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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub 26-Feb-2024

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e59670 

Artigos

Pensarfazernarrar experiências instituintes no currículo da educação básica em uma escola indígena

Thinkfazernarrating experiences institutes not curriculum of basic education in an indigenous school

Pensar-hacer-narrar experiencias institucionales en el currículo de educación básica en una escuela indígena

Maria Martinha Barbosa Mendonçai 
http://orcid.org/0000-0001-9714-0488

Regina Aparecida Correia Trindadeii 
http://orcid.org/0000-0001-6787-5029

Mairce da Silva Araújoiii 
http://orcid.org/0000-0003-1434-7796

i Doutoranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense e Mestre em Educação pela Faculdade de Formação de Professores/Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP - UERJ). Professora da Educação Básica SME-Maricá. E-mail: friduxa13@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-9714-0488.

ii Doutora em Educação pela Faculdade de Formação de Professores/Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP - UERJ). Técnica em Assuntos Educacionais na UFRJ. Professora Tutora do curso de Licenciatura em Pedagogia da Unirio EaD. E-mail: ginatrindade@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-6787-5029.

iii Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora titular na Faculdade de Formação de Professores/Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP - UERJ). E-mail: mairce@hotmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-1434-7796.


Resumo

Este trabalho, de caráter investigativo e dialógico, problematiza a experiência de pensarfazernarrar e a construção de um currículo na educação básica em uma escola indígena no Município de Maricá - Rio de Janeiro, tendo como campo investigativoepistêmico a discussão curricular intercultural crítica e a perspectiva do movimento de reflexão com o cotidiano como um campo de pesquisa, a partir da perspectiva de ações alternativas, antihegemônicas e instituintes. Compreende-se que o respectivo campo curricular em escolas indígenas traz um tensionamento na elaboração de um currículopraticado que de fato possa ser emancipador e libertário para as comunidades escolares indígenas em seu processo educativo.

Palavras-chave: movimentos instituintes; educação básica; educação indígena; currículo

Abstract

This work, of a qualitative, investigative, dialogic nature, problematizes the daily experience of thinking about making narrate and the construction of a curriculum in basic education in an indigenous school in the Municipality of Maricá - Rio de Janeiro, having as an epistemic investigative field the intercultural curricular discussion critique and the perspective of the reflection movement with everyday life as a field of research, from the perspective of alternative, anti-hegemonic and instituting movements. It is understood that the respective curricular field in indigenous schools brings tension in the elaboration of a practiced curriculum that can in fact be emancipatory and liberating for indigenous school communities in their educational process.

Keywords: instituting movements; basic education; indigenous education; curriculum

Resumen

Este trabajo, de carácter cualitativo, investigativo, dialógico, problematiza la experiencia cotidiana de pensar el hacer narrar y la construcción de un currículo en la educación básica en una escuela indígena del Municipio de Maricá - Rio de Janeiro, teniendo como campo epistémico de investigación la crítica de la discusión curricular intercultural y la perspectiva del movimiento de reflexión con la cotidianidad como campo de investigación, desde la perspectiva de los movimientos alternativos, antihegemónicos e instituyentes. Se entiende que el respectivo campo curricular en las escuelas indígenas trae tensión en la elaboración de un currículo practicado que pueda ser de hecho emancipador y liberador para las comunidades escolares indígenas en su proceso educativo.

Palabras clave: movimientos instituintes; educación básica; educación indígena; currículo

1 DESAFIOS INICIAIS

Diante do cenário cada vez mais precário de políticas públicas no Brasil, de acesso à educação gratuita, laica e de qualidade emancipatória de gestão pública, destinado às classes populares (Cunha, 2016; Freitas, 2018), sobretudo, em um momento atravessado pelos efeitos devastadores de uma pandemia e pós-pandemia para a sociedade em geral e, em especial, para as instituições públicas de educação básica, nos colocamos em reflexão compartilhada sobre os sentidos instituintes que permeiam, não somente nossas práticas e percepções de pesquisas, mas também, nossa compreensão sobre o fazer crítico docente, tendo como manifestação o currículo praticado (Oliveira, 2012). Tomamos a educação básica, e nela, o primeiro segmento do ensino fundamental em uma escola municipal indígena, em um município do Estado do Rio de Janeiro, como chão investigativoformativo1, ponto de partidachegada na materialização deste artigo.

Importante situar, nestas linhas iniciais, que a experiência compartilhada, narrada neste artigo, objeto de pesquisa acadêmica, se materializa como voz de resistência, de luta, como um registro que se firma na contramão, a contrapelo dos diversos ataques e silenciamentos direcionados especificamente às populações e comunidades indígenas em solo brasileiro, sobretudo, ao longo dos últimos anos, respaldados por uma política nacional negacionista e genocida (Machado, 2020), representando um movimento alternativo de respeito e compromisso com a pauta indígena.

Diariamente os desafios às comunidades indígenas são revelados na ausência de garantia de direitos fundamentais, quanto ao direito à terra, quanto a produção da existência de seus corpos, alimentos, culturas e tradições; presentes também na tensão cotidiana destes territórios, estes que visam exterminar os povos originários em prol de ações que favoreçam o capital, a expropriação abusiva e devastadora da natureza, ao aniquilamento de outra forma de pensar a existência, a relação com o meio ambiente e a produção da vida, em um processo apontado por Catherine Walsh como: “não só na desumanização do ser, mas também na negação e destruição de sua coletividade diaspórico civilizatória e sua filosofia, como razão e prática de existência” (Walsh, 2009, p. 15).

Desta forma, ao mesmo tempo em que propomos este artigo também trazemos uma perspectiva política de pensar o compromisso social e emancipador da educação, o compromisso de refletirmos sobre as práticas escolares embricadas, encarnadas em perspectivas de sociedade, de mundo e de produção de existência, o que nos convidam a um diálogo com o legado freiriano, sobretudo quando Paulo Freire nos afirma que é impossível separar a educação da política, da ética e da estética como concepção e produção da existência humana em sociedades a partir de uma perspectiva emancipatória e libertária (Freire, 2005).

Nesta direção, dialogaremos com os sentidos atribuídos aos movimentos instituintes para pensar a educação pública, seus desafios e potencialidades tecido por Célia Linhares com Lúcia Heckert (2009) e com Carolina Brito e Marina Praça (2013) que embora tenham sido escritos em um tempo anterior ao que vivenciamos, trazem elementos que nos auxiliam a pensar os desafios da escola, enquanto uma instituição pública, na qual os interesses privados do capital e do controle curricular, dentre outros, estão sempre buscando formas de domínio hegemônicos e padronizadores.

Pensando mais especificamente na realidade, no cotidiano da instituição pública na qual abordaremos neste artigo, acreditamos que os movimentos e experiências instituintes se dão no sentido de serem tecidos em uma realidade diferenciada, em uma escola indígena situada em um contexto específico, em um território, a Tekoa Ara Hovy, Aldeia Céu Azul, localizada no Município de Maricá, no Estado do Rio de Janeiro, compondo uma de duas escolas localizadas nesta rede municipal de educação. Esta escola, em particular, criada em 2015, vem buscando “sulear” (Freire, 2005) práticas educativas, tensionando a compreensão dos currículos normatizados, padronizadores e hegemônicos, discutindo caminhos alternativos que sejam a partida, travessia e a chegada de um conhecimento situado, transformador, que se quer significativo para seus sujeitos e sua comunidade.

Faz-se necessário para entender os aspectos educacionais da comunidade Tekoa Ara Hovy, Aldeia Céu azul, compreender o processo histórico de sua construção. A escola está localizada em uma área de 34 hectares, área em que o Cacique Félix Karai Brisuela, com sua família extensa, proveniente do Espírito Santo, recebeu como doação em 2013 de Alberto Alvares, cineasta Guarani, que a recebeu, anteriormente, em doação também. O grupo, de cinco famílias que originalmente ocupou a área somando 25 pessoas, hoje conta com 10 famílias totalizando, aproximadamente 40 indivíduos entre bebês, crianças, jovens e adultos.

A dinâmica territorial é um aspecto fundamental da cosmologia Guarani, como aponta o Cacique Félix em sua narrativa registrada no filme Caminho do Tempo,

Para chegarmos até aqui, caminhei muito com os meus filhos, pelas aldeias na nossa vinda. Vimos muitas aldeias bonitas, ficamos contentes com isso. Depois, não quis mais caminhar e pedi a Nhanderu para arrumar um lugar, que tivesse mata, que a gente pudesse encontrar o lugar revelado. Com essa busca, caminhamos de Santa Catarina, passamos por São Paulo, Rio e fomos até Espírito Santo. Encontramos algumas dificuldades no Espírito Santo, já estávamos cansados e não queríamos mais caminhar, então pedimos a Nhanderu para revelar o lugar onde pudéssemos viver. Não queríamos mais caminhar. Depois chegamos aqui, vimos e achamos que o lugar não era muito bonito. Mas tem uma coisa bonita para nós. Vimos mata, e é isso que procuramos, enfim, encontramos perto do mar, o lugar que procurávamos. (Alvares, 2017).

O território para os Mbya é base estruturante da sua cultura, ou seja, do território emana as bases da saúde, a educação, o exercício da sua espiritualidade, a manutenção da palavra e da língua. No entanto, apesar de estar localizada dentro da Serra da Tiririca2, interior da Mata Atlântica, a terra não é boa para plantar, sendo pobre e cheia de pedras, além de muito íngreme, o que se tornou, ao longo do tempo, um óbice para o acesso dos mais velhos e até mesmo das crianças, além disso, a limitação de abastecimento e reserva de água nessa localidade é uma das questões essenciais que impossibilita um modo de viver pleno.

A principal fonte de renda é a venda de artesanato, como cestos de palha, biojóias de semente e miçangas, bichinhos de madeiras, dentre outros, que são vendidos durante as visitas de não indígenas ao território, nas feiras de artesanato na cidade, pela lojinha da internet, organizada pela professora da escola, e/ou através das redes de amigos e/ou em eventos na cidade de Maricá e cidades vizinhas. Além disso, recebem o valor fixo de R$ 300,00 no cartão Mumbuca3, moeda local que compõe uma política pública municipal de assistência social assemelhada ao antigo projeto federal Bolsa Família.

Pensarpraticar a escola cotidianamente, nesse contexto, nos coloca, de forma mais contundente, diante do desafio de reconhecer as diferenças culturais, linguísticas, políticas e do campo da espiritualidade, ainda mais por se tratar de um povo que representa um grupo minoritário em relação à sociedade nacional e local, suscitando de sobremaneira o uso de diferentes estratégias de resistências.

Desta forma, estruturamos o presente artigo, tendo como ponto de partida a reflexão sobre os sentidos das experiências instituintes, estes como resposta política aos desafios da educação, pertencentes à realidade de uma escola indígena criada recentemente, que vem se constituindo na dinâmica integrada com a comunidade e com a rede municipal de educação. No segundo momento, problematizamos a questão curricular, que se constitui a partir do tensionamento da discussão identitária, cultural, descolonizadora inerente ao currículo praticado que se quer crítico, intercultural, materializado na prática cotidiana como um currículo bilingue.

2 EXPERIÊNCIAS INSTITUINTES COMO RESPOSTA POLÍTICA AOS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO

No horizonte epistêmico, formativo e investigativo, que inspira nossas ações de pesquisa, a discussão sobre os sentidos do instituinte e seus tensionamentos com o instituído está recorrentemente presente, provocada pelos desafios cotidianos de nossas práticas docentes.

O Grupo de Pesquisa Alfabetização, Memória, Formação Docente e Relações Etnicorraciais - ALMEFRE, grupo de pesquisa do qual somos parte, tem nos instigado a aprofundar e ampliar reflexões para melhor compreender os tensionamentos entre contextos de produção de políticas públicas, de propostas e concepções de formação docente, considerando a compreensão acerca da pluralidade presente na criação curricular cotidiana (Oliveira, 2012), presentes nas narrativas docentes dos participantes do referido grupo de pesquisa.

Tais movimentos tem nos conduzido a reafirmar o princípio educativo do trabalho pedagógico como um pensarfazer docente intencional, criativo e criador, portanto, instituinte, que não se desvincula do instituído, conforme nos apontam as autoras, ao afirmarem que,

As experiências instituintes não se encontram sob nenhum tipo de redoma que as pudessem separar do que já está instituído. Pelo contrário. Umas e outras estão sempre juntas e em litígios, buscando expandir-se, ou seja, penetrar no espaço e tempo histórico. Se as experiências instituintes procuram desdobrar-se em movimentos criadores e estremecer o que foi organizado pela história, o instituído também procura incorporar o que ainda está se processando, buscando institucionalizar, normatizar o instituinte (Linhares, Heckert, 2009, p. 6).

Assim, em ressonância com Célia Linhares e Ana Lucia Heckert compreendemos que a dimensão dos sentidos de instituintes, realizadas nas práticas pedagógicas, educativas, em escolas públicas com estudantes das classes populares reafirmam o trabalho docente como um princípio educativo, superando e transgredindo a perspectiva do docente como mero reprodutor, acrítico, como um executor técnico de ações pensadas e planejadas por outros, normatizadas, instituídas, esvaziadas de sentidos articuladas a uma perspectiva de atuação docente alienada e alienante.

Entendemos também que não é possível situar o instituinte em uma oposição simplificada, reduzida e dicotomizada ao instituído, uma vez que é a partir do instituído que o instituinte pode e, costuma nascer. O instituinte se dá no bojo das relações instituídas, institucionais, desta forma, a relação entre um e outro se dão em um atravessamento complexo, capilar, cuja relação não pode ser entendida como uma mera e simplificada oposição e/ou polarização.

Também compreendemos que as práticas pedagógicas educativas instituintes são tecidas em uma espécie colcha de retalhos, de tecituras que indicam movimentos coletivos de resistência da educação e da prática docente, de resistência aos modelos curriculares, que se querem, em sua grade maioria, hegemônicos, impostos, excludentes, desiguais, opressores, mantendo viva, neste processo de resistência, a reinvenção da escola por meio de seus sujeitos e de seus processos criadores, a autonomia de um fazer docente que pretende se constituir em sua inteireza e não fragmentado, esvaziado, desmotivado e sem sentido.

[...] as experiências instituintes são ações políticas, produzidas historicamente, que se endereçam para uma outra educação e uma outra cultura, marcadas pela construção permanente de um respeito à vida e uma dignificação permanente do humano em sua pluralidade ética, numa afirmação intransigente da igualdade humana, em suas dimensões educacionais e escolares, políticas, econômicas, sociais e culturais (Linhares; Heckert, 2009, p. 6).

Dialogamos com Celia Linhares e Ana Lucia Heckert (2009) que nos convidam a pensar nos movimentos, que também compreendemos como fecundas as “experiências”, se aproximando do sentido deste termo cunhado por Larrosa (2011), de algo que nos toca, nos atravessa, nos tomba e transborda em nós de sentidos, nos transformando neste processo da estar na experiência.

Situamos, em acordo com Peixoto e Oliveira (2016, p.407) que o movimento de pesquisa narrativa, presente na troca de experiências e conhecimentos entre os diferentes sujeitos nos provoca uma gama de possibilidades na compreensão das politicaspraticaseducativas cotidianas. Desta forma, ainda segundo os autores é necessário tecer narrativas docentes como um movimento fecundo que nos auxiliam na compreensão de que narramos o que somos para saber quem somos. Para os autores as narrativas mobilizam a expressão de conhecimentos praticados na vida cotidiana de seus sujeitos. Desta forma, em consonância com Peixoto e Oliveira (2016), situamos o ato de narrar o cotidiano indígena vivenciado pela(s) autora(s) deste artigo.

Diante dos desafios de diversas ordens instaurados no campo da educação pública, sobretudo nos últimos anos, que atingem a autonomia deste pensarfazernarrarcriar, entendemos os movimentos instituintes como experiências que surgem no sentido de construir caminhos alternativos, brechas nos cotidianos educativos, que aproximam o pensarfazer docente de suas/seus sujeitos, os/as transformando nesta experiência, reafirmando neste processo o sentido e o compromisso da educação emancipadora, conforme apontou Célia Linhares e Ana Lucia Heckert (2009).

A partir do que as autoras definem como experiências instituintes situamos, conforme a seguir, a narrativa trazida a partir do cotidiano de uma escola indígena, sua problematização, indagações, tomando como referência a necessidade contínua de criação e de reinvenção de práticas educativas, de currículos, historicamente normatizados, hierarquizados, colonizados, excludentes, para os quais temos plena clareza de que a resistência se dá em diversos âmbitos e lutas, porém, focaremos em particular na experiência da reflexão, problematização e reconhecimento da pauta indígena na educação.

3 ÁGUA QUE CORRE ENTRE PEDRAS... ENTRE DESVIOS E CAMINHOS A SEGUIR

Utilizar as brechas, como a água que corre entre pedras para nunca parar de correr é a reflexão que trazemos das experiências cotidianas vivenciadas na Educação Escolar Indígena numa escola Guarani da rede municipal de Maricá, município do Estado do Rio de Janeiro.

A água viva precisa seguir seu caminho, não pode parar... e, para isto, vai buscando frestas, contornando pedras, encontrando caminhos, alimentando o solo, animais e seguindo seu rumo, um caminhar que se constitui no próprio ato de se fazer caminhante.

Assim pensamos a educação escolar indígena, como esta água, que não pode parar, precisa seguir, avançar, transbordar em contextos e territórios, precisa ampliar debates e reflexões acerca de seus fazeres, seus pensarfazeres na educação, compartilhando a realidade que lhe é tão peculiar e, ao mesmo tempo, tão plural e que tem muito a nos ensinar.

A escola indígena em questão se localiza no território Tekoa Ara Hovy, na Aldeia Céu Azul, que fica na localidade de área de reserva ambiental na Serra da Tiririca em Itaipuaçu. Esta escola que atende as crianças e adolescentes Mbya Guarani é uma pequena construção de aproximadamente 50 metros quadrados que não teve mais que 16 estudantes matriculados desde sua fundação em 2015 contando, atualmente, com uma professora não guarani e um professor da Mbya Guarani oriundo desta comunidade.

Portanto, para esta escola, fazer-se multisseriada, bilíngue e diferenciada é um processo que se constitui inerente a sua existência, pois, apesar de haver previsão legal nas diretrizes nacionais para a Educação Escolar Indígena no Brasil, não há ainda uma regulamentação local sobre este tema. Assim, enquanto o Projeto Político Pedagógico Indígena - PPPI, manteve-se em construção durante o isolamento social da Pandemia de Covid-19, o currículo praticado, que se faz cotidianamente com as/os professores, comunidade, estudantes permaneceu cada vez mais vivo. Conhecimentos, valores, línguas, concepções de mundo foram e vão sendo cotidianamente compartilhados e (re)significados nas relações estabelecidas, buscando compreender as demandas da comunidade, sua cultura, tradições, como também, construir uma outra forma de produzir conhecimentos pedagógicos para além dos modelos e normativas instituídas pela Rede Municipal, estes muitas vezes pensados sobretudo para as demais escolas regulares e não indígenas.

Para Arroyo, quando refletimos sobre os territórios em disputa nos espaços escolares o currículo tem uma posição central. Explica o autor,

O foco mais próximo é no currículo. Por quê? Na construção espacial do sistema escolar, o currículo é o núcleo e o espaço central mais estruturante da função da escola. Por causa disso, é o território mais cercado, mais normatizado. Mas também o mais politizado, inovado, ressignificado. Um indicador é a quantidade de diretrizes curriculares para a Educação Básica, Educação Infantil, Ensino Fundamental de 9 (nove) anos, Ensino Médio, EJA, educação do campo, indígena, étnico-racial, formação de professores etc. Quando se pensa em toda essa diversidade de currículos sempre se pensa em suas diretrizes, grades, estruturas, núcleos, carga horária: uma configuração política do poder (Arroyo, 2013, p. 13).

A concepção do autor auxilia na compreensão dos tensionamentos que o campo curricular suscita nas práticas pedagógicas e que sabemos ir além das prescrições normativas, das diretrizes. Muito embora a construção de sistemas escolares por meio de diretrizes e outras normativas seja, de fato, uma política do poder, compreendemos que o currículo permeia todos os processos ideológicos, ocultos, silenciados, explícitos que perpassam as relações sociais e para nós interessa pensar nas relações educativas e escolares, em torno de um conhecimento que se constitui em determinado contexto, em um cotidiano territorializado.

Contudo, vale mencionar novamente o quanto o processo de pensarfazer o currículo das escolas indígenas na rede municipal de Maricá ainda é um processo a ser trilhado contínuamente pelos sujeitos imersos e participantes dele, um processo recente, que está se constituindo com a participação e tensionamento das/os sujeitos envolvidos.

Desta forma, é importante destacar que a escola mencionada, como campo de uma pesquisa investigativaformativa é uma escola relativamente recente, em um território cedido, que não foi devidamente apropriado pela comunidade Mbya Guarani, o que revela ser um óbice no enraizamento das propostas e práticas pedagógicas curriculares como forma de materialização dos projetos escolares que se ampliam na relação entre natureza e conhecimento.

Situamos, brevemente, uma discussão importante trazida por Aníbal Quijano (2014, p. 636) sobre o termo “indígena”.

Para ese propósito es indispensable abrir de nuevo la cuestión de lo “indígena” en América Latina. Pero, en esta ocasión en un espacio limitado, me restringiré a plantear las propuestas más significativas para su indagación y debate.

En primer término, es necesario reconocer que tanto los que hoy se autoidentifican como “indígenas” en vez de “indios”, como aquellos otros que admiten ahora identificarlos como “indígenas”, “nativos”, “aborígenes” u “originarios”, son exactamente lo mismo, si se trata del lugar de su nacimiento o, incluso para una inmensa mayoría, si se trata de la “antigüedad” de lo “aborigen”, pues parcial o total, de su linaje familiar.

Esto es, desde esa perspectiva todos y cada uno de cualquiera de ambos lados caben, exactamente, bajo los mismos calificativos identificatorios. En cambio, los unos y los otros no son lo mismo, de ninguna manera, si se trata de su relación con los “blancos” y con lo “europeo”.

Y esa es, precisamente, la cuestión: cualquiera de tales “categorías”, en América, en especial en América Latina, sólo tienen sentido en referencia al patrón de poder que se origina en la experiencia colonial y que desde entonces no ha dejado de reproducirse y desarrollarse manteniendo sus mismos fundamentos de origen y de carácter colonial. En otros términos, se trata de un patrón de poder que no deja, no puede dejar, su colonialidad.

Neste sentido, não podemos separar, dissociar a discussão sobre a constituição do que consideramos “indígena” da história de poder colonizadora e dominante, sobretudo, no território da América Latina, do qual pertencemos.

A participação da(s) autora(s) deste artigo neste espaço institucional tem início a partir de maio de 2019 quando sua composição contava com crianças na Educação Infantil até o 5º ano do Ensino Fundamental I, com professores em bi docência, um professor Guarani e outro juruá, (que significa não indígena) em duas turmas. Atualmente contamos somente com uma dupla de professores que garante a bi docência em uma turma de apenas seis crianças de 3º a 5º ano de escolaridade no primeiro segmento do ensino fundamental nesta escola.

É nesse contexto que apontamos as práticas instituintes, reconhecidas por nós como reexistências no cotidiano, que vão construindo uma educação diferenciada apesar das muitas limitações impostas tanto pelas circunstâncias de ordem político-estruturais (a questão da sobrevivência da aldeia numa terra que não é boa para agricultura, as condições socioeconômicas, dentre outras), quanto pelos desafios do trabalho pedagógico em si.

Conforme aponta Arroyo (2013, p. 76-77),

uma constatação é que os currículos e os livros didáticos são pensados como espaços de saberes, de conhecimentos e de concepções, descolados de vivências da concretude social e política. Sobretudo, descolados dos sujeitos humanos produtores dessas vivências sociais e dos conhecimentos.

Compreendemos que este descolamento que muitas vezes caracteriza o currículo oficial, presente nas diretrizes e nos livros didáticos a que se refere Arroyo, cumpre uma função importante dentro de uma lógica de controle, de domínio hegemônico e, para além dele, também revelam os espaços curriculares como espaços tensionados, territórios de disputas e de construção de identidades.

O fazer pedagógico cotidiano na Educação Escolar Indígena da Aldeia Céu Azul, assim, na busca por construir caminhos para superar limitações de toda ordem, inclusive de materiais didáticos específicos em língua materna ou bilíngue, se assemelha, por vezes, a água do córrego que contorna a pedra-empecilho com intuito de continuar a fluir da água, e nos possibilita movimentar perspectivas outras da/e/com as infâncias sejam elas indígena ou juruá (não indígena).

Pensarfazer uma educação escolar indígena, em outras palavras, praticar um currículo na Aldeia Céu Azul, pressupõe entender que não existe uma Educação Escolar Indígena sem Educação Indígena, por considerar os sujeitos que estão envolvidos no processo aprenderensinar. Um exemplo disso pode ser apontado na diferença de concepção da relação entre corpo espírito para as culturas. Assim, diferente da visão dicotômica, marca das culturas ocidentais, que separa corpo e espírito, o povo Mbya Guarani percebe essa relação como indissociada e definidora de seu modo de ser e viver. A relação corpo-espírito envolve reciprocidade e circularidade e é identificada como Mbya Reko. Para o Mbya reko, todos os elementos são indispensáveis, dentre eles a Opy, Casa de reza, que é um elemento estruturante da aldeia, pois é, nesse lugar, sagrado, que a comunidade Guarani, busca sabedoria nas rezas e conselhos dos Xeramõi, anciãos da aldeia.

Por isso, a Opy é o principal símbolo da educação tradicional, pois, a tradição é indispensável na composição da pessoa Guarani, mas isto não quer dizer que ela é um elemento isolado, a língua, o território e as condições que este território tem para se viver a cultura, que envolve a educação guarani, a saúde e os modos de plantar colher, caçar, entre outros, são elementos fundantes da comunidade Mbya Guarani.

Outro elemento fundante do modo de viver guarani é a relação dos Mbya com as crianças - Kyringue, elas são vistas e tratadas como sujeitos especiais, que devem usufruir da liberdade para adquirir os conhecimentos da comunidade e, isso não quer dizer que as crianças estão “largadas” para fazem tudo o que querem, como pode parecer aos olhos do Juruá (não indígena), mas que elas estão vivenciando seus modos próprios de aprender, que recebem aconselhamentos, mas, deixando-as criança experenciar de forma plena. “Os adultos não se intrometem no fazer das crianças, apenas a deixam-na experimentar, deixam que elas participem de tudo o que acontece na aldeia do jeito que bem entendem” (Nobre, 2016, p. 27).

Diante desse modo de ser e viver, as tensões estão sempre presentes na relação da escola/comunidade, escola/comunidade externa. E é basicamente por isso que são grandes os desafios, pois apesar de alguns documentos oficiais exaltarem a diversidade, no cotidiano as relações se dão por outros caminhos. Compreender a diferença, respeitá-la, mas, principalmente garanti-la é o grande desafio enfrentado hoje por quem atua na Educação Escolar Indígena, principalmente, no caso de escolas como a nossa, que são parte de uma rede municipal de ensino, portadora de práticas instituintes e normatizadas dentro de uma realidade institucional que foge à lógica dos sujeitos que constituem a comunidade indígena.

Contudo, entendemos também que o tensionamento provocado por um processo de alfabetização bilingue, que em si, remete às questões identitárias, históricas e políticas de direito ao domínio de duas línguas (Guarani e Língua Portuguesa) e nos impulsiona à reflexão sobre os sentidos instituintes do currículo que se constrói no cotidiano, mas, com a falta de água corrente que não jorra nesse grande quintal que é a escola, como enfrentamos ou mediamos os conflitos e tensões que circundam os processos educativos indígenas e a experiência escolar?

Se um dos desafios é não ter diretrizes específicas municipais para estas escolas, quantitativo de profissionais indígenas que garantam a bi docência e, consequentemente, o bilinguismo e uma interculturalidade crítica, nos organizamos com parceiros/as e tensionamos a construção do nosso Projeto Político Pedagógico junto à comunidade para os órgãos competentes, buscando aliados na relação escola/universidade a partir do pertencimento de seus sujeitos em diferentes grupos de pesquisa.

O maior dos desafios para a territorialização desta construção educacional é não estar em um território apropriado e demarcado, com água em abundância, que possibilite plantar, tratar de forma tradicional as doenças dessa comunidade, viver de fato o Mbya Reko, o modo de viver dos Mbya Guarani.

A questão da demarcação do território tem sido, a partir das pressões da própria população Mbya Guarani, acompanhadas pela Secretaria de Direitos Humanos - SDH local, que cuida das questões da demarcação do novo território no Município de Maricá. Mesmo em um território que ainda não é próprio, ainda se faz possível, por meio das ações da escola e comunidade, produz pequenos projetos de horta escolar para que as crianças reafirmem o plantar, tão importante no seu modo de viver.

A luta por uma verdadeira efetivação da educação escolar indígena diferenciada, intercultural e bilíngue é parte de um todo, dentro de um território que garante a existência de um povo em sua completude e, nesse sentido, cumpre a tarefa de fazer um chamado, ainda que não intencional, para a necessidade de se repensar o papel da escola no passado e no presente, que possa movimentar-se agora para garantir uma escola do futuro, não somente para os povos originários, mas uma escola diferenciada para toda a educação brasileira.

Diante deste movimento, dialogamos com o entendimento de Arroyo no sentido de pensar os movimentos de repolitização do lugar legitimado como inferiorizado, segregado, de negação de direitos historicamente marginalizados a determinados grupos sociais. Conforme nos afirma o autor,

No momento em que os setores populares repolitizam o papel dessas representações inferiorizantes na história de sua segregação, subordinação e negação de seus direitos, o campo das representações sociais passa a ser um dos campos de disputa política, mas também pedagógica. As formas de pensar os educandos condicionam as formas de educá-lo. Condicionam o pensamento pedagógico. As teorias pedagógicas não ficam à margem dessas tensões, nem as políticas, os currículos, nem a cultura escolar e docente. São pressionadas a repensar as representações dos educandos e dos coletivos populares com que trabalham nas escolas, na EJA, na educação popular. As lógicas estruturantes do sistema escolar são pressionadas a se repensar. A cultura política tão segregadora é obrigada a se repensar (Arroyo, 2014, p. 125).

A partir do que nos traz Arroyo compreendemos que o currículo escolar possui um papel fundamental no processo de desocultamento dessas representações inferiorizantes, marginalizadas, historicamente construídas como forma de poder e domínio de um grupo hegemônico sobre o outro.

Veremos a seguir, uma discussão acerca do currículo a partir das bases epistemológicas interculturais críticas, situadas na discussão sobre o cotidiano escolar que, potencialmente vem sendo constituído na busca pela superação destes tensionamentos e, na constituição de um conhecimento significativo e transformador para seus sujeitos.

4 CURRÍCULOS INTERCULTURAIS E MOVIMENTOS INSTITUINTES PARA PENSAR OS DESAFIOS DA PRÁTICA DOCENTE NO COTIDIANO DE UMA ESCOLA INDÍGENA

No horizonte epistêmico das discussões do campo curricular, nos aproximamos da perspectiva da interculturalidade crítica, a partir do que nos traz Catherine Walsh (2009), Vera Candau (2012), compreendendo o currículo como um território de tensionamentos, de construção de identidades e, portanto, de disputa conforme nos afirma Tomáz Tadeu da Silva (2007).

A diferença, assim como a identidade, é um processo relacional. Diferença e identidade só existem numa relação de mútua dependência. O que é (a identidade) depende do que não é (a diferença) e vice-versa. [...] A diversidade tampouco é um fato ou uma coisa. Ela é o resultado de um processo relacional - histórico e discursivo - de construção da diferença (Silva, 2007, p. 101).

A partir do que nos sinaliza Tomáz Tadeu da Silva, podemos inferir que para haver um currículo voltado para uma educação indígena existem outros currículos não indígenas, institucionalizados, em sua grande maioria, e estes por sua vez não são os diferentes, mas sim, os normatizados, os legitimados, os comuns, os hegemônicos, mesmo que ainda sim possam, devam e sejam problematizados e questionados dentro de seus contextos específicos.

Dentro do que nos aponta Silva (2007), a diferença é historicamente construída e constituída pois, significa que a diferença aponta para a não igualdade e aqui nos interessa pensar a partir dos cotidianos escolares, podendo se situar explicitamente, ou não, como espaços de tensionamentos e disputas.

É a partir desta perspectiva da diferença apontada por Tadeu Silva (2007) que dialogamos com Catherine Walsh (2009) que nos convida a pensar a relação com a diferença a partir de uma estratégia crítica na perspectiva de “inclusão” desta diferença, sem, contudo, fazer com que esta ação represente algum movimento efetivo de emancipação de grupos racializados e historicamente marginalizados. Conforme nos afirma,

[...] a política multicultural atual sugere muito mais do que o reconhecimento da diversidade. É uma estratégia política funcional ao sistema/mundo moderno e ainda colonial; pretende “incluir” os anteriormente excluídos dentro de um modelo globalizado de sociedade, regido não pelas pessoas, mas pelos interesses do mercado. Tal estratégia e política não buscam transformar as estruturas sociais racializadas; pelo contrário, seu objetivo é administrar a diversidade diante do que está visto como o perigo da radicalização de imaginários e agenciamento étnicos. Ao posicionar a razão neoliberal - moderna, ocidental e (re)colonial - como racionalidade única, faz pensar que seu projeto e interesse apontam para o conjunto da sociedade e a um viver melhor. Por isso, permanece sem maior questionamento (Walsh, 2009, p. 15).

Trazemos esta discussão acerca da diferença, pois ela nos é fundamental para percebermos criticamente elementos problematizados na dimensão do pensarfazer, construir, tecer cotidianamente currículo(s) escolar(es) não institucionalizado(s) na rede municipal para escolas indígenas, uma vez que a rede está organizada, em sua grande maioria, para pensar o currículo das escolas regulares, ou seja, não indígenas. Obviamente os tensionamentos sobre a organização curricular de todas as escolas se fazem presente em seus cotidianos escolares, mas aqui, trazemos a referência de uma escola em particular, dentro de suas especificidades e multiplicidades, que se revela uma construção recente no sentido de um processo intercultural com os povos originários.

A crítica realizada por Walsh (2009) acima, se direciona à perspectiva de que “o interculturalismo funcional responde e é parte dos interesses e necessidades das instituições sociais; a interculturalidade crítica, pelo contrário, é uma construção de e a partir das pessoas que sofreram uma histórica submissão e subalternização” (Walsh, 2009, p. 21-22). Ou seja, para a autora, “o enfoque e a prática que se desprende da interculturalidade crítica não é funcional para o modelo de sociedade vigente, mas um sério questionador dele” (Walsh, 2009, p. 21).

Nesta direção, nos afirma Candau (2012, p. 240),

[...] Atualmente a questão da diferença assume uma importância especial e se transforma num direito, não só o direito dos diferentes a serem iguais, mas o direito de afirmar a diferença em suas diversas especificidades. Pessoalmente, me inclino a defender que certamente há uma mudança de ênfase e uma questão de articulação. Não se trata de afirmar um polo e negar o outro, mas de articulá-los de tal modo que um nos remeta ao outro.

Compreendemos que esta discussão sobre a interculturalidade crítica é fundamental para pensarmos a importância de uma organização escolar, sobretudo curricular a partir de uma construção crítica, visando a superação de um currículo colonizador e buscando estabelecer identidades e empoderamento na relação que se constitui na bi docência e na organização multisseriada e bilingue, uma vez que entendemos que a questão da língua se torna central nesta construção identitária que se quer libertária e não colonizadora e subalternizada.

Desta forma, é possível perguntar sempre, a partir do cotidiano que se tece nas miudezas das relações, em uma dinâmica de aprendizado mútuo, onde docentes juruás e docentes guaranis se colocam em uma relação de troca, de mútua aprendizagem, de uma construção compartilhada tendo como chão os desafios que se colocam não somente a comunidade, mas suas tradições, histórias, sujeitos, crenças, sua relação com a natureza e com uma cosmologia própria de existência integrada entre natureza, corpo, espírito que se constituem no cotidiano escolar.

Diante desta complexidade, de um cotidiano escolar, de um currículo praticado nas miudezas de uma relação que se quer sensível e compartilhada, que rompa com modelos colonizadores, instituídos e hegemônicos de um currículo eurocêntrico, nos colocamos a nos perguntar cotidianamente como Garcia: “Como lidar com o que fugia ao nosso controle?” (Garcia, 2003, p. 199). Nesta pergunta Garcia nos convida a pensar o cotidiano, em sua complexidade, pistas, dobras, conforme ela mesma nos afirma:

O cotidiano assusta, dá medo, intriga, fascina. Há quem se assuste, há quem fique intrigado, há quem morra de medo e há também os afortunados, eu diria, modestamente, mais afortunadas que afortunados, que ficam absolutamente fascinadas com o misterioso cotidiano, que vive a nos revelar em suas dobras que, ao se desdobrar, deixa aparecer o que estava escondido e que à primeira vista não aparecia (Garcia, 2003, p.193).

Regina Leite Garcia nos convida a pensar no cotidiano a partir de seus desafios, a partir do que nos revela dentro de uma rotina escolar, dentro da percepção de seus tensionamentos, problematizações, mas também dentro de uma perspectiva de fazer pesquisa com, no, a partir do cotidiano, em diálogo atento e respeitoso com seus sujeitos, sendo atravessado e se transformando nesta relação.

E, o que seria o currículo nesta relação entre cotidiano e uma cosmovisão integrada entre corpo e espírito? Entendemos que o currículo nesta escola se faz a partir das perspectivas, que se querem críticas, políticas, éticas das/os educadores em comunhão com uma visão respeitosa e receptiva dos conhecimentos, das cosmovisões que vão sendo tecidas, que vão se formando e seguindo como a água em seu curso de existência, de vida e, para a manutenção da própria vida.

Não se trata de seguir modelos prontos, assim como nos ensina o cotidiano como campo de pesquisa que se sustenta a partir do olhar atento em busca de desvelar seus mistérios ainda por serem descobertos.

Nesta direção, existem dias em que a aula, na escola indígena é do lado de fora da sala de aula. A aula, e o currículo acontecem a partir de uma curiosidade que se instaura sobre a terra, sobre o plantio, sobre alguma necessidade que emerge dos sujeitos e do cotidiano escolar. Em outros dias a sala de aula tem uma macaquinha como integrante, moradora do entorno, que adentra na sala de aula interagindo com seus sujeitos. Tem dias em que as atividades envolvem as artes, a expressão por meio da pintura, do desenho livre, e de outras formas de manifestação.

A literatura bilíngue de autores como Olívio Jekupé4, com livros como “A mulher que virou urutau” e “O presente de Jaxy Jaterê”, levada pela professora de seu acervo pessoal, dentre tantas outras atividades, como as mencionadas, que são cotidianamente (re)inventadas neste espaço, servem para ilustrar que não há como impor ou seguir padrões.

O currículo vai se tecendo a partir do que tem significado para a comunidade, para seus sujeitos, para seus estudantes. A relação entre o conhecimento não se pauta em modelos prontos, em histórias padronizadas presentes nos livros didáticos, mas sim na relação cotidiana e histórica que a comunidade estabelece com a terra, com o conhecimento a partir de uma liberdade para a curiosidade investigativa, para a curiosidade de se relacionar com a natureza, com a existência.

Como tema no cartaz oficial da escola há a frase, Em Guarani também se escreve, e a busca pela alfabetização primeiro em língua materna tem sido um desafio. No Brasil não há uma padronização da língua Guarani, o que não quer dizer que não haja produção Guarani em língua materna, seja no espaço escolar e/ou na literatura nacional. Porém, o lugar da não padronização da escrita é espaço de reexistências do povo e de sua oralidade, mas, também de conflitos, pois, enquanto uns entendem que é preciso escrever para salvaguardar a língua, outros entendem que essa padronização pode apagar a diversidade da oralidade linguística dos Guarani, já que cada comunidade escreve de acordo com sua fala.

Compreendemos que o currículo que se constitui neste cotidiano traz um tensionamento histórico, sobretudo, colocado também na questão da linguagem em seu bilinguismo (Língua Portuguesa e Guarani), afinal a língua é um instrumento de identidade e, portanto, de poder e de acesso a tantas outras construções sociais.

Também compreendemos esta relação como um campo tensionado, uma vez que existe historicamente uma hierarquização entre as línguas, uma língua é normatizada, socialmente significada e legitimada, e outra não, tendo sentido quase que exclusivamente para a(s) comunidade(s) Guarani(s). Superar esta visão desqualificadora ou hierarquizada é também um dos desafios de pensar esta construção curricular a partir do cotidiano desta escola indígena e de uma educação escolar indígena.

Em tempo, sinalizamos que compreendemos tais movimentos, que se querem de resistência e de insurgência, que tem se constituído nos e a partir dos atravessamentos cotidianos de uma educação indígena como experiências instituintes, na direção de serem estas experiências alternativas, capilarizadas, a contrapelo, que surgem no bojo das relações instituídas, mas se querem para além delas, em ações que visam a construção cotidiana de uma outra escola, de uma outra sociedade, que seja mais justa, igualitária e humanizadora.

Carolina Brito, Célia Linhares e Marina Praça apontam para a coexistência de “movimentos de uma mesma realidade: aqueles que já se apresentam como aceitos e aprovados, daqueles que vão se constituindo como sonhos e expectativas desejadas. Entre uma e outra há entrelaces, contradições e tensões” (2013, p.221).

Para as autoras a escola pública tem sido alvo de críticas e de grandes desafios, mas, ao mesmo tempo, é a partir desses tensionamentos, contradições, tensões que outras formas de pensar e praticar a educação vem se formando e colocam como questão problematizadora:

[...] por que essas tensões de uma escola que temos e que desejamos não têm sido tematizadas e discutidas, mobilizando essa reciprocidade de relações vivas que as une na escola?

É tempo de sonhar e projetar a escola nesses interstícios de experiências cotidianas, com as quais, não só nossas instituições vão sendo reconfiguradas, mas nós mesmos nos modificamos e nos recriamos (Brito; Linhares; Praça, 2013, p. 221).

Na direção deste tensionamento entre a escola que temos e a escola que desejamos é que compreendemos a relevância de narrarmos a experiência e as reflexões aqui registradas, no sentido de indicar as problematizações, as compreensões, as lutas e o caminhar nesta tecitura que se costura a um coletivo no exercício de pensar o currículo, a escola, o cotidiano escolar em movimentos instituintes.

5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES NO CURSO DAS ÁGUAS QUE PRECISAM SEGUIR O RUMO

De água somos.

Da água brotou a vida. Os rios são o sangue que nutre a terra, e são feitas de água as células que nos pensam, as lágrimas que nos choram e a memória que nos recorda (Galeano, 2012).

Eduardo Galeano nos acompanha no curso das palavraságuas que desembocam, desejam e precisam seguir. Ao longo do texto utilizamos o fluxo da água, como fonte de vida e de manutenção da vida, também como caminho que se faz necessário mesmo quando interrompido por pedras e, outros obstáculos e, que, sua força por seguir, não a deixa empoçar e parar seu trajeto.

Assim, com Galeano, reafirmamos a água como vida, como alimento e nutrição para o corpo, células, planeta, ou seja, para a vida e a permanência dela. E não há como viver sem recordarmos dos sentidos que as experiências do existir trazem, sobretudo pensadas no campo da educação, encarnadas no cotidiano educativo.

O fluxo da água aqui também desemboca palavras, que se querem pronunciadas para quem sabe, convidarem a outros pronunciares. Assim nos ensinou Freire (2005), as palavras, grávidas de sentido, de pronúncias de mundo, precisam ser pronunciadas, e, ao serem lançadas em convitesdiálógicos, possam trazer novos pronunciares, problematizados a partir das leituras de mundo que surgem por meio do exercício dialógico.

Desta forma, acreditamos, ter sido possível, a partir deste texto trazer este convite para a discussão e problematização de uma experiência escolar, curricular, localizada em uma escola indígena, recém-criada, que traz com ela os desafios de uma construção ainda por se fortalecer, mas também, a potência deste movimento, na semente que ele quer germinar em se tornar emancipador e libertário.

Os desafios que se colocam ao pensarfazer a educação escolar indígena, materializada por meio das escolhas curriculares cotidianas, são muitos, conforme pontuamos no artigo. Ela envolve uma percepção, um respeito aos elementos culturais, tradicionais, linguísticos que se fazem presentes e se constituem na cosmovisão, na constituição de seus sujeitos dentro de sua identidade e do sentido atribuído a sua (nossa) cultura.

Nos é cara a discussão acerca da diferença, da identidade no campo da educação, que traz para o território do currículo tensionamentos e conflitos de poder, de legitimação de conhecimentos historicamente em disputas, assim como destacamos a questão da Língua Portuguesa e do Guarani. A língua é um campo de construção de identidades, de representações, de acesso a memória, as tradições, de leitura de mundo que se faz importante nas relações cotidianas. Neste sentido, compreendemos a importância de uma relação entre elas de horizontalidade, respeito e valorização, seguindo na contramão de práticas institucionalizadas que hierarquizam e legitimam uma sobre a outra.

A discussão curricular traz um importante horizonte para pensarmos as relações tensionadas, que não são neutras, historicamente territorializadas na América Latina em uma relação, cuja, colonização e o exercício da dominação que se fazem presentes por meio de muitos desafios ainda por serem superados.

Neste sentido, destacamos as experiências instituintes como um dos muitos caminhos alternativos para esperançar uma educação outra, para outra base societária, mais justa, acessível, respeitosa, libertadora, democrática, cujas relações não precisem mais se pautar em currículos hegemônicos, formatados, esvaziados de sentido, hierarquizados, mas sim nas relações humanas, nas relações cotidianas com toda beleza que olhar para o cotidiano pode nos suscitar e nos ensinar, nas relações humanas, respeitosas, dialógicas e potencialmente transformadoras.

Entendemos que a luta por uma verdadeira efetivação da educação escolar indígena, intercultural e multilíngue cumpre, também, a tarefa de fazer um chamado, ainda que não intencional, para a necessidade, urgente, de repensar os saberesfazeres privilegiados na escola não indígena, tanto no passado quanto no presente. Esse chamado à descolonização do currículo na educação brasileira, é um chamado de esperançar a descolonização dos corações e mentes, especialmente, das crianças das classes populares.

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NOTAS:

1 A opção pela escrita aglutinada de algumas palavras afina-se com as justificativas de pesquisadoras/res do campo dos estudos do cotidiano e justifica-se teoricamente como um exercício reflexivo que busca a superação da dicotomia provocada por termos isolados e trazendo novos sentidos com suas junções. Tal perspectiva epistemológica foi adotada por Alves e Garcia (2012) e tem sido praticada no campo do cotidiano.

2 De acordo com Instituto Estadual do Ambiente (Inea), o Parque Estadual da Serra da Tiririca é uma área delimitada de 3.493 hectares de Mata Atlântica, de ecossistema costeiro localizado nos municípios de Niterói, São Gonçalo e Maricá, no estado do Rio de Janeiro. Foi declarado "reserva mundial da biosfera" pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura em 1992. Esta unidade de conservação é composta por uma área marinha e uma terrestre formada por uma cadeia de montanhas.

3 Mumbuca é a moeda social de Maricá, (cada mumbuca equivale a R$ 1). A moeda surgiu a partir do conceito de economia circular, nos governos do PT em Maricá, em 2013. É uma política pública de distribuição de renda para a população. Mais informações em: https://www.marica.rj.gov.br/programa/moeda-social-mumbuca/. Acesso em: 18 out. 2022.

4 Olívio Jekupé é escritor indígena Mbya Guarani e escreve literatura nativa. Sua literatura infanto-juvenil é majoritariamente bilíngue em língua Guarani e língua portuguesa.

Recebido: 25 de Janeiro de 2022; Aceito: 01 de Novembro de 2022; Publicado: 30 de Novembro de 2023

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