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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub 26-Feb-2024

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e59625 

Artigos

Cadeiras disciplinantes e currículos indisciplinados:como se envolver com outros modos de “sentirfazerpensar” os movimentos imprevisíveis dos cotidianos?

Disciplining chairs and undisciplined curricula:how to get involved with other ways offeelingdoingthinking” the unpredictable movements of everyday life?

Sillas disciplinantes y currículos indisciplinados:¿cómo involucrarse con otros modos de “sentirhacerpensar” los movimientos impredecibles de los cotidianos?

i Doutor em Educação. Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFBA). Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica (ProfEPT) do IFBA. Professor associado do Mestrado Profissional em Educação, Currículo, Linguagens e Inovações Pedagógicas (MPED) do IFBA. E-mail: leonardorangelrreis@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-5644-6250.

ii Pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, Processos Formativos e Desigualdades Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu) da Faculdade de Formação de Professores (FFP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), São Gonçalo. Professora da FFP/UERJ, São Gonçalo. E-mail: ffpuerj.noale@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-1207-2795.

iii Doutoranda do ProPEd/UERJ. Professora da Educação Básica. Pertence ao grupo de pesquisa Currículos cotidianos, redes educativas, imagens e sons, da UERJ, coordenado por Nilda Alves. E-mail: juliana_rodrigs@hotmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-6929-7939.


Resumo

A cadeira, como um artefato de distinção de classe, como um dispositivo funcional com implicações na criação da “alma”, como um artefato de disciplinarização dos corpos, está no condicionamento de dominação de um sistema vigilante, doutrinador, torturador e punitivo. Assim sendo, neste artigo, pretendemos trazer a cadeira para o centro e para as margens da conversa acerca dos processos de disciplinarização e controle dos corpos e propomos o deslocamento para “sentirfazerpensar” outros modos curriculares com os cotidianos. É uma conversa de terreiro, chão de terra batida, no pátio da escola, no campo de várzea e onde mais a nossa imaginação nos levar. São saberes compartilhados, em uma roda onde experimentamos o sentar de cócoras; afinal, ninguém sabe o que pode o corpo.

Palavras-chave: cadeiras; modelos disciplinadores; currículos cotidianos

Abstract

The chair, as an artifact of class distinction, as a functional device with implications for the creation of the “soul”, as an artifact of disciplining bodies, is in the conditioning of domination of a vigilant, indoctrinating, torturing and punitive system. Thus, in this article, we intend to bring the chair to the center and to the margins of the conversation about the processes of disciplinarization and control of bodies, and we propose the displacement to “feelingdoingthinking” other curricular ways with everyday life. It is a conversation in a “terreiro” [place of worship], a dirt floor, in the schoolyard, in the floodplain field and wherever else our imagination takes us. It is shared knowledge, in a circle where we experiment with squatting; after all, nobody knows what a body can do.

Keywords: chairs; disciplinary models; everyday curricula

Resumen

La silla, como artefacto de distinción de clase, como dispositivo funcional con implicaciones para la creación del “alma”, como un artefacto de disciplinar los cuerpos, está en el condicionamiento de dominación de un sistema vigilante, adoctrinador, torturador y punitivo. Siendo así, en este artículo pretendemos traer la silla al centro y a los márgenes de la conversación sobre los procesos de disciplinamiento y control de los cuerpos, y proponemos el desplazamiento para “sentirhacerpensar” otras modalidades curriculares con los cotidianos. Es una conversación de terrero, un piso de tierra, en el patio de la escuela, en el campo inundable y donde nos lleve nuestra imaginación. Son saberes compartidos, en una ronda donde experimentamos el sentarse en cuclillas, al fin y al cabo, nadie sabe lo que puede hacer el cuerpo.

Palabras clave: sillas; modelos disciplinares; currículos cotidianos

1 INTRODUÇÃO

O homem de que nos falam e que nos convidam a liberar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma “alma” o habita e o leva à existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo.

Michel Foucault (1987, p. 31-32).

Sendo a vida sedentária o estágio civilizatório desejado e alcançado pela sociedade contemporânea, pela cultura racional, letrada e escolarizada, o que se plasma com ela é o decréscimo da mobilidade, não apenas do corpo, mas também do pensar, da sua imprevisibilidade, de sua sempre ativa criatividade.

Norval Baitello Junior (2012, p. 17).

Ao que tudo indica, a cadeira, em seu modo mais simples, teve origem no Egito, no período de 3000 a 200 a.C. As cadeiras eram ornadas com materiais nobres (Figura 1), como o ébano ou o marfim, com detalhes de animais. Elas também serviam como artefato de distinção de classe, pois consistiam em peça para o conforto dos nobres e para exibição do seu status.

Fonte: Arquivo pessoal.

Figura 1 Trono egípcio 

É bem importante marcarmos a transição dos usos que foram feitos de certa “cadeira espetacular”, utilizada pela nobreza como sinônimo de status, aos diferentes usos populares que foram difundidos com sua popularização na Revolução Industrial. Isso porque o ponto de inflexão que surge com a possibilidade de produção em série marcou o privilégio do minimalismo da forma e do foco na função. “Na história do mundo ocidental, as cadeiras fizeram a sua primeira aparição como sedes de altas autoridades e não entraram em uso generalizado, mesmo na mais rica das casas, até por volta do século XVI” (Ingold, 2015, p. 77).

Com o advento do capitalismo, e o foco pragmático na funcionalidade das coisas e das pessoas, cria-se toda uma arquitetura disciplinar (Foucault, 1987), em que os usos das coisas e das pessoas vão ser cada vez mais direcionados para “capacitar melhor” as pessoas para suas novas demandas no mundo do trabalho. Com isso, há um deslocamento de vários pontos, uma vez que a principal questão deixa de ser: De qual espetáculo essa cadeira participará e que ajudará a promover? As questões passam a gravitar em torno de coisas mais modestas: Para que serve essa cadeira? Não estamos querendo dizer que, antigamente, a cadeira não tinha uma função, mas queremos chamar atenção para o fato de que os aspectos estéticos eram bastante acentuados. A pompa solene das cadeiras será profanada no capitalismo pelo foco nos usos funcionais delas.

2. A CADEIRA COMO DISPOSITIVO FUNCIONAL COM IMPLICAÇÕES NA CRIAÇÃO DA “ALMA”

Uma cadeira funcional é adequada para o desenvolvimento de determinadas atividades, mas também é um auxílio ao desenvolvimento de habilidades e posturas a serem impulsionadas. A cadeira ajuda a desenvolver uma anátomo-política dos corpos (Foucault, 1987), na medida em que direciona as forças vitais e ajuda a compor regimes corporais específicos (Figura 2). Vejamos um pouco mais dos efeitos dessa anátomo-política nas palavras de Foucault (1987, p. 129): “[...] é expressamente proibido durante o trabalho divertir os companheiros com gestos ou de outra maneira, fazer qualquer brincadeira, comer, dormir, contar histórias e comédias”.

Fonte: Arquivo pessoal. Técnica de estilização.

Figura 2 Escola 

Somente na Educação Infantil, os processos de escolarização não incidem com tanta insistência nos movimentos propiciados pelas cadeiras. Na universidade, a cadeira define as disciplinas de um curso, dando-lhes outros níveis simbólicos de autoridade ou de autoritarismos. No Ensino Superior, quase sempre, as cadeiras ganham status privilegiado nos/dos currículos. Basta pensarmos em uma pessoa que ousa levantar abruptamente da sua cadeira em uma sala de aula. Ela imediatamente será colocada sob suspeita, será vista com desconfiança pela professora ou pelo professor e até pelos e pelas colegas.

Contudo, em que consiste essa anátomo-política (Foucault, 1987) em que os exercícios na/da cadeira, na arquitetura convencional da sala de aula, ajudam a reforçar, incentivar? O próprio Foucault (1987) nos dá várias pistas, mas, antes de irmos a elas, vamos falar um pouco sobre uma distinção apontada por Lévi-Strauss (1970) e retomada por Castro (2015), em seu perspectivismo ameríndio, porque ela nos fará compreender melhor os movimentos com os quais a cadeira está compromissada, na arquitetura disciplinar e no reforço da anátomo-política.

Lévi-Strauss (1970, p. 237), em Raça e História, quando aponta algumas diferenças entre as cosmologias dos colonizadores e dos indígenas, nos diz:

Nas Grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta da América, enquanto os espanhóis enviavam comissões de investigação para indagar se os indígenas possuíam ou não alma, estes últimos dedicavam-se a afogar os brancos feitos prisioneiros para verificarem, através de uma vigilância prolongada, se o cadáver daqueles estava ou não sujeito à putrefação.

Com isso, o autor chega à conclusão de que os europeus eram mais informados pela ambiência criada pelas “ciências humanas”, porque se colocavam no mundo em uma atitude mais “espiritualista”, de busca pelos significados das coisas e pela alma das pessoas. Os indígenas, por sua vez, se voltariam para o inverso, ao estarem mais sintonizados com certo “materialismo”, buscando compreender as reverberações das afecções nos corpos. Estamos diante de duas maneiras distintas de ontologia e de epistemologia: (i) ancorada no princípio multicultural e informada pelas ciências humanas; e (ii) uma visada multinaturalista, mais guiada pelas “ciências naturais” (Castro, 2015). Para os europeus, tratava-se de descobrir se os indígenas possuíam alma (cultura), já que o corpo era pressuposto e colocado no terreno da universalidade, como dado da natureza (esta percebida em sua acepção clássica como mecanismo homogêneo e regular). Ao passo que os indígenas, por meio de seu perspectivismo inverso, queriam saber se os europeus eram semelhantes, e não deuses ou alguma outra espécie de predador perigoso (Castro, 2015), visto que eles já sabiam que aqueles seres estranhos possuíam alma, uma vez que esta é dada de forma universal e se manifesta de diversos modos (metamorfose) em todo o mundo. A multiplicidade apresenta-se através das afecções e das variações com a natureza.

Foucault (1987) nos dirá algo importante acerca da constituição da anátomo-política, que subsidia a compreender melhor o que Castro (2015) chama de ontologia multiculturalista, pois, para Foucault (1987, p. 28),

[...] não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos - de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência. Realidade histórica dessa alma, que, diferentemente da alma representada pela teologia cristã, não nasce faltosa e merecedora de castigo, mas nasce antes de procedimentos de punição, de vigilância, de castigo e de coação. Esta alma real e incorpórea não é absolutamente substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder.

Quando Foucault (1987) lançou a tese de que o poder produz a individualidade, por meio dos mecanismos articulados de poder e do saber, ao estudar como isso ocorre segundo a imposição da arquitetura disciplinar, nas escolas, nas prisões, nos hospitais, nas fábricas e nos locais de trabalho, ele se preocupou em apontar como os espaços vão sendo esquadrinhados por novos hábitos que criam novas relações cronológicas e arquiteturais. O livro Vigiar e Punir está cheio de cenas acerca da forma como se dá o esquadrinhamento nas escolas:

A organização de um espaço serial foi uma das grandes modificações técnicas do ensino elementar. Permitiu ultrapassar o sistema tradicional (um aluno que trabalha alguns minutos com o professor, enquanto fica ocioso e sem vigilância o grupo confuso dos que estão esperando). Determinando lugares individuais tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem. Fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar. J.-B. de La Salle imaginava uma classe onde a distribuição espacial pudesse realizar ao mesmo tempo toda uma série de distinções: segundo o nível de avanço dos alunos, segundo o valor de cada um, segundo seu temperamento melhor ou pior, segundo sua maior ou menor aplicação, segundo sua limpeza, e segundo a fortuna dos pais. Então, a sala de aula formaria um grande quadro único, com entradas múltiplas, sob o olhar cuidadosamente “classificador” do professor (Foucault, 1987, p. 126).

Com a imposição dessa nova economia do tempo, e de novos investimentos no espaço, as coisas ganham novos contornos e novos usos. E as materialidades vão sendo cada vez mais investidas e inscritas, no que Castro (2015), na esteira de Lévi-Strauss (1970), compreende como navegação informada pelas “ciências humanas”; trata-se, assim, da criação da “alma” que habitará o corpo e que, simultaneamente, servirá como “[...] peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo” (Foucault, 1987, p. 29). O que é definido por essa ordenação é um quadro geral para as atividades, um esquadrinhamento dos movimentos que são necessários e dos movimentos tornados desnecessários, desvalorizados, escanteados. É um programa como imposição de um ritmo coletivo e obrigatório, imposto do exterior, por meio de uma anátomo-política (Foucault, 1987).

O que está em jogo é a constituição de uma “alma” que visa controlar o corpo. Essa tecnologia criada pelos mecanismos de poder disciplinar é impulsionada, sobretudo, pelos educadores, psicólogos e psiquiatras (Foucault, 1987), pela manipulação específica que eles aprenderam a fazer do tempo e dos usos do espaço. Como estamos vendo, Foucault (1987) assinala brilhantemente as triangulações do espaço e a nova cronopolítica do tempo. A partir disso, podemos nos perguntar: Qual artefato presente na sala de aula ajuda a impulsionar essa anátomo-política e impor a cisão corpo e alma, em que o primeiro se vê refém e subordinado ao segundo?

Para nós, o começo da resposta pode ser contado pela lenta imposição e massificação da cadeira. Não é segredo para ninguém que a cadeira possui status privilegiado na arquitetura escolar. Com isso, afirmamos que a cadeira ganha o contorno de um dispositivo que auxilia a criar a disposição em que a alma passa a comandar o corpo (Foucault, 1987), ou melhor, uma disposição de modo de vida privilegiada em que a alma é criada para controlar, vigiar e disciplinar os temíveis e impuros impulsos do corpo. Elias (1994) chamou esse estilo de vida, que se impõe com vigor na modernidade, mas que começa nas cortes europeias, como processo civilizador, e associou-o ao uso de talheres, a determinados modos de se portar à mesa, ao “refinamento” geral dos comportamentos, em que as emoções teriam de ser controladas pelos ditos comportamentos racionais. Para o autor,

[...] as convenções de estilo, as formas de intercâmbio social, o controle das emoções, a estima pela cortesia, a importância da boa fala e da conversa, a eloquência da linguagem e muito mais - tudo isto é inicialmente formado na Franga dentro da sociedade de corte, e depois, gradualmente, passa de caráter social para nacional (Elias, 1994, p. 52).

As mãos estão a serviço do propagado e valorizado ideal civilizador. “Graças a suas mãos e a suas botas pesadas o homem civilizado, ao que parece, é em cada centímetro um cientista em cima, mas uma máquina em baixo” (Ingold, 2015, p. 74). São abundantes os exemplos das narrativas dos braços e do poder das mãos como gestos de requinte e bom gosto. Tudo isso faz parte das tecnologias de criação da “alma” e do controle disciplinar dos movimentos. Tentativa de domar, cercar e disciplinar os caóticos movimentos cotidianos. Os/as praticantes comuns são postos/as sob suspeitas, afinal, para se tornarem espertos/as, terão de passar pelo rigoroso treinamento do pensamento sentado/adestrado (Baitello Junior, 2012). As atividades (ou multiplicidades sensíveis) terão de ser delimitadas, cercadas, traduzidas ou disciplinadas à luz dos imperativos racionais. Semiótica inteligível da razão contra a diversidade de afecções dos cotidianos. Desse modo, mãos e razão conectam-se não por destino natural, mas, pelo arranjo disciplinar, que, ao forjar uma rede anátomo-política de controle e vigília de todos os movimentos do corpo, com o intuito de majorar as forças produtivas e minorar as potências de rebeldia (Foucault, 1987), acaba por tentar disciplinar todos os nossos movimentos, por meio da imposição de novo governo da alma. “Os homens fizeram história com as mãos; eles dominaram a natureza e a puseram sob controle” (Ingold, 2015, p. 89). Ou, ainda,

[...] marchando com a cabeça sobre os calcanhares - meio na natureza, meio fora - o bípede humano figura como uma criatura constitucionalmente dividida. A linha divisória, aproximadamente ao nível da cintura, separa as partes superior e inferior do corpo. Enquanto os pés, impelidos pela necessidade biomecânica, embasam e impulsionam o corpo dentro do mundo natural, as mãos estão livres para entregar os projetos inteligentes ou concepções da mente sobre ele: para os primeiros, a natureza é o meio através do qual o corpo se move; para o último apresenta-se como uma superfície a ser transformada (Ingold, 2015, p. 72).

O processo civilizador está ligado aos movimentos ascendentes dos braços que se movem em tentativas de conectá-lo à cabeça. Notem como a anátomo-política moderna cria uma disposição anatômica em que os movimentos ascendentes (cognitivos) são privilegiados.

A nossa aposta é a de que a cadeira teve um papel fundamental nesse processo. Com essa intuição, fica mais fácil compreender o porquê da importância e da centralidade que o dispositivo cadeira assumiu/assume em diversos desenhos curriculares, especialmente ao facilitar o controle dos variados movimentos à centralidade do par mão-cabeça (Rangel, 2020)1. Pelo exposto, deduz-se que esse diagrama anátomo-político participa da criação e da valorização da disposição ser-humano-cabeça, em que os movimentos serão traduzidos de modo cada vez mais cognitivistas. É o que Foucault (1987, p. 129-130) nos mostra, ao apontar a violência do exercício da prática da caligrafia:

O controle disciplinar não consiste simplesmente em ensinar ou impor uma série de gestos definidos; impõe a melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo, que é sua condição de eficácia e de rapidez. No bom emprego do corpo, que permite um bom emprego do tempo, nada deve ficar ocioso ou inútil: tudo deve ser chamado a formar o suporte do ato requerido. Um corpo bem disciplinado forma o contexto de realização do mínimo gesto. Uma boa caligrafia, por exemplo, supõe uma ginástica - uma rotina cujo rigoroso código abrange o corpo por inteiro, da ponta do pé à extremidade do indicador. Deve-se manter o corpo direito, um pouco voltado e solto do lado esquerdo, e algo inclinado para a frente, de maneira que, estando o cotovelo pousado na mesa, o queixo possa ser apoiado na mão, a menos que o alcance da vista não o permita; a perna esquerda deve ficar um pouco mais avançada que a direita, sob a mesa. Deve-se deixar uma distância de dois dedos entre o corpo e a mesa; pois não só se escreve com mais rapidez, mas nada é mais nocivo à saúde que contrair o hábito de apoiar o estômago contra a mesa; a parte do braço esquerdo, do cotovelo até à mão, deve ser colocada sobre a mesa. O braço direito deve estar afastado do corpo cerca de três dedos, e sair aproximadamente cinco dedos da mesa, sobre a qual deve apoiar ligeiramente. O mestre ensinará aos escolares a postura que estes devem manter ao escrever, e a corrigirá seja por sinal seja de outra maneira, quando dela se afastarem. Um corpo disciplinado é a base de um gesto eficiente.

A cadeira no ambiente escolar tinha, ou ainda tem, o código de um lugar que vai ser delimitado, circunscrito, aquele destinado a alguém que não deve se mexer muito, não deve olhar para trás ou para os lados, apenas para frente. Até recentemente, quando a criança terminasse suas tarefas, deveria ficar com a cabeça baixa. Não se deve causar ruídos. E quando, por algum motivo, era submetida à exigência de levantar-se para se deslocar até a lousa, sob o comando da professora ou do professor, ao término da atividade, sob outra ordem parecida, deveria voltar ao seu “lugar de origem” 2. O lugar é constituído na anátomo-política disciplinar com uma distribuição desigual e hierárquica bem delimitada, em que o subalterno, o submisso à ordem superior, evoca obediência por meio de certa imobilidade de vários movimentos do corpo. Todos os movimentos que não consigam ser assentados serão postos sob suspeita, desvalorizados e desabilitados. Segundo Deleuze e Guattari (1996, p. 11):

Será tão triste e perigoso não mais suportar os olhos para ver, os pulmões para respirar, a boca para engolir, a língua para falar, o cérebro para pensar, o ânus e a laringe, a cabeça e as pernas? Porque não caminhar com a cabeça, cantar com o sinus, ver com a pele, respirar com o ventre, Coisa simples, Entidade, Corpo pleno, Viagem imóvel, Anorexia [...]. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude ou de velhice, de tristeza e de alegria.

Será por isso que a arte e seus movimentos aberrantes (Lapoujade, 2015) sempre foram postos sob desconfiança pela arquitetura disciplinar? A anátomo-política cria uma organização anatômica específica, emparelhando os movimentos às supostas funções que deverão ser desenvolvidas. Formação do corpo com órgãos (Deleuze; Guattari, 1996). Ela não deixa de levar ao atrofiamento das articulações do corpo e de seus movimentos. Despotencialização das forças. A postura de um corpo em uma cadeira na sua função de docilização é curvada, sem a possibilidade de nenhuma elevação espiritual. O subalterno tem de reconhecer o seu lugar. A cadeira chega a ser um artefato de tortura, pela sua anatomia nada confortável, em que uma pessoa adulta da cidade grande passa grande parte da sua vida, durante longo tempo de exposição, à postura assentada. Isso ocorre em assentos que machucam pernas, coluna, deixando músculos adormecidos. Nesse movimento disciplinar, adormecem também os desejos das ações criativas. Contra os usos excessivos da cadeira e do pensamento assentado, propõe-se

[...] a experimentação vital [que] é quando uma tentativa qualquer lhe apanha, toma conta de você, instaurando cada vez mais conexões, lhe abrindo a conexões: tal experimentação pode comportar uma espécie de autodestruição [...]. Ela não é suicida, desde que o fluxo destruidor não se assente sobre si mesmo, mas sirva para conjugação de outros fluxos, sejam quais forem os riscos. Em contrapartida, ocorre a empresa suicida quando tudo está assentado sobre um único fluxo: “meu” trago, “minha” sessão, “meu” corpo. É o contrário das conexões, é a desconexão organizada (Lapoujade, 2015, p. 21).

Quando subvertemos o uso da cadeira, ou a ideia de uma estrutura da organização sentada, ou quando acessamos outros modos de “sentirfazerpensar” de nos conduzir ao descanso, ou à atenção de uma conversa, um estudo, nos expomos aos fluxos que podem criar conexões, encontros. “Assim, este convite não se esgota no tema da sala de aula, mas tenta ser uma convocação para ativar nossas forças [...]” (Dussel; Caruso, 2003, p. 26).

Isso assusta porque pode causar fissuras, rachaduras no que estava previamente organizado pela ossatura das disciplinas, presença dos corpos organizados em seus desejos de acomodação da sua anatomia. “Uma cadeira é a primeira coisa que você precisa quando você não precisa de nada, e é, portanto, um símbolo particularmente convincente de civilidade” (Caplan, 1978, p. 18 apudIngold, 2015, p. 78).

A cadeira, na sua condição de disciplinarização dos corpos, em sua relação de controle e poder, identifica e delimita um lugar, ajuda a criar a proposição individualista e competitiva: “cada um no seu quadrado”. A noção de lugar apontada por Certeau (2014) é aquela que se destina a uma ordem, ou ordenação, dois corpos não ocupam o mesmo lugar no “quadrado”, isso implica estabelecer uma competição, em determinar a meritocracia calculada, levando à segregação daqueles que “não conseguem chegar a um determinado lugar”, o que poderíamos chamar de os “sem lugar”, “sem eira nem beira”, ou de “um qualquer”. A cadeira, como uso de condicionamento disciplinar, e todos os seus gestos assépticos que ela nos condiciona a legitimar, modos colonizadores dos corpos e pensamentos, aniquila a experiência das sensações e dos sentimentos que habitam nos fluxos. A cadeira como castração do “excesso” dos movimentos.

3 JÁ SE DISSE QUE SOMOS HERDEIROS DE UMA TRADIÇÃO QUE CULTUA O ESPÍRITO E IGNORA E ATÉ SUBMETE OS CORPOS

Na grande parte das sociedades não ocidentais, a posição tradicional de repouso adotada é o agachamento (Ingold, 2015). “No entanto, para aqueles de nós educados para sentarem-se em cadeiras, ter que se agachar por qualquer período de tempo é imensamente desconfortável” (Ingold, 2015, p. 79). Nesse sentido, parece que a cadeira bloqueou o desenvolvimento da nossa capacidade de se agachar, em que “[...] a postura ereta ou ‘de pé’ é uma medida de classificação e retidão moral, a posição de cócoras é reservada àqueles no menor degrau da escola social - a párias, mendigos e suplicantes” (Ingold, 2015, p. 79). Somos herdeiros de uma mitologia que cultua o espírito e ignora e/ou tenta dominar os corpos (Arroyo, 2012). Apesar de pouco mencionada, a cadeira possui relevante importância nessa história, pois ela funciona como um dos dispositivos privilegiados para domar o animal inquieto e criativo (Baitello Junior, 2012). Os movimentos são acalmados pelos usos das cadeiras. Com isso, podemos voltar à breve história da cadeira e compreender a violência que é tentar impô-la aos currículos dos povos indígenas, quilombolas, da educação do campo etc. “A ideia é que a educação, quando utiliza um bom método, consegue transformar as pessoas por completo, até apagar os vestígios de sua origem social e cultural” (Dussel; Caruso, 2003, p. 15). Desse modo, também entendemos como o enquadramento da cadeira nos impede de compreender as aberturas criadas pelas escrevivências de Evaristo (2012), das escritas sensíveis com os movimentos do mundo.

Poderíamos reforçar a crítica a tantos esquecimentos dos corpos dos educandos e dos educadores ou a crítica a tantos processos de submetimento, até de sofrimento a que são expostos os corpos imóveis por horas nas carteiras, em filas, olhando a nunca dos colegas na frente, humilhados e até disciplinados por cor, gênero, origem social e orientação sexual3. Questões cada vez mais trabalhadas nos cursos de formação de educadores(as) docentes. Corpos esquecidos, mas cada vez mais lembrados nas teorias pedagógicas e didáticas que esperam espaços em outra organização curricular (Arroyo, 2012, p. 33).

Geralmente, o processo educativo ocorre na sala de aula, onde o corpo quase sempre se encontra sentado, e não se tolera os movimentos e a mobilidade dos pés. Com esse modo de proceder, facilmente se esquece que “[...] foi no chão que aprendemos a escrever, riscando, rasgando o solo com um objeto pontiagudo qualquer” (Baitello Junior, 2012, p. 39). Os únicos movimentos permitidos são os das mãos, que estão conectadas à cabeça, no intuito de se aperfeiçoar e desenvolver a maquinaria da escrita. Portanto, “[...] derrubar o viés da cabeça sobre os calcanhares também é dispensar o dualismo subjacente a este argumento. Ao invés de supor que a mão opere sobre a natureza, enquanto os pés se movem nela” (Ingold, 2015, p. 89). Aliás, “[...] um dos incômodos silenciosos que rodeiam o modo como um discurso sobre raça e gênero, classe social e prática sexual perturbou a academia é exatamente o desafio a essa cisão entre mente e corpo” (hooks, 2013, p. 183).

Fazer isso é mexer na educação que se pretende hegemônica, ocidentalizada, que ignora e até excluí os corpos do “fazerpensar” as teorias social e educacional (Arroyo, 2012), concebendo os sujeitos do aprendizado e da educação como cogitos incorpóreos (Arroyo, 2012). A pedagogia moderna, com sua obsessão cognitivista, foi a responsável por nos acomodar a certos movimentos do corpo e a expurgar outros, fenômeno chamado por Foucault (1987) de docilização disciplinar do corpo. Além de uma pedagogização do conhecimento, como já nos apontou Varela (1994), estamos gravitando em torno do fenômeno que pode ser apreendido como epistemologização da existência. Nesse processo anátomo-político, a pedagogia moderna colocou as mãos a serviço da cabeça e concebeu-a como sinônimo de civilidade, porque condição necessária à experiência eleita a mais legítima e formativa: a do/a interprete/a. É por isso que, “[...] quando começamos a falar em sala de aula sobre o corpo, estamos automaticamente desafiando o modo como o poder se orquestrou nesse espaço institucionalizado em particular” (hooks, 2013, p. 183).

As tentativas de suspensão dos corpos reconfiguram as violências, as desigualdades sofridas, e os diversos modos de sentir e estar no ambiente escolar, ao sobrepor e/ou subscrever os códigos do racismo biológico pelos eufemísticos códigos do racismo epistêmico. Para Bosi (2017, p. 8), “[...] parece ser próprio do animal simbólico valer-se de uma só parte do seu organismo para exercer funções diversíssimas. A mão sirva de exemplo”. Rangel (2020, p. 49), por sua vez, estabelece uma relação entre as mãos e a aprendizagem ao afirmar que: “As mãos articuladas à cabeça são as responsáveis pelo avanço dos processos de simbolização, segundo essa visão cognitivista. Seu desenvolvimento faz com que a aprendizagem seja pensada prioritariamente em termos mentais”. Arroyo (2012, p. 34), na mesma toada, pensa o corpo como um todo nesse mesmo processo: “O corpo dos alunos é deixado de lado nas teorias pedagógicas da aprendizagem e da socialização. Há um desconhecimento dos corpos. Seu papel é minimizado”.

É importante ressaltarmos que o “abrandamento” operado pelo racismo epistêmico sobre os códigos do racismo biológico não o deixa menos operante ou agressivo, muito pelo contrário; por se tornar mais sutil, ele pode ser mais facilmente praticado. Sua propagação se torna até mais eficaz. Maldonado-Torres (2008) nos mostra como o projeto de Martin Heidegger de buscar no Ocidente as raízes da superioridade germânica diante do mundo acaba articulando raça e espaço não mais a partir de alguma determinação biológica, mas por meio de uma superioridade que se evidencia a partir do melhor modo de pensar. É o reforço da concepção de que “[...] as pessoas não conseguem sobreviver sem as conquistas teóricas ou culturais da Europa” (Maldonado-Torres, 2008, p. 77). Desse modo, a geopolítica torna-se simultaneamente uma política da terra e da exclusão, pois “[...] se torna, para Heidegger, uma política de um racismo e de um imperialismo epistémico” (Maldonado-Torres, 2008, p. 76).

O racismo epistêmico impõe-se sempre que há qualquer tipo de hierarquização de qualidades e/ou habilidades de povos, grupos ou pessoas, no intuito de marcá-las com os signos da inferioridade. Sempre que uma pessoa, grupo ou povo, for concebido como inferior a outro, por algum traço do seu modo de ser, podemos dizer que está sob a marcação do racismo epistêmico, ainda tão operante nas classificações sociais e pedagógicas. É por isso que Arroyo (2012, p. 37) sinaliza a importância de constituição de nova ética do aprender a viver junto, “[...] uma ética que supere olhares negativos, inferiorizantes, classificatórios e segregadores”.

No entanto, todo mecanismo de poder possui brechas, furos. Com o racismo epistêmico não é diferente. Já citamos os modos de educar de vários grupos e povos que escapam dessa hegemonia disciplinar das cadeiras: indígenas, quilombolas, campesinos... Pelo que foi dito, compreendemos como os usos pedagógicos das cadeiras pelo Ocidente estão comprometidos com a suspensão do corpo, e com o reforço das classificações e hierarquizações que dão substância ao racismo epistémico. “Parece que tudo no mundo moderno (e nesse ‘tudo’ se incluem principalmente todos os meios de comunicação mais sofisticados) gira em torno de uma cadeira, um banco (de sentar), uma banqueta” (Baitello Junior, 2012, p. 18). A etiqueta ocidental valoriza um estilo de se pôr no mundo, de se comportar especialmente nos lugares públicos, que fora cultivado pelo uso ostensivo das cadeiras, por isso

[...] a pessoa mais poderosa tem o privilégio de negar o próprio corpo. Lembro que, na graduação, eu tinha professores brancos do sexo masculino que usavam sempre o mesmo paletó de tweed, a mesma camisa amassada ou coisa que o valha, mas todos nós sabíamos que tínhamos de fingir. Nunca podíamos comentar sobre a vestimenta dele, pois isso seria sinal de carência intelectual de nossa parte. A questão era que todos nós tínhamos de respeitar o fato dele estar ali para ser uma mente, não um corpo (hooks, 2013, p. 183).

Contudo, havíamos evocado as brechas... Elas surgem humildemente por meio das opacidades dos corpos mal iluminados ou deixados na penumbra pela etérea luz irradiante da cognição. Os/as deixados/as à margem são grande parte dos/as praticantes que se movimentam nos cotidianos por meio de múltiplas atividades. São também aqueles/as que, mesmo estando nos espaços mais intelectualizados, são marcados/as e lembrados/as com/nos seus corpos acerca das suas inadequações. É o que nos diz hooks (2013, p. 181):

Uma das coisas que eu estava dizendo é que, como mulher negra, sempre tive aguda consciência da presença do meu corpo nesses ambientes que, na verdade, nos convidam a investir profundamente numa cisão entre mente e corpo, de tal modo que, em certo sentido, você está quase em conflito com a estrutura existente por ser uma mulher negra, quer professora, quer aluna. Mas, se você quiser permanecer ali, precisa, em certo sentido, lembrar de si mesma - porque lembrar de si mesma é sempre ver a si mesma como um corpo num sistema que não se acostumou com a sua presença ou com a sua condição física.

4 O PENSAMENTO SENTADO E DANÇAS E CAMINHADAS E OUTROS MOVIMENTOS

No livro O pensamento sentado, Baitello Junior (2012, p. 17) afirma: “[...] foi Friedrich Nietzsche um dos primeiros modernos a chamar a atenção para o pensamento que não nasce dos músculos livres em movimento e da atividade também livre”. O que Nietzsche está dizendo, entre outras coisas, é que não é bom pensar apenas através da cadeira. O pensamento precisa de ar fresco! Como bons nietzschianos, Deleuze (1992) e Foucault (2009) insistiram nisso ao afirmarem que precisamos aprender a pensar a partir do fora. “Grande ideia deleuziana, grande fórmula do aprendizado segundo Deleuze: as ideias não estão na cabeça, mas fora de nós. Elas não estão dentro, mas fora. Predominância do fora; sempre como em Foucault” (Schérer, 2005, p. 1187). Para Baitello Junior (2012), o que Nietzsche queria diagnosticar e se insurgir contra era acerca do pensamento resignado, pensamento conformado, pensamento assentado, sentado. Um pensamento que se tornou “[...] um ato sem impulsos, sem saltos, sem prontidão de movimentos, sem vivacidade, mas construído de passagens lógicas e discursividade previsível, comedida” (Baitello Junior, 2012, p. 17).

A tese central de Baitello Junior (2012) é a de que o pensamento sentado foi uma grande violência na recente história da humanidade, pois rompeu com os diversos movimentos do nomadismo. Os nômades pensavam em movimento, viviam em movimento… “É como se, para os habitantes da metrópole, o mundo de seus pensamentos, seus sonhos e suas relações com os outros flutuasse como uma miragem acima da estrada em que pisam em sua vida material real” (Ingold, 2015, p. 77). Essa suspensão, ou perda do chão, como nos fala Ingold (2015), necessita da tecnologia da cadeira para se desenvolver. E, como já vimos, ela faz parte da arquitetura disciplinar (Foucault, 1987), que, ao criar uma nova disposição no/do corpo, desabilita as materialidades e faz com que o humano se reconheça como ser sublime, uma presença sutil no/do mundo4, afinal, a “alma” o habita e o leva à existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo (Foucault, 1987).

A imposição do viver “[...] sentado é uma mudança radical de vida, uma negação da inquietude do saltador e do incansável caminhante. Significa assentar e acalmar o andarilho inquieto, sedar sua necessidade de movimento e sua capacidade de apreender (que significa agarrar) o que lhe cerca” (Baitello Junior, 2012, p. 21). Como afirma Krenak (2019), é preciso aprender a dançar. O autor nos diz mais, ao apontar que existem vários grupos que conseguem resistir a esse arranjo disciplinar:

Enquanto isso, a humanidade vai sendo descolada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra. Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes - a sub-humanidade. Porque tem uma humanidade, vamos dizer, bacana. E tem uma camada mais bruta, rústica, orgânica, uma sub-humanidade, uma gente que fica agarrada na terra. Parece que eles querem comer a terra, envoltos na terra, a organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda, tanto que as corporações têm criado cada vez mais mecanismos para separar esses filhotes da terra de sua mãe. “Vamos separar esse negócio aí, gente e terra, essa bagunça. É melhor colocar um trator, um extrator na terra” (Krenak, 2019, p. 21-22).

Esses autores estão nos dizendo coisas muito parecidas. Krenak, porém, e sua ancestralidade, está nos apontando para outra coisa: a terra. Se o movimento disciplinar toma a superfície do papel como lócus privilegiado da escritura, Krenak (2019) assinala que ainda há várias pessoas que insistem no nomadismo, agarrando-se à terra como superfície de inscrição e vivência. Aliás, essa terra, como parte fundante da dimensão sensível, também consiste na primeira superfície de inscrição das grafias. Grafias da terra no chão das superfícies de afetos. Segundo Evaristo (2012):

Talvez o primeiro sinal gráfico, que me foi apresentado como escrita, tenha vindo de um gesto antigo de minha mãe. Ancestral, quem sabe? Pois de quem ela teria herdado aquele ensinamento, a não ser dos seus, os mais antigos ainda? Ainda me lembro, o lápis era um graveto, quase sempre em forma de uma forquilha, e o papel era a terra lamacenta, rente as suas pernas abertas. Mãe se abaixava, mas antes cuidadosamente ajuntava e enrolava a saia, para prendê-la entre as coxas e o ventre. E de cócoras, com parte do corpo quase alisando a umidade do chão, ela desenhava um grande sol, cheio de infinitas pernas. Era um gesto solene, que acontecia sempre acompanhado pelo olhar e pela postura cúmplice das filhas, eu e minhas irmãs, todas nós ainda meninas. Era um ritual de uma escrita composta de múltiplos gestos, em que todo corpo dela se movimentava e não só os dedos. E os nossos corpos também, que se deslocavam no espaço acompanhando os passos de mãe em direção à página-chão em que o sol seria escrito. Aquele gesto de movimento-grafia era uma simpatia para chamar o sol.

Evaristo (2012) continua o texto afirmando a importância desse “gesto solene” para ensiná-la a ser o que se tornou. Certamente, essas experiências foram cruciais para a criação da sua noção de escrevivência, movimentos sensíveis com as escritas. Escritas ampliadas e não dominadas pelos códigos disciplinares (Figura 3). Além de Krenak (2019) e Evaristo (2012), Baitello Junior (2012, p. 39) também marca que “[...] o corte na carne da terra foi a primeira marca da escrita”. Os materiais dos suportes e das escritas vinham sempre do chão. É por isso que as palavras que designam a escrita possuem relação com corte, carne, entre outras (Baitello Junior, 2012). Ainda, para o autor, “[...] ambas, cortar e cavar, são ações que se referem a terra, ao chão e ao plano. E ambas as atividades cortantes ou perfurantes. Talvez tenhamos uma memória profunda da escrita como cicatriz” (Baitello Junior, 2012, p. 40).

Fonte: Arquivo pessoal.

Figura 3 Escritas em outras superfícies e suportes 

Para Ingold (2015), nós perdemos o chão. Não são todos que perderam o chão do mesmo modo, mas os citadinos disciplinados que desaprenderam a caminhar despretensiosamente, pois já não conseguem navegar sem planejamentos engessados e projetos que mais os retiram das caminhadas livres, despretensiosas, dos contatos mais diretos com os ambientes. “Parece que as pessoas, em suas vidas diárias, apenas roçam a superfície de um mundo que foi previamente mapeado e construído para elas ocuparem” (Ingold, 2015, p. 86). O que o autor ressalta é que os pés nos aproximam do solo, pois

[...] já vimos como as práticas de viagem orientada para um destino encorajam a crença de que o conhecimento é integrado não por caminhos de movimentos de pedestres, mas através da acumulação de observações feitas a partir de pontos sucessivos de repouso. Assim, tendemos a imaginar que as coisas sejam percebidas a partir de uma plataforma fixa, como se estivéssemos sentados em uma cadeira com as pernas e os pés inativos (Ingold, 2015, p. 88).

O desleixo que muitas vezes apresentamos com o solo é semelhante ao descaso com os pés. As mãos representam a civilidade e os pés são responsáveis pelos movimentos necessários - desde que a pessoa saiba para onde vai e o que está fazendo. Assim sendo, os pés têm de ser codificados pelos signos das mãos em sua união com a cabeça. Quem diria que a pedagogização do conhecimento (Varela, 1994) criou uma disposição corporal geral, reforçada e propagada pelos modos usuais de se “fazerpensar” currículos, que cria uma disposição geral do corpo, por meio do qual os movimentos são determinados pelo controle realizado pela parceria mãos-cabeça, em que os pés são colocados a serviço das “boas ações”, ou melhor, das condutas tidas como civilizadas. “Onde a bota, reduzindo atividade de caminhar à atividade de uma máquina de pisar, priva os usuários da possibilidade de pensarem com os pés, a cadeira permite que os sedentários pensem sem absolutamente envolverem os pés” (Ingold, 2015, p. 77). Questionar tal enquadramento do corpo passa, necessariamente, pela crítica ao processo de modernização e, portanto, nos leva a pensar na de(s)colonização dos cotidianos. Quando Castro (2001) afirma “somos todos indígenas”, está emitindo um alerta de que podemos habitar outros corpos, outras formas de ser e estabelecer relações com os cotidianos, com os coletivos.

A pintura de Van Gogh (Figura 4), de 1886, expondo calçados de um modo um pouco desleixado, já foi bastante analisada. O que nunca foi dito, porém, é que ela busca valorizar os pés. São justamente eles que são desvalorizados no processo de modernização - já analisado. Aliás, os estabelecimentos de ensino parecem ter verdadeira aversão aos pés.

Fonte: Arquivo pessoal. Técnica de estilização.

Figura 4 O par de sapatos por Van Gogh 

A “sociedade sentada” com a qual estamos tão acostumados hoje é em grande medida um fenômeno dos últimos 200 anos [...]. Provavelmente, não é acidente, no entanto, que a civilização que nos deu a bota de couro também nos apresentou a poltrona. Obviamente, os seres humanos não precisam sentar-se em cadeiras, mais do que precisam calçar seus pés com botas e sapatos (Ingold, 2015, p. 77).

5 O SILÊNCIO DISCIPLINARIZADO PELAS CADEIRAS E SUAS RUPTURAS PELAS CONVERSAS COM CURRÍCULOS INDISCIPLINADOS E IMPREVISÍVEIS: CONSIDERAÇÕES PARA OUTRAS CONVERSAS

As cadeiras disciplinadoras de corpos disciplinarizados são utilizadas para impor a lógica do silêncio. Aquele silêncio intimidado, voz calada pela ausência de escuta, condicionada às fronteiras invisíveis contornadas pelas cadeiras que impõem corpos silenciados, sob uma linguagem de um corpo curvado para baixo, no gesto submisso de baixar a cabeça, fechar a boca e comportar o corpo naqueles centímetros de espaço demarcado, espaço duro, lugar rígido.

No entanto, esse silêncio não é todo calado. Na linguagem do silêncio, há um corpo manifestado em resistência e criação, que subverte a forma, que ora olha para o lado, que cutuca com os pés o colega da frente, que cola chiclete debaixo da carteira, que rabisca a mesa e, na virtualidade da imaginação sustentada nesse silêncio, transcende aquele corpo a outras materialidades, por “sentirpensarimaginar” outros “espaçostempos.

O silêncio e a ausência da escuta aspirada pelo medo e controle que a cadeira comporta produzem uma linguagem. O corpo como movimento e linguagem é, porém, um corpo político. Assim Larrosa (2004, p. 173) nos ajuda a colocar a cadeira de pernas para o ar:

[...] tanto o corpo (porque é linguagem) como a linguagem (porque é corpo) escapam ao seu controle pedagógico, a qualquer tipo de controle. Quando a vida humilha, a vida resiste e rebela. E tanto o corpo quanto a linguagem são vivos. Talvez por isso assistimos também hoje à rebelião dos corpos (negados ou fabricados) e à rebelião das linguagens (submetidas e/ou incitadas). [...] o funcionamento massivo de dispositivos de administração dos corpos perigosos não impede a proliferação de corpos inassimiláveis.

Virar as cadeiras de pernas para o ar é um convite a romper com os silêncios impostos pelas cadeiras dominantes (Figura 5). E no balanço das cadeiras, no gingado de corpos pretos e pretas, indígenas, quilombolas, campesinos, urbanos, crianças, mulheres e homens, nos colocamos nas conversas silenciosas dos currículos imprevisíveis e, por isso, indisciplinados. São os Currículos de cócoras, currículos deitados, currículos em pé, currículos da gira, currículos enviesados, e até currículos sentados, para não precisar lembrar de si mesma, para esquecer da imagem de um corpo em um sistema que teve de reconhecer a presença e a condição física das Outras, Outres e Outros.

Fonte: Arquivo pessoal.

Figura 5 Uma cadeira 

Como corpos políticos “praticantespensantes” na/da educação com os cotidianos, nos propomos a ir além dos currículos disciplinantes (Figura 6), libertar os corpos das cadeiras e evidenciar os “conhecimentossignificações” atravessados e criados por esses corpos barulhentos.

Nós damos a palavra ao corpo e queremos escutá-lo, mas, às vezes, é o corpo quem toma a palavra (ou a palavra a quem toma o corpo) para dizer, de uma forma intolerável, tanto os limites do que se pode dizer como os do que nós queremos (ou podemos ouvir). Ninguém sabe o que pode um corpo (Larrosa, 2004, p. 174).

Figura 6 …esperar!!! 

REFERÊNCIAS

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NOTAS:

1 Conversando acerca do privilégio conferido ao movimento ascendente mão-cabeça, bastante valorizado em quase todos os desenhos curriculares, o orientando de Mestrado de um dos autores, Maurício Fernandes, afirmou: “O currículo ainda é muito cadeirocentrado”. Não podemos deixar de compreender que o envolvimento com a arte rompe com esse centramento. Também podemos pensar nos desenhos curriculares dos indígenas, dos quilombolas, das marisqueiras, das dançarinas, das musicistas etc. Enfim, os movimentos cotidianos como r-existência à anátomo-política disciplinar.

2 A cadeira como constituição e delimitação de um próprio (Certeau, 2014).

3 É interessante percebermos, como aponta Arroyo (2012), que a cadeira, nos “espaçostempos” das escolas, pode servir como neutralizadora das demandas do corpo. O corpo sofre uma suspensão que o arranca das suas pertenças e filiações. Desse modo, o/a professora/a poderá desenvolver relações mais abstratas, como se os corpos não estivessem presentes, com suas diversas demandas e afetações.

4 É interessante como essa suposta condição especial da humanidade, que é um traço etnocêntrico, herdado do processo de colonização, sempre fora associada ao elemento éter. É como se a elevação do chão fosse condição necessária para nos tornar “verdadeiramente humanos”; como se o humano só pudesse florescer por meio de processo de espiritualização que o destaque das coisas mundanas. É por isso que Krenak (2019) afirma que somos criados para nos tornar ausentes no/do mundo. O que subjaz é “[...] que o ser humano, ao colocar-se de pé, pode olhar para os céus, conhecer os deuses (ou Deus), e exercer domínio sobre todas as criaturas” (Ingold, 2015, p. 81).

Recebido: 18 de Outubro de 2022; Aceito: 13 de Dezembro de 2022; Publicado: 30 de Novembro de 2023

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