1 INTRODUÇÃO
O presente texto é parte de uma investigação documental, em desenvolvimento, pelo Núcleo de Pesquisa em Educação, Política e Subjetividades - NEPS, cujo objetivo é investigar as relações entre o público e o privado no contexto da Educação Infantil. Em pesquisas anteriores do grupo, as análises evidenciaram a entrada de instituições externas ao Estado na execução de políticas públicas para Educação Infantil e indícios dessa interferência também no processo de produção de textos legais. Essa participação da esfera privada, no entanto, não ocorre alheia a um projeto de Estado, de educação e de sociabilidade, pelo contrário, observamos que é direcionada, sobretudo por preceitos do programa da Terceira Via, o qual é difundido, segundo Neves et al. (2010), a partir de uma “nova pedagogia da hegemonia”. De acordo com Silva e Neves (2010, p. 24),
A nova pedagogia da hegemonia materializou-se com ações efetivas na aparelhagem estatal e na sociedade civil nos anos finais do século XX e nos anos iniciais do século XXI, configurando uma nova dimensão educativa do Estado capitalista.
Nesse processo ocorreu a “repolitazação da política”, bem como a disseminação mundial de conceitos, buscando a criação de um novo consenso a partir do qual se questiona o Estado do Bem-Estar Social e se defende a lógica de uma “Sociedade de Bem-Estar Social”, a qual implicará em uma sociedade civil atuante. Essa sociedade civil seria a importante estratégia para restringir o poder dos mercados e do governo (Giddens, 2001). De igual modo, existe a defesa de que “os empresários sociais podem ser inovadores muito eficazes no domínio da sociedade civil, ao mesmo tempo em que contribuem para o desenvolvimento econômico” (Giddens, 2001, p. 86). Com essas considerações, é possível observar a disseminação da importância do denominado terceiro setor e, em consequência, do fortalecimento da sociedade civil1.
De acordo com Martins (2008), é possível notar duas conotações básicas no conceito de “sociedade civil” apresentado pela Terceira Via. Isto é, seguindo essa teoria, a “sociedade civil” é tanto identificada como uma “nova” arena das ações sociais, quanto indica um determinado conjunto de atores, muito diferente dos que atuavam tradicionalmente nessa esfera, como os sindicatos e partidos políticos, por exemplo.
Essa suposta neutralidade da sociedade civil, sua desvinculação com a sociedade política, no atual momento histórico de franco ataque à democracia, ao Estado e aos partidos políticos, resulta em um protagonismo de mobilizações sociais, como se fossem a grande alternativa para os atuais problemas vivenciados no campo econômico, ético, político e na educação, como se esses campos não fossem interligados. No caso específico da educação, é possível observar o incentivo e a ampliação de iniciativas sociais, que atuam nas instituições educativas e/ou nas discussões de políticas públicas para esse setor. Como afirma Magrone (2006, p. 355), “o protagonismo dos movimentos sociais na educação tem sido portador de certo encantamento que, por vezes, intimida a crítica”.
Seguindo essa perspectiva, na conjuntura atual, essas iniciativas sociais estão, de modo crescente, sendo protagonizadas por empresas, de modo especial por via de suas fundações, configurando um verdadeiro empreendimento social e de filantropia na prestação de serviços de educação e, mais recentemente também atuando nas definições e/ou defendendo determinadas perspectivas educacionais na formulação de políticas educacionais. Apoiadas nos discursos da ineficiência do Estado e via parceria pública-privada, é possível observar mudanças na relação “Estado, mercado e sociedade”, sendo que essas “são mudanças dinâmicas e muito imediatas que têm importância nacional e global em relação à política educacional, a reformas da educação, à democracia, a oportunidades sociais e à igualdade, ao significado e à prática da educação” (Ball, 2014, p. 23).
Ao considerar esses aspectos, neste texto nossas análises serão focadas na Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV), a qual, segundo nossos estudos, representa esse empreendedorismo social, subsidiando e divulgando soluções “privadas” para os problemas da educação pública. Nesse caso, de modo específico para a Educação Infantil. Para realizar essa discussão, organizamos o texto em quatro momentos, sendo que no primeiro discutimos os procedimentos metodológicos adotados, na sequência é feita uma exposição apresentando a Fundação e no terceiro momento são apresentadas as análises desenvolvidas. Finalizamos o texto com algumas considerações e reflexões que objetivam subsidiar novas investigações e diálogos.
2 OS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Esta é uma pesquisa documental2 que considera os documentos não como uma simples representação dos fatos ou da realidade. Antes, entendemos que os documentos são produzidos por alguém ou por uma instituição com determinada finalidade, visando objetivos práticos e também algum tipo de uso, fato que alude à necessidade de se considerar para quem é destinado o documento, ou para qual segmento é destinado (Flick, 2009), como o documento foi produzido e quais as influências e disputas em seu processo de consolidação. Dito de outro modo,
Ao decidir-se pela utilização de documentos em um estudo, deve-se sempre vê-los como meios de comunicação. O pesquisador deverá perguntar-se acerca de: quem produziu, com que objetivo e para quem? Quais eram as intenções pessoais ou institucionais com a produção e os provimentos desse documento ou dessa espécie de documento? Os documentos não são, portanto, apenas simples dados que se pode usar como recurso para a pesquisa. Uma vez que comece a utilizá-los para a pesquisa, ao mesmo tempo o pesquisador deve sempre focalizar esses documentos enquanto tópico de pesquisa: quais são suas características, em que condições específicas foram produzidos, e assim por diante (Flick, 2009, p. 232).
Para analisar os discursos dos documentos, seguimos as indicações de analisá-los em sua intertextualidade, considerando que os textos expressam processos que são constituídos historicamente e estão imbuídos de ideologias nas práticas discursivas. Ou seja, conforme Fairclough (2001), qualquer evento ou enunciado discursivo é simultaneamente texto, prática discursiva e prática social.
Para a construção dos dados, apoiamo-nos, ainda de modo aproximado, com a metodologia de Etnografia em Rede (Ball, 2014; Avelar; Ball, 2017). A opção por essa metodologia deriva do fato de que estudos anteriores e bibliografias nacionais e internacionais apresentam um novo papel do Estado (Dale, 2010), sendo discutidas as “novas formas de governança”. A lógica da governança constitui redes, o que Shiroma e Evangelista (2014) denominaram de “redes de governanças” que reúne não apenas governos e organismos multilaterais, mas que envolvem também organizações da sociedade civil, think tanks, grupos de interesse, consultores, empreendedores sociais e corporações transnacionais.
Em outras palavras, ainda que estejamos analisando uma fundação especificamente, não é possível realizar essas análises sem considerar a rede que ela compõe, seus agentes principais e como suas ações se vinculam com ações de outras organizações e empreendedores, e de igual modo, observando as concepções que fundamentam seus discursos. Embora neste texto não discutimos a rede a qual a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal pode ser agrupada, e seus desdobramentos, tendo em vista o objetivo do artigo, entendemos ser importante informar que esse referencial de análise é fundamental para leituras dos documentos disponíveis no site, e na própria compreensão do papel social e político dessa Fundação.
3 A FUNDAÇÃO MARIA CECILIA SOUTO VIDIGAL
A Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV) foi criada em 1965, por Gastão Eduardo de Bueno Vidigal e sua esposa Maria Cecilia Souto Vidigal, após o falecimento, por leucemia, de um de seus quatro filhos: a primogênita Maria Cecilia, aos treze anos de idade, sendo esse fato o grande motivador para a criação da Fundação.
Durante quarenta anos, a Fundação desenvolveu um trabalho pioneiro no âmbito dos estudos sobre a leucemia e realizou exames gratuitos para outras entidades. Porém, de acordo com a história registrada no site da Fundação, após esse período ocorreu um progresso científico de grande magnitude gerando novos conhecimentos sobre o entendimento do câncer, incluindo a leucemia. Novas tecnologias de pesquisa, de diagnóstico e de tratamento modificaram substancialmente o entendimento da leucemia.
Em 2001, diante desse cenário e com o falecimento do fundador, os novos dirigentes da Fundação decidiram iniciar um processo de revisão da missão da FMCSV, com o intuito de adequar seu papel às necessidades atuais da sociedade e aos interesses da nova geração. Esta última, composta pelos netos do fundador, passou a ter uma participação ativa na administração da FMCSV, visando à continuidade do legado da família Souto Vidigal (FMCSV, 2007, 2008, 2009, 2010).
Em 2003, inicia-se formalmente o processo de redefinição da Fundação e ampliação de seu escopo de atuação. Após uma criteriosa análise situacional desenvolvida pela Fundação, foi decidido transferir o Laboratório de Hematologia para o Hospital das Clínicas de São Paulo (Fundação Faculdade de Medicina - FFM), possibilitando assim um aumento em sua capacidade de atendimento. Um novo estatuto social foi criado e posteriormente aprovado pelo Curador de Fundações. De acordo com este estatuto, a FMCSV continua sendo uma Fundação de caráter privado, sem fins lucrativos, instituída pela família Souto Vidigal como instrumento de sua responsabilidade social, sendo modificado: a) o objeto social; b) a criação de um fundo patrimonial; c) e a nova estrutura de governança. O objeto social passa a ser a “melhoria da qualidade de vida da população brasileira por meio da promoção da educação, da saúde, da cultura e da proteção ao meio ambiente”. Para colocar em prática seu objeto social, a Fundação definiu três áreas programáticas prioritárias: saúde, educação e meio ambiente (FMCSV, 2007).
O novo objeto de atuação da Fundação, já a partir de 2005, se aproxima cada vez mais das causas da primeira infância, opção influenciada também pelo médico neuropediatra Prof. Dr. Saul Cypel, que era integrante do Conselho Curador. Os estudos de Cypel fundamentam a ação da Fundação que acredita que “as experiências na primeira infância são muito importantes para o desenvolvimento da própria sociedade” (FMCSV, 2013). Seguindo essa perspectiva, a Fundação, ainda em 2005, organiza o I Workshop da FMCSV intitulado: “Desenvolvimento infantil: da concepção aos três anos de idade”.
Em 2008 é lançado o “Programa de Desenvolvimento Infantil (PDI)”, sob coordenação do Prof. Dr. Saul Cypel, cuja missão é melhorar o cuidado com a primeira infância, de modo a favorecer o desenvolvimento infantil integral e integrado de crianças nos seus aspectos físicos, cognitivos e psicossociais. Desta forma, busca contribuir para a redução dos riscos de dificuldades psicossociais do indivíduo ao longo da sua vida - tais como dificuldade de aprendizagem, criminalidade, violência, drogadição, entre outros - acreditando favorecer a inclusão social. Seus objetivos são: a) contribuir para a incorporação de conhecimentos, práticas e hábitos adequados nos cuidados às gestantes e crianças até três anos, tanto na cultura familiar como nas estruturas de serviços; b) explorar e desenvolver programas e estratégias eficazes para difundir de forma ampla para gestantes, famílias e cuidadores a importância do vínculo afetivo no desenvolvimento e estruturação neurobiológica das crianças até três anos de idade. A principal estratégia do PDI é a disseminação da informação e conhecimento sobre desenvolvimento infantil (FMCSV, 2008).
Como indicado anteriormente, esse programa foi concebido tendo como meta a geração e disseminação da informação e conhecimento sobre desenvolvimento infantil em sua diversidade temática. Esta decisão resultou, segundo a Fundação, da constatação de que há informação e conhecimento já devidamente comprovados pela ciência e que não estão suficientemente disseminados para os adultos responsáveis pelo cuidado e atendimento da população infantil de zero a três anos. Estes conhecimentos se originam em diferentes áreas, tais como: Neurociência, Medicina, Psicologia, Pedagogia e Nutrição. Ainda em 2008, em parceria com o governo do estado de São Paulo, a Fundação lança o “Programa Primeiríssima Infância”, posteriormente denominado “São Paulo pela Primeiríssima Infância” na ocasião da realização do II Workshop Internacional de Desenvolvimento Infantil: “Avaliação de programas de Desenvolvimento Infantil”.
O programa “São Paulo pela Primeiríssima Infância”, de acordo com o site da Fundação, “é uma iniciativa do Governo do Estado de São Paulo em parceria com a Fundação, municípios paulistas e ONGs, para promover o desenvolvimento integral de crianças, do nascimento aos três anos” (FMCSV, 2013). Ainda segundo o descrito pela Fundação, esse programa:
impulsiona o planejamento e a articulação entre os setores das gestões municipal e regional, junto com o terceiro setor para qualificar o atendimento e os cuidados oferecidos às gestantes e às crianças nos serviços de Saúde, Educação Infantil e Desenvolvimento Social. Uma mobilização que envolve toda a sociedade. Porque o futuro começa hoje (FMCSV, 2013).
Interessante observar que nos documentos produzidos no I Workshop havia um objetivo de discutir conceitos-chave, discutir as novas relações defendidas entre Estado, a inciativa privada e a sociedade civil como é possível observar em sua publicação originada desse evento. No II Workshop o discurso e a própria organização já não focam mais nas discussões conceituais, mas sim nas discussões de iniciativas e projetos comunitários que podem ser desenvolvidos, sendo, inclusive, discutidos modos de avaliar o desenvolvimento infantil para verificação da eficiência do projeto e/ou programa. Dito de outro modo, se no I Workshop a busca era disseminar e consolidar conceitos, no II Workshop o objetivo já era a governança de projetos municipais, evidenciando, assim, não a modificação de ação da Fundação, mas sua ampliação. Esses workshops continuam sendo realizados anualmente, e em 2010, pela primeira vez, são abertos ao público em geral.
No ano seguinte, em 2011, a Fundação cria o “Núcleo de Ciência pela Infância” que, seguindo os objetivos da FMCSV, tem por missão “colocar em prática ações para tornar o conhecimento científico acessível à sociedade” (FMCSV, 2013). Entende ainda que esses conhecimentos devem fornecer subsídios para políticas e práticas voltadas para a infância. Esse objetivo é corroborado pela concepção do Núcleo de que o pleno desenvolvimento infantil ajuda na construção de “melhor cenário socioeconômico para o país”. Esse Núcleo possui parceria com o: Center on the Developing Child at Harvard University; David Rockefeller Center for Latin American Studies (DRCLAS) at Harvard University; Fundação Bernard Van Leer; Instituto Insper e a Faculdade de Medicina da USP.
Dentre as prioridades do Núcleo de Ciência pela Infância (NCPI), são destacadas: a) mobilização das lideranças; b) sensibilização da sociedade; c) fortalecer o cuidado com a crianças e d) qualificar a educação infantil. Dentre as ações deste núcleo, podemos ressaltar os cursos do “Programa de Liderança Executiva” a partir do qual, parlamentares, que frequentaram a 1ª edição, criaram o “Marco Legal da Primeira Infância”, projeto de lei que foi apresentado pelo então deputado Osmar Terra, que após o golpe parlamentar assumiu a pasta do Ministério do Desenvolvimento Social, e no atual governo federal (2013 - 2019) foi empossado como Ministro da Cidadania.
Ainda em 2011, é realizado o 1º Simpósio Internacional de desenvolvimento da Primeira Infância, que é uma das frentes de atuação do NCPI. Esses simpósios possuem transmissão online, e desde 2015, adotaram o chamado “simpósios satélites”, que são transmissões simultâneas, organizadas de maneiras independentes por instituição que têm interesse no tema. Com essa estratégia, segundo dados da Fundação, as setes edições já realizadas, atingiram 2.400 participantes presenciais, 11 mil online e aproximadamente 2.700 participantes nos simpósios satélites. No total, esses simpósios alcançaram mais de 6 mil pessoas.
A ampliação de atuação da Fundação também é observada via sua rede, de modo que, em 2013, uma nova parceria é firmada, agora com a Fundação Grand Challenges Canada, de modo especial com seu Programa “Saving Brains”. Além desse alcance e da rede nacional e internacional que a Fundação compõe, sua ação no âmbito da elaboração das políticas públicas, conforme já indicamos acima, também é perceptível. Dessa forma, em 2015, o Programa São Paulo pela Primeiríssima Infância é transformado em Política Pública no estado. Outra grande ação de impacto, segundo a Fundação, foi o documentário “O começo da vida”, o qual impulsionou, inclusive, um movimento que hoje disponibiliza diferentes séries, textos, infográficos, spot (com “dicas” sobre desenvolvimento infantil) e bibliografia.
Quando nos atemos aos sujeitos que compõem a FMCSV, em especial, o que chamamos dos sujeitos referências nas redes, observamos a circulação desses sujeitos em diferentes fundações e/ou instituições e atualmente em cargos públicos, como por exemplo, Eduardo Queiroz, que foi assessor especial do Secretário de Educação do Estado de São Paulo, entre 2009 e 2011 e presidente da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, entre 2011 e 2018, quando deixa esse cargo para assumir, em 2019, no atual governo federal, o cargo de Secretário de Articulação e Parcerias, do Ministério da Cidadania que, como escrevemos acima, é hoje chefiado por Osmar Terra.
Atualmente, a Fundação possui, para cada uma de suas prioridades, frentes de trabalho ou projetos-chave. Desse modo, apresenta a seguinte organização: a) Mobilização das lideranças: Núcleo de Ciência pela Infância e o “Programa Avançado de Implementação de Políticas Públicas de Desenvolvimento da Primeira Infância”; b)Sensibilização da sociedade: várias iniciativas, com maior destaque para o documentário “O começo da vida”; c) Fortalecer o cuidado com a criança: projeto “Saving brains” e o Fundo de Inovação de Desenvolvimento da Primeira Infância; d) Qualificar a Educação Infantil: “Mapear parâmetros de qualidade para a educação infantil”; buscar políticas educacionais inspiradoras (que são disponibilizadas em publicações no site); colaborar com a implementação da BNCC e pesquisas com as famílias brasileiras sobre demanda na Educação Infantil.
Todos esses programas, projetos e ações são pensados, estruturados por profissionais com qualificação em diferentes áreas e países, o que nos parece ir ao encontro do que Apple (2003) denominou das classes da nova direita, a qual é composta por especialistas e profissionais qualificados, mas que defendem a lógica da necessidade de a sociedade civil tomar para si o papel que seria de responsabilidade do Estado. Nesse sentido, se aproximam de uma das premissas da Terceira Via, a qual tanto identifica a sociedade civil como uma “nova” arena das ações sociais, quanto indica um determinado conjunto de atores muito diferente dos que atuavam tradicionalmente nessa esfera, como os sindicatos e partidos políticos, por exemplo, conforme indicado no início deste texto. Mas ainda, segundo Martins (2008), o que efetivamente configura uma nova definição ao conceito de sociedade civil, é o fato de que
De um lado, apresenta-se como independente, como neutra, como não-filiada ético-política e ideologicamente com qualquer projeto societário até então experienciado; de outro, procura se identificar como não vinculada com o Estado e nem com o mercado (Martins, 2008, p. 86).
Como já destacamos anteriormente, essa suposta neutralidade da sociedade civil nega a relação entre Estado, sociedade civil e economia, ao mesmo tempo em que evidencia um movimento transnacional em relação às políticas educacionais e à compreensão de democracia. E, é nesse cenário que emerge fortemente o “empreendedorismo social e filantrópico”, como denomina Ball (2014), evidenciando muito mais um avanço de interesses individuais a despeito do bem coletivo e do bem-estar comum.
4 NEM TUDO QUE RELUZ É OURO: A EDUCAÇÃO INFANTIL E O ENCANTAMENTO COM AS PARCERIAS PÚBLICAS-PRIVADAS
É possível observar que nos últimos anos houve um incremento na relação público-privada no provimento da Educação Infantil, como pesquisas anteriores do Núcleo de Pesquisa em Educação, Política e Subjetividades - NEPS, também evidenciam; bem como o surgimento de novos atores na proposição das políticas públicas, como indicam as pesquisas de Campos (2008) e Rosemberg (2002). Seguindo essa perspectiva, observamos que a relação público-privada é pautada a partir de uma nova concepção de Estado, que dá espaço e prioriza outros atores sociais, através da sociedade civil organizada, em consonância com a “Terceira Via” ou “terceiro setor”, sejam elas Fundações, ONGs, OSCIPs etc. Para Silva (2016, p. 128),
[...] o processo de reforma do Estado da década de 1990, foi difundida pelos “aparelhos privados de hegemonia”, sob o pretexto de que o “Estado estrito” não tinha condições financeiras, nem de gerenciamento, para assegurar a implementação dos direitos sociais. Fundamentado neste entendimento, o lema pró fortalecimento do “Estado estrito” passou a ser: o que não pudesse ser imediatamente privatizado, deveria ser publicizado mediante o estabelecimento de parcerias entre o “Estado estrito” e o “terceiro setor”.
Além da modificação do papel do Estado no âmbito de provimento, as reformas neoliberais também implicaram em uma reforma no modo de execução das políticas públicas, de modo que o modelo indicado foi o gerencial, assim, como destaca Cóssio (2018, p. 68),
A reforma gerencial visa a adotar no setor público o modelo organizacional e de gestão utilizado pelas grandes corporações da iniciativa privada, ou seja, busca inserir na raiz do sistema público conceitos e práticas voltados a eficiência, eficácia, competitividade, administração por objetivos, meritocracia e demais concepções oriundas de um meio em que a finalidade é a obtenção de lucro e que, portanto, dispensa pouca atenção para as finalidades sociais.
É seguindo essas perspectivas que emerge o movimento de governança pública, a partir do qual a sociedade civil tanto assume os serviços entendidos como não sendo “exclusivos” do Estado como também legitima um determinado modelo das ações realizadas, via a ideia de transparência e controle social; bem como também consolidam novas concepções e/ou ressignificam conceitos, ou ainda fortalecem um único modelo de sociabilidade.
No caso específico da Educação Infantil, as análises dos projetos, das parcerias, das publicações difundidas pela FMCSV pautam-se fortemente na ideia de desenvolvimento infantil com base na Neuropsicologia centrada no conceito de estímulos certos no momento certo. Não obstante, nos parece que essas indicações consideram que as contradições sociais, bem como a pobreza, não são problemas estruturais decorrentes do próprio processo de produção. Assim, defende que o baixo nível de desenvolvimento de uma criança decorre da falta de informação de suas famílias e as lamentáveis situações estruturais físicas e pedagógicas de algumas instituições decorrem da inabilidade gerencial dos gestores e/ou de suas lideranças.
Além disso, esses pressupostos defendidos pela Terceira Via, operacionalizados, sob nossa perspectiva, pela Fundação, deslocam os problemas sociais e econômicos da arena das políticas, das desigualdades sociais estruturais e difundem a compreensão de que estes podem ser resolvidos com uma forte mobilização social, configurando aos movimentos sociais o lugar de “parceiros” do Estado. De acordo com Nogueira (2000, p. 117), outra consequência dessa “despolitização da política” é que “demoniza-se o espaço político para a ele atribuir toda a culpa pelos pecados que maculariam a natureza virtuosa da sociedade civil, vítima indefesa e permanentemente prejudicada pela vilania estatal”.
Essas observações nos remetem para a necessidade de se pensar também o conceito de Estado, haja vista que não é possível pensar e/ou definir sociedade civil sem considerar sua relação com o Estado. Dito de outro modo, entendemos como um equívoco denominar de sociedade civil a perspectiva defendida pela Terceira Via, pois consideramos que essa definição é idealista, a-histórica e não dialética, se distanciando muito da definição de Gramsci, que não compreende a sociedade civil como isolada da estrutura social e do Estado. Sendo sempre importante lembrar que nas discussões de Gramsci, a sociedade civil, possui um “claro compromisso ético-político e ideológico, negado por aqueles que concebem a ‘sociedade civil’ como um ‘terceiro setor’, fundamentando-se recorrentemente nas teses da ‘Terceira via’” (Martins, 2008, p. 97).
A partir disso, consideramos que presença crescente de instituições privadas na arena de políticas públicas, e nesse caso, para Educação Infantil não pode ser compreendida apenas como um novo elemento no cenário atual, mas precisa ser vista como o fortalecimento de um novo modo de gestão pública que induz e defende um novo "tipo" de sociedade civil e traz possíveis interferências na gestão democrática da Educação Infantil.
Entendemos ainda que, entre outros pressupostos, a Terceira Via defende um novo modelo social baseado no empreendedorismo, no investimento em tecnologia, no capital humano e na flexibilidade no mercado de trabalho. Seguindo essa lógica, o Ilab, programa do Núcleo de Ciência pela Infância, realiza a governança de programas e/ou projetos que forma selecionados via seus editais. De acordo com a descrição da página desse laboratório, o objetivo é mobilizar
pesquisadores, gestores e profissionais do setor social, empresarial e governamental para formarem equipes multidisciplinares e cocriarem soluções, com base no conhecimento científico, para as necessidades não atendidas de crianças na primeira infância enfrentando adversidade e suas famílias (FMCSV, 2013).
Ainda segundo a Fundação, essas soluções devem ser pensadas para “melhorar o ambiente onde vivem as crianças e ampliar as capacidades dos adultos de referência (pais, responsáveis e educadores) para garantir o pleno desenvolvimento infantil” (FMCSV, 2013). Importante ainda informar que esse programa integra a plataforma de Pesquisa & Desenvolvimento do Center on the Developing Child (HCDC) da Universidade de Harvard chamadaFrontiers of Innovation (FOI).
As repercussões dessas concepções, qual seja, que um modelo ideal de educar as crianças para seu pleno desenvolvimento, independentemente das condições objetivas da infância e das famílias, desconsiderando as frágeis políticas sociais, acaba por afastar as instituições sociais de sua prerrogativa inicial, isto é, de ser um modo de organização e pressão social, passando essas a serem organizadas sob nova lógica, a qual contribuiu para “uma diluição importante do significado do engajamento social e para embaralhar a percepção da real dimensão da luta que se travava” (Fontes, 2006, p. 234).
Nesse processo, a sociedade civil é definida como a grande responsável pela consolidação de direitos e da democracia, correndo-se o risco de obscurecer, ainda conforme indica Fontes (2006) a própria composição de classes sociais existentes no interior da sociedade civil. Nesse contexto, observamos, nas últimas décadas, a emergência de “novos atores sociais” cujas lutas podem ser muito mais identificadas como sendo unilaterais, afastando-se na prática das preocupações propriamente políticas, no sentido de fundar novas concepções de mundo ou projetos societários.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, procuramos discutir a atuação da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV) compreendendo-a como um novo ator social que se apresenta a partir de uma nova definição do papel do Estado. Em outras palavras, procuramos discutir como a própria forma de organização desta Fundação aponta para um modo de consolidar tanto um tipo de relação público-privada quanto de reforçar um novo tipo de gestão pública.
Conforme indicamos no trabalho, entendemos que os pressupostos que fundamentam à atuação da Fundação vão ao encontro do projeto da Terceira Via, o qual, por sua vez, defende a urgência em se reformar o Estado e as formas de governo, sendo, nesse processo, imprescindível a aliança entre o público e o privado. Não obstante, entendemos de modo diferente esse processo, e compreendemos que, quando uma Fundação privada assume função de pensar e /ou induzir políticas públicas, ela mais afasta o Estado do seu dever social, do que efetivamente o pressiona para ampliar suas políticas sociais (Campos, 2018).
Importante também lembrar que as reformas na gestão do Estado também contribuíram para as alterações do setor privado, de modo que o associativismo empresarial ganhou novos impulsos e atualmente observamos suas ações sendo articuladas a partir de grandes redes transnacionais. Assim, por meio de distintas estratégias, as associações privadas participam na definição e na implementação de políticas educacionais, e embora essas empresas/fundações não visem lucro direto,
elas agem de forma indireta, ajudando as empresas a obtê-lo, por meio da divulgação de sua imagem. E, além do aspecto econômico, as organizações ligadas aos empresários estão mobilizando um conhecimento que é repassado por meio dos discursos e das representações sobre educação em diferentes espaços, a exemplo da mídia, bem como pelo material produzido para as escolas. Pelas diversas funções que estabelecem com os interesses do capital, tais organizações são aqui denominadas “organizações empresariais”, com o intuito de diferenciá-las daquelas de caráter social (Luz, 2011, p. 441).
Dito de outro modo, ainda segundo a autora,
As organizações empresariais tornaram-se as principais catalisadoras desses benefícios, pois são elas que fazem com que o empresariado se apresente com maior credibilidade na esfera pública e que esses benefícios se transformem em lucro para os empresários. As organizações, por si mesmas, não têm objetivos de lucro e são, por definição e na prática, “entidades privadas sem fins lucrativos”. Porém, elas capitalizam dinheiro para o empresariado, convencendo-o a fazer marketing, já que assim se vende mais; elas ajudam a dar maior legitimidade ao empresariado, quando realizam ações com seu apoio; elas ajudam a fazer repercutir na sociedade o apoio empresarial, quando realizam ações educacionais, canalizando problemas muito localizados como, por exemplo, a formação da mão de obra (Luz, 2011, p. 443).
Para além desses aspectos, essa pareceria entre o público e o privado acaba oportunizando, como procuramos discutir ao longo do texto, a interferência nas políticas educacionais, se não de modo direto, mas via disseminação de conceitos, concepções e atuação, ou ainda, por meio de subsídios teóricos como faz a Fundação, via pesquisas, simpósio e seminários que acabam por estabelecer padrões de socialização educacional e familiar. Isto é, no atual contexto estamos em disputa também em relação ao projeto de sociedade, por isso, as questões ligadas ao currículo ganharam tanta evidência, saindo das discussões do âmbito educacional, e sendo conduzidas e monitoradas por essas associações empresariais.
Essas organizações são o que Ball (2014) denominou de “nova filantropia”, cenário em que os filantropos, segundo o autor, desejam verificar os impactos de seus investimentos, de forma mensurável. Além disso, como também observa Ball (2014, p. 64), “as tecnologias neoliberais trabalham em nós para produzir um corpo docente e discente ‘dócil e produtivo’, e professores e alunos responsáveis e empreendedores”. No caso da Educação Infantil, na produção de crianças que foram reduzidas a cérebro. Desse modo, segundo a Fundação é “importante Proteger os Cérebros, Não Apenas Estimular as Mentes”3.
Ao finalizar essas reflexões, que possuem como objetivo muito mais trazer elementos para o diálogo do que trazer conclusões, é necessário destacar que consideramos importantes os avanços realizados pela neurociência, suas contribuições para a compreensão do desenvolvimento humano, que são grandes subsídios para se pensar práticas educativas, políticas para educação e formação de professores. No entanto, nossas observações são realizadas a partir da ausência, nos documentos estudados, das questões conjunturais, dos precipícios sociais entre as famílias brasileiras e das condições de trabalho docente e infraestruturais de muitas instituições. Como diz Fontes (2006), acabam diluindo o significado do engajamento social para embaralhar a percepção da real dimensão da luta que se tratava. Com isso, “a própria democracia seguia idealizada, como o reino de uma sociedade civil filantrópica e cosmopolita, para a qual todos colaborariam, sem conflitos de classes sociais” (Fontes, 2006, p. 349).