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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub 26-Fev-2024

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e51117 

Artigos

Educação Física na Educação Infantil na rede pública de ensino da Grande Vitória/ES:análise das propostas curriculares

Physical Education in Child Education in the public teaching network of Grande Vitória/ES:analysis of curricular proposals

Educación Física en Educación Infantil en la red de enseñanza pública de Grande Vitória/ES:análisis de propuestas curriculares

Ramon Matheus dos Santos e Silvai 
http://orcid.org/0000-0002-9713-0391

Ueberson Ribeiro Almeidaii 
http://orcid.org/0000-0001-9255-4542

Maria Celeste Rochaiii 
http://orcid.org/0000-0002-2572-9098

Alessandra Galve Gereziv 
http://orcid.org/0000-0003-2075-3555

i Graduado em Educação Física. Mestrando em Psicologia Institucional na Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: rb-ramon@hotmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-9713-0391.

ii Doutor em Educação. Docente, Centro de Educação Física e Desportos, Universidade Federal do Espírito Santo, Ufes, Brasil. E-mail: uebersonribeiro@hotmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-9255-4542.

iii Doutora em Educação Física. Docente, Secretaria Municipal de Educação de Vitória, ES, Brasil. E-mail: celesteefi@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-2572-9098.

iv Doutora em Educação Física. Bolsista de pós-doutorado - Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo / Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: alessandragerez@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-2075-3555.


Resumo

Este estudo mapeia e analisa as propostas curriculares para a educação infantil em quatro municípios da Grande Vitória/ES. Tem como objetivo compreender os modos pelos quais a Educação Física é interpretada e afirmada nesses documentos. Metodologicamente, a investigação foi guiada pela análise documental. Como resultados, identifica que, além de compartilharem concepções de infância e de educação infantil dos referenciais curriculares de âmbito nacional, os documentos das redes municipais pesquisadas elaboram sínteses e tematizações singulares acerca da Educação Física como componente curricular. Apesar de representarem um avanço no debate sobre o papel da Educação Física na educação infantil, quando comparados com os documentos curriculares nacionais, não há um consenso sobre a forma como isso deve acontecer nas propostas analisadas.

Palavras-chave: educação infantil; propostas curriculares; educação física; redes municipais de ensino

Abstract

This study maps and analyzes the curriculum proposals for early childhood education in four municipalities in Greater Vitória/ES. It aims to understand how Physical Education is interpreted and affirmed in these documents. Methodologically, the investigation was guided by documentary analysis. As a result, it identifies that, in addition to sharing conceptions of childhood and early childhood education of nationwide curricular references, the documents of the researched municipal networks elaborate syntheses and unique themes about Physical Education as a curricular component. Although they represent an advance in the debate on the role of Physical Education in early childhood education, when compared to national curriculum documents, there is no consensus on how this should happen in the analyzed proposals.

Keywords: child education; curricular proposal; physical education; municipal education networks

Resumen

Este estudio mapea y analiza las propuestas curriculares para la educación infantil en cuatro municipios de Gran Vitória/ES. Su objetivo es comprender las formas que la Educación Física se interpreta y afirma en estos documentos. Metodológicamente, la investigación se guió por el análisis documental. Como resultado, identifica que, además de compartir concepciones de educación infantil y primera infancia de referencias curriculares a nivel nacional, los documentos de las redes municipales investigadas elaboran síntesis y temáticas singulares sobre la Educación Física como componente curricular. A pesar de representar un avance en el debate sobre el papel de la Educación Física en la educación infantil, al compararlo con los documentos curriculares nacionales, no existe consenso sobre cómo debería ocurrir en las propuestas analizadas.

Palabras clave: educación infantil; propuestas curriculares; educación física; redes de educación municipal

1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988, ao reconhecer a criança como um sujeito de direitos, potencializa a elaboração de políticas públicas e algumas legislações voltadas para a infância, principalmente no campo educacional. Nesse contexto, destacamos a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) nº. 9.394 de 1996, que estabelece a educação infantil como primeira etapa da educação básica e passa a ser entendida como a referência legal para a formulação de diversas propostas/orientações curriculares e políticas para a educação da infância. Quaranta, Franco e Betti (2016) chamam a atenção para o fato de que o marco dessa legislação significou para a educação infantil deixar um lugar de abandono e configurar-se como um segmento da educação formal do qual as crianças passam a ter direito ao acesso.

Entretanto, é importante considerar que os avanços obtidos pela educação infantil no final do século XX e sua consolidação prática no século XXI colocam novos desafios a serem equacionados. Um exemplo disso é a intensificação do debate em torno da presença da Educação Física na educação infantil (Ayoub, 2001). Com a incorporação da educação infantil como primeira etapa da educação básica, a Educação Física, pelo menos nos termos da LDB nº. 9394/96, passou a integrar o currículo desse segmento de ensino, uma vez que é componente curricular obrigatório da educação básica.

Contudo, a discussão sobre a presença de professores(as) de Educação Física atuando na educação infantil não encontra unanimidade no debate acadêmico (Ayoub, 2001; Cavalaro; Muller, 2009; Rocha, 2011; Quaranta; Franco; Betti, 2016). A esse respeito, Ayoub (2001, p. 53) afirma que a construção de uma educação pública e democrática, “[...] da qual a educação física seja parte integrante, não depende exclusivamente de leis, mas também, e fundamentalmente, de políticas e ações governamentais que garantam as condições objetivas para a sua concretização”.

Diante disso, consideramos que a atenção destinada às propostas curriculares oficiais que orientam a educação infantil e as relações que estabelecem com a Educação Física é de grande relevância para um maior amadurecimento dos entendimentos que têm sido feitos acerca das contribuições desse componente curricular e, consequentemente, da atuação de professores e professoras de Educação Física nessa etapa da educação. Anjos (2009) observa que a presença da Educação Física na educação infantil já passou por diversas interpretações que estão diretamente ligadas à própria história desse segmento educacional. Logo, as concepções políticas e sociais que interferem nos modos de pensar o atendimento voltado para as crianças também influenciam as maneiras de compreender a Educação Física destinada aos pequenos.

Os dilemas e tensões provocados pelo debate do “lugar” da Educação Física na educação infantil têm produzido visões antagônicas acerca desse tema. Uma das grandes questões está na presença ou não de um(a) professor(a) especialista em um ambiente em que a organização curricular não está definida por disciplinas. Nesse sentido, posições contrárias à presença de professores(as) especialistas argumentam que isso significaria a fragmentação do conhecimento e a escolarização das creches e pré-escolas; na outra ponta, especialistas defendem que essa experiência pode se mostrar enriquecedora, quando feita de forma articulada, e apontam que a fragmentação só acontece quando há hierarquização do trabalho (Ayoub, 2001; Cavalaro; Muller, 2008; Quaranta; Franco; Betti, 2016).

Se a primeira etapa da educação básica (Educação Física é componente curricular desse segmento) é marcada por diferentes concepções e disputas, as políticas educacionais podem ser entendidas como uma das formas de mediar os conflitos e estabelecer acordos entre diferentes interesses. Por outro lado, tais políticas expressas em documentos curriculares oficiais significam a materialização de uma tensa relação de forças, assim as prescrições e orientações neles contidas podem se institucionalizar como verdades e modo condutor de produção e manejo da realidade pelos docentes e demais trabalhadores das escolas (Medeiros, 2018).

As propostas curriculares municipais encontram-se mais próximas das realidades onde a educação se desenvolve e, nesse sentido, espera-se que sejam elaboradas levando em consideração demandas e características locais. Além disso, as propostas curriculares municipais sintetizam debates conceituais, referenciais e diretrizes curriculares nacionais, ordenamentos legais e, geralmente, conhecê-las é tarefa básica (por vezes obrigatória) aos docentes que prestam concursos públicos e/ou são contratados pelo município.

No caso das propostas curriculares municipais para a educação infantil, os aparatos legais fazem com que se tornem uma verdade-política a partir do momento em que são oficializados pelo Poder Público e pelos diferentes atores que podem participar de sua elaboração. É nessa perspectiva que os modos pelos quais a Educação Física é compreendida e inserida (ou não) em documentos oficiais que regulam a educação infantil necessitam ser analisados.

Nesse sentido, este estudo buscou mapear e analisar as propostas/orientações curriculares para a educação infantil em quatro municípios da Grande Vitória/ES1 (Cariacica, Serra, Vila Velha e Vitória). Para o espaço deste artigo, analisaremos as propostas curriculares para educação infantil dos municípios supracitados a partir de três eixos de discussão: a) concepções de infância contidas nos documentos; b) concepção de educação infantil; c) e os entendimentos acerca da presença da Educação Física.

2 METODOLOGIA

O estudo foi metodologicamente guiado pela “análise documental” (Rago, 1995) da presença da Educação Física nos documentos orientadores da educação infantil das Redes Públicas de Ensino dos municípios da Grande Vitória/ES (Cariacica, Serra, Vila Velha e Vitória). Dessa forma, realizamos um levantamento das propostas curriculares prescritas que orientam a educação infantil no âmbito dos municípios pesquisados. Para isso, visitamos os sites das redes municipais, bem como entramos em contato com gestores das Secretarias de Educação da Grande Vitória/ES por meio de telefone, e-mail e protocolização de ofício.

Os documentos curriculares municipais levantados foram: em Vitória, a Proposta Curricular “Educação Infantil no Município de Vitória: um novo olhar” (2006); em Vila Velha, a “Proposta Pedagógica da Educação Infantil do Município de Vila Velha: desvelando histórias... produzindo saberes” (2008); no município de Serra, o documento é a “Orientação Curricular de Educação Infantil e Educação Fundamental” (2008); por fim, em Cariacica, as “Diretrizes Curriculares da Educação Infantil de Cariacica: o entrelaçado da teoria e muitas práticas” (2016).

Após o mapeamento, fizemos leituras exploratórias, analíticas e de comparação entre os documentos. A análise de conteúdo (Bardin, 2005) foi a técnica privilegiada para a organização e codificação dos dados. O primeiro movimento foi uma investigação geral dos documentos, objetivando verificar de onde partem suas perspectivas teóricas e estruturais, para assim categorizarmos os conteúdos referentes às temáticas presentes. No segundo momento, buscamos cruzar os dados dos documentos agrupando os conteúdos por eixos de análise, por meio dos quais foi possível perceber e articular as continuidades e rupturas que nos auxiliaram na compreensão de que as prescrições e orientações curriculares neles contidas não se dão de maneira natural, mas surgem a partir da disputa de poder num campo de forças (Rago, 1995).

A partir da leitura de todos os documentos levantados, fizemos uma categorização dos dados a fim de estabelecer os pontos comuns e diferenças entre eles. Dessa forma, as categorias de análises privilegiadas foram: concepções de infância, concepções de educação infantil e o modo como a Educação Física é compreendida nos documentos.

Ao adotarmos, metodologicamente, a “análise documental” como uma investigação do processo histórico de institucionalização de documentos a partir dos discursos ditos e não ditos, buscamos analisar o processo de efetivação da Educação Física na educação infantil por meio da interpretação das orientações teóricas e curriculares que constituíram as perspectivas legais das propostas curriculares municipais da Grande Vitória (Rago, 1995).

3 A EDUCAÇÃO INFANTIL NAS PROPOSTAS CURRICULARES NA REDE PÚBLICA DE ENSINO DA GRANDE VITÓRIA/ES: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES

O cenário nos municípios da Grande Vitória/ES mostra que as elaborações de propostas curriculares para a educação infantil concentraram-se em um período de 2006 a 2016. Em Vitória, as orientações curriculares para a primeira etapa da educação básica foram realizadas por meio de fóruns públicos com todos os segmentos que compõem o cotidiano da educação das crianças (professoras, merendeiras, vigilantes, pais e responsáveis pelas crianças e as próprias crianças) para estabelecer as demandas que seriam ou não contempladas nos documentos (Vitória, 2006).

Em Vila Velha, a realização de fóruns também foi a base para a definição de uma perspectiva teórica e metodológica que se pautou em uma concepção histórico-cultural (Vigostky, 1991, 1993, 2000; Duarte, 2001) e guiou os eixos de reflexão que se voltaram para debater as concepções de criança, educação infantil e participação democrática, além da escolha dos temas que seriam tratados como prioridades, entre eles, a Educação Física (Vila Velha, 2008).

Diferente desses dois exemplos, o documento do município de Serra não contou com uma participação tão ampla, concentrando-se na formação de uma equipe sistematizadora composta por docentes da rede municipal que procuraram estabelecer uma articulação entre a educação infantil e os anos iniciais do ensino fundamental a partir de uma perspectiva histórico-social (Serra, 2008). Em Cariacica, a construção das diretrizes curriculares também ficou restrita a um grupo de trabalho formado para esse fim, mas que contou com representação de todas as escolas (Cariacica, 2016).

Diante das nossas primeiras leituras e aproximações com os documentos analisados, elaboramos um quadro (Quadro 1) com alguns elementos que consideramos importantes e que auxiliam, de modo geral, a compreensão dos documentos analisados. Importa dizer que nossa intenção não é enquadrar rigidamente as propostas curriculares em classificações totalizantes, pois sabemos que elas são resultantes de disputas político-epistemológicas travadas pelos diferentes atores envolvidos no processo e explicitam as tensões comuns e necessárias das lutas no campo democrático. Nosso objetivo foi, portanto, captar tendências, contradições e características que ajudam a compreender os caminhos reflexivos adotados pelo município e a complexa trama que envolve a produção das políticas curriculares na esfera macrossocial.

A respeito da elaboração desse quadro-síntese, cabe ainda destacar que, ao analisarmos os referidos documentos, identificamos que as propostas curriculares dos municípios de Vitória, Vila Velha e Serra foram coordenadas por um(a) mesmo(a) consultor(a)2. No entanto, é possível identificar inúmeras nuanças e diferenças entre os documentos, indicando que o processo de produção das propostas curriculares foi composto por especificidades políticas, institucionais e contextuais de cada município.

Quadro 1 Síntese das propostas curriculares dos municípios analisados 

Propostas curriculares Categorias
Perspectiva Teórico-Metodológica Forma de elaboração do documento Concepção de infância Orientações referentes à Educação Física na proposta curricular Compreensão acerca da Educação Física na ed. infantil
Vitória (2006) Não explicita claramente, mas dialoga com elementos da Sociologia da Infância e também com a perspectiva Histórico-Crítica Fóruns públicos com participação de todos os segmentos que participam do cotidiano dos Centros de Educação Infantil Criança como sujeito de direitos Sim Componente curricular que visa às diferentes práticas corporais da cultura corporal de movimento
Vila Velha (2008) Perspectiva Histórico-Cultural Fóruns públicos com participação de todos os segmentos que participam dos Centros de Educação Infantil Criança como sujeito de direitos Sim Educação Física visa a ampliar o universo da cultura e do trato corpóreo a partir do contato com diferentes formas de expressão e linguagem corporal
Serra (2008) Perspectiva Histórico-Social Equipe de representantes de docentes da rede Não explicita. Trata a categoria “infância” de modo homogêneo Sim Cultura corporal de movimento
Cariacica (2016) Não explicita Equipe de representantes de docentes da rede Criança como sujeito de direitos Não Adota “Corpo e Movimento”, com base no RCNEI (1998)

Fonte: Elaboração própria.

No que diz respeito às opções teórico-metodológicas, importa dizer que, nos municípios que não as explicitam claramente, identificamos nos documentos alguns indicativos de diálogos com algumas perspectivas. Nesse caso, podemos citar o exemplo do município de Vitória que, apesar de fundamentar a concepção de infância na noção de “criança como sujeitos de direitos” desenvolvida pela Sociologia da Infância, particularmente, ao discorrer sobre o Projeto Político-Pedagógico dos CMEIs, questiona se eles tomam a perspectiva histórico-crítica como fundamentação, afirmando a ação humana e, com efeito, o trabalho docente como práxis.

Ressaltamos, também, o modo como as propostas curriculares foi elaborado pelos municípios de Vitória e Vila Velha. Estes, de forma diferente dos municípios de Serra e Cariacica, elaboraram fóruns públicos com todos os segmentos que participam do cotidiano da educação infantil (gestores, universidade, trabalhadores dos CMEIs, representantes de pais, representação das crianças, movimentos sociais etc.). Em uma aposta de lateralização das relações de trabalho e de democratização da educação, Vitória e Vila Velha inauguraram um modo importante de inclusão e participação democrática e pública na elaboração de suas propostas curriculares.

Embora destaquemos os modos como Vitória e Vila Velha geriram a elaboração de suas propostas, é possível afirmar que Serra e Cariacica também, guardadas suas diferenças, operaram o trabalho de elaboração de suas propostas curriculares por meio de construção coletiva e colaborativa em nível da representação e escuta dos docentes de suas redes. As demais categorias compõem nossas análises nos subtópicos a seguir.

3.1 A concepção de infância nas propostas curriculares

Ao falar sobre as concepções acerca das crianças, é necessário considerar que elas são atravessadas por diferentes concepções filosóficas, culturais, políticas e econômicas. Nesse sentido, a forma de conceber a infância se altera de acordo com o período histórico, mas, principalmente, segundo o contexto social. Com isso, as políticas educacionais voltadas para a infância se movimentam de acordo com as diferentes condições societárias e jogos de forças no plano político-epistemológico.

A exemplo disso, o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI, 1998) possui uma concepção de infância baseada na Psicologia do Desenvolvimento, a qual transita entre os pensamentos de Piaget, Vygokstky e Wallon. Segundo Moreira (2012), esses autores eram predominantes no debate da psicologia do desenvolvimento no contexto brasileiro na década de 90, momento em que o referido documento foi publicado. Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEIs, 2010, 2013) e, posteriormente, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2018), há um entendimento da criança como ator social, em que os pequenos assumem o papel de protagonistas no planejamento curricular.

Para Moreira (2012), esses pressupostos têm uma forte ligação com a Sociologia da Infância, movimento teórico que considera a criança “[...] como sujeito de direitos, sujeitos históricos e cultural, de voz ativa, que precisa ser escutado e respeitado nas suas particularidades” (Moreira, 2012, p. 93).

Os debates e mudanças em torno das concepções de crianças presentes no RCNEI (1998) e nos documentos que o sucederam, sobretudo as DCNEIs (2010,2013), apresentam-se de forma relevante para os processos de elaboração das propostas curriculares da educação infantil nas redes municipais de ensino da Grande Vitória/ES. Isso fica mais explícito quando analisamos as prescrições dos municípios de Vitória, Vila Velha e Cariacica. Principalmente nos dois primeiros, os quais foram publicados antes (2006 e 2008, respectivamente) das DCNEIs, revelando que a demanda por uma visão de criança diferente da contida no RCNEI já estava sendo amadurecida no âmbito acadêmico e nas redes públicas de ensino desses municípios.

O desejo de romper com uma imagem universal de criança que se constitui no âmbito da natureza e, portanto, alheia à cultura e à sociedade, coloca-se como uma articulação singular na maioria das propostas curriculares da educação infantil da Grande Vitória. O município de Vitória - pioneiro na elaboração de políticas curriculares prescritas para a educação infantil no Espírito Santo - percebeu a necessidade de propor um “outro olhar” para a educação na infância e defendeu a ideia de que somente as legislações não eram suficientes para o reconhecimento das crianças como sujeitos de direito; fazia-se indispensável um compromisso ético e político com elas. Segundo o documento,

Reconhecer a criança como sujeito de direitos, como cidadã, é reconhecê-la como artífice na construção de um mundo compartilhado no qual sua ação, sua palavra, sua cultura, sua história são respeitadas e ouvidas como síntese de uma experiência social atravessada pela sua condição de classe, etnia, gênero, idade etc. (Vitória, 2006, p. 31).

Em Vila Velha, as reflexões acerca da forma como o documento deveria expressar as visões de crianças se opõem a uma ideia de “pureza” infantil desarticulada dos contextos sociais mais amplos. Desse modo, o documento da proposta curricular ressalta a importância de considerar as crianças como sujeitos de direitos em contraposição à invisibilidade que as culturas infantis vêm sofrendo historicamente nos ambientes educacionais, em virtude de um adultocentrismo.

Nessa esteira, reconhecer as crianças como sujeitos de direito implica: superar uma ideia única e universal de infância e compreendê-la em sua singularidade; ampliar o seu universo cultural, de forma que possam apropriar-se dos diferentes saberes historicamente construídos; respeitá-las como sujeitos ativos na construção de um mundo compartilhado; interessar-se pelo que pensam e falam sobre suas experiências, emoções, desejos e brincadeiras; encorajá-las a falar, discutir e expor suas ideias; realizar uma experiência pedagógica que tenha como ponto de partida o que as crianças trazem e o que sabem antes mesmo de entrar nas unidades municipais de educação infantil; garantir-lhes um ambiente aconchegante, amplo e seguro, limpo e esteticamente atrativo, de modo a ampliar sua curiosidade e a possibilidade de descoberta e capacidade de expressão (Vila Velha, 2008).

No documento de Cariacica, as ideias da Sociologia da Infância são tomadas como referência para a concepção de criança da proposta curricular. Apesar de identificarmos que essa abordagem teórica também está presente nas orientações de Vila Velha e Vitória, somente em Cariacica ela está classificada de maneira mais explícita. Assim, o documento cita as DCNEIs (2010,2013) para afirmar o entendimento de criança “[...] como sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva” (Cariacica, 2016, p. 17).

Embora estabeleça um consenso com os demais documentos, no que tange ao reconhecimento das crianças como sujeitos de direitos, a orientação curricular de Serra se distancia das outras propostas ao utilizar uma mesma concepção de infância para se referir tanto às crianças que estão na educação infantil quanto às crianças e adolescentes que estão no Ensino Fundamental I e II, desconsiderando, portanto, as especificidades das crianças pequenas.

Além disso, outra particularidade desse documento é sua ligação com os Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil (PNQEIs, 2006), os quais foram criados “[...] para estabelecer uma referência nacional a ser discutida e usada pelos sistemas de ensino na definição de um padrão de qualidade local para as instituições de educação infantil” (Moreira, 2012, p. 88). O documento foi produzido pelo Ministério da Educação (MEC) no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2009), cumprindo determinação legal do Plano Nacional de Educação (PNE).

Nesse documento, que tem como objetivo justificar e definir parâmetros de avaliação das escolas em todo o país, explicita-se a concepção de que as crianças são sujeitos sociais e históricos, bem como cidadãs de direitos e em etapa específica de desenvolvimento (Ferri, 2011). Nesse sentido, o fato de as orientações curriculares do município de Serra adotar uma mesma concepção de infância para todas as crianças da educação básica e, ao mesmo tempo, citar o PNQEI (2006), que vai na direção oposta, parece revelar as confusões interpretativas e contradições presentes na elaboração das orientações curriculares desse município.

Ainda sobre o PNQEI (2006), segundo a análise crítica produzida por Ferri (2011), cabe destacar que esse documento não conceitua claramente o que se entende por “qualidade na Educação Infantil”. Apesar de o documento conceituar “qualidade” como algo diverso, socialmente construído e dependente de constante negociações, não há clareza sobre o seu conteúdo na educação infantil, tampouco há reflexões suficientes de que a “qualidade escolar” não pode ser tomada de modo desconectado da “qualidade social”, ou seja, do contexto macrossocial, político e econômico, sob pena de se tratar a escola como algo abstrato e culpabilizar apenas os(as) docentes, caso a “qualidade” não tenha sido alcançada.

A perspectiva voltada para a concepção de infância presente nos referenciais curriculares nacionais e nas Redes Públicas de Ensino dos Municípios da Grande Vitória/ES nos indica que, entre os anos 90 e o início dos anos 2000, diferentes formas de compreender as crianças embasaram a construção de políticas públicas educacionais voltadas para a educação infantil. Se o RCNEI (1998), primeiro documento direcionado para o trabalho educacional com as crianças após a LBD nº. 9.394/96, indicava uma concepção fundamentada, principalmente, na Psicologia do Desenvolvimento, os documentos nacionais posteriores e a maioria das prescrições curriculares municipais da Grande Vitória/ES demonstram uma ampliação desse ponto de vista com a adoção de um viés a partir da Sociologia da Infância e de uma de suas principais bandeiras político-epistemológicas que advogam acerca da criança como “sujeito de direito”.

3.2 Concepção de educação infantil

Assim como as concepções de infância, as noções em torno do papel da educação das crianças pequenas também são influenciadas por mudanças que ocorrem na sociedade (Rocha, 2011). Segundo Rocha (2011, p. 30), o próprio conceito de educação infantil como direito social pode ser entendido como recente:

[...] somente após a Constituição Federal de 1988 e após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (Lei n°9.394/96), as crianças de zero aos cinco anos de idade adquiriram o direito de serem educadas em creches e pré-escolas na sua comunidade. Entretanto, cabe ressaltar que a aquisição do direito das crianças de serem educadas em creche e pré-escola não é apenas fruto de um reconhecimento tardio desse direito, mas talvez, tenha sido algo ‘forçado’ por mudanças sociais, como a maior incorporação da mulher no mercado de trabalho produtivo. Nessa esteira, estabeleceu-se para o município a responsabilidade constitucional e legal em relação à Educação Infantil, definindo-a como primeira etapa da Educação Básica.

Nesse sentido, a LDB nº. 9.394/96 é vista como um grande marco para a educação infantil, pois é a partir dela que esse segmento educacional passa a ser considerado como primeira etapa da educação básica. Assim, o aspecto assistencialista, em seu objetivo de suprir as carências sociais - visão que embasou fortemente as práticas da educação infantil até os anos 80 -, sofreu (e sofre) muitas críticas no campo educacional, o qual passou a defender a educação na infância como um direito das crianças e não como um “favor” (Khoan, 2004).

Ressaltamos que é a partir da LDB que se iniciam as elaborações das propostas curriculares para a educação infantil tanto em nível nacional quanto municipal. Com isso, os efeitos desse marco legal podem ser percebidos na história da educação infantil nos municípios de Serra e Vila Velha, cujo atendimento às crianças pequenas deixou de ser responsabilidade administrativa das Secretarias de Assistência Social e foi integrado às Secretarias de Educação (Serra, 2008; Vila Velha, 2008).

Com base nesses dados, podemos afirmar que as configurações da educação infantil nos diversos municípios e cidades do país emergem no sentido de equacionar as demandas educacionais postas pela LDB nº. 9.394/96. Como exemplo, destacamos o RCNEI (1998) que, ao apresentar disposições gerais para a educação infantil, tematiza a formação pessoal e social das crianças e elenca os conhecimentos que deveriam fazer parte desse segmento de ensino. Apesar dos avanços que a publicação desse documento representa para a concepção de educação infantil, ele ainda tem limitações ao “[...] equacionar a tensão entre universalismo e regionalismos” (Kramer, 2006, p. 802) bem como desconsidera algumas especificidades da infância. Em relação ao RCNEI, Anjos (2009) também problematiza o fato de que algumas particularidades da educação infantil foram deixadas de lado, proporcionando maior ênfase ao vínculo com o ensino fundamental, o que incorreu no perigo da adoção, por parte dos gestores municipais, de uma “[...] concepção escolarizada e/ou de preparação para as séries iniciais desse nível de ensino” (Anjos, 2009, p. 27).

Temos a mesma percepção que as autoras supracitadas, quando analisamos os entendimentos em torno da educação infantil no documento da Rede Municipal de Serra. Ao traçar os objetivos e estabelecer semelhanças entre as duas etapas de ensino (educação infantil e ensino fundamental), a leitura do documento nos leva à compreensão de que as particularidades do trabalho pedagógico com as crianças pequenas - que estão na educação infantil - e com as crianças maiores das séries iniciais do Ensino Fundamental I são deixadas em segundo plano diante da sobreposição em articular essas duas etapas, concebendo a educação infantil como preparação para o ensino fundamental.

De modo contrário, o documento de Vitória ressalta o reconhecimento da educação infantil nas suas especificidades, como forma de romper com as falsas ideias de igualdade com o ensino fundamental. Contudo, não desconsidera a importância de articulação entre essas duas etapas. Nesse contexto, o documento reitera a educação infantil como primeira etapa da educação básica, cujo objetivo é proporcionar o desenvolvimento integral da criança em complemento da ação da família, bem como possibilitar uma ampliação de suas experiências e conhecimentos (Brasil, 1996). Para os autores do documento de Vila Velha, a reafirmação da educação infantil como primeira etapa da educação básica também foi fundamental para a superação de seu caráter assistencialista.

Ora vista como um lugar de assistência e de segurança devido à inserção da mulher no mercado de trabalho, ora vista como um serviço para amenizar a situação de pobreza e supostas carências familiares, ou mesmo como um espaço privilegiado de aprendizagens, a busca de consenso em torno da função da educação infantil aparecia como um tema desafiador nos diferentes fóruns municipais. Portanto, explicitar questões que promovessem uma compreensão mais ampla e profunda sobre o sentido da educação infantil implicava, inicialmente, romper com uma visão naturalizada e muitas vezes equivocada do trabalho destinado às crianças pequenas (Vila Velha, 2008, p. 38).

Nessa esteira, a concepção de educação infantil do município de Vila Velha é sistematizada como lugar de aprendizagem, de brincadeiras, de construção de sociabilidades e de trocas culturais, no qual o educar e o cuidar são vistos de forma indissociáveis e não mais desenvolvendo práticas hierarquizadas (Vila Velha, 2008). Em Cariacica, a educação infantil também é considerada como um lugar de encontros de diversas práticas e saberes relacionais e educacionais construídas por diferentes autores que compõem diversos contextos socioculturais (Cariacica, 2016).

Desse modo, os documentos analisados, com exceção das orientações curriculares do município de Serra, encaminham-se para um reconhecimento das especificidades da educação infantil tendo suas funções e objetivos fundamentados no acesso à educação e à aprendizagem das mais diversas linguagens como direito das crianças. Assim, observamos uma tentativa de desvincular as noções em torno das atribuições da educação infantil voltada para uma responsabilidade assistencialista e/ou período preparatório para as demais etapas da educação básica.

3.3 A presença da Educação Física nas propostas curriculares municipais

No que diz respeito à presença da Educação Física na educação infantil, destacamos que essa ainda é uma questão complexa. De acordo com Ayoub (2001), a discussão sobre a inserção da Educação Física na educação infantil necessita considerar as questões relativas à legalidade e legitimidade que se evidenciam após a promulgação da LDB nº. 9.394/96. Apesar de a Educação Física ser reconhecida legalmente como componente curricular da educação básica, incluindo aí a própria educação infantil, alguns estudos apontam que sua presença nesse contexto, via professor especialista, pode ser incoerente, uma vez que a organização curricular da educação infantil não é disciplinar3. Além disso, os próprios Referenciais Curriculares Nacionais desse segmento de ensino, como o RCNEI (1998), a DCNEI (2013) e a BNCC (2017), não mencionam o termo Educação Física.

Por outro lado, apesar dessa ausência do termo Educação Física nas propostas curriculares nacionais para a educação infantil, elas apontam o corpo, os gestos, os movimentos e as brincadeiras como aspectos centrais no trabalho pedagógico com as crianças. Ademais, podemos observar que muitas Redes Públicas Municipais de Ensino, como o caso das redes aqui investigadas, já contam com a inserção do profissional de Educação Física nas instituições de educação infantil.

Nesse contexto, evidenciamos que os professores de Educação Física que atuam nessa etapa da educação básica experimentam muitos desafios na estruturação e consolidação de suas práticas. Umas das grandes problemáticas, como já mencionado, está no fato de que a educação infantil não se organiza por meio de disciplinas, mas sim de maneira a garantir às crianças experiências que possibilitem o seu acesso a vários conhecimentos e aprendizagem de diferentes linguagens. As tensões em torno dessa questão são vistas em pesquisas que propõem uma organização “[...] na qual compete à professora ‘generalista’ o desenvolvimento das diversas atividades curriculares. Outros estudos sugerem uma organização mais próxima do modelo escolar e centrada em disciplinas” (Ayoub, 2001, p. 53), fazendo surgir a presença de professores especialistas, como de Educação Física e Artes.

Ao investigarmos sobre a presença da Educação Física nos documentos curriculares da educação infantil das redes públicas de ensino municipais da Grande Vitória/ES, observamos que essas propostas representam avanços, quando comparadas com os documentos curriculares nacionais, pois todos buscam elaborar sínteses e articulações com a Educação Física como componente curricular em suas orientações para a educação infantil. Ora como desafio a ser enfrentado, ora como possibilidade de ampliação das experiências corporais das crianças, a Educação Física está presente nesses documentos curriculares, ainda que tal “presença” ganhe conotações e ênfases distintas nos quatro documentos estudados.

Nas Diretrizes Curriculares de Cariacica, único documento que não contém um tópico específico para a Educação Física, verificamos que essa área não foi contemplada de modo tão evidente nos diálogos de elaboração da proposta. Ao listar os dilemas que ainda seriam necessários enfrentar, os autores dessa diretriz enfatizam que seria preciso “[...] concretizar o projeto de Educação Física [...] para a Educação Infantil investindo na formação dos mesmos para qualificar o atendimento com a concepção de criança defendida na Res. 05/09 do MEC” (Cariacica, 2016, p. 16)4. Como consequência disso e da forte interação com os documentos nacionais, principalmente o RCNEI, a proposta de Cariacica postula um saber intitulado “Corpo e Movimento” como necessário à prática pedagógica.

O trato dado ao corpo e ao movimento é abordado nas suas dimensões de expressividade, equilíbrio e coordenação, privilegiando a dança como conteúdo possível para o trabalho com esse saber (Cariacica, 2016). Dessa forma, o entendimento de movimento humano contido no saber necessário “Corpo e Movimento” vem do eixo de trabalho “Movimento” do RCNEI (1998) que, como alertam Cavalaro e Muller (2009), não faz referência explícita à Educação Física, mas ao “corpo” e ao “movimento”. Nesse sentido, identificamos que há uma contradição entre a concepção de infância contida no documento de Cariacica, centrada na Sociologia da Infância, e o olhar direcionado para os saberes do corpo e do movimento que, no RCNEI (1998), é analisado, predominantemente, pelo viés da Psicologia do Desenvolvimento (Moreira, 2012).

As orientações curriculares do município de Serra mencionam a Educação Física no escopo de um conjunto de áreas do conhecimento que devem estar presentes na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental. Entre as contribuições da área nesses dois níveis de ensino, o documento destaca a possibilidade de as crianças terem contato com as mais diversas formas de movimentos e práticas corporais construídas historicamente por homens e mulheres. Ademais, salienta que a construção das orientações específicas da área contou com a ampla participação dos professores(as) da rede de ensino, cujo enfoque assumido foi o de uma perspectiva de Educação Física sob a ótica da abordagem crítico-superadora, aporte teórico que entende essa disciplina como a responsável por tematizar os elementos da Cultura Corporal (Soares et al., 1992).

Para Moreira (2012), a Cultura Corporal de Movimento (Soares et al., 1992) não abarca todas as especificidades da educação infantil, apesar de ser uma perspectiva de ensino utilizada por muitos professores de Educação Física que atuam na primeira etapa da educação básica. Alinhados a essa visão da autora, ao percorrermos a leitura da parte específica da Educação Física nas orientações pedagógicas da rede municipal de Serra, não encontramos nenhuma indicação direta voltada para a educação infantil, mas somente ao ensino fundamental. Além disso, a sugestão para que as aulas de Educação Física sejam ministradas três vezes por semana deixa explícito que as orientações têm foco nos anos iniciais do Ensino Fundamental I (Serra, 2008).

A tentativa de articulação com a educação infantil para pensar a transição desta para o ensino fundamental indica o caráter de disciplina para o trabalho dos professores de Educação Física que atuam nos Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs) desse município. Uma comparação entre a forma como a Educação Física, supostamente, aparece no documento da educação infantil do município de Cariacica e no de Serra nos encaminha a uma compreensão de que, enquanto um documento colabora para a compreensão mais generalista da Educação Física na educação infantil (Cariacica, 2016), o outro enfatiza um caráter mais aos moldes da escolarização disciplinar (Serra, 2008).

A inserção da Educação Física no documento “Outro Olhar” (Vitória, 2006) aconteceu após ser reconhecida como um dos núcleos conceituais que deveriam ser considerados prioridade na elaboração da política educacional voltada para a educação infantil do município. Essa mesma ideia aparece no documento de Vila Velha, no qual a Educação Física também entrou no rol dos temas prioritários que pautaram as discussões nos fóruns de elaboração da proposta (Vila Velha, 2008). Assim, a presença da Educação Física “[...] não está dada como fato, mas emerge num campo de forças” (Rago, 1995, p. 75) pela disputa de poder que atravessa a construção desses documentos.

Presente em tópicos específicos dos documentos, em Vitória, a Educação Física é entendida “[...] como um componente curricular que visa às práticas corporais da cultura como os jogos, as brincadeiras, dança, dramatização, etc, portadora de conhecimentos da linguagem corporal” (Vitória, 2006, p. 89). Já em Vila Velha, a Educação Física é preconizada de modo que seu objetivo seja ampliar o universo da cultura das crianças no seu trato corpóreo a partir do contato com diferentes formas de expressão da linguagem corporal (Vila Velha, 2008). Assim, as duas propostas curriculares corroboram uma visão de que a “[...] educação física na educação infantil pode configurar-se como um espaço que a criança brinque com a linguagem corporal, com o corpo, com o movimento, alfabetizando-se nessa linguagem” (Ayoub, 2001, p. 57).

A maneira como as duas políticas concebem a Educação Física faz com que nossas ponderações também se direcionem para uma melhor apreciação dos sentidos atribuídos às brincadeiras nas políticas educacionais voltadas para a educação infantil. O brincar como linguagem carregado de símbolos culturais historicamente construídos é visto como uma marca da infância no documento de Vila Velha, o qual entende que a brincadeira não deve ser restrita a momentos exclusivos, mas deve perpassar todas as experiências das crianças no cotidiano educacional (Vila Velha, 2008). Paralelamente, em Vitória e Cariacica, as brincadeiras são vistas como práticas socioculturais pelas quais as crianças interagem e ressignificam suas experiências no mundo. Ao contrário dos demais documentos, na política de Serra não há uma atenção destinada de maneira específica à brincadeira.

Nessa perspectiva, a proposta presente nos documentos de Vila Velha e Vitória oferecem elementos para um amadurecimento dos debates e problematizações em torno da entrada da Educação Física na educação infantil por meio da atuação de professores especialistas. Inclusive, como afirmam Cavalaro e Muller (2009), ela se configura como uma importante questão no que diz respeito ao desafio de um trabalho articulado entre diferentes profissionais e a preocupação com a não “escolarização” da educação infantil. Com isso, chamamos a atenção para a forma como o trabalho de professores de Educação Física na educação infantil é solicitado e recomendado nos documentos das redes municipais de Vila Velha e Vitória:

A inclusão da educação física como componente curricular da educação básica integrada à proposta pedagógica (LDB/96) não deve ser compreendida como um apêndice ou uma realidade estranha às diferentes práticas educativas dos CMEIs. A identidade da educação física precisa se afirmar como uma prática cultural portadora de conhecimentos que só têm sentido quando articulada a outros saberes e outros fazeres presentes no contexto da Educação Infantil (Vitória, 2006, p. 89).

A atuação de um professor de Educação Física na educação infantil não pode ser uma desculpa para que a linguagem corporal seja destituída das práticas cotidianas estabelecidas entre os outros professores e as crianças. As crianças precisam ser sempre estimuladas a estabelecer relações dialógicas com o outro, e isto requer uma atenção quanto às suas necessidades de se movimentar em diferentes espaços, de explorar espaços que ainda não conhecem, de brincar, correr, pular, manipular materiais, etc. e isso não deve ser exclusivo a um professor, mas a todos que compartilham experiências com as crianças (Vila Velha, 2008, p. 80).

Diante da consideração dos benefícios que o trabalho de professores de Educação Física pode trazer para as crianças no cotidiano da educação infantil, Quaranta, Franco e Betti (2016) alertam que a presença desse profissional não deve ser considerada uma segmentação ou fragmentação, mas deve ser vista como possibilidade de um trabalho articulado com as demais professoras que atuam na educação infantil. Ayoub (2001) considera que a presença da Educação Física na educação infantil não deve significar a limitação da linguagem corporal a um único momento, como se fosse exclusividade dessa área trabalhar o “corpo” das crianças, mas sugere que “[...] essa presença seja compreendida como uma possibilidade de desenvolvimento de trabalhos em parceria, sem hierarquizações” (Ayoub, 2001, p. 59).

Nesse sentido, consideramos que as propostas curriculares de educação infantil das cidades de Vila Velha e Vitória, no que se refere à Educação Física, ao apontarem para um trabalho que seja feito de modo coletivo entre os diferentes profissionais, enfatizando que o contato das crianças com as diferentes linguagens corporais não seja restrito ao momento com a Educação Física, caminham na mesma linha de pensamento dos autores citados, os quais defendem a presença desse componente curricular na educação infantil.

A leitura dos documentos levantados evidencia que não há um modo único no qual a Educação Física está inserida na educação infantil, o que corrobora as diferentes concepções que marcam a pequena infância ao longo de sua história (Anjos, 2009). Enquanto as prescrições curriculares de Vitória e Vila Velha apontam para uma prática pedagógica na qual a Educação Física se articula com os demais saberes que perpassam o cotidiano educacional, afirmando a brincadeira dotada de um saber primordial ao desenvolvimento e formação cultural das crianças, na Serra, as diretrizes propõem que a Educação Física ocorra em forma de aulas três vezes por semana, seguindo muito mais um modelo de disciplinar e incoerente com a educação das crianças pequenas.

Em Cariacica, não há uma orientação direta para a Educação Física, mas sim para os saberes relacionados com o “corpo” e o “movimento”. Entendemos que, assim como constam nas propostas curriculares de Vitória e Vila Velha, uma vez que o município lota os professores de Educação nos Centros de Educação Infantil, é de fundamental importância que suas propostas curriculares orientem esses docentes no que diz respeito aos modos como o município pensa e afirma a importância desse componente curricular na educação das crianças pequenas, não deixando a cargo dos indivíduos (docentes) decidirem sozinhos questões que são da ordem da política de educação, nacional e municipal.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao considerar as disputas de forças presentes nas políticas educativas e propostas curriculares para a educação infantil, entendemos que a análise desses documentos se constitui como um importante exercício para compreendermos como a Educação Física tem sido “convocada” a participar da educação das crianças pequenas e legitimada, pedagogicamente, nessa modalidade de ensino.

Nesse sentido, ao mapearmos e analisarmos as propostas curriculares para a educação infantil da rede pública de ensino municipal da Grande Vitória/ES, identificamos que, além de compartilhar das concepções de infância e de educação infantil presentes nos referenciais curriculares de âmbito nacional, essas prescrições curriculares municipais têm avançado no que diz respeito à tematização da Educação Física como componente curricular da educação infantil.

Apesar de os referenciais curriculares nacionais não mencionarem qual seria o papel da Educação Física nas instituições de educação infantil, os municípios estudados, embora com diferenças significativas, têm se esforçado em elaborar orientações aos docentes dessa disciplina, articuladas com as concepções de criança como sujeito de direitos, com a brincadeira como prática corporal dotada de significado cultural e com o contexto no qual estão localizados os Centros de Educação Infantil. Esse modo de elaborar as propostas curriculares está marcadamente expresso nos documentos do município de Vitória (2006) e de Vila Velha (2008).

Entretanto, ainda que os documentos das redes municipais de ensino da Grande Vitória/ES avancem em relação aos documentos nacionais orientadores da educação infantil quando se referem à Educação Física, fica evidente que os municípios que produziram seus documentos de modo mais coletivo, ouvindo e envolvendo a comunidade da educação infantil em seus contextos (trabalhadores, pais e responsáveis, crianças, movimentos sociais etc.), elaboraram propostas mais afinadas e mais sólidas acerca de uma Educação Física como componente curricular, a qual deve integrar-se ao Projeto Pedagógico dos Centros de Educação Infantil e às culturas infantis, buscando, com isso, superar a condição histórica da Educação Física na educação infantil como psicomotricidade e garantia do horário de planejamento para os professores regentes.

Compreendemos que somente a análise dos documentos curriculares oficiais voltados para a educação infantil não é suficiente para concluir como a Educação Física está inserida nessa etapa da educação básica. Necessárias, também, são investigações voltadas a compreender a atividade dos professores e professoras que atuam nesse nível educacional a partir dos “usos”, apropriações e desapropriações que fazem desses documentos em seus cotidianos de trabalho.

REFERÊNCIAS

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NOTAS:

1 A Grande Vitória/ES, região metropolitana do Estado do Espírito Santo, é formada pelos municípios de Cariacica, Fundão, Guarapari, Serra, Viana, Vila Velha e Vitória. Neste primeiro momento, devido ao espaço do artigo, optamos por analisar os documentos dos municípios de Cariacica, Serra, Vila Velha e Vitória.

2 A construção dos documentos nos municípios de Vitória, Vila Velha e Serra contou com a consultoria de uma mesma professora do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Não foi possível, nesta fase do estudo, entrevistar a referida professora da universidade que ofereceu consultoria aos referidos municípios. Esse é um limite que buscaremos superar na segunda fase do estudo.

3 A organização curricular da educação infantil está estruturada em campos de experiências, no âmbito dos quais são definidos os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento. Para mais detalhes, ver a BNCC (2018).

4 A Resolução n°.5, de 17 dezembro de 2009, do Ministério da Educação, que fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, preconiza as crianças como sujeitos históricos, de direitos e produtores de cultura, as quais constroem suas identidades por meio das relações e interações vivenciadas em seus cotidianos.

Recebido: 26 de Outubro de 2020; Aceito: 03 de Abril de 2023; Publicado: 20 de Dezembro de 2023

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