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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub 26-Fev-2024

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e58986 

Artigos

Narrativa (auto)biográfica:memórias e partilhas de sentidos atribuídos à docência e a formação da professora-educadora ambiental

(Auto)biographical narrative:memories and sharing of meanings attributed to teaching and the training of the environmental teacher-educator

Narrativa (auto)biográfica:memorias y puesta en común de significados atribuidos a la enseñanza y la formación del profesor-educador ambiental

Fernanda Seidel Vorpageli 
http://orcid.org/0000-0002-4589-5819

Cláudia da Silva Cousinii 
http://orcid.org/0000-0002-8250-6800

i Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Educação Ambiental (PPGEA) da Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Professora do município de São Paulo das Missões - RS. E-mail: vorpagelfernanda@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-4589-5819.

ii Doutora em Educação Ambiental pelo Programa de Pós-graduação em Educação Ambiental (PPGEA) da Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Docente da FURG. E-mail: profaclaudiacousin@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-8250-6800.


Resumo

Apresenta-se uma escrita reflexiva (auto)biográfica acerca de experiências formativas da professora pesquisadora e educadora ambiental, como estratégia para a interpretação e emergência de sentidos pedagógicos do ser professor(a). Como a escrita (auto)biográfica contribui para a compreensão das experiências fundantes no processo formativo da professora-educadora ambiental? A narrativa está centrada num cenário de Pesquisa-Formação e fundamentada no método fenomenológico-hermenêutico, em atenção às quatro categorias estruturantes para a reflexão do processo de investigação: espacialidade; corporeidade; temporalidade e relacionalidade (Van Manen, 2003). Compreende-se que a experiência pode vir a constituir diferentes signos e significados, atribuídos pela subjetividade do sujeito, de acordo com a circunstancialidade socioambiental do momento vivido.

Palavras-chave: (auto)biografia; educação ambiental; experiência vivida; formação de professores; reflexão

Abstract

A reflexive (auto)biographical writing about the formative experiences of the teacher, researcher and environmental educator is presented, as a strategy for the interpretation and emergence of pedagogical meanings of being a teacher. How does (auto)biographical writing contribute to the understanding of the foundational experiences in the formative process of the environmental teacher-educator? The narrative is centered on a Research-Training scenario and based on the phenomenological and hermeneutic method, in attention to the four structuring categories for the reflection of the research process: spatiality; corporeality; temporality and relationality (Van Manen, 2003). It is understood that the experience can constitute different signs and meanings, attributed by the subjectivity of the subject, according to the socio-environmental circumstantiality of the moment lived.

Keywords: (auto)biography; environmental education; lived experience; teacher training; reflection

Resumen

Se presenta una escritura (auto)biográfica reflexiva sobre las experiencias formativas del docente, investigador y educador ambiental, como estrategia para la interpretación y emergencia de significados pedagógicos del ser docente. ¿Cómo contribuye la escritura (auto)biográfica a la comprensión de las experiencias fundacionales en el proceso formativo del docente-formador ambiental? La narrativa se centra en un escenario de Investigación-Formación y se basa en el método fenomenológico-hermenéutico, prestando atención a las cuatro categorías estructurantes para la reflexión del proceso de investigación: espacialidad; corporalidad; temporalidad y relacionalidad (Van Manen, 2003). Se entiende que la experiencia puede constituir diferentes signos y significados, atribuidos por la subjetividad del sujeto, de acuerdo con la circunstancialidad socioambiental del momento vivido.

Palabras clave: (auto)biografía; educación ambiental; experiencia vivida; formación de profesores; reflexión

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A educação de sujeitos acontece nas diferentes interações sociais do cotidiano vivido, assim como a formação de professores. No entanto, apesar de nossas experiências de vida compartilhadas e, por vezes, viver um fenômeno coletivo, não significa que experimentamos e/ou descrevemos e interpretamos o fato do mesmo modo. A pandemia do Coronavírus (Covid-19), por exemplo, é um fenômeno global e, portanto, coletivo, mas cada sujeito tem uma narrativa própria com relação a ela, que é particular e singular, a partir das experiências vivenciadas que são múltiplas e diversas.

A tessitura da investigação fenomenológica-hermenêutica (Van Manen, 2003) que se propõe ao diálogo neste texto, diz respeito à experiência de vida, em especial, àquelas que constituem a trajetória educativa da professora-educadora ambiental. Desse modo, no exercício da escrita atenta-se para a seguinte interrogação: como a escrita (auto)biográfica contribui para a compreensão das experiências fundantes no processo formativo da professora-educadora ambiental? A intenção é a partir do exercício de narrar, caminhar para si (Josso, 2010), ou seja, entender o processo formativo que se percorre e o próprio papel diante dele, tudo isso, pelo exercício da escrita reflexiva (auto)biográfica.

No percurso da vida, Warschauer (2017), com a metodologia da Roda & Registro, destaca que do ponto de vista da formação cada sujeito se apropria da sua maneira a partir das experiências vividas, faz aprendizagens específicas, atribuindo sentidos próprios a sua trajetória. A metodologia da Roda & Registro consiste em uma continuidade de encontros com um mesmo grupo de pessoas, pautado em reflexões e na partilha destas, ou seja, a roda tem o diálogo como eixo estruturante e o exercício da escrita como momento para sistematização e organização dos conhecimentos. “As Rodas ganham profundidade com a ajuda dos Registros. E os Registros ganham sentido com a frequência das Rodas” (Warschauer, 2017, p. 105).

De acordo com Warschauer (2017), a formação não diz respeito somente às experiências em si, mas se sustenta da reflexão sobre elas e do significado que lhe atribuímos. Desse modo, não se trata apenas de mera descrição de experiências vivenciadas, a questão vai muito além, envolve comprometimento e seriedade no refletir e agir com a pesquisa, especialmente porque ao narrar busca-se compreender a constituição ontológica do sujeito que se dá no devir existencial marcado pelas múltiplas experiências. Para Freire (2013, p. 14), “a primeira condição para que um ser possa assumir um ato comprometido está em ser capaz de agir e refletir”.

Nesse sentido, a reflexão embasada no estudo fenomenológico-hermenêutico, não se trata de um sistema fechado que tem a pretensão de provar um fenômeno, de que determinada forma de escrita, por exemplo, é mais efetiva que outra. O método fenomenológico-hermenêutico não apresenta um sistema baseado em procedimentos, o que ele requer e exige é a capacidade de ser reflexivo, intuitivo, sensível à linguagem e constantemente aberto à experiência (Van Manen, 2003).

É primordial destacar que esse método requer atenção em relação à tessitura do texto, pois “el planteamiento textual que se escoja en el estudio fenomenológico debe decidirse principalmente en términos de la naturaleza del fenómeno que se estudia y del método investigacional que parezca más apropiado para él” (Van Manen, 2003, p. 189). Desse modo, dentre as abordagens de escrita sugeridas por esse autor, o presente texto se embasa de maneira existencial, porque considera as quatro existências como guias interpretativas: a temporalidade, a espacialidade, a corporeidade e a relacionalidade. Essas visam explicar, de acordo com Van Manen (2003, p. 13), “los significados que, en cierto sentido, están implícitos en nuestras acciones. Tenemos información a través de nuestros cuerpos, de nuestras relaciones. Con los demás y de nuestra interacción con los objetos de nuestro mundo”.

Cabe destacar que Van Manen (2003), apresenta cinco alternativas para estruturar um estudo investigativo, a saber: “de forma tematica; de forma analítica; mediante ejemplos; exegéticamente e de manera existencial”. Ao explicitar essas possíveis alternativas para estruturar um estudo de investigação na perspectiva fenomenológica-hermenêutica, ressalta que elas não são mutuamente exclusivas, ou seja, uma não anula a outra, podendo até se fazer uma combinação entre as cinco e/ou inventar uma organização totalmente diferente.

Ao se tratar da formação como temática essencial dessa reflexão, Josso (2010) contribui nesse diálogo ao problematizar: como pensar a formação? Para essa autora, isso significa considerar as diferentes feições ao conceito, a saber: a ideia da formação na linguagem comum, nas ciências do humano, como enculturação, formação como aprendizagem das condutas, das competências e de conhecimentos, como processo de mudança, produção de sua vida e elaboração de sentidos.

Dentre o arcabouço das possibilidades de se pensar a formação, a autora, considera os miniprocessos, etapas de socialização, que são balizas do processo de formação: as etapas oficiais da formação, construção da escolha profissional, delimitação do espaço profissional, evolução da identidade profissional as raízes e os afastamentos culturais. Os elementos acerca da questão do pensar a formação e seus processos são abarcados nessa discussão, tendo em vista sua intrínseca importância na (auto)biografia da professora-educadora ambiental.

Nesse sentido, na tessitura dessa reflexão, com o objetivo de compreender as experiências ambientais, a partir da narrativa (auto)biográfica, na perspectiva fenomenológica-hermenêutica, o presente artigo é organizado em dois momentos. No primeiro, é apresentado o referencial teórico-metodológico que embasa as interpretações suscitadas pela pesquisa. Em um segundo momento, as interpretações e reflexões das experiências vividas são problematizadas, para assim compreender como esse processo narrativo se torna formativo no decurso das construções teóricas. Esse se constitui na escrita de si, ou seja, por se tratar de escrita (auto)biográfica da professora, se encontra na primeira pessoa do singular.

Por fim, espera-se que a leitura deste texto possa ser feita a partir das lentes da fenomenologia-hermenêutica que “requiere que seamos sensiblemente atentos al silencio que hay entorno a las palabras mediante las cuales intentamos desvelar el significado profundo de nuestro mundo” (Van Manen, 2003, p. 147). A intenção é compreender experiências concretas vividas através da linguagem, por isso, este texto necessita ser lido como lemos poesia, onde as palavras ganham sentidos outros e ampliam a imaginação.

2 ESCRITA (AUTO)BIOGRÁFICA: UMA APROXIMAÇÃO FENOMENOLÓGICA-HERMENÊUTICA

As vertentes teórico-metodológicas de estudos que se centram no campo da narrativa (auto)biográfica são embasadas em diferentes fundamentações e modos de se fazer e entender a escrita de si. Sem desconsiderar a pluralidade desse campo, Bragança (2018), problematiza a “pesquisa (auto)biográfica” fazendo submergir, na construção do conhecimento, os atravessamentos das diferentes abordagens que vêm reinventando modos de viver, narrar, pesquisar e formar. Nesse sentido, a proposta de investigação deste estudo dirige o seu olhar, em especial, a partir das contribuições de Josso (2010); Morais e Bragança (2021), Van Manen (2003) e Warschauer (2017), que trazem significativas contribuições para a narrativa de si, da formação e do modo investigativo.

Dentre as inúmeras abordagens possíveis, a narrativa (auto)biográfica que se assume, neste texto, está fundamentada em uma proposta teórico-metodológica que vai ao encontro da perspectiva fenomenológica-hermenêutica. A escolha, por assim conduzir o estudo, se explica a partir da compreensão das leituras desse campo de pesquisa que abrem novas possibilidades investigativas e assim potencializam a produção de conhecimento. Cabe destacar que não existe uma receita investigativa a ser seguida, e nem poderia existir, pois a riqueza da produção de conhecimento está exatamente nos diferentes modos de se fazer, entender e viver a pesquisa, em especial, no campo da educação. O que não podemos deixar de lado são os caminhos metodológicos do fazer e o comprometimento com a pesquisa.

Retomando o conceito (auto)biográfico, esclarecemos que o “auto”, nas palavras de Bragança (2018, p. 69) “se constitui e se expressa com os outros, como expressão da poiésis vital que envolve necessariamente as relações socioculturais que nos atravessam e habitam”. Para a autora, a narrativa é fonte de pesquisa e formação em um entrelaçamento indissociável, ainda mais, quando o conhecimento é implicado na relação com o outro, com a escola básica, em busca do sentido militante que nutre as histórias de vida, indicando um caminho aberto para a construção de saberes.

Nessa direção, buscamos na fenomenologia e na hermenêutica um modo de aprofundar a compreensão de si, do processo formativo e dos sentidos explicitados neste estudo, pois objetivamos que o leitor se sinta convidado à reflexão, mesmo que de forma introspectiva. Para Morais e Bragança (2021), a hermenêutica nos conduz a pensar em um modo outro de compreensão do conhecimento científico, que se dá através das experiências cotidianas do vivido e da composição da narrativa desse experienciar, que ganha legitimidade ao significar os acontecimentos da vida como elementos organizados no interior de um todo. O movimento de narrar o cotidiano e a profissão docente compõe esse todo, onde tramas pessoais e acadêmicas se imbricam aos sentidos da pesquisa em suas interfaces com a vida.

A fenomenologia trata da maneira de aparecer, do que se mostra em relação ao fenômeno. Dartigues (2008), ao resgatar a história do termo, evidencia que a palavra fenomenologia é encontrada pela primeira vez no texto “Novo órganon” em 1764 de J. H. Lambert, quando é compreendida como teoria da ilusão sob suas diferentes formas. Em um segundo momento, Kant, em 1770, retoma o termo em uma carta destinada a Lambert, em que preferiu usar o termo “estética transcendental”, o que, de certa forma, retardou a ascensão do termo “fenomenologia”.

No interstício de idas e vindas da problematização acerca da construção do termo, pontuamos que ele se consolida na tradição filosófica e passa a ser de uso recorrente, a partir da “Fenomenologia do Espírito” de Hegel em 1807. A compreensão acerca da fenomenologia pode apresentar nuances que se distinguem, de acordo com a perspectiva teórica, a exemplo, de Hegel e Kant cuja principal diferença reside na concepção das relações entre o fenômeno e o ser ou o absoluto (Dartigues, 2008). Nesse sentido, podemos citar, sem desmerecer outros autores, os principais expoentes do campo de pesquisa fenomenológico-hermenêutico: Edmund Husserl (1859-1938), Martin Heidegger (1889-1976), Jean-Paul Sartre (1905-1980), Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) e Cerbone (2013).

Neste texto, o uso do termo “fenomenológico-hermenêutico”, é explicado a partir de Van Manen (2003, p. 43), que define a fenomenologia e a hermenêutica como: “la fenomenología, en tanto que pura descripción de la experiencia vivida, y la hermenêutica, en tanto que interpretación de la experiencia mediante algún texto”. Para esse autor não há problema em usar o termo fenomenológico-hermenêutico (em consonância), porque “se reconoce que los “hechos” (fenomenológicos) de la experiencia vivida son siempre ya experimentados de forma significativa, es decir, hermeneuticamente” (Van Manen, 2003, p. 196).

O método fenomenológico-hermenêutico, bem como, a narrativa (auto)biográfica se expandem em diversas perspectivas. De acordo com Bragança (2018), reafirmamos que uma narrativa acontece com os outros, envolvendo as relações socioculturais. Desse modo, se a escrita (auto)biográfica é entrelaçada por fatores sociais, cabe então considerar e chamar para o diálogo do processo de investigação: a espacialidade; a corporeidade; a temporalidade e a relacionalidade (Van Manen, 2003).

Nessa direção, o movimento de narrar a profissão docente e a vida, se constitui pelas narrativas de outros tantos que nos compõem. Para Morais e Bragança (2021), esse exercício amplia nosso leque de saberes e promove a contínua aprendizagem da profissão, da pesquisa e dos diferentes aspectos que podem emergir do processo narrativo. Nesse sentido, a abordagem da pesquisa-formação narrativa (auto)biográfica implica em um modo de compreender também a si, que “ganha legitimidade em espaçostempos em articulação com os percursos trilhados e dos contextos, pessoas e na temporalidade em que se inscreve” (Morais; Bragança, 2021, p. 10).

Vale relembrar que o cenário de pesquisa-formação, favorece sobremaneira a tomada de consciência do pesquisador e dos sujeitos envolvidos na pesquisa sobre suas intencionalidades, fragilidades, e sobre as (in)constâncias dos desejos e dos projetos de vida. Nesse tipo de pesquisa, os sujeitos envolvidos estão em aprendizagem e, por meio da experiência vivida, tomam consciência do que são e do papel que podem exercer na sociedade (Josso, 2010). Em consonância, Alarcão (2011) destaca que a escrita é um encontro conosco e com o mundo, é uma fala com o nosso íntimo, implicando reflexões em níveis de profundidade variados. Para essa autora, o modo como os seres humanos experienciam o mundo é revelado pela narrativa.

O processo de escrita, no encontro conosco, é também discutido por Marques (2001). Para ele, o tema de pesquisa precisa demarcar um campo específico de desejos ancorados na estrutura subjetiva do sujeito, ou seja, precisa fazer sentido na realidade vivenciada pelo pesquisador. Desse modo, o tema de investigação não pode ser imposto, pelo contrário, precisa ser construído pelo próprio sujeito e tornar-se paixão. Cabe destacar que “da experiência antecedente, dos anteriores saberes vistos como insuficientes e limitantes nasce o desejo de conhecer mais e melhor, a partir de um foco concentrado de atenções” (Marques, 2001, p. 92). De acordo com Van Manen (2003 p. 143), “escribir nos enseña qué es lo que sabemos y em qué modo conocemos lo que sabemos”.

O modo de escrita sobre si mesmo, problematizado por Van Manen (2003), vai ao encontro do que propõe Josso (2010, p. 135), ao afirmar que “o método de narrativas de vida torna-se um suporte para a tomada de consciência do sentido de sua formação atual em sua trajetória, das exigências e das margens de manobra presentes no agir e no pensar atuais do estudante”. Nesse contexto, Warschauer (2017) traz importantes contribuições para pensar a utilização das histórias de vida na formação e, dessa forma, já revela a potencialidade que o ato de pensar as experiências vivenciadas, têm na formação dos sujeitos, sejam eles atuantes do campo educacional ou empresarial.

Nesse sentido, Warschauer (2017) reflete sobre sua trajetória de vida e profissional após trinta anos de práticas com a metodologia Roda & Registro que teve início no campo empresarial e foi sendo sistematizada, estruturada e recriada. Esse processo contínuo de estudos permitiu a definição do que era específico de cada contexto e o que era genérico da metodologia. Em seus escritos, destaca que “refletir sobre as experiências vividas é um caminho importante para a criação do novo e de novos caminhos. Tanto no nível macro quanto no micro. Nas empresas e nas escolas” (Warschauer, 2017, p. 106).

Nessa toada, considerando o processo de escrita como ferramenta para anunciar as problematizações suscitadas pela temática da pesquisa, é necessário considerar que essa necessita de uma estrutura organizacional para que possa ser compreendida pelos sujeitos leitores. Desse modo, retomando a perspectiva fenomenológica-hermenêutica, destacamos que Van Manen (2003) problematiza cinco possíveis alternativas para estruturar um estudo de investigação.

A primeira, “de forma temática”, diz respeito aos temas que são utilizados como guias para escrever o estudo, sendo essa proposta discutida a partir de exemplos. A “forma analítica” possibilita que entrevistas realizadas sejam reelaboradas e convertidas em histórias de vida reconstruídas. A terceira alternativa, “mediante ejemplos”, que como o próprio nome já revela, trata-se de exemplos alicerçados na experiência vivida. Na sequência, o enfoque “exegéticamente” se orienta a partir da literatura fenomenológica disponível nas humanas e se organiza em torno de uma discussão de determinados textos e temas estruturados, que os autores tenham identificado e discutido. Por fim, temos “de manera existencial”, um modo de proceder a escrita fenomenológica que pode se dar na descrição de si mesmo, a exemplo, da questão do significado de ser pais (Van Manen, 2003).

A ênfase da investigação deste texto está orientada no quinto modo que trata, conforme já mencionado, da “manera existencial” (Van Manen, 2003), o que não exclui de nenhuma forma as demais. Esse modo investigativo requer o entendimento das quatro existências, ou seja, da espacialidade, da corporeidade, da temporalidade e da relacionalidade, pois essas podem ser compreendidas como guias interpretativas.

A espacialidade, um dos elementos de discussão do modo investigativo “de manera existencial”, constitui o espaço vivido e sentido (Van Manen, 2003). Para esse autor, quando pensamos em espaço lembramos primeiro do espaço matemático, ou seja, das distâncias entre cidades, do tempo cronológico que levamos para nos deslocar de um lugar a outro, das dimensões espaciais da casa em que moramos. No entanto, é mais difícil expressar em palavras a experiência no espaço vivido, pois o mesmo lugar físico pode ter diferentes sentidos atribuídos de acordo com as circunstancialidades do momento. O lugar em que estamos, afeta o modo como nos sentimos, se o ambiente de trabalho, por exemplo, não está harmonioso é possível não se sentir bem. Desse modo, acerca da compreensão do lugar enquanto circunstancialidade, corroboramos Marandola Jr. (2014, p. 230), “é a busca por um entendimento fenomenológico da experiência contemporânea, a qual não pode se furtar da resistência do espaço às nossas intencionalidades e volições”.

A corporeidade, de acordo com Chaveiro (2014), trata da relação do corpo com o lugar e o mundo. O espaço é a categoria que faz a mediação na relação de experiência do corpo com o mundo por intermédio daquilo que é possível, portanto vivenciável e experienciável: o lugar (Chaveiro, 2014). Desse modo, a corporeidade é elemento central na vida de um sujeito, já que nossa própria história está intrinsecamente ligada ao fator social, ou seja, nossas experiências se coadunam por meio de relações que se constituem em diferentes lugares.

Nessa perspectiva, a relação do corpo com o mundo envolve fatores de interação, reciprocidade, subordinação, alienação e, por vezes, tentativas de ser aceito(a) em determinados lugares. Chaveiro (2014) aponta que todas as instituições, por exemplo, possuem prerrogativas para os corpos, e assim afirma que “a corporeidade é biopsiquicossocial, por isso, o seu controle ou a sua subordinação ocorre, desde sempre, por estratégias invisíveis” (Chaveiro, 2014, p. 254). Desse modo, a narrativa (auto)biográfica acerca das experiências formativas da professora-educadora ambiental também está atravessada pela corporeidade e suas relações de prerrogativas para com os lugares. A escola enquanto lugar, por exemplo, também é atravessada por subjetividades outras, não estando isenta de conflitos ou de controle.

A temporalidade não se refere ao tempo cronológico, mas sim ao tempo subjetivo, o que nas palavras de Van Manen (2003) significa o tempo vivido, aquele que parece acelerar quando estamos nos divertindo, e/ou desacelerar em uma aula em que nos encontramos desencaixados1. O tempo vivido é também a nossa forma de ser-e-estar-no-mundo, seja enquanto jovens, que vivemos pelo esperançar do amanhã ou como pessoas mais experientes que lembram e recordam o passado. Ainda de acordo com o autor, cabe rememorar as dimensões temporais, que constituem os horizontes das paisagens, a saber: passado, presente e futuro, vividos e contemplados neste texto.

A relacionalidade, também chamada relação humana vivida, de acordo com Van Manen (2003), são relações vividas no espaço interpessoal, que mantemos e compartilhamos com as pessoas. De acordo com esse autor, quando nos encontramos com outra pessoa existe a possibilidade de desenvolver uma relação de conversação que permite transcender a nós mesmos. “En un sentido existencial más amplio, los seres humanos hemos buscado en esta experiencia del otro lo común, lo social, para un sentimiento de propósito en la vida, de significado, de base para vivir [...]” (Van Manen, 2003, p. 123). Acreditamos que essa experiência da relacionalidade também transcorra no momento, por exemplo, em que lemos uma experiência de vida com a qual nos identificamos e interagimos, mesmo que no silêncio dos nossos pensamentos.

Nessa direção, a partir da investigação “de manera existencial”, com abordagem fenomenológica-hermenêutica (Van Manen, 2003) e (auto)biográfica, caminha junto a interrogação inicial: como a escrita (auto)biográfica contribui para a compreensão das experiências fundantes no processo formativo da professora-educadora ambiental? Acreditamos que a própria perspectiva teórica adotada já potencializa, em parte, a problematização dessa questão. Para adensar a discussão, a partir da interrogação proposta, apresentamos no próximo subtítulo a história de vida da pesquisadora, professora-educadora ambiental, a partir da escrita (auto)biográfica.

3 HISTÓRIA DE VIDA EM FORMAÇÃO: (AUTO)BIOGRAFIA DA PESQUISADORA PROFESSORA-EDUCADORA AMBIENTAL

Iniciarei esta escrita contando para vocês do meu hábito de caminhadas matinais, especialmente no verão, pois o inverno é rigoroso onde moro na região Sul do Brasil, devido às baixas latitudes. Nesse caminhar, seja ele ao amanhecer ou ao anoitecer, penso na vida, intrinsecamente faço o planejamento do dia que tenho pela frente, ou reflito sobre as ações do dia que já se passaram, penso no futuro e projeto o que preciso fazer para me tornar uma pessoa mais humana, no sentido de reciprocidade para com o meu próximo. Nesse movimento, no exercício da caminhada converso com o meu eu, aproveito a brisa do vento que bate no meu rosto, enfim, é um momento meu com o ser-e-estar nesse mundo, pois me permite o exercício de também caminhar para si, ou seja, a constituição do Ser-aí heideggeriano. As caminhadas são, para mim, experiências meditativas, educativas e reflexivas, sem contar que o exercício físico é um aliado para nosso bem-estar.

Nesse caminhar, conto minha história de vida, em especial, as experiências que dizem respeito ao meu percurso formativo. Esse contar permite a você leitor(a), uma compreensão e interpretação da narrativa, inicialmente construída em uma “Roda de Dois” (Warschauer, 2017) com a orientadora desta pesquisa. Para Warschauer (2017, p. 117), “apesar de haver “só” duas pessoas, há um movimento circular, espiralado, que promove uma retomada das questões em níveis mais profundos, progressivamente”.

A história de minha vida é como o exercício de minha caminhada, apesar de poder fazer o mesmo percurso geográfico (a paisagem pode sofrer mudanças), as experiências e os sentidos atribuídos não são os mesmos. Conto minha história com os olhos do presente, pois amanhã pode ser que eu já tenha mudado a interpretação acerca do que me passou. De acordo com Van Manen (2003), à medida que o tempo passa e vamos evoluindo, re(interpretamos) a pessoa que um dia fomos e aquele que consideramos ser hoje. O que aconteceu no passado volta como memória ou como uma experiência, quase esquecida, que de alguma forma deixa seu rastro na existência da vida.

A caminhada, por vezes, tem suas paradas, não no sentido estacionário, mas para adensar o significado de outras possíveis vivências. No exercício físico do caminhar, por exemplo, já realizei uma parada para observar a travessia de um caracol, e no percurso da vida me afastei momentaneamente das atividades laborais de meu trabalho, para vivenciar uma formação acadêmica. Cabe destacar que apesar de manter minha atenção voltada para os processos formativos institucionalizados, não desconsidero as experiências formativas vivenciadas em espaços não formais, a exemplo, das vivências com o Povo e Comunidade Tradicional Pomerano aos quais pertenço. A educação e a formação não dizem respeito somente àquelas obtidas em instituições formais, que fornecem um diploma, a educação “é um processo livre - em tese -, de relação entre pessoas e grupos, que busca maneiras para reproduzir e/ou criar aquilo que é comum - seja como trabalho ou estilo de vida - a uma sociedade, povo, grupo ou classe social” (Loureiro, 2019, p. 22).

Já adianto que nunca caminhei sozinha, o caminhar, seja ele da vida ou do exercício físico, está articulado intrinsecamente com o espaço socioambiental, a corporeidade, a temporalidade e a relação humana vivida. Compreendo esses elementos como basilares na narrativa de minha história de vida. Por isso, exploro cada um deles no processo de descrição e interpretação de minhas vivências. Para Morais e Bragança (2021), as experiências vividas, em dinâmicas singulares-plurais, vão tecendo uma figura de si e do nós em permanente devir, e a biografização favorece uma reflexividade potencialmente formadora.

Sem mais delongas, inicio a caminhada de meu percurso formativo na educação básica, integralmente realizada em uma única escola pública. Pelo fato de morar na zona rural não cursei a etapa da educação infantil. Uma das peculiaridades do meu começo na educação formal, no primeiro ano do ensino fundamental, diz respeito à experiência de vivenciar um espaço culturalmente diferente para mim. Meu ingresso na escola foi desafiador, pois minha língua materna é o Pomerano e na escola só se falava português. Hoje penso em como superei esses desafios enquanto criança que precisou se deslocar diariamente da zona rural para estudar na zona urbana, aprender a falar a língua portuguesa e conviver com diversas experiências que naquela época me eram totalmente novas. Apesar do lugar-escola impor prerrogativas, tive uma boa adaptação na escola, pois não me recordo de episódios frustrantes que possam ter produzido traumas.

Para compreender os lugares de formação que contribuem no meu processo de constituição, cabe avançar na discussão sobre os sentidos do lugar e de pertencimento. Entendo o lugar de pertencimento a partir de sentidos atribuídos a um lugar no espaço, por vezes, o mesmo lugar é compreendido por diferentes formas, pois a vivência humana de cada sujeito reveste o lugar de sentido, segundo suas experiências. De acordo com Oliveira (2014, p. 12) “lugar é um mundo de significados organizados, a um tempo estático e a outro dinâmico; são caminhos que se tornam lugares significativos”. Hoje compreendo que o lugar escola me acompanha desde sempre, da educação fundamental até agora na vida adulta, onde meu lócus de trabalho é a escola enquanto professora alfabetizadora.

Ao discutir a espacialidade, espaço vivido e sentido, Van Manen (2003) chama a atenção para os sentidos atribuídos às vivências, que mudam de acordo com as circunstancialidades do momento. “Un lugar puede estar geográficamente cerca y, aun así, sentirse muy lejos porque debemos cruzar un río o adentrarnos en algunas calles con tráfico denso” (Van Manen, 2003, p. 121). Essa discussão também é problematizada por Marandola Jr. (2014), ao colocar em debate o sentido de lugar no mundo contemporâneo, buscando na ontologia fundamental de Heidegger e na ontologia da modernidade de Giddens um ponto de diálogo para pensar o lugar enquanto circunstancialidade. A partir dessa interlocução, Marandola Jr. (2014) define que se a circunstancialidade é estruturante para se compreender o sentido de lugar, este deve ser entendido “no centro do mundo circundante da cotidianidade, enquanto fundamento espacial da existência” (Marandola Jr., 2014, p. 245).

A partir da perspectiva do lugar significado pelas experiências, destaco a vivência na escola, durante a etapa da educação básica, como fundamento basilar na decisão em ser professora. Pois, vejo nos meus professores a potencialidade que eles têm de “mudar” a vida das pessoas e essa visão me encaminhou para os lugares da docência. Essa questão também é apontada por Warschauer (2017), ao dialogar com seus alunos sobre as lembranças que eles guardavam da época em que ela foi professora deles, “mostrou-se claro como nós, professores alunos ou colegas deixamos marcas uns nos outros. Marcas por vezes profundas, e que podem perdurar por muitos anos. Uma grande responsabilidade” (Warschauer, 2017, p. 26). Desse modo, retomando a trajetória, após a conclusão do Ensino Médio decidi cursar Licenciatura em Pedagogia, na cidade de minha residência, em São Paulo das Missões, no Rio Grande do Sul.

Não satisfeita com a instituição privada, gestão e organização do curso, no ano seguinte fiz o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e fui aprovada para o curso de Licenciatura em Química na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus de Cerro Largo. Naquele momento eu trabalhava e estudava de forma concomitante, sendo que no segundo ano do curso tive a possibilidade de passar a integrar o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), me tornando bolsista. Esse programa me oportunizou inúmeras experiências significativas, naquele momento eu passava a refletir sobre minhas ações, participava de eventos científicos e ensaiava minhas primeiras vivências na docência.

As aprendizagens experienciadas no Pibid permitiram reflexões que me levaram à construção de outros olhares e sentidos atribuídos ao lugar escola. Este era o mesmo, mas o significado atribuído a ele era diferente, eu não era mais uma aluna na escola, pois agora eu tinha responsabilidades para com a educação dos sujeitos. De acordo com Alarcão (2011, p. 44), “a noção de professor reflexivo baseia-se na consciência da capacidade de pensamento e reflexão que caracteriza o ser humano como criativo e não como mero reprodutor de ideias e práticas que lhe são exteriores”.

Retomando o percurso formativo, durante a graduação de Licenciatura em Química, destaco que a oportunidade de vivenciar o Pibid e posteriormente a Iniciação Científica (IC), me conduziram ao Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental (PPGEA) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Ao concluir o curso de licenciatura e iniciar o mestrado, também decidi retomar o curso de Pedagogia. Desse modo, essa foi minha segunda licenciatura, desta vez, realizada na modalidade de Educação a Distância (EAD).

Vivenciei o mestrado com muito gosto, pois apesar das dificuldades da vida, eu estava lá! (em Rio Grande). Já no primeiro ano do mestrado, vi novamente uma oportunidade de avançar intelectualmente e pessoalmente, a partir de um edital que possibilitou uma mobilidade acadêmica em outra instituição brasileira e/ou no exterior. Visando alargar meus conhecimentos, decidi participar do processo seletivo, e para minha alegria obtive a aprovação do projeto e fui selecionada.

A mobilidade acadêmica realizada na Universidade Pedagógica Nacional (UPN) - Colômbia oportunizou a ampliação dos conhecimentos científicos e da minha visão de mundo, destaco que ela é um dos fenômenos do processo de internacionalização da Pós-graduação. Essa experiência me permitiu conhecer e discutir questões da práxis docente, articuladas à Educação Ambiental no Brasil e na Colômbia, possibilitou a revisão de conceitos, a quebra de paradigmas e um olhar mais reflexivo a respeito das práticas de Educação Ambiental. Desse modo, se constituiu em um momento de desenvolvimento de habilidades técnico-científicas e interpessoais, de aperfeiçoamento das competências linguísticas e de construção de personalidade, independência e maturidade (Vorpagel; Cousin; Ariza, 2020).

Na universidade, dentre as atividades que envolvem interações com as escolas de Educação Básica, e das quais participei, cabe um destaque para a participação no Encontro e Diálogos com a Educação Ambiental (EDEA), do qual participo desde o ano de 2018. A estima que tenho por esse evento, decorre principalmente em função dos diálogos que são promovidos e que me auxiliam a adensar minha práxis pedagógica, em especial atenção à Educação Ambiental. O EDEA é organizado e promovido pelos discentes do PPGEA, do qual também já participei enquanto comissão organizadora. Trata-se de um espaço acolhedor e que promove a interlocução de saberes entre diversos atores sociais, com a contribuição de diferentes autores de diversos grupos e linhas de pesquisa, onde são tratadas temáticas de fundamental interesse nas discussões sobre Educação Ambiental.

Nessa direção, a oportunidade de pensar a prática pedagógica, articulada à Educação Ambiental no contexto da escola e da formação de professores, fomentou ainda mais o desejo por continuar estudando, e aguçou o desejo de experienciar à docência na prática. Assim, em dezembro de 2019 me candidatei ao concurso público municipal da cidade de São Borja (terra dos presidentes), no Rio Grande do Sul. Obtive a aprovação e em junho de 2020, durante a pandemia, iniciei a minha primeira experiência como professora regente de Anos Iniciais. Em outro momento, revisitando minhas experiências, escrevi “ainda não sei qual o ano escolar em que lecionarei, amanhã terei reunião com a equipe diretiva, estou ansiosa para saber qual a turma, quantos alunos, quero logo adentrar a esse universo profissional. As emoções são intensas, ainda tem a minha pesquisa, que não largo nunca! E, terça-feira será minha qualificação” (Diário da pesquisadora).

A experiência de iniciar a carreira profissional como professora, durante a pandemia, foi algo que na história, não se cogitava. Essa vivência foi tumultuada por diferentes sentidos, eu era professora, mas não vivia o cotidiano da escola, ou seja, minha atuação ainda não era totalmente atravessada pelo lugar-escola, por todas as suas singularidades, rotinas e cotidiano. Minha constante pergunta nesse período foi: como vou alfabetizar essas crianças no Ensino Remoto Emergencial (ERE)? Minha preocupação se agravou em função do meu contexto social, visto que eu não conhecia a cultura do lugar, a dinâmica da cidade, a realidade dos alunos e da escola. Hoje compreendo que fiz tudo o que estava ao meu alcance, disponibilizando sempre atendimento didático-pedagógico.

A carreira docente, iniciada durante a pandemia, foi uma experiência desafiadora, onde cada dia que se passava, era um dia “vencido”, pois as demandas laborais do trabalho eram diferentes e aumentavam com a necessidade do ERE. Evidencio a sobrecarga de trabalho docente, ao revisitar meus escritos, e assim ler:

São Borja, 29 de julho de 2020. Hoje o dia amanheceu com temperaturas baixas, a vontade era de ficar dormindo, mas não posso procrastinar as tarefas. Visitei o meu diário e percebi que há dias não escrevo nada nele. Isso me fez refletir sobre o tempo cronológico que os professores possuem para repensar a sua prática pedagógica, pois me vejo nessa situação, onde não estou conseguindo manter a periodicidade do registro escrito (Diário da pesquisadora).

A escola em que iniciei minhas atividades laborais atende a uma comunidade de crianças vulneráveis e o cenário pandêmico explicitou, ainda mais, as desigualdades de acesso e oportunidade aos estudos, já existentes. A dinâmica de trabalho na escola, durante o ERE, foi organizada a partir de material didático-pedagógico impresso, onde a família se deslocava até a escola para receber as atividades programadas e fazer a entrega delas. Aulas on-line não eram possíveis, tendo em vista que a maioria dos estudantes não tinha acesso a computador, celular e/ou internet, por vezes, nem a energia elétrica na residência. Planejar aulas, sem conhecer a realidade específica dos alunos, foi extremamente difícil, propor atividades com materiais alternativos também era uma tarefa árdua, tendo em vista que não era possível saber se a família disponha de tais materiais.

Para me aproximar da realidade da comunidade escolar passei a usar o WhatsApp como ferramenta pedagógica, isso com as famílias que tinham acesso a esse meio tecnológico. Muitas famílias têm apenas um celular e não possuem acesso à internet, lembro até hoje de um desenho que recebi de uma aluna, entregue por sua mãe junto com as atividades realizadas, a aluna desenhou “como eu imagino a minha professora”. O desenho retratava um estereótipo de professora, de cabelos longos, de cor branca, vestia sapatos altos, usava óculos e levava uma bolsa consigo. Essa experiência me tocou, pelo fato de mostrar, em parte, as profundidades das desigualdades sociais, a partir do imaginário infantil.

A docência em tempos de pandemia significou acompanhar e vivenciar com as famílias o medo, da doença, da partida de um ente querido, do desemprego, da falta de renda, da fome, da violência, de um devir que se abria sem quaisquer garantias. Apesar do cenário difícil que vinha sendo estabelecido, estudar era uma forma de resistência. Desse modo, a preocupação com os processos de ensino-aprendizagem, eram agora adensados por fatores atrelados à pandemia, em especial, ao isolamento social.

Destaco que para mim é difícil escrever sobre isso, pois esse período é tumultuado por diferentes sentimentos, angústia, tristeza, esperança e alegria, uma miscelânea de sensações. A docência, especialmente em tempos de pandemia, me mostrou que não posso salvar e proteger “meus pequenos” das adversidades do mundo, como até então eu achava que era possível. É evidente que intrinsecamente eu sabia das limitações das minhas ações, no entanto, vivenciar elas na prática é diferente, dói ao sentir que não podemos ir além, por exemplo, para resolver questões que fogem da alçada da docência e dos professores(as).

O contar dessas emoções a partir do ato de escrever se constitui para mim em um processo de interpretação e re(significação) das experiências de vida, é como nos diz Marques (2001), escrever é preciso! Esse autor destaca que o ato de escrever, na perspectiva da presença do leitor expectante, “faz com que quem escreve escreva de si dizendo-se a si mesmo coisas que jamais saberia se não as confiasse ao corpo mudo da folha, expressando sentimentos e ideias que não experimentaria se não as escrevesse ou dissesse a alguém” (Marques, 2001, p. 82).

Nesse sentido, diante do meu contexto de pertencimento, é importante destacar que com a eclosão da pandemia da Covid-19 não se teve nenhuma política de formação e acolhida de professores, pelo contrário, as exigências só aumentaram. O que se destaca, da mesma forma, na volta ao ensino presencial, que inicialmente foi de forma híbrida (presencial e remota), passando, posteriormente, a ser totalmente presencial.

A pandemia aumentou a evasão escolar e, com a volta às aulas presenciais, o trabalho de busca ativa2 se intensificou. Outro desafio, dentre inúmeros, consiste na volta dos alunos que precisam reaprender não somente o conhecimento curricular, mas também o convívio social do hábito cotidiano da escola. Como professora alfabetizadora, compreendo a necessidade da acolhida e empatia com esses alunos que estão, alguns gradativamente, retornando a sala de aula.

Nessa direção, as tramas pessoais, profissionais e acadêmicas se imbricam. Vivencio a docência e a pesquisa de forma indissociável, em um movimento constante de formar-se formando (Warschauer, 2017). A tessitura da dissertação e posteriormente a elaboração do projeto de pesquisa para a seleção do doutorado, sempre estiveram e continuam sendo atrelados ao meu fazer, viver e pensar a docência. O retorno reflexivo ao meu trajeto percorrido é o que subsidia a construção do projeto de pesquisa-formação.

Nesse sentido, no espaço e tempo de atuação pedagógica, reflexão e finalização da dissertação do mestrado em 2021, já objetivava um novo desafio, o ingresso no doutorado. Com estudo, planejamento e dedicação obtive a aprovação, agora com questões investigativas ainda mais profundas. Nesse sentido, parto da compreensão de que a Educação Ambiental é um tema que vem retratando, a cada dia, as ameaças de um colapso ambiental: o aquecimento global, as mudanças climáticas, o derretimento das geleiras, a extinção de espécies, o desmatamento, a degradação do solo, a poluição, a segregação espacial, a injustiça social, o capital, a desigualdade social, a miséria, a vulnerabilidade socioambiental, dentre outras inúmeras questões que poderiam ser citadas. Chegamos a um tempo denominado por nós como “crise ambiental”. Talvez, se entendermos os elementos da nossa história, que deram condições para o processo de objetificação da natureza, lembrando que o ser humano é natureza, e, atualmente a preocupação com ela, podemos a partir da Educação Ambiental contribuir com um olhar problematizador a respeito das nossas heranças e valores históricos.

Nessa direção, acredito que minhas vivências formativas me levaram a questionar: o que podem a Educação Ambiental e os Povos e Comunidades Tradicionais em tempos de crise? A ideia que me acompanha diz respeito sobre criar condições para potencializar na práxis dialógica educativa, elementos de enfrentamento a crise posta, em especial, nos modos de enxergar e de se relacionar com o ambiente. O esperançar está nas “possibilidades de uma ética ambiental, capaz de reorientar o agir humano em sua relação com o meio ambiente” (Grün, 1996, p. 11).

Os antecedentes históricos da crise ambiental são explicitados por Grün (1996) que destaca sua crítica: ao crescimento populacional exponencial, a diminuição dos recursos naturais, aos sistemas produtivos que utilizam tecnologias poluentes e de baixa eficiência energética, bem como, aos valores que favorecem a expansão ilimitada do consumo material. De acordo com o autor, a crise ecológica é um sintoma da crise cultural ocidental, e talvez, mais do que criarmos “novos valores”, na Educação Ambiental, deveríamos resgatar valores já existentes, por vezes, suprimidos pela tradição dominante do racionalismo cartesiano.

Nessa direção, olhando com os olhos do presente para o passado, emerge a problemática sobre quem nos tornamos enquanto ser humano? Como chegamos nessa cisão humano-natureza e o que fazemos para deixarmos de viver sob a égide de uma ética antropocêntrica? Nesse contexto, busco nas relações dos Povos e Comunidades Tradicionais, em especial dos Pomeranos, possibilidades de resistência ao desmonte da Educação Ambiental, por compreender que a relação desse povo com a Gaia ainda é predominantemente recíproca. A relação dos Povos e Comunidades Tradicionais com a natureza consiste em um elo que vem resistindo, em parte, à perversidade política e social do mundo globalizado. No entanto, é preciso lembrar que “nossa civilização é insustentável se mantido(s) o(s) nosso(s) atual(is) sistema(s) de valores” (Grün, 1996, p. 22).

Destaco que a discussão acerca das problemáticas ambientais é primordial na educação, ainda mais porque “as áreas de silêncio do currículo caracterizam-se por uma ausência, às vezes completa, de referência ao meio ambiente [...]. A natureza é esquecida, recalcada e reprimida. Ela é silenciada” (Grün, 1996, p. 51). Desse modo, na práxis do cotidiano escolar, por vezes, o diálogo é reducionista e arraigado a uma epistemologia cartesiana que limita a nossa própria compreensão do ponto de vista interpretativo. Tal afirmação também pode ser estendida ao próprio currículo da escola.

Não quero, aqui, culpabilizar professores e/ou a escola, pois tais questões possuem uma amplitude maior e são complexas tanto do ponto de vista teórico como prático. Cito a invisibilidade da cultura dos Povos e Comunidades Tradicionais na educação básica e a própria negação da realidade do “lugar” em que a escola está inserida, como exemplo, de questões que assumem a manutenção da crise ambiental.

A busca por uma inserção mais consistente da Educação Ambiental na prática pedagógica e no currículo escolar perpassa minha atuação enquanto professora e pesquisadora. Nesse ponto, vale recordar, nas palavras de Grün (1996, p. 46), que “algo que ainda não foi suficientemente levado em conta é a importância que as questões de linguagem assumem na manutenção da crise ecológica”. Tal suposição destaca a urgência de refletir elementos epistemológicos que podem contribuir para que se elaborem ferramentas teóricas e práticas para a transformação das nossas relações alienantes com o ambiente.

Nessa direção, compreendo a (auto)biografia do processo formativo como uma ação que pode potencializar a reflexão dos elementos epistemológicos de minha práxis docente. Para além, destaco a postura fenomenológica-hermenêutica que permite a descrição e interpretação da práxis educativa e formativa, na medida em que considero as mudanças sociais e culturais nos contextos da vida profissional e social. E assim sigo caminhando.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste texto apresentou-se uma (auto)biografia que foi construída e analisada a partir de uma abordagem fenomenológica-hermenêutica com apoio, em especial, nos escritos de Josso (2010); Morais; Bragança (2021); Van Manen (2003) e Warschauer (2017), pois fundamentam as lentes teórico-metodológicas da pesquisa. Escrever sobre a história de vida educacional e formativa, num processo narrativo (auto)biográfico, possibilitou entender a construção da identidade docente e por meio das experiências relatadas, o encontro com a temática da Educação Ambiental, apresentando narrativas que justificam os caminhos da pesquisa.

Assumiu-se, neste texto, a Educação Ambiental na perspectiva crítica, não desmerecendo as demais, pois se defende que esta deve ser contextualizada nas relações sociais, na historicidade e na luta política como estratégia de transformação social. Para tal, a narrativa (auto)biográfica do percurso formativo, constituída intrinsecamente com aqueles que estão na condição de subalternidade e opressão, é compreendida como um dos modos de enfrentamento, luta e resistência ao projeto de desmonte da educação pública.

Contudo, embora a violência e a invisibilidade dos Povos e Comunidades Tradicionais sejam um problema global/local e estejam na pauta de movimentos sociais, pouco se discute sobre possibilidades de inserir práticas educativas que tematizem essas questões no contexto escolar. Para se atingir tal proposta e incluir essa temática nas intervenções pedagógicas, inúmeros desafios se colocam à escola, resultando, por vezes, na ausência destas problematizações em seu interior.

Todavia, se a Educação Ambiental, no contexto formal, se desenvolve pelo viés da transversalidade, é primordial integrar debates que abordem questões de subalternização na educação escolar, também é fundamental fomentar discussões sobre as fissuras encontradas nos currículos escolares, que permitem pensar em possibilidades de incorporar processos pedagógicos dialógicos a partir da realidade escolar. Para tanto, a escrita de si é uma abordagem que pode possibilitar a superação da práxis arraigada.

Destaca-se que o ensaio de (auto)biografia do percurso formativo, da escrita de si, por sinal um árduo exercício, para a interpretação dos sentidos atribuídos à docência e a formação da professora-educadora ambiental, se constitui em um dos primeiros desafios do processo formativo em nível de doutorado. Destacamos que a tessitura da (auto)biografia, na perspectiva fenomenológica-hermenêutica, permitiu o exercício do pensamento para despertar e adensar o desejo da professora em debruçar-se sobre os acontecimentos e, quiçá, criar potência na práxis pedagógica.

REFERÊNCIAS

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NOTAS:

1 Refere-se “ao deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço” (Giddens, 1991, p. 31).

2 A Busca Ativa Escolar é uma estratégia composta por uma metodologia social e uma ferramenta tecnológica, disponibilizadas gratuitamente para estados e municípios. A intenção é apoiar os governos na identificação, registro, controle e acompanhamento de crianças e adolescentes que estão fora da escola ou em risco de evasão. Outras informações estão disponíveis em: https://buscaativaescolar.org.br/.

Recebido: 12 de Agosto de 2022; Aceito: 16 de Fevereiro de 2023; Publicado: 20 de Dezembro de 2023

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