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Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub Feb 26, 2024

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e53489 

Artigos

Currículo, memória e consciência histórica na formação do sujeito segundo a Base Nacional Comum Curricular

Curriculum, memory and historical awareness in the formation of the subject according to the Common National Curriculum Base

Currículo, memoria y conciencia histórica en la formación del sujeto según la Base Nacional Común Curricular

Luan Tarlau BALIEIROi 
http://orcid.org/0000-0002-4861-9158

Mário Luiz Neves de AZEVEDOii 
http://orcid.org/0000-0003-0563-5817

Terezinha OLIVEIRAiii 
http://orcid.org/0000-0001-5349-1059

i Doutorando em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPE) da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Pesquisador Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). E-mail: luan.tarlau@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-4861-9158

ii Doutor em Educação pela Faculdade de Educação (FE) da Universidade de São Paulo (USP). Professor Titular da Universidade Estadual de Maringá (UEM) junto ao Departamento de Fundamentos da Educação (DFE) e ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPE). E-mail: mlnazevedo@uem.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-0563-5817

iii Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Professora Titular da Universidade Estadual de Maringá (UEM) junto ao Departamento de Fundamentos da Educação (DFE) e ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPE). E-mail: teleoliv@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-5349-1059


Resumo

Neste artigo, objetivamos realizar uma reflexão a respeito da constituição de sujeito norteada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), focalizando questões as quais nos permitem analisar os conceitos de currículo, memória e história, com base nas teorias críticas de Le Goff (1990), Silva (1998), Libâneo (2012), Martins (2019), dentre outros autores. Metodologicamente, optamos por uma abordagem qualitativa por meio de revisão bibliográfica e estudo documental. Nosso questionamento principal é: em que medida a constituição de sujeito promulgada pela BNCC converge, verdadeiramente, com uma formação emancipatória e reflexiva? A nosso ver, os conceitos ora apresentados são fundamentais para a formação de um sujeito situado historicamente no seu tempo, portanto, um cidadão.

Palavras-chave: Base Nacional comum curricular; sujeito; memória; história

Abstract

In this article, we aim to carry out a reflection on the constitution of subject guided by the Common National Curriculum Base (BNCC), focusing on issues that allow us to analyze the concepts of curriculum, memory and history, based on the critical theories of Le Goff (1990), Silva (1998), Libâneo (2012), Martins (2019), among others authors. Methodologically, we opted for a qualitative approach through bibliographic review and documentary study. Our main question is: to what extent does the constitution of subject promulgated by BNCC truly converge with an emancipatory and reflective formation? In our view, the concepts presented here are fundamental to the formation of a subject historically situated in his time, therefore a citizen.

Keywords: National Common Curriculum Base; subject; memory; history

Resumen

En este artículo, nuestro objetivo era realizar una reflexión acerca de la constitución de sujeto guiada por la Base Nacional Común Curricular (BNCC), enfocando cuestiones las cuales nos permiten analizar los conceptos de currículo, memoria e historia, con base en las teorías críticas de Le Goff (1990), Silva (1998), Libâneo (2012), Martins (2019), entre otros autores. Metodológicamente, optamos por un enfoque cualitativo por medio de revisión bibliográfica y estudio documental. Nuestro cuestionamiento principal es: ¿en qué medida la constitución de sujeto promulgada por la BNCC converge, verdaderamente, con una formación emancipatoria y reflexiva? A nuestro juicio, los conceptos que ahora se presentan son fundamentales para la formación de un sujeto situado históricamente en su tiempo, es decir, un ciudadano.

Palabras clave: Base Nacional Común Curricular; sujeto; memoria; historia

1 INTRODUÇÃO

Este texto origina-se de uma inquietação em relação à formação do sujeito que perpassa pelas políticas educacionais curriculares no Brasil. Consideramos, em um primeiro momento, que a palavra currículo apresenta uma carga discursiva repleta de subjetividade: para alguns, trata-se de uma palavra comum, que apenas evidencia a noção de ‘matéria’, de ‘programa’ de ‘conteúdo’; para outros, vai muito além porque se reportaria a lugares, a espaços e a territórios. Nessa perspectiva, trata-se de relações de poder, de construções históricas que remetem a trajetórias e a percursos que carecem de reflexões constantes. Justamente, tendo por referência essa segunda perspectiva, analisaremos neste texto a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Esse documento constitui-se em uma das políticas curriculares da educação brasileira, com sua versão final publicada em 2018, direcionada às etapas da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do Ensino Médio.

Para fins didáticos e com o intuito de situar nosso leitor, definiremos o referido objeto de reflexão. Nesse sentido, compreendemos a BNCC como um documento que busca orientar a elaboração dos currículos das redes municipais, estaduais e federais de ensino. Caracteriza-se, portanto, como um documento normativo que define o conjunto de conteúdos considerados essenciais aos alunos em todas as etapas e modalidades da Educação Básica. Por possuir essa característica, nossa fonte documental possibilita que a determinemos como uma medida de política educacional curricular de Estado (Oliveira, 2011)1, com vistas a engendrar conceitos inerentes à formação humana, por exemplo, o conceito de cidadania.

Nesse âmago, considerando a estrutura formal do documento, veremos que sua construção parte de concepções de “competências”, ora gerais, ora específicas, e de “habilidades” a serem atingidas pelos sujeitos professor e, evidentemente, estudante. Ao ter em vista a necessidade de um sistema único de educação, que seja ainda mais pautado no desenvolvimento de competências e habilidades, questionamo-nos: em que medida a constituição de sujeito promulgada pela Base Nacional Comum Curricular converge, verdadeiramente, com uma formação emancipatória e reflexiva? Poderíamos pressupor que há uma ausência de intelectualidade? Se pensarmos, sobretudo, na figura do sujeito professor nas políticas educacionais, verificamos a recorrência à concepção de professor “tarefeiro”, como muito bem enfatiza Libâneo (2012)2.

Dessa forma, centrando-se na temática Currículo, Conhecimento e Cultura, objetivamos tecer reflexões a partir das indagações apresentadas, tendo como respaldo a noção de currículo que desencadeia aspectos como memória e consciência histórica. Metodologicamente, optamos por uma abordagem qualitativa por meio de revisão bibliográfica e estudo documental, com base nas teorias críticas de Le Goff (1990), Silva (1998), Libâneo (2012), Martins (2019), entre outros autores. Salientamos que nossa análise não se constitui em um juízo de valor em relação à fonte selecionada para discussão, uma vez que não podemos engendrar as nossas ponderações somente em questões políticas. Se nos preocupamos apenas em efetuar um trabalho de cunho burocrático, isto é, um trabalho técnico, operacional e acrítico, não teriam sido consideradas as implicações sociais, políticas e culturais na sociedade. Não existe neutralidade científica (Japiassu, 1975), como, então, não nos envolvemos com as questões de política de Estado do presente? Destarte, a análise aqui desenvolvida caracteriza-se como reflexiva, pois pensamos sobre a importância de produzir estudos relacionados ao campo da educação, tendo notoriamente um compromisso social, de modo a contribuir para a sua melhoria.

Nesta Introdução, cabe ainda apresentar ao leitor como este texto está organizado, de maneira a possibilitar uma explícita compreensão quanto à linha de raciocínio que seguiremos. Constituído por quatro seções, o texto contemplará, além das considerações iniciais, uma seção específica referente ao processo de implantação da BNCC, com o intuito de contribuir para a preservação de determinados aspectos de nossa fonte. Na seção seguinte, adentraremos a conceitos mais pontuais, como currículo, memória e consciência histórica, para refletirmos sobre a construção de uma identidade vinculada a um projeto de cidadania que, de certa forma, ajudarão a entender a formação de sujeito perpassada pela política educacional curricular em cena. A última seção será dedicada às nossas reflexões finais.

2 RETOMADA DO PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DA BNCC: A PRESERVAÇÃO DE UMA MEMÓRIA

Nesta seção, apresentaremos especificidades que formatam o processo de implantação da BNCC, considerando a construção e a aprovação de suas versões. Primeiramente, recorremos a Mendes (2011, p. 209), que nos alerta para o fato de que: “[...] na discussão sobre o uso das fontes, entendemos que o elemento principal não são as fontes propriamente dita, mas os estudiosos, os pesquisadores, enfim, aqueles que se propõem pesquisar e organizar as fontes ou analisá-las”. Neste texto, teremos uma postura epistemológica reflexiva diante do nosso objeto de estudo, por esse motivo, destacamos a importância de contextualizar as nossas fontes no âmbito da história. A BNCC, como política educacional curricular, tem uma memória. E, se não consideramos sua memória, encaminhamos, efetivamente, para a devastação de uma civilização. Sobre esse aspecto, retomemos o conceito de memória, segundo Jacques Le Goff:

A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas (Le Goff, 1990, p. 366).

Esse conceito nos conduz a compreender que a memória se associa às nossas condições físicas e biológicas, ou seja, o que lembramos, a nossa capacidade de atualizar ou ignorar certas informações. O que está armazenado em nossa memória dependerá, portanto, da escolha do próprio sujeito. Le Goff (1990) adverte, todavia, que há outros tipos de armazenamento de memória, como textos, álbuns de fotos, datas comemorativas, instituições de memória (pensemos, aqui, nas bibliotecas, nos museus, nos arquivos). O que pretendemos mostrar, a partir desses postulados, é que uma representação, uma memória, não pode ser destruída; se for, a próxima geração não terá o monumento, o significado, as raízes, o sentimento de pertencimento.

Comecemos, então, a entender o processo de implantação de nossa fonte, com vistas a preservar sua memória. De início, observamos que a recorrência a um sistema único de ensino não se constitui como uma novidade nas políticas curriculares da educação brasileira. Há de se observar que a primeira Lei de Diretrizes e Bases - LDB (nº 4.024/1961) -, a qual fora aprovada no governo de João Goulart (1961-1964), determinou as diretrizes e as bases da educação nacional. Nessa Lei, alicerçaram-se as etapas do ensino primário, médio e superior. Também foram criados o Conselho Federal de Educação (CFE), cuja função, entre outras atribuições, consistia em definir as disciplinas obrigatórias, e os Conselhos Estaduais de Educação (CEEs), entre outras incumbências, com a tarefa de indicar a quantidade de disciplinas optativas que o Estado poderia eleger. Podemos depreender que na primeira LDB percebia-se um esforço em estabelecer disciplinas obrigatórias a todos os sistemas de ensino do país.

Em meio ao contexto da ditadura civil-militar (Mello, 2014; Jurach, 2018) materializada pelo golpe de 1964, criou-se a Lei nº 5.692/1971, conhecida como “Nova LDB”. Essa legislação verificou os marcos legais da educação básica, os quais foram determinados pela Lei nº 4.024/1961. A partir disso, novas divisões do currículo passaram a ser fixadas, assim como um núcleo comum e uma parte diversificada. Para a implementação da nova legislação, o então Conselho Federal de Educação (CFE) homologou o Parecer nº 853/1971, normalizando a Lei nº 5.692/1971, de forma a estabelecer o que poderia ser incluído no currículo. Ademais, pensamos ser importante enfatizar que os conteúdos determinados por esse Parecer apresentam uma articulação ao longo do percurso do sujeito aluno, em um primeiro momento como atividades e, posteriormente, como áreas de estudo, com o objetivo de preparar esse aluno ao acesso às disciplinas no ensino de Segundo Grau, conhecido por nós, em nosso tempo presente, como Ensino Médio.

Em relação às Leis da educação, é importante ressaltar que o efetivo debate no que tange à BNCC teria se iniciado com a Constituição Federal de 1988, particularmente no Art. 210.

Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.

§ 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.

§ 2º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem (Brasil, 1988, on-line).

O objetivo de apresentarmos esse artigo consiste no fato de recorrer à necessidade da construção de uma memória nacional por intermédio da recuperação da história, dos valores e dos bens culturais de segmentos sociais, étnicos e culturais diversos, de modo a cooperar com a constituição da sociedade brasileira. Assim, neste artigo, concebeu-se o conceito da formação básica comum, vinculando-se à fixação de conteúdos mínimos ao Ensino Fundamental.

Ao prosseguirmos com a contextualização histórica, voltemos nosso olhar para um marco também resolutivo: a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB nº 9.394/1996 -, a qual revogou a anterior, proveniente do ano de 1971. Com o intuito de atender à legislação já determinada, o Conselho Nacional de Educação (CNE) desenvolveu, entre os anos de 1997 e 1999, um conjunto de Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para as etapas e modalidades da Educação Básica, como Silva (2015) nos evidencia sobre a temática quanto ao currículo, ao ensino médio e à BNCC. De modo distinto dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), entendidos como diretrizes segmentadas por disciplinas, elaboradas pelo Governo Federal e não obrigatórias por Lei, as referidas Diretrizes se apresentam como obrigatórias para a Educação Básica, de forma a nortear o planejamento curricular das escolas e dos sistemas de ensino, conforme deliberou a LDB provinda de 1996. Entre os anos de 2009 e 2010, as novas Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação Básica, legitimadas por meio do Parecer nº 07/2010, foram elaboradas pelo CNE. Ponderamos a necessidade de destacar, ainda, que o Ministério da Educação realizou a homologação dessas Diretrizes e organizou uma publicação, no ano de 2013, com as especificações para cada etapa e modalidade.

Por ser um documento normativo engendrado em competências e habilidades, a estrutura da BNCC apresenta similaridades com outra política pública educacional, a saber, o Plano Nacional de Educação (PNE), o qual pode ser compreendido como um dos norteadores da BNCC. Preocupemo-nos, agora, em explorar alguns aspectos desse documento. O PNE (2014-2024) estabelece, em suas metas, indicativos para a consolidação de diretrizes pedagógicas e uma base nacional comum dos currículos. Leiamos a Meta 7, a Estratégia 7.1:

Meta 7. Estratégia 7.1. Estabelecer e implantar, mediante pactuação interfederativa, diretrizes pedagógicas para a educação básica e a base nacional comum dos currículos, com direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento dos(as) alunos(as) para cada ano do ensino fundamental e médio, respeitada a diversidade regional, estadual e local (Brasil, 2014, p. 61, grifos nossos).

Com a meta apresentada, é possível perceber que as metas e estratégias do PNE (2014-2024) evidenciam uma abordagem categórica acerca da necessidade de articulação de uma base nacional curricular a ser sistematizada pelas políticas educacionais consecutivas a este PNE. Chamamos atenção para as expressões “direitos” e “objetivos de aprendizagem”, já que esses vocábulos presumem dimensões gerais asseguradas a todos os alunos da Educação Básica em nível nacional. Por mencionar essas expressões, importa-nos, por ora, os marcos legais do documento. Como podemos notar a partir de nossas leituras, esses marcos determinam um trajeto histórico dos movimentos realizados em prol da consolidação de um currículo mínimo da educação básica para as etapas da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do Ensino Médio.

Neste momento do texto, trazemos à nossa contextualização o marco que ponderamos ser importante para a efetivação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC): a Portaria CNE/CP nº 11, proveniente do ano de 2014, cujo intuito se volta para acompanhar e cooperar com o Ministério da Educação (MEC) na elaboração de um documento a respeito dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, tendo como respaldos algumas metas e estratégias do Plano Nacional de Educação - PNE (2014-2024). Pautamo-nos em Aguiar (2018), ao elucidar que novos estudos sobre a BNCC passaram a ser concebidos. Assim, verificamos este cenário:

Cerca de 120 (cento e vinte) profissionais da educação, entre eles professores da Educação Básica e da Educação Superior de diferentes áreas do conhecimento, foram convidados pelo MEC para elaborar um documento que resultou na “primeira versão” da BNCC. Essa versão foi colocada em consulta pública, por meio de internet, entre outubro de 2015 e março de 2016. Segundo dados do MEC, houve mais de 12 milhões de contribuições ao texto, com a participação de cerca de 300 mil pessoas e instituições. Contou, também, com pareceres de especialistas brasileiros e estrangeiros, associações científicas e membros da comunidade acadêmica. As contribuições foram sistematizadas por profissionais da Universidade de Brasília (UnB) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), e subsidiaram o MEC na elaboração da “segunda versão” (Aguiar, 2018, p. 11).

Com base na citação exposta, continuamos a postular sobre mais um passo realizado em meio à implantação da BNCC. No ano de 2016, ocorreu a divulgação, por parte do MEC, da segunda versão do documento para análise e discussão, na gestão do então Ministro Aloizio Mercadante. Os trabalhos foram procedidos pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed).

Nesse contexto, os debates passaram a ser efetivados em salas específicas, por áreas e componentes curriculares. Aguiar (2018, p. 12) nos apresenta, ainda, algumas singularidades desses debates, ao nos relatar que os moderadores, “[...] em sua maioria, apresentavam slides com objetivos e conteúdos e os participantes optavam por uma das seguintes alternativas: concordo, discordo totalmente ou discordo parcialmente e indicavam propostas de alteração, se fosse o caso”. Em momento posterior às conferências, entre os meses de junho e agosto de 2016, o Consed e a Undime conceberam um relatório no que diz respeito às contribuições e o encaminharam ao Comitê Gestor da BNCC, o qual fora o responsável por destinar ao CNE a terceira versão da Base.

Assim, no mês de abril do ano de 2017, a terceira versão foi endereçada ao CNE, a fim de promover novos debates em nível nacional, em especial uma audiência pública realizada em cada região geográfica do país. Salientamos que a parte da BNCC referente ao Ensino Médio não foi contemplada nessas discussões, existindo, até aquele momento, uma terceira versão somente destinada à Educação Infantil e ao Ensino Fundamental. Entre os meses de junho a setembro do mesmo ano, outras audiências públicas foram realizadas pelo país, com vasta participação e mediações. No mês de outubro de 2017, o CNE endereçou ao MEC o documento intitulado ‘Questões e proposições complementares ao Ministério da Educação’, com dez itens, os quais remetem, diretamente, a essas questões e proposições.

Na sequência, particularmente no mês de novembro do mesmo ano, o MEC evidenciou as inclusões realizadas pelo Conselho Gestor da BNCC e demais equipes. Voltemos aos postulados de Aguiar (2018), a qual afirma que a fase final do processo, que antecedeu a publicação final da BNCC da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, demarcou-se pela celeridade, isto é, por uma agilidade incomum, visto que não se expuseram justificativas por escrito para não inserir as contribuições tecidas nas audiências públicas, inclusive aquelas expostas pelo CNE. Ainda sobre a celeridade mencionada, Aguiar (2018), quanto à atuação do CNE no decorrer do processo de aprovação da BNCC, pondera:

[...] compete a esse Órgão de Estado tratar adequadamente as políticas públicas de nosso país, sem açodamento. Infelizmente, a opção do CNE foi pela celeridade em detrimento de discussão aprofundada [...] e isso ficará registrado como uma afronta a esse Órgão Colegiado, sobretudo, se o entendermos como um Órgão de Estado e não de Governo (Aguiar, 2018, p. 20, grifos nossos).

Para uma compreensão mais aprofundada em relação à situação exposta, continuemos com o histórico de nossa fonte, agora nos centrando na reunião da Comissão Bicameral (CNE e Comitê Gestor) realizada, especificamente, em novembro de 2017. Ao ter em vista as circunstâncias de celeridade do processo de aprovação, o que dificultava, em certa medida, uma discussão mais frutífera em relação a vários aspectos, três conselheiras, identificadas por meio do Parecer CNE/CP nº 15/2017, como Márcia Angela da Silva Aguiar (autora já evidenciada), Malvina Tania Tuttman e Aurina Oliveira Santana, solicitaram vistas das minutas de Parecer e Resolução quanto à Base. As conselheiras foram indicadas como as responsáveis pelos três votos contrários à aprovação da BNCC, defendendo a necessidade de um maior debate, consultas à sociedade, enfim, defendiam a consolidação de uma Base Nacional Comum Curricular democrática, participativa e consciente. Elas evidenciaram o fato de que a BNCC não estava concluída e observaram a existência de questionamentos e dúvidas em relação a esses documentos que ainda precisariam de discussões otimizadas e com mais eficácia pelo próprio Conselho Nacional de Educação.

Na oportunidade, destacamos que o aspecto central da solicitação de vistas se amparou na indagação sobre a eliminação da etapa do Ensino Médio. As conselheiras teceram o questionamento quanto ao fato de se aprovar uma base curricular da Educação Básica, desconsiderando, sobretudo, uma de suas etapas. Também indagaram, como muito bem expressa Aguiar (2018), a natureza centralizadora e verticalizada pelo Comitê Gestor na elaboração da terceira versão. Desse modo, observamos que as três versões do documento perpassaram por situações segmentadas, de alterações bruscas das equipes organizadoras, especialmente na transição do governo Dilma para o governo Temer, entre os meses de maio e setembro de 2016, ano no qual ocorreu o processo de impeachment, desencadeando interesses e disputas que passaram a atingir o campo da educação. Realçamos que o intuito de mencionar as conselheiras neste texto consiste em mostrar ao leitor as particularidades que se fixam na construção da Base, não as desconsiderando. Como bem acreditamos, essas particularidades contribuem para a preservação de uma memória coletiva.

Em suma, no dia 15 de dezembro de 2017, o CNE realizou uma sessão pública para discutir o voto do Parecer e da Resolução quanto à BNCC da Educação Infantil e do Ensino Fundamental. Assim, a Resolução CNE/CP nº 2, de 22 de dezembro de 2017, foi aprovada pelo referido Conselho. Por sua vez, a BNCC do Ensino Médio foi aprovada e instituída pela Resolução CNE/CP nº 4, de 17 de dezembro de 2018, cerca de um ano após a BNCC das etapas anteriores. Face ao exposto, percebemos que o processo de implantação da Base é repleto de especificidades que nos permitem tecer reflexões quanto aos sentidos que se expressam no documento. É por essa razão que ressaltamos a necessidade de situar, historicamente, e contextualizar o nosso objeto de estudo para, na seção seguinte, adentrarmos aos conceitos que nos possibilitam um olhar mais aguçado sobre a constituição de sujeito mapeada pela BNCC.

3 CURRÍCULO, MEMÓRIA E CONSCIÊNCIA HISTÓRICA: CONCEITOS PARA SE PENSAR A CONSTITUIÇÃO DE SUJEITO NA BNCC

Não podemos propor reflexões sobre a BNCC sem considerarmos a noção de currículo. Por esse ângulo, nosso objetivo nesta seção é propiciar relações entre os conceitos de currículo, memória e consciência histórica, pois acreditamos que a relação estabelecida nos ajudará a tecer reflexões quanto à formação da pessoa em nossa fonte. Comecemos pelo currículo.

Libâneo, em artigo publicado no ano de 2012, debate sobre o agravamento da dualidade da escola pública brasileira, que se compreende como uma escola do conhecimento para os ricos e uma escola de acolhimento social aos pobres. Entendemos que o autor trata de um mundo prático, nesse caso, o da escola. Em certo momento do texto, Libâneo menciona o lema de outro estudioso sobre currículo, Gimeno Sacristán: “[...] uma escolarização igual, para sujeitos diferentes, por meio de um currículo comum” (apud Libâneo, 2012, p. 26). Na sequência, o pesquisador postula que a obtenção da igualdade social no espaço educacional tem o escopo de proporcionar a todas as crianças e jovens, em circunstâncias similares, “[...] o acesso aos conhecimentos da ciência, da cultura e da arte” (Libâneo, 2012, p. 26), assim como o desenvolvimento de competências intelectivas e a constituição da cidadania. Eis o ponto: a formatação de um ideário de civilidade. A propósito, Azevedo (2013) ressalta que

[...] o alcance da cidadania torna-se possível pelo compartilhamento da cultura universal, que seria, em potência, o amálgama para a construção de uma “gramática” de direitos, inclusive no plano científico-cultural, a serem experimentados em comum. No entanto, quer parecer que na esfera pública de ensino, principalmente a partir das reformas para a educação do final do final do século XX, tem predominado (retornado?) a estratégia dominante da semicultura (ADORNO, 1996) para a educação de massas e a cultura elaborada para as elites [...] (Azevedo, 2013, p. 143).

Nesse mesmo contexto, Felgueiras (2008) pauta-se em uma relação indissociável entre historiador, observado em um saber histórico, e educador, observado em um saber pedagógico. Essa intelectual adentra à questão do currículo para refletir sobre a história da educação, postulando que o debate em torno do currículo continua a se respaldar em uma ordem social, uma vez que provém

[...] das expectativas que existem sobre o que deve constituir a formação de um educador, um historiador, mas trava-se, do ponto de vista científico, predominantemente no campo das ciências da educação e não no da história. Se no meu percurso pessoal e do ponto de vista epistemológico restrito a história da educação é apenas mais uma disciplina da história, inserida no campo educativo, a resposta exige uma análise mais complexa (Felgueiras, 2008, p. 486).

Se a resposta exige uma análise mais complexa, como bem ponderou Felgueiras (2008), considerando a problemática da escolarização igual, para sujeitos distintos, a partir de um currículo comum, conforme apresentou Libâneo (2012), remetendo-se a Sacristán, pensemos na subjetividade que há em cada um de nós. Quando direcionamos o foco à subjetividade, reportamo-nos à memória, e aqui está a relação que estabelecemos entre currículo e memória: um sistema único de ensino, de certa forma, pode implicar em menoscabo do componente subjetivo.

Nesse sentido, acreditamos que as nossas essências e ações estão bastante estabilizadas em uma memória histórica que se encontra em um assíduo processo de reconstrução. Por esse motivo, pensamos na memória como um preceito para praticarmos ações frente às complexidades e às fragilidades que surgem em todos os campos da vida humana. Um desses campos é, justamente, o da educação. A conservação de uma memória histórica é, portanto, uma situação desafiante que precisa passar por um processo de enfrentamento.

Assim, diante de nossas leituras sobre a concepção de currículo, constantemente, algo nos vem à mente: sem memória, nós somos sujeitos sem histórias. Importa lembrar que sujeitos sem histórias não têm identidade. Como muito bem apresenta Jacques Le Goff (1990, p. 411, grifos nossos): “A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”. Logo, é fundamental termos a consciência de que o passado possibilita a construção de uma memória coletiva que nos constitui como sujeitos inseridos em um determinado momento histórico. Além disso, como criadora da identidade, a memória pode ser vista como participante da sua construção (Le Goff, 1990), já que a própria identidade de uma sociedade pode fazer certas escolhas sobre a memória e moldar as tendências dos indivíduos de se integrar a certos aspectos do passado. Tudo isso remete ao ponto no qual mencionamos anteriormente: a formação de um ideário de civilidade. Não consideramos conveniente tratar de civilidade sem refletirmos, é claro, sobre identidade.

Em pesquisas sobre a noção de identidade atrelada ao currículo, deparamo-nos com as reflexões de Silva (1998), cujo autor faz uma comparação entre currículo e um documento de identidade. Vejamos:

O entendimento sobre currículo escolar adquire um novo sentido quando reconhecemos a atitude centralmente produtiva do currículo. Assim, o currículo é percebido como algo que se movimenta e ao se movimentar muda de “cara”. Estas mudanças produzem novos efeitos. Estes efeitos ajudam a construir os alunos e alunas e esta construção se aplica nos diferentes convívios dos diferentes grupos sociais. Estas convivências também terão efeitos sobre outros currículos que terão efeitos sobre outras pessoas. Ou seja: nós fazemos o currículo e o currículo nos faz (Silva, 1998, p. 194, grifos nossos).

Se pensarmos, por exemplo, em uma carteira de identidade, observamos que a nossa feição muda conforme o tempo, o que torna a nossa foto, registrada naquele documento em específico, desatualizada. Nós realmente mudamos de “cara”. É um processo suscetível a movimentos. Situação similar se aplica ao currículo. Na seção anterior, contextualizamos a BNCC e pudemos verificar particularidades no processo de construção do documento, como a oposição de algumas conselheiras em relação à homologação da BNCC, afirmando que seria preciso recorrer à elaboração de um documento efetivamente participativo e colaborativo à sociedade. Se nós contribuímos para o desenvolvimento do currículo e este nos constitui enquanto cidadãos, tal como ponderou Silva (1998), por que há tantas fragilidades no sistema educacional público? Por que a escola, agora valendo-nos de Libâneo (2012), passa a ser aos pobres um espaço puramente de acolhimento social? Talvez a discussão se orienta para a reflexão de que é como se nós esquecêssemos que temos de dar ao sujeito a condição da civilidade, da humanidade, em termos mais diretos. Se pensamos em cidadania, pensamos em sociedade; logo, pensamos em um espírito coletivo. Todavia, vemos que o problema reside justamente aí: há uma insuficiência de espírito coletivo, o que contribui para a intensificação de fragilidades em nossos currículos, em nossas práticas enquanto sujeitos situados historicamente em um dado tempo.

Ao ter como base as reflexões proferidas até o momento, consideramos prudente verificarmos duas competências gerais provenientes da BNCC para a Educação Básica. Antes, recorremos à Luchese (2014), autora que apresenta uma espécie de roteiro de perguntas formidável para a análise de um documento. Centremo-nos, neste texto, na pergunta “Que indícios discursivos são reforçados?” (Luchese, 2014, p. 151). Para tanto, vamos às competências:

1. Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.

2. Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas (Brasil, 2018, p. 9).

Apesar de a escola se constituir em um espaço de aprendizagem, de compreensão e de estruturação dos conhecimentos históricos, salientamos que não é possível efetuar esse processo de forma superficial e acrítica. A propósito, vale destacar que, conforme Azevedo (2012, p. 147), “o ensino institucionalizado (a educação escolar legitimada) faz parte do processo geral de incorporação do capital cultural e habitus, cuja qualidade e natureza são fundamentais para os sujeitos tomarem posição no campo social de atuação”. Dessa forma, a sala de aula compreende a educação como uma investigação. Os problemas, os temas, os conceitos e os conteúdos são investigados por intermédio de uma metodologia participativa e colaborativa. Parece-nos oportuno, nesse sentido, fazer uma indagação: nas competências ora apresentadas, quais alternativas enxergamos em relação à maneira com que os alunos irão se dedicar à apreensão do conhecimento?

Em busca de reflexões e questionamentos, analisemos: a competência de número 1 tem o intuito de assegurar que, ao longo da educação básica, desenvolva-se a valorização dos conhecimentos historicamente produzidos, quais sejam: físicos, sociais, culturais e digitais. Nossa leitura acerca dos conhecimentos mencionados aponta para o seguinte fato: compete ao estudante a tarefa de ter um domínio do conhecimento para ser capaz de aplicá-lo em seu cotidiano, com o objetivo de resolver situações complexas, o que já culmina na competência de número 2. Ao verificarmos essa competência, a Base evidencia pensamentos, do nosso ponto de vista, necessários: o científico (a investigação propriamente dita), a análise crítica, a imaginação e a criatividade. Ademais, observamos que uma expressão utilizada no decorrer das explicações de cada competência, frequentemente, é que o conhecimento passa a ser orientado à “resolução de problemas” ou à “aplicabilidade prática”. Em uma sociedade dita democrática, demanda-se que os sujeitos pensem com suas próprias cabeças. Também é pertinente que, da mesma forma, desenvolvam a consciência de um cuidado coletivo, ao invés de serem sujeitos operacionalizados.

Com base no exposto, respondemos à pergunta lançada por Luchese (2014): os indícios discursivos que são reforçados persistem na solidificação, ainda, de uma proposta única de ensino, a qual, por mais que apresente expressões importantes à concretização de uma educação verdadeiramente humanizada, tais como “reflexão”, “análise crítica”, “sociedade justa, democrática e inclusiva”, parece-nos que não compreende o sujeito em suas amplas dimensões (a redundância, nesse caso, foi proposital), com vistas a fomentar uma proposta de Educação Básica que opere com essas dimensões de forma integralizada.

Interessa-nos, neste momento, refletir a respeito de uma passagem em particular da BNCC, a qual, a nosso ver, mostra-se um tanto fragilizada:

[...] a Educação Básica deve visar à formação e ao desenvolvimento humano global, o que implica compreender a complexidade e a não linearidade desse desenvolvimento, rompendo com visões reducionistas que privilegiam ou a dimensão intelectual (cognitiva) ou a dimensão afetiva. Significa, ainda, assumir uma visão plural, singular e integral da criança, do adolescente, do jovem e do adulto - considerando-os como sujeitos de aprendizagem - e promover uma educação voltada ao seu acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e diversidades (Brasil, 2018, p. 14).

Aqui, situa-se um ponto fundamental que manifesta uma contradição da BNCC: por um lado, há um discurso favorável à regionalização do currículo e à precisão de adaptar as culturas juvenis - pensemos, aqui, na palavra flexibilidade; por outro, há uma ordenação curricular que expõe, de maneira pormenorizada, o trajeto de cada disciplina em termos de áreas do conhecimento, unidades temáticas, objetos de conhecimento e as habilidades e competências tão acentuadas. Categoricamente, a BNCC determina um ideário de igualdade como uma forma de certificar que todos os estudantes passem a ter direitos e objetivos de aprendizagem. Estes, por sua vez, são as competências gerais, entendidas como padrões de comportamento a serem internalizados ao longo da Educação Básica. Contudo, as condições com que os estudantes chegam à escola e continuam nela não são iguais. A respeito dessa situação, Libâneo (2012) nos alertou:

Todas as crianças e jovens necessitam de uma base comum de conhecimentos, junto a ações que contenham o insucesso e o fracasso escolar. É claro que a escola pode, por um imperativo social e ético, cumprir algumas missões sociais e assistenciais (a escola convive com pobreza, fome, maus tratos, consumo de drogas, violência etc.), mas isso não pode ser visto como sua tarefa e sua função primordiais, mesmo porque a sociedade também precisa fazer sua parte nessas missões sociais e assistenciais (Libâneo, 2012, p. 26).

No contexto apresentado por Libâneo (2012), compartilhamos da reflexão de que, em regiões de muita pobreza, violência, onde o aluno tem a necessidade de trabalhar precocemente no contraturno escolar, a fim de auxiliar na sobrevivência da família, não será o bastante um bom currículo, mas um encadeamento de programas e investimentos, na prática, para a efetiva garantia do direito à educação e a uma vida com dignidade. Se a sociedade precisa cumprir com sua missão frente às fragilidades que temos no campo da educação, faz-se necessário o desenvolvimento de uma consciência, e aqui nos valemos da consciência histórica.

Em uma aula sobre História Global Medieval e a Descolonização do Ensino de História, disponível na plataforma YouTube, a professora Aline Dias da Silveira, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), comenta sobre a importância de sermos historicamente conscientes. Para a docente, o ser que está consciente de sua temporalidade humana se depara com a sua própria finitude, mas deve enfrentá-la com ação e não com negação. A consciência histórica, em sua acepção, deve servir para enfrentar o medo, a incerteza e o ressentimento que alimentam nossas narrativas. Por esse mesmo caminho, Martins (2019, p. 21, grifos nossos) tece significativas reflexões: “A consciência histórica inclui a consciência da historicidade intrínseca a toda existência humana, inserida no conjunto da cultura, das instituições e das ações das pessoas”. Se não temos um saber histórico que nos situe espacialmente e culturalmente, a partir de nossas ações, não somos cidadãos; não nos colocamos no âmbito da democracia. Esse saber histórico é entendido como a nossa consciência histórica em relação ao passado e ao tempo presente em que nos encontramos.

Desse modo, refletimos que as competências gerais da BNCC não preconizam, em um primeiro momento, uma formação administrada e sujeita ao controle - importante atribuirmos ênfase a essa parte. Inferimos, entretanto, que o caráter gerencial do documento se acentua de forma mais visível quando se aprofunda a história do conceito e dos interesses dos grupos envolvidos na propagação desse fundamento gerencial. Por esse motivo, apontamos para a necessidade de termos o devido cuidado e o discernimento ao refletirmos sobre os currículos com base nas competências, já que há elementos implícitos e, até mesmo, latentes, que podem suscitar danos à formação humana.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No que concerne a todo o exposto, depreendemos que, anteriormente a qualquer competência para o trabalho e ao convívio social, está um sujeito que pode ser motivado a pensar de uma maneira crítica e de cultivar uma sensibilidade quanto à humanidade. Está um sujeito que, notoriamente, tem muito a cooperar com o processo de humanização, ou seja, de ressignificação das nossas relações. Frisamos que essas condições são imprescindíveis para que o trabalho faça sentido e realize os sujeitos, a fim de a democracia ser, de fato, democrática (mais uma vez, a redundância foi empregada de forma proposital).

Evidentemente, há muitos “não ditos” e interesses latentes não observáveis em uma primeira leitura a respeito das políticas educacionais curriculares. Por mais que soe uma reflexão, em certa medida, um tanto repetitiva, quando nos propomos a discutir sobre a constituição de sujeito, estamos defendendo uma Paideia respaldada no desenvolvimento humano, a fim de gerar possibilidades de formação humana integral, possibilidades estas que perpassem pela construção de uma cidadania vigorosa, recorrendo-se sempre a uma justiça social. É nesse sentido que acreditamos que o ato de educar sujeitos investigadores se difere do ato de focalizar o preparo de sujeitos que somente executem ou sigam ordens.

Nessa linha de raciocínio, Romano (2001) nos presenteia com uma passagem pertinente em relação à subserviência e ponderamos ser necessário evidenciá-la na última seção deste texto, pedindo licença para isso. O professor de Filosofia Política e Ética respalda-se em Diderot, na “Apologia do Padre Raynal”, expondo:

[...] “há na sociedade tantos impertinentes papagaios que falam, que falam, que falam sem saber o que dizem, e mostram tanto prazer quando expandem o mal, que o maledicente ou caluniador consegue num dia mil cúmplices”. Não devemos mascar as palavras: quem banaliza as doutrinas sobre o bem, gera o mal. E isso não significa nenhum “maniqueísmo moralista”, mas apenas honesta lucidez (Romano, 2001, p. 97).

Assim, ao pensarmos na constituição de sujeito norteada pelo que prescreve a BNCC, chegamos à conclusão de que a educação histórica é o caminho para que comecemos a eliminar questões de subserviência para não termos sujeitos que reproduzam discursos superficiais e prejudiciais à formação humana. Novamente, vale a observação: para não termos sujeitos que ajam como “papagaios”, como muito bem ilustrou a citação apresentada, ainda mais em tempos de transmissão de mensagens por intermédio das redes sociais.

Na oportunidade, destacamos que a abordagem por competências, longe de ser um pensamento consensual, tem mobilizado muitas discussões, interpretações e debates, particularmente no campo da pesquisa em educação sobre currículos. A BNCC, por exemplo, é uma fonte situada em uma dimensão macropolítica, por ser caracterizada como um texto normativo, mas também se situa em uma dimensão de um discurso instrucional no campo das políticas curriculares. Desde a década de 1960, cresce o interesse de fomentar a estruturação de um currículo nacional comum. Vemos que o fortalecimento desse projeto se efetivou com a elaboração, aprovação e homologação da BNCC entre os anos de 2017 e 2018.

Em meio às reflexões já realizadas, depreendemos que a democracia de acordo com a qual vivemos é questionável. Expliquemos: o sujeito tem uma consciência histórica limitada de sua cidadania. Parece que, efetivamente, as instituições de Estado consideram que o cidadão, em essência, não é um sujeito responsável e consciente. Dessa forma, indagamos e, em seguida, respondemos: o que é um sujeito reflexivo? É aquele que conhece o seu entorno; é aquele que se localiza no seu tempo histórico. Aqui está a relação entre currículo, memória e consciência histórica: a noção de currículo abarca a ideia de lugar, espaço, território. Currículo é um produto cultural. Em sua territorialidade, há uma memória. E, para nos constituirmos enquanto cidadãos, devemos nos conscientizar historicamente para entender todos os significados que estão em torno de um currículo, a fim de que não haja a manipulação de uma memória, mas, sim, sua preservação.

Nesse sentido, com vistas a encerrar nossas reflexões, trazemos as respostas às perguntas proferidas no início deste texto: a constituição de sujeito promulgada pela BNCC não converge, verdadeiramente, com uma formatação emancipatória e/ou reflexiva. Há uma ausência de intelectualidade, justamente por não colocar em efetivo exercício um trabalho de conscientização a respeito de nossa cidadania. Essa conscientização é constante. Logo, remetemos ao compromisso social que mencionamos na seção introdutória, ressaltando a importância de que nos sintamos responsáveis pela formação dos próximos cidadãos. Na condição de professores, pesquisadores e, o mais importante, sujeitos, nós temos de nos preocupar em fazer com que os nossos estudos ou as nossas práticas respaldadas em uma conscientização histórica atinjam, de alguma forma, a sociedade, os ‘homens comuns’, como muito bem chama atenção Oliveira (2016). Salientamos que a nossa consciência história apenas é formada a partir de uma noção de conjunto. É preciso, portanto, de um conhecimento amplo que esteja dentro de uma pluralidade. Para qualquer constituição que remeta à civilidade, ao sujeito, pensemos no bem comum.

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NOTAS

1 A BNCC seria uma política de Estado, segundo inspirativo artigo de Dalila A. Oliveira, intitulado “Das Políticas de Governo à política de Estado: reflexões sobre a atual agenda educacional brasileira” (Oliveira, 2011).

2 “[...] da mesma forma que, para os alunos, oferece-se um kit de habilidades para sobrevivência, oferece-se ao professor um kit de sobrevivência docente (treinamento em métodos e técnicas, uso de livro didático, formação pela EaD). A posição do Banco Mundial é pela formação aligeirada de um professor tarefeiro, visando baixar os custos do pacote formação/capacitação/salário” (Libâneo, 2012, p. 20, grifo do autor).

Recebido: 22 de Março de 2021; Aceito: 07 de Julho de 2022; Publicado: 30 de Novembro de 2023

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