelecido pelo sistema educacional.

Outro aspecto que se soma a este é o distanciamento dos autores ao pacto conjugal ou à família. As cartas não devem tomar uma proposição familiar ou estruturante. Não é em prol de um bem comum do currículo e a progressão do aluno, não é sobre fincar-lhe os pés numa boa avaliação, questionando os índices de reprovação. O currículo põe em prova qualquer estrutura. Não é a vida se transformando em projeto. É a vida acontecendo e fazendo existir!

Abandonamos a ideia de carta como uma troca de mensagens entre remetente e destinatário. Pensamos em cartas produtoras de currículos que se voltam para a vida, seus meandros e não para a norma. Cartas que compõem toda uma explosão de cosmos. Uma carta que não é nossa e nem vossa, que não se dá a partir de uma escrita definida ou de uma recordação, mas uma dobra, uma linha como um fragmento estrangeiro infinito, um devir inexplorado.

Trata-se de uma produção de cartas cujo foco visa ao processo e não apenas a um produto final para um destinatário. Mais intensidade, menos intencionalidades! O argumento aqui levantado é que, ao entrar em contato com as problematizações e a produção de cartas como instauradoras de currículos, outros modos para se exercer o currículo são experienciados. Novos encontros com os atravessamentos da escola e suas múltiplas composições, atuando num coletivo para além do território geográfico, viabilizando o contato, fazendo pontes - por meio de epístolas - com o outro e suas práticas escolares sensíveis na educação escolar.

Neste texto, apresentamos produções de pesquisadores, tendo como imagem-força a carta e buscamos pensar acerca dos movimentos epistolares que podem atravessar o currículo, produzindo-o. São três cartas enviadas pelos correios aos destinatários, efetivando uma troca, uma importante possibilidade de fazer proliferar palavras que contêm acerca de seus currículos, produzidos de maneira singular, que se atentem às relações estabelecidas pelas cartas com as próprias cartas, promovendo alianças contra aquilo que põe o currículo em estratificação.

Após a leitura dessas cartas, cada qual pôde reescrever sua própria carta, com a intenção de ampliá-la, fazer dela outra. Nesse sentido, lançamos mão da seguinte inquirição: como pensar uma educação que instaure outros modos de conceber o currículo a partir da carta como uma força minoritária? O que temos produzido de nós mesmos com o currículo? Muito mais do que as cartas por si só, o que nos interessou foi o encontro delas e suas trocas. Eis as cartas:

Fonte: Ilustração: Renan Freitas.

Figura 1 Carta I: Entre-mundos 

Cara pesquisadora,

Escrevo-lhe para expandir as produções que estamos movimentando, as composições que estão sendo possíveis pensar com a escola e a cooperativa, com as professoras e os/as catadores/as de materiais recicláveis. Do lado de cá, experimentamos uma articulação com esses dois coletivos em uma Escola Municipal e uma Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis, entre dois mundos próximos e ao mesmo tempo distantes, grafias de vidas, histórias, vivências de dentro e fora da escola.

Venho questionando-me: o que pode tal encontro reverberar no cotidiano escolar? O que pode essa articulação compor no currículo construído diariamente pelos professores desta escola? São perguntas que me inquietam ao percorrer essas movimentações, mas que, simultaneamente, me provocam a percorrer essa experimentação em nível microssocial, em uma relação de vizinhança, consoante às abordagens de Guattari (2012), no livro As três ecologias. Aliás, buscamos compor com essas três ecologias: a ecologia mental, a social e a ambiental, na temática da coleta seletiva, no contexto da educação ambiental, para também trabalhar em uma possível reinvenção das relações que, consecutivamente, atravessam as demais ecologias.

Partindo desse viés, cara pesquisadora, colocar-se a conhecer o outro, seja ele próximo ou distante, pode compor com o cotidiano escolar, com as temáticas trabalhadas na escola. Desenvolver uma temática na escola, abordar sobre ela, seja ambiental ou não: até que ponto a conhecemos? Conhecer o outro de quem falamos e/ou que é atravessado pelo que se aborda pode potencializar o assunto que se está ensinando.

No livro Deleuze & educação, Gallo (2003) se refere a uma educação rizomática, que se desvia da compartimentalização dos saberes, propondo a disposição desses saberes de forma arborescente. Nessa educação, os assuntos podem se conectar em qualquer ponto, não tendo que ter, necessariamente, uma origem comum. Pensar em uma educação assim poderia sugerir atentar-se para o dentro e o fora da escola, para as escritas de vida, que estão intimamente relacionadas ao que acontece no contexto da escola, mas que por vezes são ignoradas, talvez por não ser e/ou fazer parte da “educação escolar”.

Volto-me para essa articulação que experimentamos entre professores e catadores. São vivências no ensinar e fazer na temática da coleta seletiva. Tal articulação entre o dentro e fora da escola pode proporcionar a (re)criação das práticas curriculares, ao desenvolver os conteúdos/assuntos relacionados com o contexto local em que a instituição de ensino está imersa; compor com a comunidade do entorno nas vozes que ecoam das suas histórias de vida; neste caso, mais especificamente, no ato profissional.

Cara pesquisadora, estamos indo e voltando nessa articulação, pois acreditamos em sua potência de movimentar o cotidiano escolar, que, em grande medida, pode reverberar para além do currículo imposto às escolas, nas práticas dos professores em sala de aula - como sala de aula refiro-me à relação com seus alunos e não um espaço específico. Veiga-Neto (2002) afirma que o currículo é um artefato concebido conforme as representações de determinada época, sendo um reflexo dos sujeitos que se pretende formar para aquela sociedade. O autor destaca o currículo operante como um artefato estruturante e disciplinador: “O currículo é pensado e funciona como uma estrutura classificatório-disciplinar; por isso ele é um estruturante. E, por ter uma estrutura disciplinar, ele funciona como um estruturante disciplinador” (Veiga-Neto, 2002, p. 171).

Verificamos as relações de poder empregadas no currículo, na sua organização hierarquizada dos conteúdos, do espaço e do tempo, conforme abordado por Veiga-Neto (2002). Contudo, compreendemos que, nas entrelinhas desse documento, no cotidiano escolar - a partir das experimentações e experiências coletivas -, podem ocorrer desvios de uma educação homogeneizante, a fim de articular-se ao outro e compor em conjunto.

Corazza (2001) destaca que podemos pensar o currículo como sendo uma linguagem. Sob esse prisma, a linguagem empregada e emanada do documento curricular não é neutra, haja vista que, como diz Veiga-Neto (2002), o currículo é produzido e produtor de determinada sociedade. Se o currículo pode ser considerado como uma linguagem, que nuances estão presentes em suas linhas e as afetações provocadas na escola?

Corazza (2001, p. 10) enfatiza que “um currículo, como linguagem é uma prática social, discursiva e não-discursiva, que se corporifica em instituições, saberes, normas, prescrições, morais, regulamentos, programas, relações, valores, modos de ser sujeito”. Para a autora, nas andanças acadêmicas, poderíamos pensar em “um currículo” de modo que vários pudessem ser revelados, considerando-se o que aparece e/ou cujo aparecimento é negado nesse documento: “nossa própria linguagem contemporânea, que constitui uma pletora de “eus” e de “não-eus”, que falam e são silenciados em um currículo” (Corazza, 2001, p. 14). Longe de estabelecer “verdades”, um saber total do assunto, nossa atenção está voltada para as experimentações que possam atuar como um agenciamento, uma produção de subjetividades que afete e reverbere no cotidiano escolar, pelo dito e não dito no currículo.

Ao retornar às experimentações que estão sendo produzidas, percebemos a vontade de falar dos sujeitos na escola e na cooperativa. As experiências dos/as catadores/as no seu fazer diário da coleta seletiva e a relação com os materiais recicláveis estão ajudando a compor uma prática educativa dos professores, de maneira contextualizada com a comunidade local, com o que ocorre no município, mais especificamente no bairro em que os discentes estudam e moram.

Deleuze e Parnet (1998, p. 14) destacam que “não se pode fazer escola, nem fazer parte de uma escola. Só há trabalho clandestino. Só que é uma solidão extremamente povoada. Não povoada de sonhos, fantasias ou projetos, mas de encontros”. Encontros, trocas e diálogos, diante das experiências de vida dos sujeitos que estão e atravessam o cotidiano escolar, seja fisicamente ou nas problematizações sociais ali propostas.

Cara pesquisadora, venho pensando que a escola e as práticas curriculares dos tão empenhados professores têm sido afetadas pelo que ouvem, pelo que sentem e pelo que vivenciam. Considero que as experimentações em que nos temos aventurado sejam uma provocação para se pensar as articulações que as instituições de ensino podem realizar para compor com o que está em curso na sociedade, nas relações de vizinhança. Tantas experiências - que ecoam na sociedade, dentro e fora da escola, entre mundos - podem reverberar no currículo; um currículo para além das normativas instituídas, que está em constante movimento nas práticas curriculares dos professores.

O cotidiano escolar dá vida e/ou outras vidas ao currículo; diante do que se engendra nos acontecimentos diários, a articulação entre professores e catadores tem provocado o desenvolvimento da temática da coleta seletiva (não uma atividade como um fim em si mesma) como meio de atravessamentos da destinação ambientalmente adequada dos materiais recicláveis, nas questões sociais e ambientais, o que está para além e/ou por trás, pelos lados, à frente dessa temática.

As experimentações que estamos produzindo - intermediando essa articulação - com os professores e catadores têm sido um conjunto de trocas e até de roubos, na perspectiva deleuziana. Dessa forma, as reverberações dessa questão se têm evidenciado na escola com o olhar, com as experiências, com as linhas que perpassam pelo outro, especificamente na coleta seletiva: que vidas são essas que se relacionam e produzem com o que se considerava lixo?

Com carinho e esperança de novas solidariedades, escrevo-te essas perturbações que assolam o percurso que estamos trilhando.

De um ponto amazônico, para um (a) pesquisador(a)

que ouse experimentar o/no ambiente.

Fonte: Ilustração: Renan Freitas.

Figura 2 Carta II: Currículo e o cotidiano 

Caros pesquisadores,

Nesse emaranhado de conexões (passadas como linhas de pensamentos) que se relacionam e criam ações por muitos lugares, por esses espaços escolares, percorrendo saberes que perpassam vidas e histórias construídas nesse emergente território da educação, me deparei com alguns pensamentos ao passo de ler, imaginar e provocar afetações. Para falar de tais afetações, ou melhor, inicialmente, posso falar daquilo que me passa em um lugar em que o chão da escola se torna palco de incontáveis experimentações passadas em uma instituição de ensino fundamental, num bairro periférico, durante o período pandêmico da Covid-19, quando as queixas escolares se cruzam com os funcionamentos escolares, os quais ressoam em novos olhares lançados aos currículos constituídos pela maçante ideia de hegemonia do ensino.

Contudo, ao me remeter às ideias e provocações que outrora a pesquisadora menciona “entre mundos”, volto a ter novas perspectivas (um tanto quanto sonhadora...) de um currículo (re)inventado, melhorado, articulado e plural. Lembro-me daquele citado por Clareto e Nascimento (2012), que afirmam a potencialidade do currículo invenção na sala de aula, como uma produção de força coletiva. Nesse percurso, nos corredores da escola até a sala de aula e experienciando as inúmeras facetas provocadas pelo currículo invenção, ainda prefiro pensar nele como uma forma de resistência.

Considerando os funcionamentos escolares, Souza (2007) se refere às relações e inter-relações atuais e passadas, que são consideráveis linhas para o entendimento e o agenciamento para as queixas escolares. Então, no entrelaçar desses funcionamentos, pensar a importância de conhecer as peculiaridades latentes, presentes no cotidiano da escola, seria uma maneira de desinvisibilizar a homogeneização dos sujeitos enquanto participantes ativos da construção de um currículo acessível.

Assim, estimados colegas pesquisadores, ao experienciar novas linhas de pensamentos, em se tratando de currículo, esbarramos em um atravessamento atual dolorido e revoltante: as implicações da pandemia da Covid-19 no ensino. Inicialmente, as relações em que havia o calor das afetações mútuas em sala de aula foram bruscamente interrompidas pelo ensino por meios digitais e remotos (Brasil, 2020). Esse formato de ensino reverberou numa adequação curricular urgente, o que provocou insegurança e incertezas, novas grafias, novas vivências, que nos afetam até hoje.

Com relação a essas novas experimentações curriculares e suas adequações, pretendo chamar-lhes a atenção: elas se construíram no cotidiano da escola, contando com atores que tiveram que elaborar estratégias para além daquelas orientadas em planos. Com relação aos deslocamentos realizados acerca do que é produzido no presente da escola, Gallo (2003) enfatiza o trabalho do professor militante, nas individualidades que promovem as ações coletivas e que são geradoras de mudanças.

Dessa forma, colegas pesquisadores, direciono nossas reflexões em relação às queixas escolares que perpassam esse contexto pandêmico, o qual gerou inúmeras afetações em alunos e professores, que precisaram criar linhas de fugas nesse ambiente de diferenças e novos olhares sobre aquele currículo posto tradicionalmente, buscando uma nova versão, em que as questões disciplinares e seus conteúdos formais deram espaço a novos olhares, principalmente sobre a importância do outro, a empatia e a diferença.

Todavia, não podemos esquecer que a escola é uma instituição na qual, sistematicamente, deve ocorrer o fenômeno da instrução (Vitorino, 2020). Tal ideia é caracterizada pelas delimitações e, nesse caso, pela denominação de ensino escolar. Partindo desse viés, convido os caros pesquisadores a pensar na seguinte questão: de que maneira a instituição escola, com seus currículos, pode ter conexões de ensino a novas e urgentes inovações e necessidades curriculares, novas grafias a serem traçadas?

Por experiências desse lado (nas trilhas que estamos traçando), posso responder que, embora devamos considerar as queixas escolares e suas relações com os funcionamentos escolares nesse período pandêmico - no que se refere às dificuldades de pensar diferente sobre um currículo mais acessível -, é indispensável falar sobre o professor como ator fundamental na viabilização da construção das novas estratégias curriculares e que esteja sensível às necessidades dos estudantes.

Diante disso, experienciado as movimentações, ainda considero necessário falar sobre os funcionamentos escolares e suas relações com o currículo, visto que tais dinâmicas se passam na escola. De acordo com Souza (2007), esses funcionamentos podem ser geradores de sofrimento e são influenciados por inúmeros fatores internos e externos; além disso, envolvem outras relações como, por exemplo, aquelas entre pais e professores. Com isso, a escola pode produzir diferentes modos de construir um currículo adequado às potencialidades das diferenças, dos saberes interdisciplinares, do momento atual, da crise na saúde e da necessidade de falar sobre as afetações que esses funcionamentos causam.

Para falar da escola, do cotidiano escolar e do currículo, não podemos esquecer das diversas constituições em relação às disciplinas e conteúdos escolares. Podemos concordar que as multiplicidades de conexões realizadas entre saberes diferentes nos possibilitam transitar em várias áreas, conhecer diversas estratégias de ensino e aprendizagens.

Partindo dessas movimentações, Gallo (2007) afirma que, atualmente, devido às inúmeras subdivisões curriculares, às oportunidades de especializações dos saberes, devemos observar a necessidade de não perdermos a completude das ramificações curriculares, ao passo de não vislumbramos os reais objetivos e ideais.

Com todos esses pensamentos e reflexões acerca das questões curriculares, podemos, então, traçar uma linha não retilínea, mas que nos leve aos caminhos das possibilidades, (re)invenções, construções e conexões com saberes que possam ser adaptados e inventados, com a força motriz que é o cotidiano na escola e suas relações dentro e fora dela, esbarrando nas políticas públicas, para uma educação que possa transformar realidades, inserir novas grafias nas vidas dos estudantes.

Embora saibamos que, ainda de maneira escassa, haja a discussão sobre os fatores decorrentes das implicações da pandemia no ensino, é preciso, novamente, darmos a devida importância aos funcionamentos escolares, principalmente aqueles surgidos no período pandêmico e que necessitam estar em pauta nas adequações e inserções de assuntos no cotidiano da escola e na construção do currículo, relacionados à saúde mental, bem-estar e qualidade de vida. Ora, os agentes dos quais somos integrantes necessitam de apoio e acolhimento para seguir.

Desse modo, encaramos as dificuldades diárias, nos reinventamos em vários momentos, decidimos em optar pelo recomeçar. Continuando nos caminhos do lado de dentro da escola, com perspectivas de melhoras aqui compartilhadas.

Na intenção de me despedir, deixo claro que, através desses traços, convido vocês, estimados pesquisadores, a pensar em três/quatro sobre as relações entre o currículo e o cotidiano.

Com carinho, deste lugar aqui, de pesquisadora e professora.

Fonte: Ilustração: Renan Freitas.

Figura 3 Carta III: Dionísio, o inútil. (Entre alunos e pesquisadores de uma escola) 

Prezados pesquisadores,

As suas palavras ainda ecoam em mim e atravessam-me de tal modo que não consigo pôr em entendimento o que de fato senti ao lê-las. Palavras de duas cartas que habitam mundos diferentes e me esticam a cada leitura que faço. Uma vibrante experiência de sempre me fazer outro a cada leitura e, do mesmo modo, suas cartas vão se fazendo.

Lembro-me de outras cartas que narravam experimentações que não tinham a ver diretamente com a ciência maior: era outra ciência sendo produzida ali, outra forma de pesquisar a educação por meio da escrita de cartas, escrever experimentando encontros que criam... E penso que meu encontro com suas cartas opera exatamente isso: funde-me a outros modos de se pensar o currículo. Experimentações de um currículo quase que impossíveis... E o que seria o ato de produzir esse currículo, atualmente, senão o fazer do impossível possível?

Cartas que contam sobre as experiências de professores e catadores numa escola onde as queixas de alunos são latentes!!! Embora suas pesquisas se componham a partir da cooperativa de catadores e da escola como uma possibilidade para pensar uma educação ambiental mais propositiva, há outros chamados nessas cartas e por eles fui encantado: Dionísio e a utilidade. Deter-me-ei, inicialmente, no primeiro. Não se engane, pois não é por acaso que a escola onde uma das pesquisas se faz tem como nome “Professor Dionísio” e, convenhamos, sabemos que não é o deus da mitologia. Mas, para além do Dionísio mitológico, e se sua pesquisa tivesse essa força dionisíaca? O deus da alegria seria, também, o deus da natureza... E não é esse plano ambiental que urge em sua pesquisa?

Por assim dizer, Dionísio seria um excelente pesquisador, de pés leves, fincados na terra, mas jamais fixados, mesmo com as tentativas de apreendê-lo. Atravessa a vida por um fio disposto a viver. Habita palavras marginais, as quais podemos produzir através das pesquisas de uma educação sob um tom minoritário deleuziano. Caminhos de uma pesquisa sobre os quais Dionísio inventa, na mesma medida em que é inventado. É exatamente isso que é colocado sobre a intervenção como experimentação.

Dionísio é genuinamente um experimentador e deleuzianamente um idiota, por não se deixar representar ou reconhecer! Desbrava a escola e produz instrumentos para nela intervir. Produz seus desvios na pesquisa e inscrições na escola. Assim como Nietzsche, tornar-me um discípulo de Dionísio, mesmo entendendo que há nele uma herança apolínea, o que jamais poderia ser pensado de maneira antagonista, recaindo sobre a besteira da moralidade; pelo contrário “caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre nova” (Nietzsche, 1996, p. 27). Embriagar-me, a fim de me perder da lucidez racional que a pesquisa propõe, que é carimbar sujeitos... E o pesquisador como especialista teria tal função: iluminar e mostrar a verdade. Que verdade e para quem? Mostrar a melhor forma de se trabalhar a educação ambiental com alunos-problema?

Pego carona com Dionísio para vagar pelas palavras que são ditas e silenciadas, pelas vozes que ecoam e são caladas, para evidenciar aquilo que é feito, mas é abandonado porque não é o que se repete no grupo. Pego carona com Dionísio para experimentar o currículo e, quando se ousa experimentar, pelo menos a experimentação que se desenha pelas linhas desta carta, não se nega o combate à representação.

Produzir um currículo jamais seria uma tarefa individual por si só; desse modo, estaríamos fincando essa tarefa a um modelo institucionalizado. Escreve-se não apenas para inventar alianças, mas também para potencializar aquelas já existentes. Por isso, escrever um currículo demanda um trabalho coletivo, cujas palavras não emanam uma ordenança. Mas... Atenção! Não escrevo para a produção de um currículo em prol do salvar a escola ou a fim de conjurar modos proféticos ou profiláticos. Esta escrita que vos mando se priva de um desencadeamento ordenado.

Diria, inspirado em Dionísio, que escrevo para fazer o currículo dançar, tornar-se um dançarino: não sou escritor, sou pura experiência de escrever com mãos leves. Escrevo apenas o suficiente para que a escrita não roube a soltura da vida. Escrevo como se estivesse fazendo uma viagem hoje, num entardecer, apreciando a luz do sol que entra pela minha janela, fazendo do horizonte algo esplêndido e, ao mesmo tempo, complexo.

Pois bem! O segundo aspecto que me chamou atenção - e sobre ele gostaria de escrever a vocês - é a utilidade. Mais especificamente, a utilidade de um currículo. Não é inoportuno dizer que a utilidade está no cerne das problematizações educacionais e acalora as tentativas de produção de um currículo que seja útil para produzir corpos igualmente úteis.

Seguindo a potencialidade de Ailton Krenak (2020), trago-o como referência para pensar um aspecto do currículo, a utilidade, trazendo o inquietante livro a partir de uma afirmação “a vida não é para ser útil” (Krenak, 2020). Certamente, essa afirmativa é um soco no estômago dos utilitaristas; portanto, é difícil manter a calma diante dela, sobretudo no campo onde esse texto diz mencionar a “educação”. Ora, se a vida atravessa o currículo, buscar nele uma utilidade seria uma besteira? Verificar o perfil do alunado a ser formado (ou formatado) nortearia uma vida utilitária para ele, promovendo-lhe condutas? Amar a utilidade jamais seria espontâneo, natural, pois se trata de um projeto muito bem pensado e conduzido: um projeto que ganha força com tramas de poder e fornece forças para uma busca incessante pelo produtivismo e a geração de utilidades, pois o que não é útil é descartado... Quem ou o que deseja ser descartado?

Por certo, faz sentido quando recorremos a Gilles Deleuze e ao seu combate no campo filosófico à besteira: Deleuze a despreza, mas não totalmente. Para o filósofo, a besteira é um aparato sempre a ser combatido pela filosofia; esta, ao compor seus conceitos, estagnaria a besteira, pois é do campo filosófico “prejudicar a besteira, resistir à besteira” (Deleuze; Parnet, 1998, p. 69). Logo, trata-se, sobretudo, de um entrave que não deve ser apenas deixado de lado e, acima de tudo, ser confrontado, pois é na besteira que habitam os saberes estabelecidos, “os pensamentos imbecis inteiramente feitos de verdades; mas tais verdades são baixas, são as de uma alma baixa, pesada, e de chumbo” (Deleuze, 1976, p. 120).

A besteira condiciona o torpor no pensamento como uma simples faculdade (Zourabichvili, 2016); logo, o desejo que se produz é por verdades baixas, pois se aceita tudo e se torna fiel ao que se recebe; é a pequenez no pensamento quando se diz: siga aquele currículo oficial, lá está contida a verdade sobre o que se deve ensinar e aprender. Entendo, portanto, que algumas narrativas curriculares são importantes, diante da garantia de uma educação de qualidade. Meu combate é diante de um currículo totalmente estratificado em solos da verdade. Para Deleuze (2018), o combate às verdades se faz necessário. É uma crítica às imagens do pensamento, ao “tirano que institucionaliza a besteira” (Deleuze, 2018 p. 365), sendo esta “a maior impotência do pensamento, mas também a fonte de seu mais elevado poder naquilo que o força a pensar” (Deleuze, 2018, p. 365).

Mesmo que na besteira as hierarquias e categorizações sejam obedecidas, Deleuze (2018) enxerga nela uma possibilidade de exercer um ato criativo, dando-lhe não apenas uma pequenez. Por isso, inspirado no filósofo, Carrer (2019) apresenta a besteira como um “fundo de onde as intensidades emergem para produzir em nós um traço de individuação, cabe ao pensador contemplá-la e de alguma maneira diferenciá-la, intensificar o sentimento que o constrange e dar a ela uma nova forma” (Carrer, 2019, p. 46).

Por fim, pergunto-lhes: quais vidas fazemos existir com as narrativas que escrevemos ao corroer a besteira? Dionísio jamais foi um professor para a escola, muito menos um pesquisador que tentou realizar uma intervenção a partir de uma pesquisa de mestrado profissional. Dionísio não era um psicopedagogo. Dionísio era um nome na lista de alunos com problemas e tem a ferida do desajuste. Ora, quantos mais são assim carimbados? Certamente o semblante decepcionante povoou seus rostos pelo simples fato de esperarem uma descrição de minha pesquisa. Sim, a escrita causa isso! Alegrem-se! Falei mais de minha pesquisa ao escrever diante das suas do que se estivesse falando apenas de minhas estrepolias poéticas, pois ela, certamente, se faz com vossas palavras.

E reclamo, aqui, um fazer existir a vida com o currículo.

Amazônia, para algum pesquisador de corpo dionisíaco.

2 DOS ENCONTROS TRAÇADOS

O encontrar-se com uma carta, de alguma maneira, demanda certo toque sensível, um acionar a derme para sentir as palavras e suas potentes possibilidades, algo que pode ser pensado, evidentemente, no acontecimento deleuziano, no sentido de se deixar contaminar com as palavras. Ou seja, não se deseja interpretar e suspender todo julgamento analítico torna-se um anseio. Para isso, faz-se necessário estar conectado com aquelas palavras, mesmo que de maneira parcial, sentir o seu cosmo afetivo, imaginário e acontecimental, experimentar com o outro, produzir outro.

Por ser uma arte livre de julgamentos, não significa, necessariamente, que aquele que lê deva concordar completamente ou aderir ao pensamento de outrem e nem que deva aceitar determinado aspecto se isso lhe fere de alguma forma, ou seja, é possível alimentar-se daquilo que o outro traz, mas não qualquer outro e não qualquer alimento, sobretudo aquilo que potencializa a vida.

Permitir-se afetar com catadores, cooperativas, Dionísio, alunos de uma escola no meio da floresta, um aluno deixado num canto da sala desenhando ou até mesmo uma erva daninha, aquela que está em frente de sua casa... São afetações que tornam o outro e aquele que lê em outrem, que ajudam a perceber a escrita de uma carta como lugar de resistência. Nessa perspectiva, concordamos com Mia Couto (2005, p. 8), quando este diz que “o escritor não é apenas aquele que escreve. É aquele que produz pensamento, aquele que é capaz de engravidar os outros de sentimento e de encantamento”. Por isso, pensamos o currículo escrevendo, com letras, imagens, potências e vidas, para além de um caminho já pavimentado.

O que moveu esta nossa escrita de cartas foi o aprender com o outro, com as coisas, com as imagens, com a vida... Certa busca pela ampliação do cuidado e da escuta para outros territórios, sem sair do lugar, da escuta, da fala, das palavras advindas de outro lugar. Tecer rizomas e resistir à dissociação entre vida e currículo, à dissociação entre teoria e prática, ou mesmo à própria dissociação sujeito/objeto, pois aquele que lê e aquele que escreve fazem parte de um plano de composição conectivo, de um agenciamento coletivo de enunciação.

Mais que uma postura ativa, talvez pensar o currículo exija paciência - paciência e envolvimento - para escolher traços, parcerias, imagens que nos são potência. Não se trata de construir um modelo, mas construir aberturas, percorrer aquilo que vem do fora do lugar comum. Afinal, é pela violência do fora, daquilo que nos força a pensar, que o pensamento pode se permitir a esticar os horizontes, como bem declama o poeta Manoel de Barros e, ainda, sair da caixa que nos comprime e dar escapes ao pensamento, tomando inspirações com Kafka (1994, p. 60-61):

Não, liberdade eu não queria. Apenas uma saída; à direita, à esquerda, para onde quer que fosse; eu não fazia outras exigências; a saída podia também ser apenas um engano; a exigência era pequena, o engano não seria. Ir em frente, ir em frente! Só não ficar parado com os braços levantados, comprimido contra a parede de um caixote. Um pensamento livre.

Acerca de questões curriculares, algumas pistas foram lançadas a partir de cartas atravessadas por experiências formativas com estudantes, professores, catadores, cotidianos, entre outros, na tentativa de saltar os modelos tradicionais de um currículo que não queremos aqui problematizar de maneira exaustiva. Pretendemos uma tentativa de produção de processos vitais a partir do currículo.

Tais quais as cartas secretaram declarações de uma educação que inaugura uma novidade para o currículo, a proposta deste texto intenciona gestar outras vidas para a escola, produzir a diferença e fazer a escola continuar de outro modo, a partir de micropolíticas, pois elas são as forças geradoras do epistolar ilimitado. Fazer das cartas mobilizadoras de um currículo e da escola um lugar político que faz da experiência algo possível. Percorrer possibilidades de outros modos de fazer, que não se balizam ao que um currículo oficial pode gerar e ensinar numa sala de aula.

Talvez possamos inferir que as cartas produzem sentidos variáveis de/para um currículo e estão longe de constituir territórios fechados. São, antes, máquinas de escrever para compor com a escola. No caso, escolas de lugares diversos, entre currículos diversos pairando para longe das estruturas enrijecidas de certas práticas escolares, atravessando e/ou, pelo menos, buscando se desviar das normalizações instituídas e de verdades estabelecidas no cotidiano escolar, experimentando um olhar para o outro, para a vizinhança, para o ambiente, com as forças que podem compor um currículo que é criado e vivenciado pela troca de cartas.

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Recebido: 18 de Outubro de 2022; Aceito: 17 de Novembro de 2022; Publicado: 31 de Outubro de 2023

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